INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DIFERENDO ENTRE OS PAIS RELATIVO A QUESTÃO DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
CRIANÇA
DESLOCAÇÃO AO ESTRANGEIRO
PROGENITORES
Sumário

1. Na resolução do diferendo entre os progenitores relativamente a deslocações do menor ao estrangeiro com um deles, deve ponderar-se se essa deslocação salvaguarda o seu superior interesse, por contribuir para o seu desenvolvimento e para a sua formação, do mesmo modo não colocando em causa a sua segurança e/ou saúde (física e psíquica).
2. Tratando-se de viagem turística de curta duração com um dos progenitores, apresenta-se a mesma como benéfica para o desenvolvimento do menor, pelo que só não deve ser autorizada se se apurar que existe um receio sério e objectivamente sustentado de que esse progenitor vai aproveitar tal viagem para se ausentar definitivamente de Portugal com o menor, assim colocando em causa o superior interesse do menor na manutenção da residência alternada com ambos os progenitores.
3. Tal receio não pode ser afirmado pela simples circunstância de se constatar uma situação de conflito entre os progenitores e de o progenitor que pretende viajar com o menor para o estrangeiro ter nacionalidade russa (para além da portuguesa), mas sem que esteja apurada qualquer ligação especial (familiar e/ou cultural, designadamente) do mesmo ao território desse país, já que tal representa uma posição de preconceito em relação à nacionalidade de um dos progenitores, assim correspondendo a uma limitação inaceitável do direito fundamental do menor à livre circulação.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 10/5/2024 AA intentou contra BB acção para resolução do diferendo quanto à ida do filho menor de ambos, CC, a uma consulta de pediatria agendada para 14/5/2024, e bem ainda quanto à deslocação da requerente com o menor à Suécia, de 1/7/2024 a 16/7/2024 e de 1/8/2024 a 16/8/2024, a França, de 5/9/2024 a 8/9/2024, e à Áustria, de 13/12/2024 a 20/12/2024.
Alega, com relevância para as deslocações ao estrangeiro, que:
• Os avós maternos do menor residem em Malmo (Suécia), não se deslocando aí a requerente desde Dezembro de 2016, e pretende visitá-los com o menor nos períodos indicados, face à dificuldade dos mesmos de efectuarem viagens de avião, em razão da idade do seu pai (81 anos);
• A sua entidade patronal proporcionou aos seus trabalhadores uma viagem à Euro Disney de Paris (França), no período indicado e a preço acessível, pretendendo a requerente aproveitar essa oportunidade e tendo o menor ficado muito feliz por ir conhecer a Euro Disney;
• A requerente pretende levar o menor a conhecer o mercado de Natal de Viena (Áustria), no período indicado, assim proporcionando ao mesmo a magia da época festiva numa cidade com tamanha tradição, e ainda para conhecer os museus de arte dessa cidade;
• O requerido nega qualquer autorização para a saída do menor de Portugal, sem esclarecer os motivos da sua recusa, o que vem fazendo desde 2018, sempre que solicitado a autorizar a deslocação à Suécia para o menor visitar a família do lado materno, com quem não convive há anos.
Em 14/5/2024 foi proferido despacho liminar em que se autorizou a consulta de pediatria agendada para aquele mesmo dia, mais se designando o dia 17/6/2024 para a realização da conferência a que respeita o art.º 35º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e mais se conferindo natureza urgente ao processo.
Realizada a conferência na data designada, não foi aí possível obter acordo, tendo sido tomadas declarações aos progenitores e mais tendo a requerente desistido do pedido de autorização para a realização da viagem à Suécia de 1/7/2024 a 16/7/2024.
As partes foram notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 39º, nº 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
O requerido apresentou a sua alegação em 27/6/2024, resultando da mesma, em síntese, que:
• A Suécia é geograficamente próxima da Rússia;
• A requerente não possui nacionalidade portuguesa e tem nacionalidade russa, tal como o menor;
• A requerente trabalha para uma empresa com operações e presença em diversos países, incluindo a Suécia, Rússia e França, de onde resulta que a mesma não tem necessidade de estar em Portugal;
• A requerente tem feito todos os esforços para impedir a implementação da guarda partilhada do menor;
• A relação entre a requerente e o requerido é conflituosa, conflito que é promovido pela requerente, que já disse ao requerido que não quer que o mesmo seja uma presença constante na sua vida;
• A Rússia é um país que está envolvido num conflito e “de costas voltadas com o resto da Europa”;
• A partir destes indícios o requerido tem fundado receio que a requerente se possa ausentar definitivamente com o menor para a Rússia, assim impedindo o requerido de estar com o menor;
• O contacto do menor com a família materna não está colocado em causa porque os avós maternos do mesmo fazem visitas regulares a Portugal;
• A requerente pode deslocar-se ao estrangeiro sempre que quiser porque o requerido disponibiliza-se para receber o menor nesses períodos.
Apresentou documentos e arrolou três testemunhas, mais concluindo pelo indeferimento da pretensão da requerente.
A requerente apresentou a sua alegação em 1/7/2024, reafirmando o alegado no requerimento inicial e invocando ainda que:
• Reside em Portugal desde 2012 e em 2022 requereu a nacionalidade portuguesa, adquirida em 4/6/2024;
• Exerce a sua actividade profissional em regime de teletrabalho, na semana em que está com o menor, e em regime de trabalho presencial, na semana em que não está com o menor, o que lhe foi concedido pela sua entidade patronal a seu pedido, para poder acompanhar mais de perto o menor;
• O regime de guarda partilhada decorre com normalidade, inexistindo qualquer incidente de incumprimento deduzido pelo requerido, nem tendo sido pedida qualquer alteração do mesmo regime.
Conclui pedindo que se autorizem as deslocações com o menor à Suécia, de 1/8/2024 a 16/8/2024, a França, de 5/9/2024 a 8/9/2024, e à Áustria, de 13/12/2024 a 20/12/2024.
Apresentou documentos e pediu que se indeferisse a inquirição das testemunhas arroladas pelo requerido, “por constituir uma manobra manifestamente dilatória para impedir que o presente processo possa ser objecto de decisão em tempo útil, obstaculizando que a Requerente viaje no mês de Agosto com o Menor para a Suécia”.
Em 19/7/2024 foi proferido despacho em que se admitiu o rol de testemunhas do requerido, mais se designando o dia 20/8/2024 para a produção dessa prova testemunhal.
Realizada a inquirição das testemunhas na data designada, aí tendo igualmente sido apresentadas alegações orais pelas partes e pelo Ministério Público, em 21/8/2024 foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Em conformidade com o exposto, julgo a acção improcedente, consequentemente, não autorizo o menor CC, a deslocar-se, para fora de território nacional:
- de 5 a 8 de Setembro de 2024, para a Euro Disney
- e de 13 a 20 de Dezembro, para o mercado de Natal em Viena de Áustria.
Custas pela requerente”.
A requerente recorre desta sentença em 17/9/2024, sendo que na sua alegação invoca que as conclusões do recurso são aquelas que constam dos 39 pontos que aqui se reproduzem integralmente:
A. Com o mais elevado respeito, a Recorrente não pode conformar-se com a Sentença ora recorrida, entendendo que a mesma é, desde logo, nula; mas, mesmo que não seja esse o entendimento, incorre em erro de julgamento, quer quanto à decisão de facto, quer quanto à decisão de direito;
B. Contrariamente ao que se fez constar no Ponto I da Sentença ora recorrida, os autos não prosseguiram para audição técnica especializada e, portanto, não foi junto aos autos qualquer relatório sobre o qual as partes tivessem que se pronunciar, sendo que na conferência de pais foram logo notificadas para apresentar alegações em cumprimento do disposto no artigo 39.º n.º 4 do RGPTC, o que fizeram, nomeadamente, o Requerido em 27/06/2024 a fls. com a Ref.ª 39780449 e a Requerente em 01/07/2024 a fls. com a Ref.ª 39807893;
C. Ora, para além de revelar uma preocupante falta de rigor, tal irregularidade influi no exame ou decisão da causa, uma vez que, face ao que ali se fez constar, tudo indica que o Tribunal a quo nem sequer terá atendido às Alegações apresentadas pelas partes para decidir, o que produz nulidade, nos termos do disposto no artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil, que expressamente se invoca.
D. Por outro lado, verifica-se que a Sentença ora recorrida não especifica com o necessário rigor os fundamentos de facto e de direito que justificam a Decisão, limitando-se a indeferir, genérica e globalmente, o pretendido pela Recorrente, mas não fundamentando tal decisão relativamente aos factos provados.
E. No caso concreto, estamos perante uma fundamentação incompleta ou insuficiente, por referência aos concretos factos que foram dados como provados, o que se deve, inexoravelmente, a vício grosseiro, grave e manifesto, que deve ser equiparada à falta absoluta de fundamentação - na medida em que a Sentença não especifica quais os concretos Factos dados como provados que preenchem o requisito de “receio fundado” que julgou verificar-se, a permitir a conclusão de que “existe objectivamente justo e fundado receio em que a requerente se possa ausentar-se definitivamente do país levando o menor e impedindo que o pai possa mais estar com o filho, em detrimento desta criança e dos seus laços familiares básicos”; nem quais os concretos Factos dados como provados em que se baseia para a ponderação (...) que possa ser de valia própria à mãe afastar‑se do território nacional com o menor, para sua própria paz e serenidade”.
F. A Sentença refere-se a “particularidades” e a “indícios”, sem especificar uns e outros e muito menos por referência aos factos provados.
G. Por isso, não aplicou o direito a factos, tornando-se, assim, ambígua ou obscura, o que impede que seja compreendida de forma clara e inteligível pela ora Recorrente. Assim, a Sentença ora recorrida é nula, por falta de fundamentação, nulidade que expressamente se invoca.
H. No que toca ao erro de julgamento de facto: na modesta opinião da ora Recorrente, foi incorrectamente julgado o ponto 12. dos Factos dados como Provados, o que expressamente se impugna pelo presente recurso.
I. Verifica-se que, neste ponto, o que o Tribunal faz é desenvolver um juízo conclusivo, revelando uma total ausência de esforço em realizar uma apreciação rigorosa da prova e em realizar uma análise criteriosa dos factos;
J. Ou seja: ao considerar o segmento de texto “não o deseja mais na sua vida, acusando-o constantemente de causar traumas ao menor e de não os deixar a viver a vida em paz” como “provado”, o Tribunal a quo não está a apurar um facto, antes formula um juízo conclusivo, que, para além do mais, carece de qualquer suporte probatório, sendo igualmente censurável a circunstância de o Tribunal ter aderido, de forma acrítica, à tese apresentada por uma das partes, indo mesmo ao ponto de transcrever a alegação da parte e transformá-la num suposto facto provado; pelo que, tendo este se pronunciado sobre afirmação conclusiva, deve esta ter-se por não escrita.
K. Do teor do documento em causa - e-mail junto como Doc. n.º 1 do requerimento do Requerido apresentado em 13/06/2024 a fls. com a Ref.ª 39642935, -não resulta qualquer expressão da Requerente ao Requerido que “não o deseja mais na sua vida, acusando-o constantemente de causar traumas ao menor e de não os deixar a viver a vida em paz”; pelo que, ao dar como provado este facto, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento; logo, a decisão que recaiu sobre o ponto 12. dos factos provados, que ora se impugna, deve ser revogada e/ou alterada e, em consequência, passar o referido ponto a ter a seguinte redacção:
12. No passado dia 30 de Maio de 2024, a requerente enviou um e-mail ao pai, onde se pode ler: “Overall, we are not married anymore and don´t want you to be a constant in my life. I want CC to have a happy and stable childhood where he can thrive and grow without trauma. I am only asking you to respect us both, be cooperative and try to manage this relationship for the best of CC”, com a seguinte tradução “Acabou entre nós e não quero que sejas uma presença constante na minha vida. Quero que o CC tenha uma infância feliz e estável, onde possa prosperar e crescer sem traumas. Apenas peço que nos respeites a ambos, sejas cooperativo(a) e tentes gerir esta relação pelo bem do CC.”
L. Ainda quanto ao erro de julgamento de facto, verifica-se a necessidade de ampliação da matéria de facto pois, no nosso entender, existe uma deficiência por omissão na matéria de facto apurada que a douta Sentença nem sequer elencou, quanto a facto necessário e relevante para a correcta decisão da causa e justa composição do litígio – facto que resulta da prova produzida nos autos e que, certamente por lapso, o Tribunal ignorou;
M. Com efeito, no requerimento apresentado em 01/07/2024 a fls. com a Ref.ª 39807893, foi junto um e-mail que o Requerido remeteu à ora Recorrente em 09 de Abril de 2024, no qual comunica, para além do mais, que “(...) não autorizo que o CC viaje para o estrangeiro seja em que circunstância for (...) – cfr. Doc. n.º 6; ora, no modesto entendimento da Recorrente, tal comunicação é relevante para a demonstração de que, na verdade, a oposição do Requerido não tem fundamento em qualquer causa legítima e que este litiga de má-fé e em perfeito abuso do Direito.
N. Considerando o supra exposto, que se deve a manifesto o erro de julgamento, deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado aos provados o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa:
13. No passado dia 09 de Abril de 2024, o requerido enviou um e-mail à mãe, onde se pode ler: “For evident reasons, I do not authorize CC to be travelling abroad under any circumstances. As already communicated by my lawyer to yours. Therefore no exchange days are required”, com a seguinte tradução: “Por razões evidentes, não autorizo que o CC viaje para o estrangeiro seja em que circunstância for. Conforme comunicado pelo meu advogado ao teu. Assim, não são necessários dias de compensação” cfr. Doc. n.º 6 junto com o Requerimento de 01/07/2024 a fls. com a Ref.ª 39807893.
O. Quanto ao erro de julgamento de direito: parece-nos evidente que, em face dos factos provados e não provados, o Tribunal jamais poderia ter concluído que “existe objectivamente justo e fundado receio em que a requerente se possa ausentar definitivamente do país levando o menor e impedindo que o pai possa mais estar com o filho” - conclusão que não é mais do que o alegado em 6. do requerimento do Requerido apresentado em 13/06/2024 a fls. com a Ref.ª 39642935.
P. Com o mais elevado respeito, a Sentença recorrida trata-se de uma decisão que, para além de errada, é profundamente injusta, sendo claramente tendenciosa em favor do Requerido, o que se manifesta na adopção acrítica dos fundamentos por este invocados, mesmo quando esses não resultam de qualquer evidência ou base probatória, e porventura advirá do facto da Recorrente ter nacionalidade russa – o que, a confirmar-se, revela que é motivada por preconceitos ou circunstâncias externas ao processo, o que é inadmissível num Estado de Direito Democrático!
Q. O carácter conflituoso da relação de ambos os membros do ex‑casal, não sendo invulgar nem diferente de situações idênticas, não pode servir de justificação ao receio subtracção do menor, muito menos no confronto com os “factos não provados” – pelo que não se vislumbra o que é que da apreciação do “constante conflito” pode levar o Tribunal a ponderar “que possa ser de valia própria à mãe afastar-se do território nacional com o menor, para sua própria paz e serenidade”: qual a manifestação da ora Recorrente de onde se possa inferir tal “valia própria”?
R. Como não se vislumbra como é que o “acesso transfronteiriço” franqueado por tais viagens possa diferir do acesso transfronteiriço via terreste, considerando que, como é facto notório, a fronteira de Espanha (via Elvas) situa-se a pouco mais de 200 quilómetros e a menos de duas horas de viagem de Lisboa.
S. Nem se vislumbra como é que o facto de a ora Recorrente estar empregada numa “empresa que possui operações e uma significativa presença em diversos países” possa contribuir para a criação ou agravamento de algum “risco”, sobretudo, quando se afirma na douta Sentença que “se desconheça se pode ou não manter tal empregabilidade no estrangeiro (vd. FNP), como refere o requerido”, pelo que, face ao facto julgado não provado na alínea g), é indevida a conclusão de que existe “alguma flexibilidade de actuação da mãe”, sendo este facto não provado mesmo incompatível com a conclusão, absolutamente insustentada, de que não é imperativa a presença da mesma em território nacional pelo menos para se manter ao serviço da mesma empresa (ainda que noutras funções, se as suas não forem exactamente compatíveis) -tal não resulta, sequer indirectamente, dos factos dados como provados!
T. Ou seja: o que acaba por exercer uma influência decisiva no indeferimento do pedido formulado pela Recorrente é, tão-somente, o facto desta também ter, em função do seu local de nascimento, nacionalidade russa; apesar de ter nacionalidade Portuguesa (ponto 6. dos factos provados), de trabalhar em Lisboa (ponto 7. dos factos provados) e de residir em Portugal há mais de dez anos (ponto 8. dos factos provados). nada disto interessa porque a Recorrente tem nacionalidade Russa.
U. O Tribunal parece dar muita relevância ao facto de ser “natural da antiga União Soviética e possuindo também nacionalidade russa, à semelhança do menor” -tanto mais que na fundamentação da Sentença é feita referência “situação actual concretamente da Rússia (em conflito armado)”, sem que, contudo, a Rússia seja algum dos destinos que esteja em causa presente processo (referimo-nos a França e Áustria).
V. No entanto, o facto de o progenitor ser nacional de outro país não é, por si só, suficiente para justificar essa proibição – cfr. nesse sentido o douto Ac. TRP de 11/01/2024, Proc. n.º 8521/22.8T8VNG‑C.P1,
W. Concordamos que, na situação em apreço, o que deveria estar em causa é o superior interesse do filho CC – mas este também tem o direito fundamental à livre circulação, como também tem o direito às viagens que a própria Sentença recorrida considerou benéficas para o menor!
X. As restrições dos direitos, liberdades e garantias do menor apenas podem ser feitas de acordo com os princípios gerais da necessidade, adequação e proporcionalidade e os especiais (aplicáveis às crianças e jovens em perigo) da proporcionalidade e actualidade: a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
Y. Princípios estes que foram ostensivamente violados, na medida em que a limitação da criança a viajar para o estrangeiro com a mãe, para além de injusta, não é o que melhor acautela os interesses do menor no caso concreto, sobretudo em face do ponto 14. dos factos provado e da conclusão a que o próprio Tribunal chegou de que “incumbe à requerente alegar e provar que as viagens solicitadas são benéficas para o menor, o que resulta claro da matéria provada, sabendo que o menor manifesta vontade de ir e que tais viagens lhe permitem aprendizagens sobre diferentes culturas e vida noutros países, atentos os destinos em questão e objectivos da viagem;
Z. Nada nos autos justifica que tais benefícios sejam retirados ao menor, uma vez que, contrariamente ao que acabou por se considerar na Sentença ora recorrida, o Requerido não demonstrou quaisquer factos concretos consubstanciadores da eventual desvalia que a autorização lhe poderia vir a trazer.
AA. O Requerido, ao longo de todo este processo, tenta construir a narrativa de que a sua recusa em conceder autorização para as viagens pretendidas pela Recorrente se fundamenta no alegado conflito existente, bem como na nacionalidade da mesma e no país para o qual esta pretende deslocar-se; no entanto, essa justificação é fantasiosa e desprovida de fundamento verdadeiro, constituindo um pretexto para camuflar a real intenção subjacente à sua conduta: a de não conceder a autorização em nenhuma circunstância, tal como, aliás, resulta do e‑mail que este enviou à Recorrente no passado dia 09 de Abril de 2024 (e, por conseguinte, anterior ao indicado no ponto 12. dos factos dados como provados) – cfr. Doc. n.º 6 junto com o Requerimento de 01/07/2024 a fls. com a Ref.ª 39807893
BB. O que é por demais revelador que a oposição do Requerido às viagens do menor com a Recorrente não resulta de preocupações legítimas ou de questões específicas relacionadas com o conflito ou com a segurança, pelo contrário, trata‑se de uma postura sistematicamente obstrutiva, que visa apenas dificultar o exercício de direitos legítimos por parte da ora Recorrente, numa clara situação de abuso do Direito, em perfeita litigância de má-fé.
CC. O Requerido não relatou factos concretos que se traduzissem na vontade e risco iminente de fuga da Requerida com o menor - seja para a Rússia, seja para qualquer outro país, sendo que, conforme foi dado como provado, a Requerida tem nacionalidade Portuguesa, vive em Portugal há mais de dez anos, trabalha ao abrigo de contrato de trabalho sem termo para um Banco em Lisboa, enfim, tem a sua vida totalmente estabilizada em Portugal,
DD. Bem como o seu filho menor, sendo que é do conhecimento funcional do tribunal a quo, por força do apenso “C” aos presentes autos iniciado pelo aqui Requerido, que inclusivamente a aqui Requerente já matriculou o menor em estabelecimento de ensino português para o ano lectivo de 2024/2025,
EE. Não tendo, assim, qualquer intenção de desenraizar o seu filho, deixar o seu trabalho ou de passar a residir noutro local – o que não faria qualquer sentido!
FF. Caso contrário, nem se teria dado ao trabalho de adquirir nacionalidade Portuguesa – o que retira qualquer credibilidade à tese de que a Recorrente, ao viajar para o estrangeiro com o menor, possa decidir não regressar a Portugal; e, com tal, cometer um crime de subtracção e de menor; mais a mais, sujeitando-se a perder o seu emprego – pois não resultou provado que “a requerente não tem qualquer necessidade de estar em território nacional para o desempenho da sua actividade” – cfr. ponto g) dos Factos não provados.
GG. Para além do mais, tanto França como Áustria são signatários da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, pelo que sempre estará garantido o seu regresso ao Estado de origem.
HH. Enfim, não há qualquer indício factual ou elemento probatório que sustente o indeferimento do pedido de autorização judicial,
II. É, assim, evidente que a Requerente cumpriu com o ónus da prova que sobre si recaia, tal como resulta da sentença recorrida, alegando e provando factos que sustentaram o benefício da autorização que pedia, sendo que, inversamente, o Requerido não cumpriu com o ónus de provar factos dos quais resultasse “que o benefício não é superior à desvalia que a mesma autorização lhe pode vir a trazer”.
JJ. Tal como referido supra, os poucos factos alegados pelo Requerido nesse sentido foram dados como não provados, sustentando-se a sentença recorrida, não em factualidade provada, mas em meros juízos conclusivos não sustentados em factos e, nessa medida, em qualquer elemento probatório que tenha sido apresentado.
KK. Note-se ainda que nem o próprio Ministério Público – a quem compete proteger o bem-estar e defender os interesses da criança ou jovem – se opôs a que, face a toda a prova produzida nos presentes autos, viesse a ser concedida a autorização para as viagens pretendidas pela ora Recorrente, tendo, aliás, promovido que fossem autorizados os pedidos realizados pela Mãe.
LL. Finalmente, refira-se ainda que, não obstante a necessária anulação da sentença proferida e sua substituição por outra que conceda a autorização de viagem requerida infelizmente já não tenha qualquer efeito útil para a viagem à Euro Disney programada para Setembro de 2024, a mesma ainda poderá/deverá produzir efeitos úteis para a viagem agendada para Dezembro de 2024 e também objecto dos presentes autos, o que justificará a atribuição ao presente recurso da urgência necessária à prolação de acórdão que assegure tal efeito útil.
MM. A Sentença ora recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 154.º n.ºs 1 e 2, 542.º n.º 2, 607.º n.ºs 4 e 5, 615.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil; nos artigos 18.º, 26.º n.º 1, 27.º n.º 1 e 44.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; no artigo 4.º da Lei n.º 147/99 de 01 de Setembro, na sua redacção actualizada, ex vi artigo 4.º n.º 1 do RGPTC; no artigo 21.º n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no artigo 45.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e no artigo 4.º n.º 1 da Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004, directamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa por força do disposto no artigo 8.º n.º 1 da CRP; nos princípios gerais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade e os especiais (aplicáveis às crianças e jovens em perigo) da proporcionalidade e actualidade; no artigo 334.º do Código Civil.
O requerido apresentou alegação de resposta em 12/10/2024, aí sustentando a manutenção da sentença recorrida.
O Ministério Público apresentou igualmente alegação de resposta, em 4/11/2024, aí sustentando o provimento do recurso e a alteração da decisão, autorizando-se o menor a viajar para o estrangeiro com a requerente, como solicitado pela mesma.
No tribunal recorrido foi proferido despacho de admissão do recurso em 11/11/2024, aí se pronunciando o tribunal recorrido no sentido da improcedência da nulidade da sentença recorrida.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação de Lisboa em 25/11/2024 e aqui foram distribuídos em 27/11/2024.
Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 656º do Código de Processo Civil foi proferida decisão singular em 6/12/2024, aí tendo sido julgado procedente o recurso, com a revogação da sentença e sua substituição por decisão que concedeu provimento à pretensão da requerente e autorizou o menor a ausentar-se para fora de Portugal com a requerente, nos seguintes termos:
• Para visita ao parque temático Euro Disney (Disneylândia de Paris), em França, durante um período máximo de quatro dias e até 15/9/2025;
• Para visita a Viena, capital da Áustria, durante um período máximo de oito dias e até 23/12/2025.
Por requerimento de 19/12/2024 o requerido veio pedir que recaia acórdão sobre a matéria da decisão singular, confirmando a sentença recorrida, e sendo que nesse requerimento invoca que as conclusões da reclamação em questão são aquelas que constam dos 37 pontos que aqui se reproduzem integralmente:
i. O Reclamante discorda da decisão de 6 de Dezembro de 2024, que autorizou a deslocação do menor ao estrangeiro com a mãe.
ii. Esta discordância resulta do facto de a decisão considerar que viagens lúdicas servem o superior interesse do menor, desvalorizando os receios apresentados pelo Reclamante.
iii. Com o devido respeito, entende-se que o fortalecimento da relação do menor com ambos os progenitores em território nacional deve prevalecer sobre o benefício pontual de viagens ao estrangeiro.
iv. Contrariamente ao entendimento da decisão, não está aqui em causa uma situação de preconceito ou discriminação por parte com Reclamante com base na nacionalidade da mãe.
v. A questão centra-se, antes, na necessidade imperiosa de ponderar, com rigor e objectividade, os riscos associados que, no caso concreto, não foram devidamente ponderados.
vi. De facto, foram apresentados pelo Reclamante argumentos válidos, objectivos e concretos que tornam legítimos os seus receios. Vejamos então:
vii. O conflito entre ambos os progenitores tem-se revelado intenso, com uma tendência clara para escalar, facto este que não foi devidamente considerado na decisão reclamada.
viii. Prova disso é o facto de a requerente ter afirmado perante o CC que este "deveria estar (apenas) com a mãe e não com o pai", o que configura uma manifesta pressão psicológica sobre o menor.
ix. Acresce que, antes de obter a autorização do reclamante relativamente às viagens em questão, a requerente informou o menor sobre as mesmas. Quando, posteriormente, soube que o reclamante não consentia, a requerente fez questão de transmitir ao filho que "o pai não quer que sejas feliz", o que foi posteriormente reportado ao reclamante pelo próprio CC.
x. Assim, por estes e outros fundamentos, o referido conflito – incontornável e persistente –, não apenas dificulta a comunicação e a tomada de decisões conjuntas, mas também cria um ambiente de desconfiança e de ausência de consenso quanto ao melhor interesse do menor.
xi. Veja-se que, ao contrário do que decorre das alegações apresentadas pela Requerente, a 1 de Julho de 2024, o regime de guarda partilhada não decorre com normalidade até, porque, se assim fosse, não teríamos, seguramente, dois incidentes a correr em simultâneo e por apenso ao processo de regulação das responsabilidades parentais, o que não só evidencia a persistência de dificuldades na comunicação e na colaboração entre os progenitores, como compromete o regime de guarda partilhada actualmente em vigor – o qual, sublinha-se, foi repudiado pela mãe do CC desde o inicio, tendo esta, inclusive, recorrido dessa mesma decisão.
xii. Acresce que, a dupla nacionalidade da mãe facilita uma eventual fixação de residência no estrangeiro, onde as medidas do ordenamento jurídico português teriam aplicação limitada, face às dificuldades de aplicação da Convenção de Haia em países que integravam antiga União Soviética, como é o caso da Rússia.
xiii. País ao qual a requerente tem efectiva ligação, fazendo inclusive questão de falar com o CC em Russo, mesmo quando o menor inicia a conversa em inglês ou português e em situações em que está presente o pai do menor, o que não pode ser ignorado, dado que o pai, por desconhecimento da língua russa, não consegue compreender os diálogos que ocorrem entre mãe e filho, o que foi ignorado e omitido na decisão reclamada.
xiv. E, portanto, existe a necessidade de avaliar o risco associado à presente situação, por a mesma ter conexão com países cuja legislação possa dificultar o retorno do menor, mesmo que estes não se apresentem, alegadamente, como o destino final da viagem pretendida.
xv. Deste modo, estes elementos, em conjugação com outros constantes do processo, nomeadamente a mensagem de correio electrónico enviada pela mãe ao pai em 30 de Maio de 2024, na qual aquela afirmou, em relação ao Reclamante, “não quero que sejas uma presença constante na minha vida”, demonstram, de forma inequívoca, a intenção da mesma em restringir a interacção do Reclamante na sua vida, o que faz precisamente no mesmo mês em que dá entrada dos presentes autos.
xvi. Assim, ainda que na decisão reclamada se tenha entendido que tal email, por si só, não configura um "facto" em si, mas antes uma afirmação conclusiva, o seu teor, se lido no contexto da separação dos progenitores, como é suposto, contribui para a construção de um quadro indiciário sobre a intenção da mãe em restringir a interacção do pai com o menor.
xvii. De facto, a clareza e simplicidade de tal afirmação não deixam espaço para interpretações ambíguas, ainda por cima quando a mesma é contemporânea do pedido de autorização para viajar com o menor.
xviii. De igual modo, não poderia a decisão reclamada inferir que do teor do email do requerente datado de 09 de Abril de 2024, se retira que a sua oposição carece de qualquer fundamento legítimo.
xix. Pois que, à semelhança da comunicação da requerente, o email do Reclamante mais não é do que uma afirmação conclusiva, sendo certo que, o referido email, desacompanhado de outros elementos probatórios, não devia sequer ser valorado.
xx. Por conseguinte, a decisão reclamada andou mal ao considerar procedente a impugnação da decisão de facto, nos termos alegados pela progenitora, uma vez que existem elementos no processo que permitem inferir a vontade da progenitora de se ausentar definitivamente de território português com o menor, à “boleia” das viagens em questão, assim como, da objectivação do receio da subtracção do menor ao convívio com o reclamante.
xxi. O padrasto e a avó materna do menor residem na Suécia, facilitando a ligação familiar e cultural com a Rússia, país da outra nacionalidade do menor e da sua mãe, a qual demonstra uma ligação especial à Rússia e procura transmiti-la ao filho.
xxii. Além do mais, importa sublinhar que, antes do relacionamento com o Reclamante, foi-lhe negada residência na Suécia, mas essa situação pode mudar com a recente aquisição da nacionalidade portuguesa.
xxiii. Note-se ainda que os pedidos de viagens coincidiram com a obtenção desta nacionalidade.
xxiv. Mais se diga, a decisão reclamada revela-se precipitada e sustentada em conclusões erróneas no que concerne ao regime de trabalho da requerente, pois que, mesmo na hipótese de a requerente à data em que foi ouvida em Tribunal ter um esquema de trabalho híbrido, não se pode ignorar que resulta do elenco de factos provados que a empresa BNP Paribas, para a qual a mesma exerce funções, possui operações e uma signitiva presença em diversos países.
xxv. Assim, a referida mobilidade internacional torna plausível um cenário em que a mãe, sob o pretexto de uma viagem lúdica autorizada, fixe residência no país de destino ou outro onde lhe seja conveniente exercer a sua actividade profissional.
xxvi. Consequentemente, não pode haver outra conclusão se não a de que o quadro factual supra exposto reforça o risco (objectivo) de o menor ser afastado da convivência regular com o Reclamante e a família paterna em Portugal.
xxvii. A situação é agravada pelo facto de o Tribunal ter autorizado as viagens sem definir expressamente as datas de partida e regresso ou exigir à requerente a apresentação prévia de bilhetes de regresso, reservas de alojamento, informações detalhadas sobre os locais onde o menor estaria em cada deslocação e respectivos contactos.
xxviii. Este cenário é ainda mais preocupante, considerando que já ocorreram situações em que a requerente permaneceu no estrangeiro com o menor além do período previamente autorizado e acordado com o progenitor.
xxix. Por exemplo, como ficou registado na diligência de 20 de Agosto de 2024, em 2016 a requerente viajou para a Suécia acompanhada do Reclamante e do menor.
xxx. O Reclamante teve de regressar no final de Dezembro para realizar exames académicos, ficando acordado que a requerente regressaria pouco tempo depois directamente da Suécia.
xxxi. Contudo, a requerente só voltou com o menor quando entendeu, sendo apurado posteriormente que, na data prevista para o regresso, estava na Dinamarca com o menor, situação que era desconhecida do Reclamante na altura.
xxxii. E, portanto, ao proceder da forma descrita, o Tribunal emitiu um “salvo conduto” que a progenitora poderá usar quando e da forma que melhor lhe aprouver, sem prestar qualquer informação ao progenitor!
xxxiii. Em síntese, resta por esclarecer a seguinte questão: Se os receios objectivos do Reclamante, devidamente fundamentados nos autos e reconhecidos na sentença da 1.ª instância, onde foi produzida a prova correspondente, se concretizarem, em que termos será atribuída responsabilidade ao Estado Português e ao Exmo. Senhor Desembargador que autorizou a saída do menor do território nacional?
xxxiv. Por tudo isto, o Reclamante considera que, pelo menos para já, o menor deve permanecer em território nacional, onde ambos os progenitores possam, ainda que em conflito, cumprir as suas obrigações e responsabilidades parentais.
xxxv. Em último, no que concerne à condenação do Reclamante em custas - “da acção e do recurso” – importa sublinhar que a decisão reclamada ignora que os recursos são considerados procedimentos autónomos para efeito de sujeição ao pagamento de custas.
xxxvi. Isto significa que, tendo o Reclamante obtido vencimento em 1ª instância, apenas lhe caberia suportar as custas do recurso.
xxxvii. Por conseguinte, também por aqui andou mal a decisão reclamada.
A requerente não apresentou resposta à reclamação em questão.
***
Perante o julgamento singular do objecto do recurso, nos termos dos art.º 652º, nº 1, al. b), e 656º, ambos do Código de Processo Civil, pode a parte que se considere prejudicada por essa decisão singular requerer que recaia um acórdão sobre a matéria aí conhecida, nos termos e para os efeitos do nº 3 do mesmo art.º 652º.
Assim, e não obstante os 37 pontos acima reproduzidos, e que o requerido pretende que constituem as conclusões da reclamação, aquilo que importa apreciar e decidir em conferência prende-se com o objecto do recurso da requerente.
Ora, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, as quais hão-de corresponder à indicação, de forma sintética, dos fundamentos pelos quais vem pedida a alteração ou anulação da decisão.
Os 39 pontos da alegação da requerente acima reproduzidos não correspondem à referida indicação sintética, mas antes à repetição quase total da argumentação expendida anteriormente.
Todavia, e sem necessidade de lançar mão do disposto no nº 3 do art.º 639º do Código de Processo Civil (desde logo porque se antevê a incapacidade de síntese que se pretende), é possível identificar como questões a conhecer as que a seguir se enunciam:
• A nulidade processual correspondente à omissão de apreciação das alegações apresentadas pelas partes;
• A nulidade da sentença por falta de fundamentação;
• A alteração da matéria de facto;
• A autorização para as viagens ao estrangeiro, segundo o superior interesse do menor.
***
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (eliminam-se as referências probatórias):
1. CC, nascido a 21 de Junho de 2016 (8 anos) e é filho dos aqui requerente e requerido.
2. Requerente e requerido contraíram matrimónio em 21 de Fevereiro de 2016 e em 13 de Outubro de 2017 separaram-se de facto, divorciando-se em 11 de Abril de 2018.
3. No apenso A), de Regulação das Responsabilidades Parentais, foi decidido, entre mais, que:
- “1. CC fica confiado à guarda e cuidados de ambos os progenitores, com quem residirá semanalmente, de modo alternado, sendo as responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida da menor exercidas em conjunto, por ambos os progenitores;”
(…)
- “1.3 - Ambos os progenitores podem contactar diária e directamente o menor (via telefone, sms, e-mail, skype, etc), devendo o progenitor que tem a guarda nessa semana assegurar a concretização de tal contacto, enquanto o menor não tiver autonomia suficiente para receber e efectuar tais contactos directamente, preferencialmente às 18h 30m. Devem também os progenitores assegurar que o menor possa, por sua iniciativa, contactar o progenitor que não tem a guarda, se tal vontade for manifestada pela menor.”
- “2. O menor passará as suas férias escolares de Verão de forma repartida com cada um dos progenitores, devendo, para o efeito, passar um mês com cada um deles, em dois períodos distintos de 15 (quinze) dias cada.”
(…)
- “6. Qualquer um dos progenitores, não poderá ausentar-se para o estrangeiro com o menor, sem o consentimento escrito do outro, devendo o pedido de autorização conter a indicação do país de destino, do local onde se encontrarão alojados e respectivos contactos.”
4. A requerente pretende viajar com o menor para a Euro Disney, em Paris (França), tendo para o efeito, adquirido viagem para si e para o menor CC, para estadia entre 5 e 8 de Setembro de 2024.
5. A requerente pretende ainda viajar com o menor CC, para Viena de Áustria, sendo o período da estadia entre de 13 a 20 de Dezembro de 2024, para visita a Mercado de Natal, típico daquela cidade, e a fim que o menor sinta a magia daquela época festiva numa cidade com tamanha tradição, e igualmente, para conhecer os enormes Museus de Arte de Viena.
6. A requerente adquiriu a nacionalidade Portuguesa em 4 de Junho de 2024.
7. A requerente trabalha por conta do BNP PARIBAS S.A., com quem celebrou contrato de trabalho sem termo desde 18 de Julho de 2022 e actualmente tem a função de IT Project Management Officer e exerce as suas funções em esquema híbrido, entre regime de teletrabalho e presencial, sendo o último prestado nas instalações da entidade patronal, na Avenida ... n.º ..., em Lisboa.
8. A requerente reside em Portugal há mais de dez anos, sendo natural da antiga União Soviética e possuindo também nacionalidade russa, à semelhança do menor.
9. A BNP Paribas é uma empresa que possui operações e uma significativa presença em diversos países.
10. A requerente comunica com o filho em russo, inclusive ao telefone, mesmo quando o CC inicia a conversa em português ou inglês.
11. A requerente não acedeu de vontade própria à residência alternada do menor, tendo tal sido decidido por sentença judicial no apenso A).
12. No passado dia 30 de Maio de 2024, a requerente enviou um e-mail ao pai, no qual expressa que não o deseja mais na sua vida, acusando-o constantemente de causar traumas ao menor e de não os deixar a viver a vida em paz cfr. doc. 1, do requerido, cujo excerto aqui se transcreve: “Overall, we are not married anymore and don´t want you to be a constant in my life. I want CC to have a happy and stable childhood where he can thrive and grow without trauma. I am only asking you to respect us both, be cooperative and try to manage this relationship for the best of CC”, com a seguinte tradução “Acabou entre nós e não quero que sejas uma presença constante na minha vida. Quero que o CC tenha uma infância feliz e estável, onde possa prosperar e crescer sem traumas. Apenas peço que nos respeites a ambos, sejas cooperativo(a) e tentes gerir esta relação pelo bem do CC.” (alterado, nos termos adiante decididos)
13. A requerente e o requerido têm uma relação conflituosa entre si, designadamente não concordando nas iniciativas mútuas e tendo dificuldade de interacção na gestão quotidiana da vida do menor, no que toca à vivência escolar, ao seguimento médico e outras exigências de rotina na vida quotidiana do filho.
14. O menor ficou muito feliz de saber que iria em breve conhecer a Euro Disney com a sua mãe e terá a oportunidade de viajar com outros menores, seus amigos.
***
Na sentença recorrida considerou-se como não provada a seguinte matéria de facto:
a. o ano transacto, a requerente recusou-se a comparecer à festa de aniversário do menor organizada com os colegas da escola, uma vez que o pai decidiu planear a festa em conformidade com o desejo do menor;
b. esta decisão foi tomada devido à falta de comunicação e cooperação por parte da requerente, impossibilitando a organização conjunta da festa e ignorando o desejo expresso pelo menor de “estar com toda a família” naquele que era o seu dia;
c. subsequentemente, a requerente organizou uma festa separada com alguns amigos;
d. ainda, o menor informou recentemente o pai que a mãe afirma, na sua presença, “não gostar do Pai”, que “a madrasta não interessa na família”, ou que “a avó (paterna) não é amiga da mãe”;
e. que a requerente tem apenas nacionalidade russa e não portuguesa;
f. que o ponto 4 FP está no âmbito de uma viagem organizada pela sua entidade patronal, para pais e filhos.
g. que, na sequência do 9 FP, a requerente não tem qualquer necessidade de estar em território nacional para o desempenho da sua actividade.
***
Das nulidades
Quanto à incorrecta indicação, no relatório da sentença recorrida, do prosseguimento dos autos para audição técnica especializada, do mesmo passo aí se omitindo que as partes foram notificadas para apresentar alegações, logo se alcança que carece de qualquer fundamento a invocação da nulidade processual consistente na desconsideração das alegações em questão.
Aliás, o desacerto de tal invocação revela-se na circunstância de tais alegações terem sido tomadas em consideração, desde logo no que respeita à prova aí apresentada, pois que resulta claro da sentença recorrida que foi produzida a prova testemunhal e que a mesma foi valorada, a par dos documentos apresentados pela requerente e pelo requerido com essas mesmas alegações.
Ou seja, ainda que seja manifesto que na sentença recorrida se cometeu o erro (entretanto corrigido nesta sede, como emerge do relatório que antecede) de indicar a prática de um acto processual que não ocorreu (o prosseguimento dos autos para a audição técnica especializada), do mesmo modo ficando por indicar a prática de um acto processual que ocorreu (a apresentação das alegações pela requerente e pelo requerido), tal irregularidade não é geradora de qualquer nulidade processual, nos termos do art.º 195º do Código de Processo Civil, porque se torna evidente que o erro em questão em momento algum influiu na decisão da causa, já que inexiste qualquer desconsideração do contraditório que foi exercido pelas partes através dessas alegações.
E, nessa medida, a sentença recorrida não carece de ser anulada em consequência desse (inexistente) vício processual.
***
Quanto à falta de fundamentação da sentença recorrida, é certo que resulta da al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A necessidade de especificação dos fundamentos da decisão judicial emerge do art.º 154º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas.
Todavia, a sentença com fundamentação escassa ou deficiente não é nula.
É que, segundo Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221), “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art.º 208º nº 1 do CRP; artº 158º nº 1)”. E mais refere que “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”.
Por outro lado, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
No caso concreto a requerente invoca que “sem prejuízo do erro de julgamento que adiante se aprofundará, verifica-se, desde logo, que Sentença ora recorrida não especifica com o necessário rigor os fundamentos de facto e de direito que justificam a Decisão, limitando-se a indeferir, genérica e globalmente, o pretendido pela Recorrente, mas não fundamentando tal decisão relativamente aos factos provados”. E mais invoca que “no caso concreto, apesar de não estarmos perante uma ausência total e absoluta de fundamentos de direito de facto – visto que a Sentença até faz referencia aos Factos Não Provados (…), estamos, porém, perante uma fundamentação incompleta ou insuficiente, por referência aos concretos factos que foram dados como provados, o que se deve, inexoravelmente, a vício grosseiro, grave e manifesto”.
Ou seja, torna-se evidente que a sentença recorrida não padece do vício da nulidade por falta de fundamentação, na medida em que está aí expressa quer a fundamentação de facto, quer a fundamentação de direito, que conduz à decisão da improcedência da acção.
Pode tal fundamentação estar incompleta ou mesmo errada, como sustenta a requerente. Só que tal circunstância não corresponde ao vício da nulidade, mas antes representa um erro de julgamento, que não determina a nulidade da sentença, mas a (eventual) modificação do que aí foi decidido, com recurso a fundamentação (de facto e/ou de direito) distinta da utilizada pelo tribunal recorrido.
O que equivale a concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, pela improcedência da arguição de nulidades em questão.
***
Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art.º 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se ao conjunto de factos que assumem relevo para o conhecimento da pretensão manifestada pelo impugnante. Ou seja, aqueles factos que se poderão considerar como integrantes da causa de pedir, quer tenham resultado da alegação das partes, quer resultem da instrução da causa (segundo o art.º 21º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721), quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 21º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se que a requerente conclui pela inclusão de um novo ponto no elenco de factos provados, a par da alteração do ponto 12. da factualidade dada como provada, e mais indicando qual a concreta decisão a proferir quanto a cada um dos pontos em questão.
Pelo que, relativamente ao referido ónus primário de delimitação do objecto do recurso, no que respeita à impugnação da decisão de facto, há que afirmar o cumprimento do mesmo pela requerente.
Do mesmo modo, e no que respeita ao cumprimento do referido ónus secundário, a requerente indicou os concretos meios probatórios que sustentam as alterações pretendidas (e que correspondem às duas mensagem de correio electrónico que identifica), pelo que há que considerar cumprido o ónus de especificação a que respeita o art.º 640º do Código de Processo Civil, não se acompanhando, nesta parte, a alegação do requerido, no sentido da rejeição do recurso, nesta parte.
***
Assim, e começando pelo ponto 12. dos factos provados, aí ficou a constar o teor da mensagem de correio electrónico que a requerente enviou ao requerido em 30/5/2024 (acompanhada da respectiva tradução, já que a mensagem está escrita em língua inglesa). Mas ficou igualmente a constar desse ponto 12. que nessa mensagem de correio electrónico enviada pela requerente ao requerido aquela “expressa que não o deseja mais na sua vida, acusando-o constantemente de causar traumas ao menor e de não os deixar a viver a vida em paz”.
Ora, tal constatação não constitui um facto, em si, mas antes uma conclusão que se pode retirar (ou não) do teor da referida mensagem, não se confundindo a qualificação da actuação da requerente (expressa pelo requerido, no seu articulado) com o facto respectivo (tal actuação, consubstanciada na declaração escrita feita pela requerente ao requerido). Dito de outra forma, é a partir da interpretação do teor da mensagem em questão que se concluirá (ou não) pela actuação imputada à requerente pelo requerido.
Como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 365-366), “a separação entre o que constitui matéria de facto e que integra matéria de direito é questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela sentença, até aos recursos (…)”. E “os respectivos contornos poderão sofrer variações em função das concretas circunstâncias, designadamente em razão do verdadeiro objecto do processo, de tal modo que uma mesma proposição pode assumir, num determinado contexto, uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito”.
Todavia, quando seja patente que no elenco de factos provados constam proposições de carácter jurídico, devem as mesmas ter-se por não escritas. Assim, e como já se concluiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/10/2013 (relatado por José Eusébio Almeida e disponível em www.dgsi.pt), “na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de Junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado”.
Do mesmo modo, afirma-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/5/2014 (relatado por Mário Belo Morgado e disponível em www.dgsi.pt) que não está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça (e, logicamente, às Relações) “apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado - consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objecto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita”.
Já no seu artigo “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)” (Julgar Online, Novembro de 2017) Paulo Ramos de Faria conclui que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas”.
Ou seja, no caso concreto do ponto 12. dos factos provados a afirmação de que a requerente “expressa que não o deseja [ao requerido] mais na sua vida, acusando-o constantemente de causar traumas ao menor e de não os deixar a viver a vida em paz” corresponde a um juízo conclusivo e de natureza não factual, por se tratar de uma das mencionadas proposições que “devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes” para figurar na decisão relativa à matéria de facto.
Nesta medida, importa desde logo alterar o ponto 12. dos factos provados, no sentido de expurgar tal juízo conclusivo e aí ficar tão só a constar que:
12. Em 30/5/2024 a requerente enviou ao requerido uma mensagem de correio electrónico com o seguinte teor: “Overall, we are not married anymore and don´t want you to be a constant in my life. I want CC to have a happy and stable childhood where he can thrive and grow without trauma. I am only asking you to respect us both, be cooperative and try to manage this relationship for the best of CC”; e com a seguinte tradução: “Acabou entre nós e não quero que sejas uma presença constante na minha vida. Quero que o CC tenha uma infância feliz e estável, onde possa prosperar e crescer sem traumas. Apenas peço que nos respeites a ambos, sejas cooperativo(a) e tentes gerir esta relação pelo bem do CC”.
***
Relativamente ao aditamento de um novo facto ao elenco de factos provados, corresponde o mesmo ao teor da mensagem de correio electrónico enviada pelo requerido à requerente em 9/4/2024, e constante do documento 6 junto pela requerente com as suas alegações de 1/7/2024.
A autoria e conteúdo dessa mensagem de correio electrónico, bem como a respectiva tradução, não foram objecto de impugnação pelo requerido, tendo-se assim por provada a factualidade em questão.
Por outro lado, tal factualidade apresenta-se com relevo para o conhecimento da questão da autorização para as viagens ao estrangeiro do menor, nos termos solicitados pela requerente através das mensagens de correio electrónico de 2/4/2024, 5/4/2024 e 6/4/2024 (constantes dos documentos 3 a 5 juntos pela requerente com as suas alegações de 1/7/2024). Com efeito, dado que na sentença recorrida se fez apelo aos motivos pelos quais o requerido recusou autorizar tais viagens, concluindo-se aí que se trata de “um receio fundado”, e na medida em que tal mensagem do requerido de 9/4/2024 expressa a referida recusa, o teor da mesma mensagem revela-se necessário para aferir da (in)existência de fundamento para o receio em questão.
Pelo que importa aditar à factualidade provada um novo ponto, com o seguinte teor:
15. Em 9/4/2024 o requerido enviou à requerente uma mensagem de correio electrónico com o seguinte teor: “For evident reasons, I do not authorize CC to be travelling abroad under any circumstances. As already communicated by my lawyer to yours. Therefore no exchange days are required”; e com a seguinte tradução: “Por razões evidentes, não autorizo que o CC viaje para o estrangeiro seja em que circunstância for. Conforme comunicado pelo meu advogado ao teu. Assim, não são necessários dias de compensação”.
***
Em suma, na procedência da impugnação da decisão de facto, nos termos alegados pela requerente, há que considerar a alteração dos factos provados como acima decidido, e mantendo-se o demais decidido quanto aos factos provados e não provados.
***
Da autorização para as viagens do menor ao estrangeiro
Na sentença recorrida ficou assim sustentada a decisão de não autorizar as viagens indicadas pela requerente:
O pedido formulado é um pedido de suprimento de autorização para viajar para o estrangeiro, o que é uma questão de particular importância.
Prevê o artigo 342. do Código Civil, que aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Cabe à requerente demonstrar o benefício da autorização que pede.
A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
Cabe ao requerido demonstrar que o benefício não é superior à desvalia que a mesma autorização lhe pode vir a trazer.
Vertente ao caso concreto:
- na situação em apreço o que está em causa é o superior interesse do filho CC, não propriamente o interesse de nenhum dos progenitores a ter consigo o menor.
- incumbe à requerente alegar e provar que as viagens solicitadas são benéficas para o menor, o que resulta claro da matéria provada, sabendo que o menor manifesta vontade de ir e que tais viagens lhe permitem aprendizagens sobre diferentes culturas e vida noutros países, atentos os destinos em questão e objectivos da viagem;
- todavia, a recusa do pai prende-se com o receio de que a mãe, ao viajar para o estrangeiro com o menor, possa decidir não regressar a Portugal, o que seria uma desvalia superior para o menor, posto que se consubstanciaria na ausência da figura do pai, residente em Portugal.
Em nosso humilde entender, e salvo melhor opinião, trata-se de um receio fundado, que torna a autorização previsivelmente mais desfavorável que favorável aos interesses do menor:
- é facto que a relação de ambos os membros do ex casal conflituosa, requerente e requerido, pais do menor, é amplamente conflituosa; objectivamente, será difícil para requerente e para o requerido exercer esta guarda e a residência alternada sem um constante conflito;
- apreciando o constante conflito que não pode deixar de ser corrosivo não só para o menor, como para os próprios progenitores (independentemente de “culpas”), pondera-se que possa ser de valia própria à mãe afastar-se do território nacional com o menor, para sua própria paz e serenidade;
- o que o acesso transfronteiriço facilmente lhe permitiria, podendo aproveitar não só da nacionalidade russa e bem assim do menor, mas também das ligações familiares e culturais, pode facilmente reter o menor fora do território nacional;
- sendo também relevante notar que a mãe está empregada na BNP Paribas, uma empresa que possui operações e uma significativa presença em diversos país e embora se desconheça se pode ou não manter tal empregabilidade no estrangeiro (vd. FNP), como refere o requerido, esta presença global da empresa não deixa de reforçar alguma flexibilidade de actuação da mãe, sem que seja imperativo a presença da mesma em território nacional pelo menos para se manter ao serviço da mesma empresa (ainda que noutras funções, se as suas não forem exactamente compatíveis).
Conjugadas todas estas particularidades, entendemos que existe objectivamente justo e fundado receio em que a requerente se possa ausentar definitivamente do país levando o menor e impedindo que o pai possa mais estar com o filho, em detrimento desta criança e dos seus laços familiares básicos.
Os indícios acima descritos apontam no sentido do risco efectivo.
Mais considerando a situação actual concretamente da Rússia (em conflito armado), poderá tornar-se ainda mais limitada a capacidade de garantir o regresso do menor a Portugal em caso de subtracção.
O menor deverá viver a sua contingência familiar, como todos nós, e pese embora esta limitação que aqui lhe colocamos, estamos em crer que é o menor de dois males.
É lamentável, muito lamentável, esta limitação da criança a viajar para o estrangeiro com a mãe, bem certo, mas, de facto, é o que melhor o acautela os seus interesses.
Por todo o exposto, e valorando globalmente a situação nos termos expostos, indefere-se o pretendido, não indo suprido o consentimento”.
O desacordo da requerente relativamente à fundamentação acima reproduzida centra-se, essencialmente, na falta de objectivação do afirmado receio da subtracção do menor ao convívio com o requerido, já que entende inexistir qualquer circunstância fáctica que leve a afirmar que a requerente pretende afastar-se de Portugal “para sua própria paz e serenidade”, aproveitando o facto de deter nacionalidade russa e de trabalhar para uma empresa com operação e presença “em diversos países”.
Não cumpre aqui qualificar se a realização das viagens em questão, com as características invocadas pela requerente, corresponde a uma questão de particular importância, a demandar o acordo da requerente e do requerido, ou, pelo contrário, corresponde a um acto da vida corrente do menor, situação em que tal acordo não se revelaria necessário, porque a decisão caberia ao progenitor com quem o menor se encontrasse, relativamente ao acto em questão.
E não cumpre fazer tal qualificação porque a mesma já decorre das normas que regulam o exercício das responsabilidades parentais, quando aí ficou determinado que o menor não se poderá ausentar para o estrangeiro com qualquer um dos progenitores, sem o consentimento escrito do outro. O que é o mesmo que dizer que ficou normativamente definido que se trata de uma questão de particular importância.
Ou seja, tendo presente que as questões de particular importância (aquelas que demandam o acordo dos progenitores) correspondem a “questões existenciais graves, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos do filho”, a “questões centrais e fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação”, em suma a “todos os actos que se relacionem com o seu futuro” (Tomé de Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado, 3ª edição, 2018, pág. 186), ou (noutra formulação) a “questões que sejam fundamentais para o desenvolvimento psíquico-motor das crianças e que se prendam com a sua saúde e formação” (acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 22/1/2019, proferido no proc. 9842/16.4T8LRS-G.L1 e disponível em www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_main.php), no caso da norma que impõe a necessidade de autorização de um dos progenitores para o outro se ausentar para o estrangeiro com o menor é de pressupor que a mesma está relacionada com uma situação que se insere no referido núcleo essencial dos direitos do menor.
E, nessa medida, importa sempre ponderar se a ausência do menor para o estrangeiro salvaguarda o seu superior interesse, por contribuir para o seu desenvolvimento e para a sua formação, do mesmo modo não colocando em causa a sua segurança e/ou saúde (física e psíquica).
Ora, e como bem se refere na sentença recorrida (e não está minimamente colocado em crise) as viagens em questão (não só as duas de cariz lúdico e cultural, mas igualmente a de cariz familiar) apresentam-se como de interesse relevante para o desenvolvimento e formação do menor CC, não só porque lhe permitem as referidas aprendizagens multiculturais, mas igualmente porque permitem um convívio com a família alargada do lado materno. Aliás, na sua tomada de posição sobre esta questão das viagens o requerido nunca colocou em causa que o contacto do menor com a família materna que reside na Suécia representava algum risco para o seu desenvolvimento, segurança, saúde e bem-estar. Nem tão pouco que a visita à Euro Disney, ou mesmo a ida a Viena, se apresentavam como prejudiciais nessa perspectiva do desenvolvimento físico e psíquico do mesmo.
Assim sendo, apresenta-se como correcta a linha de pensamento expressa na sentença recorrida, no sentido de tal autorização para que o menor efectue tais viagens ao estrangeiro com a requerente só não dever ser concedida na medida em que pressuponha a alteração dos convívios entre o menor e o requerido, actualmente amplamente sustentados pela residência alternada com cada um dos progenitores.
Por outro lado, não está colocada em crise a existência de uma relação conflituosa entre a requerente e o requerido, ao nível da gestão quotidiana da vida do menor.
Todavia, inexiste qualquer facto provado que leve a concluir que tal conflito permite antever a vontade da requerente de se ausentar definitivamente do território português com o menor, “à boleia” das viagens em questão, e assim logrando fazer cessar unilateralmente tal residência alternada.
Aliás, as viagens a França (Euro Disney) e à Áustria (Viena) apresentam características de viagens de turismo de curta duração, já que não se prolongam por mais de uma semana e pressupõem a estadia em estabelecimentos hoteleiros durante esse período. Pelo que essas características dificilmente são conciliáveis com a concretização do “perigo de fuga” invocado pelo requerido (e secundado na sentença recorrida), na medida em que a dinâmica de tal tipo de viagem de turismo é tendencialmente incompatível com a dinâmica necessária à transferência definitiva de um centro de vida laboral e familiar.
Acresce não se poder afirmar, a partir da factualidade apurada, a existência de uma situação de mobilidade laboral, por parte da requerente, que propicie ou potencie a referida ausência definitiva para o estrangeiro.
Com efeito, e não obstante a requerente trabalhar para uma empresa da área financeira que opera em mais de cinquenta países (incluindo Portugal) espalhados pelos cinco continentes (como se pode constatar através de uma consulta ao site com o endereço www.bnpparibas.pt/en/bnp-paribas-in-the-world), a requerente tem um esquema de prestação de trabalho que a impede de se ausentar definitivamente para o estrangeiro, já que tem de trabalhar presencialmente (ainda que em semanas alternadas) nas instalações da referida empresa situadas nesta cidade de Lisboa.
Ou seja, não se está perante uma qualquer nómada digital que hoje pode estar a trabalhar em Lisboa remotamente e amanhã se pode deslocar para um outro qualquer ponto da Europa (ou mesmo de qualquer outro continente) e aí continuar a exercer a mesma actividade profissional, por essa mesma forma remota.
Pelo que, por esta via, não é de concluir, segundo critérios de normalidade socio‑laboral, que se verifica qualquer probabilidade séria e efectiva de a requerente sair de Portugal com o menor para uma visita a uma qualquer grande cidade europeia (como Paris, Viena, ou mesmo Malmo), aproveitando essa deslocação para continuar a trabalhar para a mesma empresa, definitivamente a partir desse destino, e pela mesma forma como exerce a sua actividade profissional em Portugal.
Quanto à circunstância de a requerente e o menor terem nacionalidade russa (para além da nacionalidade portuguesa), associada à circunstância de a requerente ser natural da “antiga União Soviética”, importa desde logo esclarecer que a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) compreendia vários territórios que são actualmente estados independentes, desde a Rússia até às chamadas repúblicas do Báltico (Letónia, Lituânia e Estónia), a Ucrânia, a Geórgia ou mesmo o Cazaquistão (para não estar a referir todos os estados independentes que resultaram da extinção da URSS).
Ou seja, a circunstância de a requerente ser natural da “antiga União Soviética” não significa que tenha nascido em território que actualmente corresponde à Rússia. E efectivamente não nasceu, mas antes em território que actualmente corresponde à Ucrânia, como se pode constatar da consulta da certidão do assento de nascimento do menor que foi junto com o requerimento inicial da acção de regulação das responsabilidades parentais, a que esta acção se encontra apensa.
Serve este esclarecimento para afastar o principal argumento utilizado na sentença recorrida para justificar o receio da deslocação definitiva do menor para o estrangeiro, mais concretamente para a Rússia. Com efeito, quando aí se afirma a existência de “ligações familiares e culturais” decorrentes da nacionalidade russa da requerente e do menor, a par de uma “situação actual concretamente da Rússia (em conflito armado)”, que poderá tornar “ainda mais limitada a capacidade de garantir o regresso do menor a Portugal”, parece pressupor‑se a existência de uma especial ligação (familiar e/ou cultural, designadamente) da requerente com esse país (a Rússia). Mas como inexiste qualquer facto provado que demonstre que a requerente tem essa especial ligação ao território russo (onde nem sequer nasceu), seja por via da existência de familiares que aí residam, seja por via da existência de património (designadamente imobiliário) nesse país, seja mesmo por via de deslocações frequentes ao mesmo, torna-se patente que a simples consideração da nacionalidade russa da requerente e do menor não é bastante para concluir pelo receio de a requerente aproveitar a saída com o menor para umas “miniférias” em França ou na Áustria (ou mesmo na Suécia) e deslocar-se definitivamente para a Rússia.
Ainda a respeito da família materna do menor que reside na Suécia (mais concretamente, em Malmo), sustenta o requerido que essa circunstância facilita “a ligação familiar e cultural com a Rússia”, do mesmo modo potenciando o risco de a requerente se manter fora de Portugal, como já aconteceu no passado, quando estava na Suécia e foi para a Dinamarca, em vez de regressar directamente a Portugal.
Para além de se desconhecer em que factos assenta o requerido a sua convicção de que existem especiais ligações culturais e familiares entre a população residente na Suécia e a população residente na Rússia, do mesmo modo (e como já se disse) não se consegue encontrar a referida “ligação especial à Rússia” por parte da requerente, para além do já acima explicitado (a nacionalidade e o uso da língua), e sendo que a repetição deste argumento pelo requerido aponta mais para um preconceito em relação à nacionalidade russa da requerente, que para a existência de efectivas ligações entre a requerente e o território russo.
Acresce ainda que a alegação (não demonstrada) do não regresso directo da requerente a Portugal, aquando de uma deslocação com o menor à Suécia, carece de qualquer sentido. Com efeito, estando em causa uma visita aos familiares da requerente residentes em Malmo, é sabido que esta cidade sueca se situa a cerca de 600 quilómetros da capital sueca, mas a apenas cerca de 40 quilómetros da capital dinamarquesa. E ainda se situa a menor distância do aeroporto de Copenhaga (cerca de 30 quilómetros), sendo que este está ligado à cidade de Malmo por um comboio do tipo suburbano, com um tempo de viagem de cerca de 40 minutos (estes dados podem ser consultados no site Google Maps). O que significa que a forma mais rápida e eficaz de viajar de Malmo para Lisboa é através do aeroporto de Copenhaga (ou seja, através da Dinamarca). Pelo que, ainda que a requerente tivesse alguma vez ido à Suécia (mais concretamente, a Malmo) e, para regressar, tivesse seguido para a Dinamarca (e daí para Portugal), isso significa que tinha seguido o caminho mais rápido e eficaz (em vez de ter de ir a Estocolmo, só para viajar directamente da Suécia sem passar pela Dinamarca, como parece pretender o requerido).
Ou seja, serve mais este esclarecimento para afastar outro dos argumentos utilizados pelo requerido para sustentar o seu receio de uma deslocação definitiva do menor para o estrangeiro, receio que assim se tem por meramente subjectivo. E, do mesmo modo, a alegação (igualmente não demonstrada) de que a requerente já anteriormente tenha requerido autorização para residir na Suécia (que lhe teria sido negada), apenas serve para acentuar o referido carácter subjectivo do receio manifestado pelo requerido.
Em suma, de tudo o que ficou apurado subsiste a existência da referida relação conflituosa entre a requerente e o requerido que, por si só, não permite afirmar que a forma encontrada pela requerente para colocar fim a tal conflito é ausentar-se definitivamente do território português com o menor, sob pretexto da realização de uma viagem turística de curta duração (a França ou à Áustria), ou mesmo de uma visita aos seus familiares residentes na Suécia.
Ainda a respeito da referida relação conflituosa, afirma o requerido que o mesmo se tem “revelado intenso, com uma tendência clara para escalar” e que se apresenta “incontornável e persistente”. E sustenta essa afirmação em factualidade que não está demonstrada, como aquela relativa à imputada transmissão, pela requerente ao menor, de considerações negativas sobre o requerido. Esta postura processual do requerido contribui, ela própria, para a referida persistência e intensidade da relação conflituosa, ao imputar à requerente comportamentos na relação com o menor que não estão demonstrados. Pelo que se é partir do agudizar do conflito que o requerido visa fundar o seu receio de um comportamento alienante por parte da requerente, não deverá o mesmo ignorar que essa agudização decorre da sua actuação e apresenta-se, em si mesma, como alienante da figura da requerente, o que eventualmente justificará, se assim se mantiver, uma diferente posição do tribunal no que respeita à promoção dos amplos contactos que até agora têm sido mantidos entre o requerido e o menor.
Ou seja, aquilo que importa apreender é que, não obstante o conflito entre a requerente e o requerido, não há qualquer indício que sustente objectivamente o receio do requerido de que a requerente aproveite a realização das viagens em questão para fazer cessar o relacionamento do menor consigo, nos termos que decorrem da residência alternada.
Dito de forma mais simples, pela sua natureza as viagens em questão apresentam‑se como benéficas para o desenvolvimento do menor, e sem que da concretização das mesmas se possa retirar qualquer comprometimento desse desenvolvimento, pela quebra dos contactos do menor com o requerido, na medida em que não se apresenta como verosímil o receio do requerido de que a requerente aproveite tais viagens para se deslocar de forma permanente com o menor para o estrangeiro.
Acresce ainda, como bem observa a requerente, que os destinos dessas viagens correspondem a países que são partes contratantes da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25/10/1980. O que significa que, ainda que contra todas as probabilidades a requerente não regressasse a Portugal com o menor no termo de qualquer um dos (curtos) períodos de duração das mesmas, sempre seria possível lançar mão imediatamente dos mecanismos aí previstos para obter o regresso do menor a Portugal. Pelo que, mesmo nesta improvável situação, não haveria que falar de uma deslocação do menor para o estrangeiro de forma permanente e definitiva, a sustentar objectivamente o efectivo e grave prejuízo para o relacionamento do mesmo com o requerido, e sendo apenas nessa circunstância que se justificaria a recusa da realização de qualquer uma das viagens em questão.
Em suma, verificando-se que o invocado receio da ausência definitiva do território nacional por parte da requerente e do menor não decorre de circunstâncias objectivas, mas apenas de uma posição de preconceito em relação à nacionalidade russa da requerente, com a consequente limitação inaceitável do direito fundamental do menor à livre circulação, é de concluir que o decidido na instância recorrida não pode subsistir, face à procedência das conclusões do recurso da requerente, havendo que autorizar as duas viagens recusadas (à Euro Disney e à capital austríaca).
Coloca-se, todavia, a questão da possível inutilidade deste deferimento da pretensão da requerente, se se entender que as autorizações pretendidas teriam de estar limitadas às concretas viagens, não só com os destinos e duração indicados, mas sobretudo nas datas referidas (já ultrapassadas).
Todavia, interpretando a norma constante do regime das responsabilidades parentais que exige a autorização de ambos os progenitores para as deslocações do menor ao estrangeiro, desde logo com apelo ao que acima já ficou expresso sobre a natureza e alcance das questões de particular importância, entende-se que apenas está em causa a natureza da deslocação, no que respeita ao destino, finalidade e duração, mas já não a data concreta da sua realização.
Aliás, tal requisito seria tanto mais limitativo da concretização da viagem quanto é certo e sabido que, nos casos de viagens aéreas, há inúmeras variáveis que determinam a sua reserva, desde a flutuação diária de preços até à circunstância de existirem destinos para os quais não há voos diários.
Dito de forma mais simples, no caso concreto dos autos entende-se que a ratio da necessidade de autorização de ambos os progenitores se prende, não com os concretos dias em que se pretende que o menor se ausente para o estrangeiro, mas com o local para onde se ausenta, por que período temporal, e com que intenção.
Assim, e apesar de se mostrarem já prejudicadas as deslocações nos concretos momentos indicados pela requerente, ainda assim é de entender que as mesmas deslocações podem ser realizadas noutros momentos, já que continuam a apresentar-se como positivas para o desenvolvimento do menor. Aliás, e quanto a esta questão, importa apenas recordar, no que respeita à capital austríaca, que para além dos referidos mercados de Natal (logicamente sazonais) é possível aí visitar e apreciar museus, palácios e outros marcos históricos e culturais, que se situam entre os mais importantes da Europa (ou não se estivesse a falar de uma das capitais do extinto Império Austro‑Húngaro). O que justifica uma viagem turística de curta duração a esse destino durante todo o ano. E o mesmo se dirá, obviamente, da deslocação à Euro Disney, em França, com a duração daquela deslocação projectada entre 5/9/2024 a 8/9/2024, período em que a mesma ficou, entretanto, prejudicada pela cronologia processual (nos termos que ficaram a constar do relatório que antecede).
Assim, e ainda que o reconhecido dinamismo das questões parentais imponha que seja fixado um limite temporal para a realização de cada uma das viagens em questão, devem ambas ser autorizadas, nos termos propostos pela requerente e sem fixação de datas concretas para o início e termo de cada uma delas (sem prejuízo, todavia, da autorização respectiva se ter por caducada, caso entretanto tenha ocorrido a viagem).
***
Quanto à responsabilidade tributária, tendo presente que a decisão proferida na instância recorrida é revogada, inclusive quanto a custas, e na medida em que se verifica o decaimento total da oposição do requerido à pretensão da requerente, face ao princípio da causalidade que emerge do no nº 1 do art.º 527º do Código de Processo Civil as custas são da responsabilidade do mesmo, em ambas as instâncias.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que, dando provimento à pretensão da requerente, autoriza-se o menor CC a ausentar-se para fora de Portugal com a requerente, nos seguintes termos:
• Para visita ao parque temático Euro Disney (Disneylândia de Paris), em França, durante um período máximo de quatro dias e até 15/9/2025;
• Para visita a Viena, capital da Áustria, durante um período máximo de oito dias e até 23/12/2025.
Custas (em ambas as instâncias) pelo requerido.

30 de Janeiro de 2025
António Moreira
João Paulo Raposo
Pedro Martins