RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
NULIDADE
IRREGULARIDADE
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
RETIFICAÇÃO DE ACÓRDÃO
INEXISTÊNCIA DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PROCEDÊNCIA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I - Uma vez que o Tribunal da Relação, após ter proferido acórdão de 28.06.2023, invocando ter ocorrido irregularidade, ao abrigo do disposto no art.º 123.º do Código de Processo Penal, deu sem efeito aquele acórdão e veio a proferir o acórdão de 20.09.2023, não se vislumbrando, contudo, a existência de qualquer irregularidade, à luz da melhor doutrina, conclui-se que tendo este último acórdão sido proferido quando já se mostrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal (art.º 613.º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art.º 4.º do Código de Processo Penal), é o mesmo de qualificar como inexistente. Ora,
II - Analisando o acórdão do Tribunal da Relação de 28.06.2023, devidamente interposto e admitido, não tendo este apreciado dois dos recursos interlocutórios deduzidos por um dos arguidos, nem tão pouco apreciado todas as questões suscitadas nos recursos dos três arguidos (artigos 379.º n.º1 alínea c), e 425.º n.º 4, do Código de Processo Penal), é o mesmo nulo, devendo ordenar-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido a fim deste proferir novo acórdão, no qual se conheçam as referidas questões, quedando prejudicas as demais questões suscitadas no âmbito dos referidos recursos dos arguidos.

Texto Integral


Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório

1.1. Os arguidos AA, BB e CC, recorreram para o tribunal da Relação de Lisboa, do acórdão proferido pelo tribunal de Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz ..., que os condenou no seguinte:

O arguido CC pela prática, em co-autoria material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão.

O arguido BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão.

O arguido DD pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão.

O arguido CC pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão.

O arguido BB pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão.

O arguido DD pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foram os arguidos EE, CC e BB condenados, respectivamente nas penas únicas de catorze anos de prisão.

O arguido AA recorreu também dos seguintes despachos:

- Do despacho de 14-12-2022 que indeferiu o pedido de diligências probatórias de inquirição dos inspetores da PJ por as considerar supérfluas;

- Do despacho de 22.09.2022, referente à nulidade da abordagem e subsequente busca á embarcação no qual se entendeu que a questão já tinha sido apreciada pelo TRL nada mais cumprindo apreciar, encontrando-se esgotado o Poder Jurisdicional face ao trânsito em julgado. E

- Do despacho datado de 29.07.2022, onde se decidiu que relativamente à contestação apresentada os arguidos já haviam invocado a nulidade do auto de constituição de arguido e a falsidade do dia e hora indicados como hora de detenção - apreciadas no despacho de pronúncia.

Por acórdão do tribunal de Relação de Lisboa, foram julgados improcedentes os recursos interlocutórios interpostos pelo arguido FF dos despachos de 1.12.2022, 27.02.2022 e de 22.09.2022 e improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos FF, GG, e CC.

1.2. Inconformados com tal decisão dela recorrem os arguidos FF, GG, e CC.

1.2.1. O arguido FF, finalizou a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

1. Por acórdão datado de 15-12-2022 o tribunal de 1.ª instância condenou o arguido pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão e condenou o arguido pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, independentemente de no acórdão recorrido ler-se artigo 21.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico, condenou o arguido na pena única de catorze anos de prisão.

2. Não se conformando com o acórdão proferido em 1.ª instância o arguido HH, ora Recorrente, apresentou recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão datado de 28-06-2023 que negou provimento aos recursos interpostos, mantendo-se a decisão recorrida, sem mais.

3. Tendo sido notificado do acórdão datado de 28-06-2023 o arguido veio aos autos arguir a irregularidade por falta de realização da audiência de discussão e julgamento e a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

4. E pese embora tenha sido apresentado requerimento a arguir a irregularidade e a nulidade do acórdão, por mera cautela de patrocínio o arguido apresentou alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

5. Sem que nada o fizesse prever o Venerando Tribunal da Relação de Évora proferiu novo acórdão datado de 20-09-2023 com fundamento que o acórdão inserido no citius é o projeto que foi apresentado antes da discussão em conferência.

6. O arguido ora Recorrente não se conforma com o despacho supra transcrito de que ora se recorre e não se conforma com o acórdão datado de 20-09-2023 que que negou provimento aos recursos interpostos, mantendo-se a decisão recorrida, sem mais.

7. Pese embora o arguido ora Recorrente já tenha invocado em sede de requerimento próprio a inexistência do acórdão recorrido, o qual ainda não foi decidido, por mera cautela de patrocínio vem apresentar recurso do despacho que deu sem efeito o acórdão datado de 28-06-2023.

8. O arguido ora Recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre por entender que o mesmo viola o princípio do esgotamento do poder jurisdicional consagrado no artigo 613.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e o princípio da certeza e da segurança jurídica o Juiz está impossibilitado de alterar o que decidiu, quer a decisão propriamente dita, quer os fundamentos que a sustentam e que com ela formam um todo incindível.

9. Sendo certo que o acórdão proferido a 28-06-2023, não tem qualquer aparência de “projeto de acórdão” e encontra-se manualmente datado e assinado por três Venerandos Juízes Desembargadores.

10. Motivo pelo qual requer-se que se determine a inexistência do acórdão pelos motivos já supra expostos.

11. Invocando-se desde já a inconstitucionalidade da decisão recorrida por violação do disposto no artigo 2.º da Constituição para efeito de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.

12. Pese embora o arguido, ora Recorrente já tenha invocado em requerimento próprio a irregularidade em apreço, por mera cautela de patrocínio vimos aos autos invocar a irregularidade por falta de audiência de discussão e julgamento.

13. O novo acórdão viola assim o princípio do esgotamento do poder jurisdicional e o princípio da certeza e da segurança jurídica.

14. A decisão que em ofensa aos mencionados princípios altere no todo, ou em parte, o que anteriormente foi decidido, é inexistente.

15. Termos em que deverá a presente arguição ser julgada procedente ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, o acórdão datado de 20-09-2023 deverá ser declarado inexistente com todas as consequências legais.

16. Sem prescindir, apesar da irregularidade também já ter sido invocada em requerimento próprio, por mera cautela de patrocínio vimos aos autos invocar a irregularidade por falta de audiência de discussão e julgamento.

17. E consequentemente deverá o acórdão proferido ser revogado, determinando-se a realização da audiência nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal.

18. Em sede de motivações de recurso foram invocados 21 pontos e o tribunal “aquo” deixou de se pronunciar sobre alguns desses pontos, nomeadamente acerca da violação dos direitos defesa dos arguidos previstos no disposto no artigo 32.º da CRP, da violação do caso julgado formal, do incumprimento da cooperação judiciária em material penal, da incompetência do tribunal da Comarca de Lisboa, da violação dos artigos 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e do artigo 6.º da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/10/2010 relativo ao direito à interpretação e tradução em processo penal e da inconstitucionalidade da decisão recorrida.

19. Ora, salvo o devido respeito, verifica-se que o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar – artigos 379.º 1.º al. a) e c), 425º n.º 4 e 428, todos do Código de Processo Penal.

20. A não pronúncia, ou insuficiente pronúncia é evidente neste caso e o recorrente entende que foi cometida a nulidade prevista nos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e c), aplicável aos acórdãos proferidos em recurso – 425.º n.º 4 – e artigo 428.º, todos do Código de Processo Penal, porque o douto acórdão agora em crise deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, quando não decidiu expressamente esta questão.

21. Nestes termos e demais de direito deverá a presente arguição ser julgada procedente e, em consequência, o acórdão ser declarado nulo com todas as consequências legais.

22. Relativamente aos três recursos interlocutórios retidos o tribunal “a quo” considerou que o tribunal de 1.ª instância respeitou o disposto no artigo 407.º do Código de Processo Penal.

23. E que não há nenhuma inconstitucionalidade nesta forma de proceder de acordo com a lei.

24. Salvo o devido respeito que é muito, o tribunal de 1.ª instância ao admitir os recursos apresentados e ao decidir que os mesmos deviriam subir conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que tiver posto termo a causa, nos termos do disposto no artigo 407.º n.º 3 do Código de Processo Penal, nos próprios autos, nos termos do disposto no artigo 406.º n.º1 do Código de Processo Penal.

25. E ao atribuir ao recurso efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto no artigo 408. º, n. º 1, alínea a) do Código de Processo Penal andou mal, pois caso algum dos recursos apresentados mereça provimento foram praticados actos absolutamente inúteis e inconsequentes.

26. O facto dos actos praticados poderem vir a ser anulados, faz com que o tribunal de 1.ª instância não pudesse reter os recursos e ordenar a subida dos mesmos a final.

27. A inutilidade é absoluta quando a retenção do recurso tiver como resultado a completa inconsequência do seu resultado futuro, conforme sucede in casu.

28. O acórdão recorrido viola assim o disposto no artigo 407.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que dispõe que sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.

29. Invocando-se desde já a inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal “a quo” ao disposto no artigo 407.º, n.º 1 do Código de Processo Penal para efeito de futuro e eventual recurso para o Tribunal Constitucional.

30. O acórdão recorrido na esteira do acórdão proferido em 1.ª instância enferma ainda do vício de omissão de pronúncia por não ter sido apreciado o protesto.

31. Uma vez que relativamente ao protesto ditado em acta pela defesa considera o tribunal “a quo” que a mandatária não requereu nada, apenas manifestou o seu desacordo quanto à forma como o tribunal, na pessoa da Sra. Juíza Presidente estava a conduzir a audiência. Situação que lhe é legítima se entendermos como protesto uma manifestação de liberdade de expressão quanto ao que não nos agrada e pode ficar exarado em acta, mas que, no caso concreto não é incidente de protesto e portanto, não exigia resposta do Tribunal por não se enquadrar no disposto do citado artº 80º. E que a audiência está gravada o que significa que poderá sempre, se tiver matéria para isso, proceder de acordo com o que a lei lhe permite, mas não contra legem.

32. Tendo sido violado o direito ao exercício do contraditório e não foi facultado à defesa o acesso à imediação e à oralidade da prova em julgamento.

33. O que determina a nulidade de todo o julgamento por violação do artigo 32.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP e do artigo 61.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal conjugado com os artigos 327.º, n.º 2, 355.º e 361.º, n.º 1 e 2 todos do Código de Processo Penal.

34. Em sede de acórdão recorrido e relativamente às apelidadas pelo tribunal “a quo” de questões prévias (Da nulidade do processo e da incompetência dos tribunais portugueses; Do incumprimento da cooperação judiciária internacional em matéria penal;

Da Incompetência do Tribunal da Comarca de Lisboa) foi decidido que as questões foram expressamente apreciadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional quanto à mesma, por força do caso julgado formal que se formou.

35. Tal decisão para além de violar o caso julgado formal constitui uma omissão de pronúncia isto é o tribunal “a quo” obvia-se de decidir as questões prévias invocadas e escuda-se no caso julgado formal realizando inclusive citações de parte dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

36. E também estamos perante uma omissão de pronúncia pelo facto do tribunal de 1.ª instância não ter apreciado o parecer jurídico junto aos autos.

37. Devendo o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.

38. O acórdão recorrido viola ainda os mais elementares direitos de defesa dos arguidos, isto é relativamente às já alegadas omissões de pronúncia o tribunal “a quo” não permitiu à defesa inquirir as testemunhas acerca das invocadas nulidades/irregularidades alegadas em sede de contestação, ao arrepio do nos artigos 30.º e 32.º da nossa Constituição.

39. E viola para além do caso julgado material o disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código de Processo Penal.

40. A decisão recorrida viola ainda o regime das nulidades processuais previstas nos artigos 118.º e seguintes do Código de Processo Penal e os mais elementares direitos de defesa do arguido.

41. Sendo certo que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da oficiosidade do conhecimento das nulidades insanáveis a todo o tempo, isto é, em qualquer fase do procedimento.

42. Já no que tange às nulidades sanáveis estas não são de conhecimento oficioso e podem/ devem ser invocadas num determinado momento ou prazo sob pena de sanarem, isto é de se validarem à face da ordem jurídica.

43. Não se podendo considerar que os citados acórdãos tenham versado sobre uma decisão final na plenitude de todas as suas acepções possíveis, posto que seja no julgamento, ou mais propriamente na sentença/acórdão definitivo, que a pretensão punitiva do Estado pode encontrar a sua acabada conformação, podendo e devendo o arguido invocar as nulidades que entender por convenientes para o exercício condigno da sua defesa.

44. Não tendo a decisão instrutória e os citados acórdãos valor de caso julgado formal, podendo/devendo o tribunal que irá julgar a causa pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer em obediência ao preceituado no artigo 311.º do Código de Processo Penal.

45. Não se encontrando assim o poder jurisdicional do Tribunal esgotado quanto às questões/ nulidades invocadas pela defesa dos arguidos.

46. O acórdão recorrido na esteira do acórdão proferido em 1.ª instância viola assim artigos 118.º e seguintes, artigo 311.º todo do Código de Processo Penal, os mais elementares direitos de defesa do arguido e bem assim o instituto do caso julgado.

47. Andou mal o tribunal “a quo” ao na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa considerar que os arguidos apenas foram detidos no dia e hora em que assinaram o auto de detenção.

48. Afigurando-se a detenção dos arguidos manifestamente ilegal.

49. A decisão recorrida viola o artigo 141.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e o artigo 31.º da nossa Constituição.

50. Termos em que e por violação do disposto no artigo 141.º, n.º 1 do CPP deverá a decisão recorrida ser revogada e ser declarado nulo todo o processado relativamente à apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório judicial de arguido detido porquanto foram apresentados para além do prazo de 48 horas após a detenção a que alude o já citado artigo 141.º do CPP.

51. Por outro lado, resulta dos autos que os arguidos foram abordados e detidos no dia 16 de Outubro de 2021 pelas 01h38 (hora portuguesa) quando se encontravam nas coordenadas geográficas 36 21 3N – 013 13 10 W, a 200 milhas do Cabo de São Vicente.

52. As coordenadas em apreço situam-se fora da designada Zona Económica Exclusiva (ZEE) ou seja fora do território nacional, em águas internacionais.

53. Desconhecendo-se o país do pavilhão do barco.

54. A decisão recorrida viola claramente as regras da cooperação judiciária e a Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar.

55. Não se verificando no presente caso concreto nenhum dos pressupostos para o exercício do direito de visita, pois estamos perante um navio estrangeiro (cujo o Estado do pavilhão do barco se desconhece) e o Estado Português não tem jurisdição sobre o mesmo.

56. Termos em que e por violação dos supra mencionados preceitos legais deverá ser declarada a incompetência internacional do tribunal português e consequentemente deverão ser declarados nulos todos os atos praticados pelo Estado Português.

57. O arguido ora Recorrente não se conforma com a decisão recorrida porquanto no caso em apreço e porque não nos encontramos no domínio de terrorismo, temos a vinculação das autoridades à circular da Procuradoria Geral da República n.º 4/2002, de de Março, bem como no estatuído no artigo 229.º e seguintes do Código de Processo Penal, e ao estatuído pela Lei n.º 87/2021, de 15/12 (Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), e isto porquanto tem de existir um controlo às atividades dos próprios órgãos de polícia criminal, o que não se verificou no presente caso concreto.

58. O acórdão recorrido viola o artigo 229.º e seguintes do Código de Processo Penal e do estatuído pela Lei n.º 87/2021, de 15/12 (Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal) deverá o acórdão recorrido ser revogado e consequentemente deverá ser determinada a nulidade de todo o processo, por força do disposto no artigo 119.º do Código de Processo Penal.

59. Pese embora o tribunal de 1.ª instância tenha coartado os direitos de defesa dos arguidos ao não permitir que a defesa inquirisse as testemunhas acerca dos factos relacionados com as nulidades invocadas sempre se dirá que resulta da prova documental que os arguidos foram abordados e detidos no dia 16 de Outubro de 2021 pelas 01h38 (hora portuguesa) quando se encontravam nas coordenadas geográficas 36 21 3N – 013 1310 W, a 200 milhas do Cabo de São Vicente e após essa detenção a embarcação e os arguidos foram transportados pelo OPC para a Base Naval de Lisboa.

60. Porém resulta que o porto português mais próximo do local de abordagem dos arguidos era o porto de Sagres e não a Base Naval de Lisboa ou o cabo de S. Vicente.

61. Senão vejamos, os arguidos encontravam-se a 214 milhas náuticas de Sagres e a 245 milhas do cabo de S. Vicente, sendo o tribunal da Comarca de Lisboa territorialmente incompetente para julgar os presentes autos.

62. Dispõe o artigo 19.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que é competente para conhecer do crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.

63. E estabelece o n.º 3 do supra mencionado preceito legal que para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação.

64. O acórdão recorrido viola assim o disposto no artigo 19.º do Código de Processo Penal.

65. Sem prescindir e caso assim não se entenda, sempre se dirá que estamos perante um crime de localização duvidosa ou desconhecida.

66. E, logo o tribunal português é internacional e territorialmente incompetente para aferir destes autos.

67. Termos em que deverá o acórdão recorrido ser revogado e consequentemente deverá ser declarada a incompetência territorial do Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz....

68. Os arguidos não consentiram a realização da busca, o que viola o disposto no artigo 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal devendo ser declarada a nulidade da busca realizada à embarcação.

69. Apesar da designação, legalmente fixada, a nulidade ora arguida trata-se de nulidade com autonomia dogmática e legal face às nulidades processuais, não por acaso a lei acrescenta de imediato que tais provas não podem ser utilizadas (e por isso se diz que o termo terá um “sentido simbólico”, não técnico e que apenas quer dizer que tais provas jamais podem ser utilizadas, tendo nulidade invocada caracter absoluto, independentemente do regime dos artigos 122.º e 123.º do Código de Processo Penal.

70. Foram ainda violados o artigo 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o artigo 6.º da Directiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/10/2010 relativo ao direito à interpretação e tradução em processo penal e à violação do domicílio, a violação da reserva da vida privada e familiar e consequentemente deverá ser declarada a inexistência jurídica dos autos de busca, revista e apreensão.

71. O acórdão recorrido viola ainda o artigo 127.º do Código de Processo Penal.

72. O tribunal “a quo” ao valorar sem mais a prova documental pré-constituída da forma como o fez viola o artigo 249.º e o artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

73. Andou mal o tribunal “a quo” na esteira do tribunal de 1.ª instância ao considerar que resulta de forma objectiva do exame pericial realizado aos telefones satélite, constante de fls. 1130 e ss., que os tripulantes do barco contactavam com terra, dando notícias da viagem e recebendo indicações, de indivíduos não identificados.

74. Sendo que da prova indicada como pericial surgia na acusação a menção: “protesta juntar: exame pericial a telemóveis e telefones satélite apreendidos aos arguidos.”.

75. E em sede de contestação apresentada o arguido ora Recorrente impugnou o exame pericial a telemóveis e telefones satélite apreendidos aos arguidos por constar da acusação a menção a protesta juntar, o que não permite a consulta dos mesmos e o exercício da defesa por parte dos arguidos.

76. Resulta também que o cartão cuja leitura terá sido junta a fls. 1127 e cuja tradução do documento foi junta no dia 17 de Novembro de 2022 e que à altura da consulta dos autos e onde se pugnou pela confiança dos mesmos, o qual foi indeferido por despacho judicial tendo sido então tiradas cópias através de meio tecnológico nomeadamente telemóvel verifica-se que a fls. 1127 encontrava-se um recurso não tendo ocorrido a renumeração do processo e não tendo sido notificadas as partes da junção de tal documento, bem como não foi em nenhuma parte aprendido o cartão cuja leitura se juntou alegadamente a fls. 1127.

77. Assim não resulta em nenhum documento, nomeadamente auto de apreensões a existência do cartão lido nos autos, nem resulta nenhum despacho judicial que autorize a leitura tando dos telefones como do relatório pericial.

78. Acontece que da acusação e bem assim da decisão instrutória não há qualquer referência ao meio de prova junto a fls. 1127 e seguintes.

79. Mais, do relatório pericial consta que o mesmo foi junto aos autos a 12-05-2022, porém a defesa não foi notificada nem conforme supra já se referiu é realizada qualquer menção ao relatório pericial em sede de decisão instrutória que foi proferida no dia 25-05-2022.

80. O facto dos arguidos não terem sido notificados do meio de prova junto aos autos não permitiu a consulta e o exercício do direito de defesa.

81. Motivo pelo qual não é permitido ao tribunal oficiar a tradução de tais elementos probatórios sem dar conhecimento dos mesmos à defesa.

82. Aliás o Ministério Público protestou juntar elementos de prova e como tal não podem os mesmos ser valorados como prova pericial.

83. Estabelece o artigo 283.º, n.º 3, alínea f) do Código de Processo Penal que a acusação contém sob pena de nulidade a indicação de provas a produzir ou a requerer.

84. Devendo considerar-se que a prova pericial não se encontra devidamente indicada e referenciada na douta acusação pública e bem assim na decisão instrutória.

85. O que consubstancia a nulidade da fase instrutória.

86. Caso assim não se entenda sempre se dirá que a errónea identificação dos meios de prova não poderá ser corrigida nem retificada pelo Ministério Público.

87. Ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.º 3 e 97.º, n.º 3 do CPP só podem ser corrigidos erros no caso previsto no n.º 1.

88. O acórdão recorrido viola também os princípios da Presunção da Inocência e o princípio do “In Dubio Pro Reo”.

89. Ademais os arguidos não praticaram todos os mesmos factos em co-autoria.

90. Pelo que não deverão os arguidos serem condenados por co-autoria pois não estão preenchidos os pressupostos do estatuído no artigo 26.º do Código Penal.

91. Da matéria de facto dada como provada não existe um único facto que permita condenar o arguido pela prática de um crime de associação criminosa, com o desenho típico que lhe empresta o artigo 28.º da Lei da Droga ou o artigo 299.º do Código Penal.

92. Resulta da matéria dada como provada, não se pode sustentar que provou a existência de uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros.

93. Com efeito, não se demonstrou que os arguidos tivessem uma realidade autónoma diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros, pois, cada um terá aceite participar no seu único e exclusivo interesse, sem qualquer aderência a uma realidade autónoma, diferente e superior às suas próprias vontades e interesses.

94. Cada um dos arguidos terá “trabalhado” no seu exclusivo interesse.

95. Veja-se neste sentido o Acórdão do Juízo Central Criminal de Faro – Juiz ..., proferido no âmbito do processo n.º º 304/20.6..., cujo entendimento seguimos de perto.

96. Os factos dados como provados não preenchem, a nenhum título, a factualidade típica do crime de associação criminosa, tanto do lado do tipo objetivo, como do lado do tipo subjetivo (dolo-do tipo).

97. Verificando-se uma ausência toral e insuprível de factos subjectivos correspondentes aos elementos cognitivo e volitivo do dolo-do-tipo do crime de associação criminosa.

98. O não preenchimento do tipo objectivo é patente e insofismável a seguir-se a doutrina dominante por falta de uma realidade transcendente aos membros individuais, persistente e subsistente como centro autónomo de motivação e de imputação das ações dos membros individuais e da falta do indispensável do sentimento de pertença pro parte dos arguidos, que nunca agiram em obediência às normas e à “subcultura” da alegada organização, nem se moveram em nome das suas estratégias e interesses.

99. Não se verificando ao nível da factualidade típica as exigências de uma estrutura organizacional supra-individual e duradoura.

100. Mais, o tribunal “a quo” não afirmou, nem sustentou o insuprível juízo de culpa, isto é não qualificou a conduta dos arguidos como culpa.

101. A falta duma categoria nuclear da infracção criminal (culpa) afasta de forma definitiva e inultrapassável a condenação dos arguidos.

102. A ausência de culpa e o não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo impõem a absolvição do arguido ora recorrente.

103. A pena em que o arguido foi condenado viola os princípios orientadores da teoria dos fins das penas.

104. Termos em que e sem prescindir deve ser revogado o douto acórdão devendo ser proferido novo acórdão que tenha como base a aplicação da teoria dos fins das penas existente no nosso sistema penal, e caso não se absolva o arguido HH dever-se-á optar pela aplicação ao ora recorrente de uma pena educacional e ressocializadora.

105. O arguido ora Recorrente não se conforma com o acórdão de que ora se recorre e entende que o mesmo viola todos os direitos de defesa dos arguidos constitucionalmente consagrados no artigo 32.º e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

106. Motivos pelos quais e face ao supra exposto invoca-se desde já a inconstitucionalidade da decisão recorrida para efeito de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso, e em consequência revogar o acórdão recorrido e absolver o arguido DD, assim se fazendo JUSTIÇA!

1.2.2. O arguido GG, rematou a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

Termos em que deverá a presente arguição ser julgada procedente e, em consequência, o acórdão datado de 20-09-2023 ser declarado inexistente com todas as consequências legais

DIREITO VIOLADO - Artigo 32.º da CRP

- Artigos art.º 614.º, 615.º e 616.º do CPC aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP

- Princípios da irrevogabilidade e da segurança jurídica

II. Caso assim não se entenda, o que por cautela de patrocínio se admite, ainda se dirá que:

O Acórdão recorrido deverá ser considerado nulo, porquanto viola:

a. A alínea a), do número 1, do artigo 379.º, por não conter todas as menções referidas no número 2, do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal, e

b. A alínea d), do número 2, do artigo 120.º, ex vi artigo 340.º, número 1, ambos do mesmo diploma legal.

c. Princípios constitucionais, concretamente, os artigos 20.º, 32.º, 202.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa, por omissão do dever de fundamentação e promissão da produção de prova que revelava fundamental para a descoberta da verdade material.

d. Os artigos 2.º, 13.º, 18.º, número 2 e 32.º, todos da Constituição Portuguesa, 127º, 355º, 118º, do Código de Processo Penal, concretamente os princípios da legalidade, do Estado de Direito Democrático e Social, da igualdade, necessidade da pena, proporcionalidade e adequação da medida da pena, dignidade da pessoa humana, livre apreciação da prova, imediação da prova, do contraditório e do in dubio pro reo, atenta a interpretação dada a preceitos processuais, o que redunda em manifesta inconstitucionalidade.

DA NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO:

A. Por omissão de pronúncia acerca das matérias feridas de nulidade invocadas:

1. O Acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto na alínea a), do número 1, do artigo 379.º, por não conter todas as menções referidas no número 2 do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal e na alínea d), do número 2, do artigo 120.º, ex vi artigo 340.º, número 1, ambos do mesmo diploma legal.

2. Sumariamente, o acórdão em crise deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.

3. A nulidade por omissão de pronúncia ocorre quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, nos termos do artigo 379º, número 1, do Código de Processo Penal, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do artigo 425º, número 4, do mesmo compêndio normativo.

4. Neste sentido, o Tribunal tem de se pronunciar sobre todas as questões relevantes para uma justa decisão.

5. Caso assim não seja, estamos perante omissão de pronúncia, sendo nulo o acórdão recorrido.

6. O Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre matérias como, a incompetência dos tribunais portugueses, a incompetência da Tribunal da Comarca de Lisboa, a nulidade da busca, a detenção ilegal, da subsequente condução a porto nacional e o incumprimento das regras de cooperação judiciária internacional em matéria penal.

7. Assim, a todas estas questões suscitadas, respondeu o Tribunal ora recorrido com: “(...) Tendo a questão já sido expressamente apreciada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nada mais cumpre decidir a tal propósito, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional quanto a tal matéria, por força do caso julgado formal que se formou quanto a mesma.”

8. Desta forma, a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito.

9. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09.02.2012, processo 131/11.1..., “A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art. 379.°), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”

10. Neste sentido e como vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o douto Tribunal deixa de pronunciar-se sobre a própria questão, ou seja, quando existe uma ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.

11. Como ensina, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 288, “A nulidade decorrente da omissão de pronúncia, aludida no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal pressupõe que devem constar da sentença todos os factos submetidos a apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, os constantes da acusação que sejam substanciais, quer instrumentais ou acidentais, bem como os não substanciais que resultem da decisão da causa e sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão, quando aceites nos termos do artigo 359.º.”

12. No caso concreto, todas as questões e matérias, incidem sobre problemas concretos e questões específicas, devendo o Tribunal pronunciar-se sobre as mesmas, por corresponderem ao concreto objeto que é submetido à cognição do tribunal.

13. Assim, sobre nenhuma questão recaiu a atenção do acórdão recorrido. Em momento algum foram afrontadas ou analisadas de forma ampla ou restrita, as questões levantadas e conhecidas do Tribunal. Concluindo assim, que nunca tomou posição expressa e válida sobre as questões e matérias em causa.

14. Pelo que, é manifestamente evidente que o Tribunal nunca se expressou de forma patente e clara sobre as questões e matérias suscitadas.

15. Nunca se poderá afirmar que está em causa a discordância ou concordância do aqui recorrente, porquanto nunca teve direito a tal, porque não existe nenhuma posição.

16. Aliás, por ser verdade, só existe uma posição – da omissão!

17. Termos em que deverá o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, número1, alínea c), do Código de Processo Penal.

B. Por omissão de diligência probatória:

18. O aqui recorrente requereu a admissão aos autos de Parecer Jurídico do Professor António André Inácio (Professor Auxiliar na Faculdade de Direito, ULHT Doutor em Direito Público pela Universidade San Pablo Ceu, Madrid, Investigador no CEAD/ULHT).

19. Bem como, requereu a sua inquirição por ser ex-inspetor da Polícia Judiciária, por todo o vasto conhecimento e experiência que detém, como bem sabemos adquiridas pelo cargo que desempenhou.

20. No dia 17.10.2022, foi proferido despacho, no sentido de admitir a junção aos autos do Parecer Jurídico, constante a fls. 1542 e seguintes, nos termos do disposto no artigo 340º e 165º, número 3, ambos do Código de Processo Penal.

21. Apesar de ter sido admitido, fundamentar todas as questões e matérias suscitadas e, seguramente, contribuir para o desfecho do processo em causa, nunca o Tribunal “a quo” fez referência ao mesmo em sede de Acórdão.

22. Deveria não só ter sido feita referência, como deveria ter sido feita com clareza, objetividade e discriminadamente, o que in casu, não ocorreu, constituindo uma omissão de pronúncia.

23. Vejamos, Acórdão Tribunal da Relação de Évora, Processo: 220/09.2GAGLG.E1, Relator: ANA BARATA BRITO, de 06/11/2012 (disponível in www.dgsi.pt):

“1. É nula, por deficiente fundamentação da matéria de facto, a sentença que omite a análise da prova por declaração de arguido e que não diz quais os “documentos juntos aos autos” a que se refere e o que deles retira.

2. Optando o arguido por responder sobre os factos imputados, impõe-se apreciar a versão apresentada, explanando as razões do seu eventual crédito ou descrédito.”

24. Face a tudo o exposto e pela ausência de referência às questões e matérias suscitadas, é importante questionar, se além dos factos provados, foram ou não analisados e considerados, para efeitos de prova, todos os relevantes não discriminados em sede de Acórdão.

25. Devendo o acórdão recorrido ser declarado nulo por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379º, número 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

C. Por omissão de pronúncia quanto ao protesto ditado para Ata:

26. No âmbito da inquirição do Senhor Inspetor II, foi ditado em ata o protesto que infra se transcreve:

27. “A defesa considera que se encontram a ser violados os direitos de defesa dos arguidos, ao não se poder questionar, quem e de que forma, trouxe aos autos informações, nomeadamente, sobre onde se encontrava a embarcação, quem é que deu a informação sobre a localização da embarcação, pois que considera que as excepções levantadas anteriormente sem audição de testemunhas e só com o entendimento do Ministério Público e das conclusões, sem qualquer contradição nos termos da lei constitucional, deverão ser mantidas e decididas em juízo, porquanto não se encontram, no nosso ver, um caso julgado, porque se está a produzir prova, nomeadamente de sabermos com exatidão, quem forneceu a localização, qual foi o país de origem, se houve agente infiltrado ou não, se houve agente instigador, se houve um acordo realizado nos EUA e em que termos e se, através dessas situações, foram facultadas as informações à Polícia Judiciária portuguesa; assim, a não realização das perguntas, coarte o direito de defesa, nos termos do artigo 32º, número 1, da Constituição da República Portuguesa, o principio do contraditório nos termos do artigo 32º, número 5, da Constituição da República Portuguesa e torna inoperante qualquer defesa a ser realizada nos autos. ”

28. Sendo que, o tribunal “a quo” proferiu despacho no sentido de determinar que

29. oportunamente será apreciado o ora invocado (cfr. ata da audiência de discussão e julgamento datada de 22.09.2022).

30. Apesar do despacho supra mencionado, sucedeu que o tribunal “a quo” nunca apreciou, nem se pronunciou acerca do protesto invocado.

31. O protesto não é um ato neutro, sendo que equivale a arguição de nulidades nos termos do artigo 80º, número 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro.

32. E por isso, o tribunal “a quo” não poderia deixar de apreciar o protesto e de o decidir, o que constitui uma omissão de pronúncia e determina a subsequente nulidade da sentença de que ora se recorre.

33. Sendo violado o direito ao exercício do contraditório e não facultado à defesa o acesso à imediação e à oralidade da prova em julgamento.

34. Neste sentido, defende o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o seguinte: “O princípio do contraditório – com assento constitucional no art. 32º, nº 5, da CRP – impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, designadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.

35. A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório leva a que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo.

36. A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do TEDH, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art. 6.º, § 1.º da CEDH.

37. Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o art. 6.º, § 3.º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cf., v.g., entre muitas referências, o acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14-02- 2002).

38. Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; nesta perspectiva, os direitos da defesa mostram-se limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência do TEDH a respeito do art. 6.º, §§ 1 e 2, al. d), da CEDH (cf., v.g., acórdãos Craxi c. Itália, de 05-12-2002, e S. N. c. Suécia, de 02-07- 2002).”

39. Determinando, a nulidade de todo o julgamento por violação do artigo 32º, número 1 e número 5, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 61º, número 1, alínea a), conjugado com os artigos 327º, número 2, 355º e 361º, número 1 e 2, do Código de Processo Penal.

40. E ainda, nos termos do artigo 379º, número 1, alínea c), do Código de Processo Penal, encontrando-se o mesmo ferido de nulidade, porquanto o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões que deveria apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.

D. Da nulidade da abordagem e busca:

41. Partindo-se do pressuposto que a abordagem ocorreu em águas internacionais por se encontrar longinquamente a mais de duzentas milhas das águas portuguesas e que tinha uma bandeira belga e espanhola, era requisito fundamental proceder à autorização da Espanha/Bélgica (do país de bandeira) nos termos do artigo 17.º da Carta (Convenção de Viena de 1988).

42. É de realçar que a regra descreve expressamente dois pressupostos factuais diferentes, por um lado fala de "embarque" e, por outro lado, de "inspeção", para que em nenhum caos se possa aceitar uma analogia entre eles.

43. Na medida em que o embarque e a inspeção são ações diferentes com diferentes graus de interferência na privacidade dos habitantes do barco.

44. Constitui nulidade, a falta de autorização do país da bandeira do barco quando o mesmo se encontra em águas internacionais.

45. Em suma, nos casos de crimes de tráfico ilegal de drogas tóxicas, estupefacientes e substâncias psicotrópicas, cometidos em ambientes marinhos, os países signatários da convenção, beneficiarão de competências para o embarque, inspeção, apreensão de substâncias e detenção da tripulação de qualquer navio que arvoreça a bandeira de outro Estado, desde que obtenha a autorização do Estado de bandeira do navio, nos termos dos artigos 17º, 3 e 4.º da Convenção de Viena.

46. É inegável que, no caso em concreto, não existia tal autorização, de modo que o embarque e o registo encontram-se feridos de nulidade, o que se requer.

47. Também não se pode ignorar o facto dos agentes também não terem autorização judicial das autoridades portuguesas para embarcar e fazer buscas à embarcação.

48. O ora recorrente tem vindo a invocar a nulidade da busca, porém o Tribunal “a quo” à semelhança das restantes nulidades invocadas não se pronunciou acerca da nulidade da busca, o que conforme se referiu constitui uma omissão de pronúncia e viola os artigos 174.º, número 5, alínea c) e 251º, número 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.

49. Conforme resulta dos autos, no dia 14 de Outubro quando o Inspetor da Polícia Judiciária, JJ embarcou no meio naval da marinha iria com o intuito de abordar a embarcação e proceder à realização de buscas, o que veio a suceder – inexistindo qualquer mandado de busca e apreensão.

50. Deve o acórdão recorrido ser revogado e, consequentemente, deverá a busca realizada à embarcação ser declarada nula, nos termos do disposto no artigo 126º, número 3, do Código de Processo Penal.

III. DA INCONSTITUCIONALIDADE:

51. No referido Acórdão, sem terem conta os princípios constitucionais devidamente consagrados na nossa Constituição, respetivamente, a inconstitucionalidade que foi suscitada pelo Recorrente no seu recurso, violando o Tribunal “a quo” princípios, tais como:

a. Princípio da legalidade;

b. Princípio do Estado de Direito Democrático e Social; c. Princípio da igualdade;

d. Princípio da necessidade da pena;

e. Princípio da proporcionalidade e adequação da medida da pena;

f. Princípio da dignidade da pessoa humana;

g. Princípio da livre apreciação da prova; h. Princípio da imediação da prova;

i. Princípio do contraditório; e

j. Princípio do in dubio pro reo.

52. Foram violados os artigos 2º, 13º, 18º, número 2 e 32º todos da Constituição da República Portuguesa, 127º, 355º, 118º, do Código de Processo Penal, atenta a interpretação dada a preceitos processuais, o que redunda em manifesta inconstitucionalidade.

53. Assim, afigura-se não só relevante como decisiva e essencial para a boa decisão da causa.

54. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10.09.2020, processo 12841/19.0...-6 “I) A correcta compreensão do princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos; implica ainda que as partes possam pronunciar-se quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.

II) O princípio do contraditório assume-se, nesta dimensão, como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litigio.”

55. O processo penal está essencialmente sistematizado por dois vetores, por um lado, há-de atingir o seu fim que é o de assegurar o “jus puniendi” do Estado, por outro, terá de assegurar ao recorrente os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

56. Sendo que no caso concreto, encontram-se em causa direitos, liberdades e garantias do recorrente, constitucionalmente tutelados e aptos a gerar, com a sua violação, danos e sacrifícios decorrentes da execução de prisão preventiva, sendo manifestamente contrário às mais elementares garantias de defesa bem como aos princípios subjacentes a um Direito penal que se queira materialmente justo.

57. Como ensina Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, em que “a persistência de dúvida razoável após a produção da provatem de actuar em sentidofavorável aoarguidoe, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.

58. O princípio in dubio pro reo encontra a sua equivalência, no sistema anglo-americano, na imposição de que a condenação do arguido surja beyond a reasonable doubt.

59. Violou, ainda, o artigo 355.º do Código de Processo Penal, norma com duplo sentido,uma vez produzida ou examinada em audiência, essa prova deveria ser considerada no acórdão.

60. E da leitura a contrario resulta, em nosso entender, que se a prova não foi produzidapor omissão do Tribunal sempre terá de prevalecer o principio in dúbio pro reo.

61. O julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

62. Tal decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que: “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

63. O acórdão aqui recorrido, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, dos direitos e garantias de defesa do arguido, garantidos nos artigos 20.º, 32.º, 202.º da Constituição da República Portuguesa.

64. Inconstitucionalidade, que, desde já, se requer.

65. Vide, a este propósito, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, Relator: VASQUES OSÓRIO, de 18/01/2011,

“IIIº O exame crítico deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizado na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada;

(…)

VIº Não tendo o tribunal indicado completamente as provas que serviram para formar a sua convicção, nem tendo efectuado o exame crítico de tais provas, existe insuficiente fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do art.379, nº1, al. a), com referência ao art.374, nº2, ambos do CPP;(sublinhado nosso)

66. Caso assim, não se entenda, poderemos questionar, se existe, ou não um incorreto entendimento das regras ministradas pela dinâmica da vida, pelas máximas da experiência e, se existe como configurar tal vício?

67. Caso assim se entenda e no que concerne a este segundo ponto entende-se que, se em face das premissas que constituem a matéria de facto, o julgador ensaia um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum pode-se afirmar a existência do vício do erro notório!

68. Defende, Simas Santos e Leal Henriques, C. P. Penal Anotado, II Vol. página 740, “(...) Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (...)”

69. Como se refere em decisão, o Supremo Tribunal de Justiça de 04.02.2005: “O "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.”

70. No caso concreto, existe uma descoordenação factual patente da decisão revelada, tanto por incompatibilidade no espaço, como no tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum".

71. Nulidade que, desde já, se requer, por deficiente fundamentação da matéria de facto, a sentença que omite a análise da prova.

III. DA PENA CONCRETAMENTE APLICADA

DA DECISAO PROFERIDA RESULTOU ASSENTE (apenas se refere a matéria de facto assente para fazer o enquadramento da matéria de Direito)

72. Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido KK

1.2.3. O arguido CC concluiu a sua motivação do seguinte modo:

I. O Recorrente foi condenado pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão e pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de catorze anos de prisão.

II. No entanto, pelo menos no que concerne ao crime de associação criminosa não estão preenchidos os elementos do tipo legal, a que se refere o art.º art.º 28.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

III. Pois dos factos dados como provados não é possível retirar tal conclusão.

IV. Salvo melhor opinião e com todo o respeito que opinião diferente nos merece, os factos dados como provados que enquadram a condenação do Recorrente pela prática do crime de associação criminosa são conclusivos, não sendo feita qualquer referência a factos concretos específicos.

V. O crime de associação criminosa exige a congregação de três elementos essenciais: um elemento organizativo, um elemento de estabilidade associativa e um elemento de finalidade criminosa.

VI. Para a existência do crime de associação criminosa para a prática de actividades de tráfico de droga, devem existir uma pluralidade de indivíduos, com o mínimo de estrutura organizatória e com um sentimento comum de ligação dos seus membros a um qualquer processo de formação da vontade colectiva.

VII. Assim, verifica-se este crime quando duas ou mais pessoas decidiram criar uma estrutura de carácter permanente, organizada e estável, com vista a dedicar-se ao crime de tráfico de droga ou para a prática de branqueamento de bens e capitais provenientes do tráfico, e a existência de um qualquer processo de formação de vontade colectiva.

VIII. Tal não ocorre no caso concreto dos presentes autos pois, quanto muito, entre os arguidos existia uma conjugação de esforços e vontades, com vista à prossecução de um fim comum - o transporte e desembarque de droga.

IX. Portanto, e, reiteramos, quanto muito, estamos apenas em presença da mera comparticipação criminosa, pois a actuação dos arguidos visaria apenas a obtenção de lucro pessoal.

X. Parafraseando o Prof. Figueiredo Dias, para que exista o crime de associação criminosa para a prática de actividades de tráfico de droga, devem existir uma pluralidade de indivíduos, com o mínimo de estrutura organizatória e com um sentimento comum de ligação dos seus membros a um qualquer processo de formação da vontade colectiva.

XI. No caso dos autos não está demonstrada a existência de uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses de cada um dos arguidos, nem a existência efectiva duma estrutura organizativa minimamente hierarquizada e estável.

XII. Pois, quanto muito, os arguidos agiram segundo os seus próprios interesses e não segundo um interesse superior de qualquer organização

XIII. Portanto, no caso concreto, não se verificam os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime de associação criminosa previsto e punido pelo artº 28.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

XIV. Ao arrepio do que determinam os art.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2; 70.º e 71.º, todos do Código Penal, as penas aplicadas ao Recorrente foram demasiado gravosas.

XV. Pois, mesmo no caso da prática efectiva dos crimes em questão, a necessidade de prevenção geral seja elevada, as necessidades de prevenção especial no que ao recorrente respeita são diminutas.

XVI. Já que, como resultou provado nos autos, o Recorrente não tem antecedentes criminais, encontra-se inserido social e familiarmente

XVII. Toda a sua vida anterior aos factos que deram origem aos presentes autos foi de absoluto compromisso com a vida em sociedade.

XVIII. Não obstante a gravidade dos factos pelos quais o Recorrente se encontra condenado, admitindo-os apenas por exercicio de raciocínio e dever de patrocínio, estes constituiram uma excepção na sua vida.

XIX. Pelo que o juízo de prognose relativamente ao comportamento futuro do Recorrente tem necessariamente que ser favorável.

XX. O que impõe uma pena que, embora constituindo uma penalização que tem que se refletir no Recorrente, deve permitir a sua reinserção e ressocialização, pelo que não deve afastar dos mínimos legalmente previstos.

TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXECELÊNCIAS, DEVE O ACÓRDÃO RECORRIDO SER REVOGADO NO QUE CONCERNE AO CRIME DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E, CONSEQUENTEMENTE, O ARGUIDO SER ABSOLVIDO DA RESPECTIVA PRÁTICA E SER A PENA APLICADA AO ARGUIDO SER FIXADA PERTO DO MÍNIMO LEGAL. COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA.

1.3. Tendo sido requerida a audiência, nos termos do art.º 416.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público no Tribunal da Relação apôs o visto nos autos.

1.4. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer com os seguintes dizeres:

1. O tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz...) condenou cada um dos arguidos CC, BB e DD na pena única de 14 anos de prisão pela prática, em coautoria e concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa ao mesmo (penas parcelares de 10 anos de prisão), e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 28.º (1 ), n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (penas parcelares de 8 anos e 6 meses de prisão) [acórdão com a ref.ª citius .......71 de 15 de dezembro de 2022].

E isso porque, numa apertada síntese da matéria de facto provada, os três arguidos, enquanto membros de um grupo organizado que se dedica à aquisição, venda e transporte de cocaína da América do Sul para a Europa, transportaram num veleiro cerca de 4.666 quilogramas de cocaína até às proximidades da Península Ibérica.

2. Os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa [recursos com as ref.ªs citius ......33 de 16 de janeiro de 2023 (HH), ......12 de 17 de janeiro de 2023 (KK) e ......03 de 19 de janeiro de 2023 (LL)].

Os arguidos HH e KK requereram a realização da audiência ao abrigo do art. 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

No seu recurso o arguido HH, de forma implícita (v. as conclusões 2 a 11) e sem indicar o pertinente normativo do Código de Processo Penal (art. 412.º, n.º 5), manifestou manter interesse na apreciação dos recursos interlocutórios:

- Do despacho de 29 de julho de 2022 [despacho com a ref.ª citius .......05 de 29 de julho de 2022] que, no que toca à nulidade do auto de constituição como arguido invocada na contestação, entendeu que nada havia a decidir porquanto a questão já tinha sido apreciada e decidida em desfavor da sua pretensão pelo Tribunal da Relação de Lisboa [recurso com a ref.ª citius ......62 de 30 de agosto de 2022, admitido para subir a final pelo despacho com a ref.ª citius .......22 de 31 de agosto];

- Do despacho de 22 de setembro de 2022 [v. a ata com a ref.ª citius .......50 de 22 de setembro de 2022] que, a respeito da nulidade da abordagem e da subsequente busca à embarcação invocada em sede de julgamento, entendeu que o poder jurisdicional estava esgotado e que nada cumpria apreciar uma vez que a questão também já tinha sido decidida, por decisões transitadas em julgado, pelo Tribunal da Relação de Lisboa [recurso com a ref.ª citius ......19 de 16 de outubro, admitido para subir a final pelo despacho com a ref.ª citius .......66 de 17 de outubro de 2022];

- Do despacho de 14 de dezembro de 2022 [despacho com a ref.ª citius .......94 de 14 de dezembro de 2022] que indeferiu as diligências probatórias requeridas pelo arguido na sequência da comunicação, em 7 de dezembro de 2022 [v. a ata com a ref.ª citius .......25 de 7 de dezembro], de uma alteração não substancial da factualidade descrita no despacho de pronúncia [recurso com a ref.ª citius ......66 de 14 de dezembro de 2022, admitido para subir a final pelo despacho com a ref.ª citius .......27 de 15 de dezembro de 2022].

3. Em 18 de junho de 2023, a Sr.ª juíza desembargadora relatora determinou que o processo fosse aos vistos e depois à conferência, mencionando que o projeto do acórdão fora enviado no dia 15 anterior [despacho com a ref.ª citius ......45 de 18 de junho de 2023].

4. Reunido em conferência [ata com a ref.ª citius ......98 de 28 de junho], o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão assinado manualmente pela Sr.ª juíza desembargadora relatora e pelos Srs. juízes desembargadores adjuntos, depois de indeferir a realização de audiência (págs. 61-62 do acórdão), negou provimento ao recurso do despacho de 14 de dezembro de 2022 (págs. 62-69 do acórdão) e aos recursos do acórdão final [acórdão com a ref.ª citius 20230697 de 28 de junho de 2023].

4. Em 13 de julho seguinte o arguido HH arguiu a irregularidade do acórdão, na parte que indeferiu a realização da audiência, bem como a sua nulidade, por omissão de pronúncia quanto aos recursos interlocutórios dos despachos de 29 de julho de 2022 e de 22 de setembro de 2022 e a diversas questões suscitadas no seu recurso [requerimento com a ref.ª citius 644418 de 13 de julho de 2023].

5. Diante de tal requerimento a Sr.ª juíza desembargadora relatora determinou que os autos fossem ao Ministério Público [despacho com a ref.ª citius 20336576 de 15 de julho de 2023].

6. Obtido o parecer do Ministério Público [despacho com a ref.ª citius ......99 de 24 de julho de 2023], a Sr.ª juíza desembargadora de turno, em 25 de julho de 2023, determinou que as nulidades do acórdão fossem apreciadas pela conferência, apresentando-se, para esse efei-to, os autos à Sr.ª juíza desembargadora relatora após férias [despacho com a ref.ª citius ......77 de 25 de julho de 2023].

7. Os arguidos interpuseram entretanto recurso do acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça [recursos com as ref.ªs citius ....19 de 31 de julho de 2023 (KK), ....07 de 1 de agosto de 2023 (HH) e .....3 de 3 de agosto de 2023 (LL)].

8. Os recursos foram admitidos em 17 de agosto de 2023 pelo Sr. juiz desembargador de turno [despacho com a ref.ª citius ......72 de 17 de agosto de 2023].

9. Em 18 de setembro de 2023 a Sr.ª juíza desembargadora relatora ordenou que os autos fossem à conferência no dia 20 de setembro de 2023 [despacho com a ref.ª citius ......89 de 20 de setembro de 2023].

10. Reunido em conferência [ata com a ref.ª citius ......11 de 20 de setembro de 2023], o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu novo acórdão [acórdão com a ref.ª citius ......59 de 20 de setembro de 2023] em razão dos seguintes fundamentos inicialmente expostos:

«Nos presentes autos veio DD arguido nos autos notificado do acórdão datado de 28-06-2023, que negou provimento ao recurso interposto e manteve a decisão recorrida, arguir a irregularidade e a nulidade do mesmo.

Compulsados os autos para conhecimento das irregularidades invocadas verificou-se que o acórdão inserido no Citius é o projeto que foi apresentado antes da discussão em conferência, não sendo, pois, o que resultou da discussão final.

Verifica-se assim uma irregularidade que, por afetar o valor do acto, se manda suprir nos termos do disposto no art.º 123.º CPP.

Nestes termos dá-se sem efeito o projeto de acórdão junto aos autos no Citius, e todos os actos sub-sequentes e junta-se o acórdão proferido neste Tribunal e secção, resultante da discussão da causa em conferência.

Notifique.»

O novo acórdão indeferiu a realização de audiência (págs. 88-89), negou provimento aos recursos interlocutórios dos despachos de 14 de dezembro de 2022 (págs. 90-95), de 29 de julho de 2022 (págs. 95-99) e de 22 de setembro de 2022 (págs. 99-101), e negou provimento aos recursos do acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa.

11. Em 6 de outubro de 2023 o arguido HH, a título principal, arguiu a inexistência do acórdão de 20 de setembro de 2023 por ter sido proferido depois de esgotado o poder jurisdicional [requerimento com a ref.ª citius ....36 de 6 de outubro de 2023].

12. Nesse ínterim os arguidos recorreram também do segundo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ... [recursos com as ref.ªs citius 656682 de 22 de outubro de 2023 (HH), e ....27 (KK) e .....4 (LL), ambos de 24 de outubro de 2023].

13. Os recursos foram admitidos em 9 de novembro de 2023 [despacho com a ref.ª citius ......65 de 9 de novembro de 2023].

14. Reunido em conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 22 de novembro de 2023 [acórdão com a ref.ª citius ......14 de 22 de novembro de 2023], indeferiu a reclamação do arguido HH [11.], enfatizando que:

«O reclamante remete-se ao projeto de acórdão junto por lapso (…)

(…) esquece que tendo havido um lapso, que foi de forma transparente apontado, podendo o tribunal ter avançado para o conhecimento da reclamação única e simplesmente, sem esclarecer que tinha sido o projeto e não o acórdão final o que ficara nos autos, mas preferindo a relatora, por uma questão de lealdade intelectual com os seus pares e também com os recorrentes, dizer que inserira o projeto e não o acórdão que ficara definido em conferência, não se tinha esgotado o poder jurisdicional consagrado no artigo 613.º, n.º 1 do CPC já que, é mesmo ao abrigo desse princípio de não poder frustrar ou alterar o decidido, tendo em conta o respeito pela certeza e segurança jurídica, que a relatora apontou o lapso verificado, dando nota do mesmo, por não poder alterar o que tinha sido decidido e corrigido em conferência.

O que aconteceu não foi a junção da decisão do coletivo, mas, POR LAPSO, a junção do projeto apresentado à discussão.

O que se juntou, por lapso não foi o decidido a 3 e em conferência, parecendo-nos, não sabemos porque razão, não querer o reclamante entender a verdadeira situação.

Aliás lido um e outro, percebe-se claramente qual é o projeto e qual é a decisão discutida, decidida e fixada em Conferência pelo Coletivo de juízes.

A estabilidade da decisão judicial só é assegurada com o acórdão final e não com o projeto.

(…)

Na verdade, o acórdão discutido e fixado em Conferência foi à Conferência, marcou-se e notificou-se a data e hora da mesma e, conforme o sistema permite e já tinha acontecido com o lapso cometido com a inserção do projeto, foi inserido, porque o sistema o permite, pela relatora e assinado pelo coletivo, com conclusão aberta pela escrivã desta secção.

O que o reclamante pretende é manter nos autos um projeto de acórdão que não foi aprovado em Conferência.

(…)

O recorrente desenvolve praticamente toda a sua com um único fundamento – em seu entender este TRL juntou uma decisão que ele não quer ver junta aos autos.»

15. Em 27 de dezembro de 2023 os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça [ref.ª citius ....38 de 27 de dezembro de 2023].

16. Parecer.

16.1. Nos termos do art. 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ao proces-so penal por força do art. 4.º do respetivo Código, proferida a sentença, fica imediatamente esgo-tado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

Como ensinava ALBERTO DOS REIS, este princípio tem o seguinte alcance: «O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.

Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão ficou sendo intangível (…).

A justificação do princípio a que nos referimos, é fácil de descobrir. O princípio justifica-se cabalmente por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.

Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. (…)

A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão juris-dicional. Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão. (…)

(…) a decisão que proferir vincula-o» (2 ).

Dito por outras palavras, «[a]pós a sentença (como após a decisão de uma questão, prévia ou subsequente), em princípio, o juiz que decidiu, ou o que o substitua ou lhe suceda, fica com o poder decisório correspondente esgotado, extinguiu-se o respectivo poder jurisdicional (aliás, poder-dever; haja em vista que o CP prevê o ilícito de denegação de justiça – art. 369.º). Assim, proferida uma sentença, o respectivo Tribunal não pode proferir outra, mesmo que o Juiz se arrependa de a ter emitido ou seja substituído» (3 ).

In casu, o Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu dois acórdãos sobre os mesmos recursos [2.], o primeiro em 28 de junho de 2023 [4.] e o segundo em 20 de setembro de 2023 [10.].

Consignou, todavia, no segundo aresto que o anterior constituía o projeto apresentado à conferência e que a sua inserção no sistema informático consubstanciava «uma irregularidade» [10.].

Com todo o respeito, não podemos concordar.

A irregularidade consiste na violação ou inobservância das leis do processo que, por ser menos grave, a lei não classifica como nulidade (art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

Ora, o acórdão de 28 de junho de 2023, antecipadamente remetido aos vistos em conformidade com o art. 418.º do Código de Processo Penal [3.], encontra-se assinado pela Sr.ª juíza desembargadora relatora e pelos Srs. juízes desembargadores adjuntos [4.] e está configurado segundo o disposto no art. 374.º do Código de Processo Penal ( 4).

De nenhuma irregularidade suscetível de correção padece (cf. o art. 380.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Aliás, após a sua prolação, os autos foram despachados pela Sr.ª juíza desembargadora relatora [5.], por dois Srs. juízes desembargadores [6. e 8.] e pelo Ministério Público [6.], os ar-guidos interpuseram recurso [7.], os recursos foram admitidos [8.], e nenhum dos sujeitos pro-cessuais detetou qualquer anomalia.

Inevitavelmente se conclui, assim, que o acórdão de 20 de setembro de 2023 foi proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Lisboa.

Segundo a lição da doutrina e a jurisprudência, um acórdão proferido em violação do disposto no art. 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, padece do vício da inexistência jurídica.

«Na verdade, e de acordo com o ensino dos saudosos Mestres de Lisboa, Professores Paulo Cunha e Castro Mendes, embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (art.º 666.º, n.º 3), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites (C. Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369).

O preclaro Professor denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sen-tença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).

O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2.ª edição, pg. 360).

No caso vertente, é manifesto que fora dos casos em que, nos termos legais, é permitido ao Juiz rectificar a decisão (…), o seu poder jurisdicional esgotou-se por imperativo legal, pelo que a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional (…).

A nível jurisprudencial e sobre o conceito de sentença inexistente, pode ver-se também o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Julho de 2009 (Relator, o Exm.º Conselheiro Santos Bernardino) e onde, para além do mais, se escreveu:

“A sentença inexistente, no dizer do Prof. ALBERTO DOS REIS, é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença” ( P.º 09B0511, disponível em www.dgsi.pt).

Sendo assim, ainda segundo o ensinamento de Paulo Cunha, “quando há inexistência jurídica da sentença, não há necessidade de atacar a sentença, como inexistente, é insusceptível de produzir efeitos, e, demostrado em qualquer altura que existe um vício que corresponde à inexis-tência jurídica, tudo se passa como se nunca tivesse sido proferida” (ibidem). (…)

(…) sendo inexistente não só não produz efeitos, tal como a decisão nula (quod nullum est nullum producit effectum), como apenas constitui um “estado de facto com a aparência de sentença” na expressiva asserção de Alberto dos Reis» ( 5).

Na decorrência do que vem de ser exposto, passamos a emitir parecer relativamente aos recursos do acórdão de 28 de junho de 2023 [7.]

16.2. Como é sabido, «o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Nas conclusões da motivação o recorrente tem de indicar concretamente os vícios da decisão impugnada e essa indicação delimita o âmbito do recurso. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar» ( 6).

Nas conclusões dos recursos os arguidos suscitam as seguintes questões:

KK [ref.ª citius ....19]

- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

- Interpretação inconstitucional dos arts. 118.º, 127.º e 355.º do Código de Processo Penal;

- Medida da pena.

HH [ref.ª citius ....07]

- Irregularidade do acórdão por ter julgado o recurso sem realização da audiência;

- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

- Violação do disposto no art. 407.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;

- Violação do disposto no art. 374.º, n.ºs 1, al. d), e 2, do Código de Processo Penal;

- Violação do regime das nulidades dos arts. 118 e seguintes do Código de Processo Penal;

- Violação dos arts. 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 31.º da Constituição;

- Violação dos arts. 229.º e seguintes do Código de Processo Penal, da Lei n.º 87/2021, de 15 de dezembro (Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal) e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar;

- Incompetência, internacional e territorial, do Juízo Central Criminal de Lisboa;

- Valoração de prova proibida;

- Violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo;

- Pressupostos da coautoria;

- Pressupostos típicos do crime de associação criminosa;

- Medida da pena.

O arguido HH requer a realização de audiência nos termos do art. 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, indicando as questões que pretende ver debatidas, mas isso não impede que o Ministério Público «suscite as questões prévias que se lhe ofereçam, sobretudo se obstativas do conhecimento do mérito do recurso» ( 7).

LL [ref.ª citius ....13]:

- Pressupostos típicos do crime de associação criminosa;

- Medida das penas.

16.3. Por razões de precedência lógica (art. 368.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), abordemos as questões que obstam ao conhecimento do mérito dos recursos.

O arguido KK afirma que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa omitiu pronúncia quanto às «nulidades invocadas» (conclusão I.A.), quanto ao «parecer jurídico» junto aos autos (conclusão I.B.), quanto a um protesto ditado para a ata da sessão de julgamento de 22 de setembro de 2022 (conclusão I.C.) e quanto à nulidade da abordagem e busca que levou à apreensão da droga (conclusão I.D.).

O arguido HH, por sua vez, sustenta que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não apreciou os recursos interlocutórios dos despachos de 29 de julho de 2022 e de 22 de setembro de 2022 (conclusões 7 e 8) nem as questões suscitadas a propósito do incumprimento da cooperação judiciária internacional em matéria penal, da incompetência do Juízo Central Criminal de Lisboa, da validade da prova pericial, do não preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de associação criminosa, da inconstitucionalidade do acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa (conclusões 9 a 12), do protesto ditado para a ata (conclusão 21) e do parecer jurídico junto aos autos (conclusão 26).

Vejamos.

Nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Esta disposição é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do art. 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

«A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil.

A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrina expendidos pela parte em defesa da sua pretensão» ( 8).

Nas conclusões do recurso do acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa o arguido KK alegou, essencialmente, que o mesmo era nulo por falta de fundamentação quanto à análise crítica da prova e por não ter realizado diligências essenciais à descoberta da verdade (conclusões 2 e 8 a 10) e por omitir pronúncia relativamente ao parecer jurídico junto aos autos (conclusões 2 e 5 a 7) e ao protesto ditado para a ata da sessão de julgamento de 22 de setembro de 2022 (conclusões 13 a 15), que padecia de erro notório na apreciação da prova (conclusões 3 e 4), preconizou a nulidade da abordagem (busca) ao veleiro (conclusões 24 e 25), que fora violado o princípio do in dubio pro reo (conclusões 26 e 27), que não se encontravam preenchidos os pressupostos típicos do crime de associação criminosa (conclusões 28 a 40) e que a pena imposta devia ser reduzida e ficar suspensa na sua execução (conclusões 41 a 66) [ref.ª citius ......12].

O arguido HH suscitou as mesmas questões relacionadas com a omissão de pronúncia do acórdão da 1.ª instância quanto ao protesto ditado para a ata (conclusão 12) e quanto ao parecer jurídico junto aos autos (conclusão 18), com a validade da busca e das apreensões (conclusões 51 a 53), com a violação dos princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo (conclusão 99), com o preenchimento dos pressupostos típicos do crime de associação criminosa (conclusões 103 a 110) e com a medida da pena (conclusões 111 e 112), bem como outras atinentes à ilegalidade da detenção dos arguidos (conclusões 30 e 31), à incompetência internacional dos tribunais portugueses (conclusões 37 a 41), à incompetência territorial do Juízo Central Criminal de Lisboa (conclusões 42 a 50), a erros no julgamento da matéria de facto (conclusões 54 a 66), à existência dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (conclusões 68 a 76), à violação do princípio da livre apreciação da prova (conclusão 77), ao indevido aproveitamento da prova pericial aos telefones e telemóveis apreendidos aos arguidos (conclusões 78 a 97), ao não preenchimento dos pressupostos da coautoria (conclusões 100 a 102), e à inconstitucionalidade do acórdão recorrido por afrontar os direitos de defesa consagrados nos arts. 32.º da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (conclusões 113 e 114) [ref.ª citius ......33].

Para além disso, conforme previamente referido [4.], o arguido HH manifestou interesse na apreciação dos recursos interlocutórios dos despachos de 29 de julho de 2022, de 22 de setembro de 2022 e de 14 de dezembro de 2022.

Vale a pena referir ainda que o arguido LL também colocou a questão do preenchimento dos pressupostos típicos do crime de associação criminosa no seu recurso do acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa (conclusões 6 a 9) [ref.ª citius ......03].

O Tribunal da Relação de Lisboa conheceu o recurso interlocutório do despacho de 14 de dezembro de 2022 (págs. 63 a 69) e a propósito do recurso do HH, mas com proveito para o recurso do coarguido KK, apreciou e decidiu as questões das violações dos direitos de defesa dos arguidos (págs. 64 a 70), da omissão de pronúncia quanto ao protesto ditado para a ata na audiência de julgamento de 22 de setembro de 2022 (págs. 70 a 72) e quanto ao parecer jurídico junto aos autos (pág. 80), da competência internacional dos tribunais portugueses (págs. 72 a 80), da legalidade da detenção dos arguidos (págs. 80 e 81), da nulidade da busca (págs. 81 e 82), dos erros no julgamento da matéria de facto (págs. 83 a 88), dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (págs. 88 a 95), da violação do in dubio pro reo (págs. 95 a 97), da infundamentada análise crítica da prova e violação do princípio da livre apreciação da prova (pág. 101, penúltimo parágrafo) e da medida da pena (págs. 97 a 102).

Todavia, sobre os recursos interlocutórios dos despachos de 29 de julho de 2022 e de 22 de setembro de 2022 (recorrente HH) e sobre os temas da incompetência territorial do Juízo Central Criminal de Lisboa, da validade da prova pericial aos telefones e telemóveis e do não preenchimento dos pressupostos da coautoria (recorrente HH) e do crime de associação criminosa (recorrentes KK, HH e MM), nenhuma referência, perfunctória que seja, faz.

Ora, independentemente destas questões poderem ser, ou não, descabidas e inconsistentes, entendemos que o Tribunal da Relação de Lisboa não podia ignorá-las.

Daí que – e é este o nosso parecer – deva ser declarada a nulidade do acórdão recorrido (arts. 379.º, n.º 1, al. c), e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal) e determinada a sua substituição por outro que se pronuncie sobre as referidas questões.

Na decorrência do que antecede, mostra-se prejudicado o conhecimento das restantes questões que enformam o objeto dos recursos”.

1.4. Observado o disposto no art.º 417.º n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

Cumpre apreciar e decidir

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação (artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal - CPP), as questões que se colocam à apreciação deste tribunal são as seguintes:

Recurso do arguido KK [ref.ª citius ....19]

- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

- Interpretação inconstitucional dos arts. 118.º, 127.º e 355.º do Código de Processo Penal;

- Medida da pena.

Recurso do arguido HH [ref.ª citius ....07]

- Irregularidade do acórdão por ter julgado o recurso sem realização da audiência;

- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

- Violação do disposto no art. 407.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;

- Violação do disposto no art. 374.º, n.ºs 1, al. d), e 2, do Código de Processo Penal;

- Violação do regime das nulidades dos arts. 118 e seguintes do Código de Processo Penal;

- Violação dos arts. 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 31.º da Constituição;

- Violação dos arts. 229.º e seguintes do Código de Processo Penal, da Lei n.º 87/2021, de 15 de dezembro (Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal) e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar;

- Incompetência, internacional e territorial, do Juízo Central Criminal de Lisboa;

- Valoração de prova proibida;

- Violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo;

- Pressupostos da coautoria;

- Pressupostos típicos do crime de associação criminosa;

- Medida da pena.

Recurso de NN [ref.ª citius ....13]:

- Pressupostos típicos do crime de associação criminosa;

- Medida das penas.

3. Fundamentação de facto:

3.1 Encontram-se provados os seguintes factos:

1. Os arguidos, actuando de forma concertada com outros indivíduos não identificados, integram um grupo organizado, que se dedica à aquisição, transporte e venda de cocaína da América do Sul para a Europa, por via marítima.

2. De acordo com o plano previamente delineado, em data não concretamente apurada, anterior a 11 de Outubro de 2021, os arguidos utilizaram o veleiro de nome Siro", do tipo "sloop" (de apenas um mastro), com matrícula .ª-AT-.-./.., registo ....81, de pavilhão espanhol.

3. De acordo com o plano previamente delineado, os arguidos navegaram de Espanha, até local não concretamente apurado no mar, sito nas proximidades da América do Sul, onde pkon2n de 7m recolheram 183 sacos contendo cocaína, que transportaram até local não concretamente identificado no mar, nas proximidades da Península Ibérica, com o propósito de os entregarem a terceiros pertencentes àquela organização.

4. A embarcação "G. Siro", de pavilhão espanhol, na qual seguiam os arguidos KK, HH e LL arvorava uma bandeira dos Países Baixos (que se encontrava completamente enrolada ao mastro onde estava presa), exibindo no casco, na popa, à ré, uma placa aparafusada com o nome de "...", que não correspondia à documentação da mesma.

5. No interior do veleiro, os arguidos transportavam um total de 183 sacos de ráfia, que foram apreendidos no dia 17.10.2021 e que continham no seu interior:

- 975 placas de cocaína (cloridrato), com o peso liquido de 995493,134 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 89,7%.

- 1350 placas de cocaína (cloridrato), com o peso liquido de 1372070,219 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 87,6%.

- 725 placas de cocaína (cloridrato), como peso líquido de 737925,343 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 83,2%.

- 725 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 744672,750 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 88,6%.

- 75 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 75897,454 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 89,7%.

- 75 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 73104,806 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 92,3%.

- 50 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 50709,204 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 83,4%.

- 600 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 616843,377 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 84,6%, sendo que alguns se encontravam dissimulados nos compartimentos da popa da embarcação e outros distribuídos/espalhados pelo chão da cozinha, da sala de jantar e da sala de convívio, cujo acesso era efectuado pela zona comum do veleiro.

6. No dia 17.10.2021 foram ainda apreendidos:

- O veleiro com o nome G ..., matrícula .a AT-.-.-.., com o n.2 de registo ....81, da marca e modelo DYNAMIQUE 80, com o n.2 de serie 17D08, com cerca de 23,44 metros, de cor branca e lista azul, cujo proprietário registado é OO.

- No compartimento da cozinha/sala de jantar/convívio, situado a meia nau:

- 1 (uma) caixa hermética de plástico transparente e tampa branca e 1 (uma) caixa hermética de plástico transparente e tampa amarela, que continham cocaína (clorid rato), com os pesas líquidos de:

- 12,204 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 62,0%.

- 59,477 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 66,8%. 74,100 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 69,4%.

- 1 (um) tabuleiro de cor laranja, bem como um canudo em papel e um papel plastificado, todos com resíduos de cocaína.

- 1 (uma) pasta de cartão, de cor preta, contendo diversa documentação relativa à embarcação G. SIRO, nomeadamente as plantas de construção e remodelação.

-1 (uma) mala com fecho, de cor preta, da marca "Data Offlce", contendo documentação vária referente à embarcação G. SIRO.

- 2 (duas) folhas de papel autocolante, com as Inscrições "PP";

- 1 (uma) folha autocolante, onde se repete por quatro vezes a inscrição da matrícula ".E-AT-.-./..", referente à embarcação G ...;

- 1 (um) equipamento de acesso à internet via satélite, da marca Inmarsat, modelo Wideye, com o IMEI .............63 – com a indicação ANTENA 1 (VIEJA) – contendo o cartão SIM Inmarsat BGAN com a referência n.º ................39;

- 1 (um) equipamento de acesso à internet via satélite, da marca Inmarsat, modelo Wideye, com obIMEI .............15 – com a indicação ANTENA 2 (VIEJA) – contendo o cartão SIM Inmarsat BGANbcom a referência n.º ................79;

- 1 (um) equipamento de acesso à internet via satélite, da marca Explorer Cobham, modelo TT-3711A, com o IMEI .............96 – com a indicação ANTENA 3 (NUEVA) – contendo o cartão SIM Inmarsat BGAN com a referência n.º ................74;

- 1 (um) livro de Rol de Despacho y Dotación, emitido pelo Ministério de Fomento Espanhol e relativo à embarcação G. SIRO, com a matrícula n.º .ª-AT-.-./.. e onde consta uma fotografia da referida embarcação;

- 1 (um) computador portátil da marca HP, modelo 15s-eq1101n e o S/N 5CD115OVM9;

- 1 (um) aparelho de navegação GPS, da marca Garmin, modelo GPSmap 78, com código de barras 1WQ138584;

- 3 (três) detectores de actividade de radiofrequência e monitor, da marca JJN DIGITAL, modelo WAM-108t e respectivos carregadores de parede (dois);

- 1 (um) computador portátil da marca HP, modelo 15s-eq1101n e o S/N 5CD115OV8F;

- 1 (um) inibidor de sinal (jammer) de dez antenas, sem marca visível e com o número de Série C2002263

- 1 (um) aparelho de navegação GPS, da marca Garrnin, modelo GPSmap 78, com código de barras 1WQ,136778;

- 1 (um) caderno A5, da marca "Frost", com a capa esverdeada, contendo diversos apontamentos manuscritos;

- 1 (um) caderno AS, com capa transparente, contendo diversos apontamentos manuscritos;

- 2 (duas) folhas A4, comdiversos apontamentos manuscritos;

- 1 (um) talão de compra da superfície comercial "Decathlon", datado de 19.09.2020, no

montante de € 1.211,32.

7. No camarote utilizado pelo arguido HH, situado à popa (sendo que o camarote onde o arguido LL pernoitava situava-se na proa, a bombordo, enquanto que o do arguido KK se situava na proa, a estibordo), foram encontrados e apreendidos no dia 17.10.2021:

- 1 (um) telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI .............80, contendo o cartão SIM da Iridium com a referência .................78;

- 2 (duas) Pen Drive da marca JJM digital, relativa aos programas dos detectores de actividade de radiofrequênciaemonitor;

-1(um)telemóvel da marca Redml, modeloM2003J6A1G, sem cartão SIM;

- 1 (um) telemóvel da marca Alcatel, com os IMEIs .............22 e .............30, contendo o cartão SIM Vodafone yu, com a referência n.° ...............33;

- 1 (um) cartão de suporte de cartão SIM, da Vodafone yu, com a referência nº ...............33 (PIN ..88);

- 1(uma) capa de cor verde ,protectora do inibidor de sinal(jammer)de dez antenas.

8. Nessa altura, na posse do arguido HH foram encontrados e apreendidos:

- Aquantia monetária de €10.300,00(dez mil e trezentos euros);

1 (um) telefone satélite da marca "IRIDIUM", modelo 9555N, com o IMEI .............50, e, inserido, 1 (um) cartão SIM com a designação "IRIDIUM EVERYWHERE", e o n..................69;

-2(dois)carregadores e 2(dois) adaptadores do telefone satélite da marca IRIDIUM";

-

999 1 (um) leitor de DVD externo da marca "LITEON" com o n° de série ............ ........00;

- 1(um) telemóvel da marca LG, de cor cinzenta, desligado;

- 1 (um) telemóvel de cor azul, sem marca visível, também desligado, com as indicações de modelo V420A, nº de série .........57, e IMEI .............88 e .............70;

- 2 (dois) cabos adaptadores de cor branca;

-1 (um) carregador de equipamentos electrónicos da marca HP, e 2 (dois) carregadores sem indicação de marca.

9. Na mesma altura, na posse do arguido KK foi encontrada e apreendida:

-A quantia monetária de €890,00 (oitocentos e noventa euros).

10.Na mesma ocasião, na posse do arguido MM foram encontrados e apreendidos:

- A quantia monetária de €485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco euros);

- um telemóvel de marca "Samsung", de cor azul.

11. Os arguidos conheciam a natureza e as características estupefacientes da cocaína que lhes foi apreendida, bem sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização deste produto eram proibidos e punidos por lei.

12. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços entre si e com terceiros não identificados, no âmbito de uma organização destinada à operação de comercialização de cocaina, aceitando colaborar nos termos supra referidos, sabendo que tal produto se destinava à venda a terceiros, a troco de quantias monetárias.

13. As quantias monetárias apreendidas aos arguidos, eram resultantes da actividade de transporte de cocaína.

14. O equipamento de acesso à intemet via satélite, da marca inmarsat, modelo Wideye, com o IMEI .........04-2263 — com a indicação ANTENA 1 (VIDA) — contendo o cartão SIM inmarsat BGAN com a referência n.. ................39; o equipamento de acesso à internet via satélite, da marca ..., ... Wideye, com o IMEI .............15 — com a indicação ANTENA 2 (VIDA) — contendo o cartão SIM I nmarsat BGAN com a referência n.. ................79; o equipamento de acesso à internet via satélite, da marca Explorer Cobham, modelo TT-3711A, com o IMEI .............96 — com a indicação ANTENA 3 (NUEVA) — contendo o cartão SIM ... BGAN com a referência n.. ................74; o aparelho de navegação GPS, da marca Garmln, modelo GPSmap 78, com código de barras 1W0,138584; os três detectores de actividade de radiofrequência e monitor, da marca JJN DIGITAL, modelo WAM-108t e respectivos carregadores de parede (dois); o inibidor de sinal (jammer) de dez antenas, sem marca visível e com o número de Série C2002263; o aparelho de navegação GPS, da marca Garmin, modelo GPSmap 78, com código de barras 1WQ136778; o telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI300115050563480, contendo o cartão SIM da Iridium com a referência .................78; as duas Pen Drive da marca JJM digital, relativa aos programas dos detectores de actividade de radiofrequência e monitor; o telefone satélite da marca "IRIDIUM", modelo 9555N, com o IMEI 3D0115050564750, e, inserido, 1 (um) cartão SIM com a designação "IRIDIUM EVERYWHERE", e o n28988169326003088469; os dois carregadores e dois adaptadores do telefone satélite da marca "IRIDI UM", destinavam-se a ser utilizados pelos arguidos na navegação e nos contactos realizados com terceiros não identificados, com quem haviam concertado o transporte de cocaina supra referido.

15. Os arguidos atuaram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido LL

16. Natural da Galiza, QQ é mais novo de fratria de dois, tendo o processo de desenvolvimento decorrido no seio do agregado dos progenitores e irmão, junto do qual beneficiou de um ambiente afectuoso e estruturado, bem como de um modelo educacional normativo.

17. O progenitor, por motivos profissionais (camionista) ausentava-se frequentemente de casa, condição que concorreu para o estreitamento dos vínculos com a mãe e os avós matemos, coadjuvantes no seu processo educacional.

18. A progenitora, doméstica, assegurava as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, regressando o pai a casa, por vezes, somente ao fim-de-semana.

19. Os pais do arguido separaram-se em 2017.

20. No plano escolar, o arguido vivenciou uma trajectória regular, marcada pelo desempenho satisfatório, tanto ao nível do aproveitamento escolar, como ao nível do comportamento disciplinar, tendo concluído o nível secundário aos dezasseis anos de idade.

21. A pós a saída escolar, deu início a actividade laboral como empregado de mesa, assumindo as referidas funções cerca de um ano.

22. Posteriormente, trabalhou em colaboração com o pai e um tio, no mesmo sector, em negócio familiar.

23.Na sequência do encerramento do estabelecimento explorado pelo progenitor, contava vinte anos de idade, LL assumiu funções num bar/cafetaria, onde se manteve a trabalhar com vínculo, até cerca dos vinte e sete anos.

24. Cumulativamente, fazia trabalhos por conta própria, como empregado de mesa, em eventos recreativos (festas particulares).

25. Em 2019, já residia com a actual companheira, em Barcelona, LL abandonou a actividade na restauração, para se dedicar à venda de produtos de saúde (material ortopédico e outro) ao domícilio, tendo exercido a referida actividade com vínculo cerca de seis meses.

26. Contudo, as restrições à actividade comercial impostas no âmbito da crise pandémica do COVIL) 19, acabaram por desencadear o abandono do posto de trabalho, levando-a permanecer cerca de três meses desempregado.

27. A residir na Corunha desde 2021, LL veio a retomar as mesmas funções, com contrato, junto de um novo empregador, em meados de 2020, tendo-se mantido em tal posto de trabalho até inicio 2021, o qual veio a abandonar na sequência do encerramento da entidade empregadora.

28. Posteriormente, em data não apurada, veio a assumir funções de comercial/vendedor, junto de uma empresa de venda de máquinas de esterilização de água, auferindo um vencimento mensal na ordem dos 1100 euros, onde se manteve até Setembro de 2021.

29. A quando da sua detenção à ordem destes autos, o arguido encontrava-se desempregado.

30. RR tem um filho de sete anos de Idade — por referência à data do julgamento [Setembro de 2022] -fruto de um relacionamento extinto, com quem o arguido não mantém relação próxima.

31. Mantém relação marital com uma cidadã romena desde 2018, ligação afectivamente gratificante e harmoniosa, da qual não existem descendentes.

32. À data da prisão do arguido, o casal residia em habitação arrendada, na Corunha, morada que veio a ser alterada após aquele evento, em razão das dificuldades da companheira do arguido em assegurar as despesas com a renda de casa.

33. A companheira do arguido trabalha como polícia auxiliar.

34. Por volta dos 27 anos teve consumos esporádicos de cocaína, em contexto recreativo.

35. A companheira trabalha há vários anos como polícia auxiliar, auferindo um vencimento de cerca de 1000 euros.

36. U ma vez em liberdade, o arguido perspectiva regressar à Corunha, para junto da companheira.

37. LL tem vindo a usufruir de visitas por parte da companheira.

38. No plano laboral, pretende voltar a trabalhar no sector da restauração, eventualmente como empregado de mesa, tendo a expectativa de obter colocação num restaurante, em ..., onde já trabalhou.

39. SS foi preso preventivamente à ordem do presente processo, tendo dado entrada inicialmente no Estabelecimento Prisional de ..., após o que foi transferido para o Estabelecimento Prisional instalado junto à Polícia Judiciária de Lisboa, em 2022.06.09.

40. Em meio prisional, o arguido tem mantido um comportamento normativo e convergente com as regras instituídas, isento de processos disciplinares, desenvolvendo recentemente, actividade laboral como faxina na prisão.

41. O arguido encontra-se abstinente de consumos de estupefacientes, não beneficiando de acompanhamento clinico na prisão.

42. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido KK

43. KK, natural do Peru, é o mais velho de 3 irmãos tendo crescido numa família estruturada, com dinâmica intra famillar funcional e situação socio económica equilibrada, sendo o pai militar da marinha de guerra e a mãe ajudante de enfermagem, entre outras actividades que veio a desenvolver.

44. A pós concluir o ano de escolaridade que antecede a universidade, o arguido manteve os estudos na Escola da Marinha Mercante durante 3 anos, o que lhe deu o título de oficial de máquinas, vindo posteriormente a desenvolver a sua actividade de mecânico de máquinas em embarcações.

45. Em 2005 emigrou para Espanha, onde se manteve até 2014, vindo a obter o titulo de autorização de residência permanente.

46. Durante os anos em que permaneceu em Espanha, manteve-se integrado profissionalmente a exercer a actividade de mecânico de barcos para várias empresas, habitando em casas arrendadas, numa situação de vida equilibrada.

47. KK é consumidor de cocaína em contextos de convívio social desde a adolescência, até à data da actual reclusão, não percepcionando que os mesmos lhe retirem funcionalidade na sua vida.

48. Em 2014 regressou ao Peru para reestruturar a sua vida, com o objectivo de vir a casar, situação que não velo a acontecer, tendo somente vivido maritalmente com a companheira durante cerca de 3 anos na habitação do pai desta.

49. Manteve-se depois a residir no piso superior da vivenda dos pais, em situação autónoma de vida, trabalhando numa empresa de aviação como técnico de manutenção de terra, vindo a constituir, em 2018, uma empresa de prestação de serviços em várias áreas da construção civil e outras.

50. Conciliava com a sua actividade laboral, a frequência do curso superior de engenharia industrial.

51. Com o objectivo de manter o título de residência permanente, a partir de 2018, começou a deslocar-se a Espanha, onde permanecia curtos períodos de tempo, realizando trabalhos indiferenciados e habitando em quartos.

52. N o período que antecedeu a presente situação Jurídico-penal, o arguido mantinha-se numa situação devida autónoma e equilibrada, embora condicionada pela pandemia por Covid 19, exercendo actividade na sua empresa e frequentando o 42 ano do curso de engenharia industrial, mantendo uma ligação muito próxima e gratificante com os seus familiares.

53. E m situação de reclusão, tem beneficiado do apoio dos seus familiares e amigos, tendo usufruído de visitas dos pais e da sua madrinha, esta residente em Espanha, e de amigos.9

54. O arguido apresenta como projectos devida, quando em liberdade, vir a regressar ao seu país de origem e retomar as actividades que detinha à data da prisão.

55. A pesar deter sido abo de uma sanção disciplinar por posse de telemóvel, tem revelado, no geral, um comportamento institucional adequado, tendo participado numa peça de teatro.

56. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Condições pessoais e antecedentes criminais do arguido HH

57. HH, natural da Galiza, Espanha, é o mais velho de 3 irmãos, tendo crescido no interior de uma família descrita como estruturada, com dinâmica intrafamiliar funcional e situação socioeconómica equilibrada, sendo o pai ... e a mãe costureira.

58. E m termos escolares, o arguido veio a concluir o 12.º ano de escolaridade, tendo após os 16 anos de idade, começado a trabalhar, durante as férias escolares, na empresa de familiares ligada à aquacultura de mexilhão numa embarcação pesqueira, actividade que veio a manter pontualmente.

59. Com cerca de 17/18 anos, o arguido, iniciou o consumo de cocaína.

60. Aos 19 anos foi para as Ilhas Canárias integrando o agregado familiar de uns familiares, onde permaneceu cerca de 3 anos, vindo a concluir um curso de transporte marítimo pesqueiro e a trabalhar numa empresa de aluguer de automóveis.

61. Neste local, chegou a autonomizar-se arrendando um quarto.

62. Quando regressou à Galiza, veio a concluir novo curso avançado de transporte marítimo pesqueiro como capitão de barca, tendo desenvolvido, durante cerca de um ano, a actividade num barco pesqueiro.

63. Com cerca de 27 anos de Idade, decide ir viver em França, durante um ano, onde permaneceu em casa de um amigo e trabalhou como Indiferenciado numa adega de vinhos, altura em que se começou a interessar por vinhos.

64. Quando regressou à Galiza manteve-se a trabalhar numa adega, vindo a concluir um curso de provador de vinhos.

65. Trabalhava, também, pontualmente, na embarcação pesqueira na empresa dos seus familiares.

66. Com 31 anos de idade, estabeleceu a relação marital com a sua actual cônjuge, vindo a casar uma ano depois, constituindo agregado familiar próprio em Madrid, residindo numa habitação do pai da cônjuge.

67. Da relação veio a nascer o seu filho, em2020.

68. Em Madrid veio a estabelecer-se como comerciante de vinhos, representando várias marcas de vinhos de Espanha.

69. No período que antecedeu a sua presente reclusão, o arguido constituía agregado familiar com a cônjuge, técnica contabilista numa empresa da construção civil e com o filho, em Madrid, mantendo a sua actividade profissional como comerciante de vinhos, sendo a situação de vida estruturada e equilibrada, com sustentabilidade económica, apesar dos condicionalismos advindos da pandemia por Covid19.

70. Em quanto recluso, o arguido beneficia do apoio afectivo e material dos seus familiares, que o visitam mensalmente, aos sábados, sendo que em termos de projectos futuros, após liberto da sua presente situação jurídico-penal, pretende regressar ao seu pais de origem, vir a reintegrar o seu agregado familiar e retomar a actividade laboral como comerciante de vinhos.

71. O arguido tem revelado, no geral, um comportamento institucional adequado, embora tenha cumprido uma sanção disciplinar por posse de telemóvel.

72. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

3.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa não se provou que:

a) Visavam os arguidos obter com a Introdução e comercialização do produto em Portugal, concretamente, a quantia de cerca de €150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões de euros).

b) Os telemóveis e respectivas cartões telefónicos apreendidos aos arguidos fossem por estes usados nos contactas necessários à comercialização do produto estupefaciente e tenham sido adquiridos com proventos dai resultantes.

4. Fundamentação de Direito

Questão Prévia

Como resulta dos autos e do antecedente relatório, os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do acórdão do tribunal da 1.ª instância de 15-12-2022 que os condenou, respectivamente, na pena única de 14 anos de prisão pela prática, em coautoria e concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa ao mesmo (penas parcelares de 10 anos de prisão), e de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º (1), n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro (penas parcelares de 8 anos e 6 meses de prisão).

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 28-06-2023, foi negado provimento ao recurso do despacho de 14 de dezembro de 2022 e aos recursos do acórdão final.

Em dia 13-07-2023 o arguido HH arguiu a irregularidade do acórdão, na parte que indeferiu a realização da audiência, bem como a sua nulidade, por omissão de pronúncia quanto aos recursos interlocutórios dos despachos de 29 de julho de 2022 e de 22 de setembro de 2022 e a diversas questões suscitadas no seu recurso, tendo sido interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Em 20-09-2023 o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu novo acórdão onde fez constar o designadamente o seguinte: (…) Compulsados os autos para conhecimento das irregularidades invocadas verificou-se que o acórdão inserido no Citius é o projeto que foi apresentado antes da discussão em conferência, não sendo, pois, o que resultou da discussão final. Verifica-se assim uma irregularidade que, por afetar o valor do acto, se manda suprir nos termos do disposto no art.º 123.º CPP. Nestes termos dá-se sem efeito o projeto de acórdão junto aos autos no Citius, e todos os actos subsequentes e junta-se o acórdão proferido neste Tribunal e secção, resultante da discussão da causa em conferência”.

Nesse acórdão foi indeferida a realização de audiência, negado provimento aos recursos interlocutórios dos despachos de 14 de dezembro de 2022, de 29 de julho de 2022 e de 22 de setembro de 2022, bem como negado provimento aos recursos do acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa.

Por requerimento datado de 06-10-2023 o arguido HH arguiu a inexistência do acórdão de 20 de setembro de 2023 por ter sido proferido depois de esgotado o poder jurisdicional, e em 22-10-2023, apresentou recurso do segundo acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.

Por acórdão datado de 22-11-2023 o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que não ocorriam nenhuma das nulidades invocadas, tendo indeferido a reclamação.

Inconformado com o referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido HH, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Esse recurso foi rejeitado pelo despacho da Exma. Juíza Desembargadora de 20-03-2024

Desse despacho reclamou o arguido HH nos termos do art.º 405.º do CPP para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Reclamação essa que foi indeferida.

Vejamos,

Nos termos do art.º 613.º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art.º 4.º do Código de Processo Penal, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo, porém, lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

No presente caso, o Tribunal da Relação proferiu acórdão condenatório dos arguidos em 28.06.2023. Posteriormente, após requerimento de arguição de nulidade do mesmo por parte de um dos arguidos, veio a proferir novo acórdão em 20.09.2023, no qual, invocando ter ocorrido irregularidade (visto ter sido introduzido no Citius o projecto do acórdão e não o acórdão resultante da conferência), ao abrigo do disposto no art.º 123.º do Código de Processo Penal, deu sem efeito aquele acórdão e veio a proferir o acórdão de 20.09.2023.

Como prescreve o art.º 118.º do Código de Processo Penal, é irregular o acto que a lei não comina com a nulidade.

Por contraposição às nulidades, as irregularidades traduzem-se em desconformidades do regime processual de menor gravidade, podendo ser arguidas pelos interessados ou reparadas oficiosamente nos termos do disposto no art.º 123.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

Analisando o referido acórdão não se vislumbra a ocorrência de qualquer irregularidade. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023 está escrito, configurado, foi devidamente inserido no Citius e mostra-se assinado pela Exma. Senhora Desembargadora Relatora e Juízes Desembargadores Adjuntos, tendo sido previamente remetido aos vistos. Não se detecta, assim, qualquer anomalia processual, nem os arguidos invocaram irregularidade.

Por conseguinte, não se vislumbra a ocorrência de qualquer irregularidade, e uma vez que o acto foi praticado, quando se mostrava já esgotado o poder jurisdicional, a Exma. Sra. Juíza Desembargadora, o acórdão de 20.09.2023 na linha da melhor doutrina, terá de ser qualificado como inexistente. Assim, como refere o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer “(…) embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (art.º 666.º, n.º 3), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites (C. Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369).

O preclaro Professor denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).

O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2.ª edição, pg. 360).

No caso vertente, é manifesto que fora dos casos em que, nos termos legais, é permitido ao Juiz rectificar a decisão (…), o seu poder jurisdicional esgotou-se por imperativo legal, pelo que a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional (…).

A nível jurisprudencial e sobre o conceito de sentença inexistente, pode ver-se também o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Julho de 2009 (Relator, o Exm.º Conselheiro Santos Bernardino) e onde, para além do mais, se escreveu:

“A sentença inexistente, no dizer do Prof. ALBERTO DOS REIS, é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença” ( P.º 09B0511, disponível em www.dgsi.pt).

Sendo assim, ainda segundo o ensinamento de Paulo Cunha, “quando há inexistência jurídica da sentença, não há necessidade de atacar a sentença, como inexistente, é insusceptível de produzir efeitos, e, demostrado em qualquer altura que existe um vício que corresponde à inexistência jurídica, tudo se passa como se nunca tivesse sido proferida” (ibidem). (…)

(…) sendo inexistente não só não produz efeitos, tal como a decisão nula (quod nullum est nullum producit effectum), como apenas constitui um “estado de facto com a aparência de sentença” na expressiva asserção de Alberto dos Reis” (Sublinhados nossos).

Deste modo, a nossa análise circunscrever-se-á ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023, devidamente interposto e oportunamente admitido.

Nesse plano, analisando o dito acórdão verifica-se que o mesmo se não pronunciou sobre os recursos interlocutórios deduzidos quanto aos despachos de 29.07.2022 e de 14.12.2022, sendo certo que o arguido manifestou interesse na sua apreciação.

Por outro lado, uma vez que o recurso é delimitado pelo teor das respectivas conclusões, delas emergem como questões a decidir, nos termos enunciados supra, várias questões.

Assim, no recurso do arguido KK: a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia; interpretação inconstitucional dos artigos 118.º, 127.º e 355.º do Código de Processo Penal e medida da pena.

No recurso do arguido HH: irregularidade do acórdão por ter julgado o recurso sem realização da audiência; nulidade do acórdão por omissão de pronúncia; violação do disposto no art.º 407.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; violação do disposto no art.º 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do Código de Processo Penal; violação do regime das nulidades dos artigos 118.º e seguintes do Código de Processo Penal; violação dos artigos 141.º n.º 1, do Código de Processo Penal, e 31.º da Constituição; violação dos artigos 229.º e seguintes do Código de Processo Penal, da Lei 87/2021, de 15 de dezembro (Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal) e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; incompetência, internacional e territorial, do Juízo Central Criminal de Lisboa; valoração de prova proibida; violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo; pressupostos da coautoria; pressupostos típicos do crime de associação criminosa e medida da pena.

No recurso de NN: pressupostos típicos do crime de associação criminosa e medida das penas.

Analisando o acórdão em questão, verifica-se que o mesmo se não pronunciou sobre a questão da incompetência territorial do Juízo Central Criminal de Lisboa, da validade da prova pericial aos telefones e telemóveis e do não preenchimento dos pressupostos da coautoria (recorrente HH), bem como do crime de associação criminosa (recorrentes KK e HH e TT).

Neste quadro, impõe-se concluir que o tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar (artigos 379.º n.º1 alínea c), e 425.º n.º 4, do Código de Processo Penal), sendo nulo o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023. Assim sendo, deverá esse Tribunal proferir novo acórdão, no qual se conheça das referidas questões, quedando prejudicas as demais questões suscitadas no âmbito dos referidos recursos.

5. Decisão

Em face do exposto, declara-se nulo o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023 e ordena-se a remessa dos autos a esse tribunal, a fim de ser proferido acórdão no qual se conheçam das sobreditas questões.

Sem custas.

Lisboa, 2025.01.29

Albertina Pereira (Relatora)

Vasques Osório (1.º Adjunto)

João Rato (2.º Adjunto)

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1. E não 21.º como por evidente lapso de escrita consta do dispositivo do acórdão↩︎

2. Código de Processo Civil anotado, volume V, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, págs. 126-127.↩︎

3. J. O. CARDONA FERREIRA, Guia de Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2005, pág.↩︎

4. Como observa o conselheiro PEREIRA MADEIRA, o acórdão do tribunal superior «obedece, na sua estrutura, à sentença de primeira instância» (Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, pág. 1417), ou seja, deve conter o relatório, o segmento dedicado à fundamentação de facto e de direito e o dispositivo (art. 374.º do Código de Processo Penal).↩︎

5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de maio de 2010, processo 4670/2000.S1, relatado pelo conselheiro ÁLVARO RODRIGUES. No mesmo sentido v. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15 de dezembro de 2010, processo 2006/09.5TTPRT.P1, relatado pelo desembargador MACHADO DA SILVA, e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de dezembro de 2019, processo 2096/06.2TBSXL-A.L1-2, relatado pela desembargadora GABRIELA CUNHA RODRIGUES, e de 23 de fevereiro de 2023, processo 10683/14.6T8LSB.L1-8, relatado pela desembargadora CRISTINA LOURENÇO, todos em www.dgsi.pt.↩︎

6. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, págs. 320-321.↩︎

7. PEREIRA MADEIRA, obra citada, pág. 1382.↩︎

8. PEREIRA MADEIRA, obra citada, pág. 1167.↩︎