CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
OMISSÃO DE DESCRIÇÃO DOS FACTOS
Sumário

A circunstância factual relativa à falta de pagamento, após notificação para o efeito, das quantias devidas pelo empregador à segurança social, prevista no artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT, é uma condição objetiva de punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Os factos demonstrativos da verificação dessa condição têm de ser narrados na acusação, que fixa o objeto do processo submetido a julgamento com vista à prolação de uma decisão jurisdicional, sob pena de rejeição por manifestamente infundada, com base no disposto na al. b) do nº 3 do artigo 311º do CPP, por ser omissa na narração de todos os factos, e não com base na sua al. d), por os factos não constituírem crime.

A lei não admite o aditamento dos factos relevantes para a prova da verificação da condição objetiva de punibilidade em julgamento, com recurso aos mecanismos dos artigos 358º e 359º do CPP.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Despacho proferido em 15jul2024, em que o tribunal recorrido rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AA e BB, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto nos artigos 107º nºs 1 e 2 e 105º nºs 1, 4 e 7, do RGIT (Lei 15/2001, de 5jun), por manifestamente infundada, pelas razões previstas no artigo 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.

1.2. Recurso e resposta

1.2.1. O Ministério Público recorreu do despacho, pedindo a sua revogação e substituição por outro que receba a acusação e designe data para julgamento.

Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:

- A acusação foi rejeitada por se considerar que a omissão da notificação prevista no artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT conduz à insuficiência dos factos para a condenação;

- Porém, quando essa notificação não foi feita por desconhecimento do paradeiro dos arguidos, como foi o caso, a condição objetiva de punibilidade deve ter-se por verificada se foram realizadas, como foram, todas as diligências possíveis para assegurar a notificação;

- Essa notificação em falta pode ser feita pelo tribunal na fase de julgamento;

- Estando alegada na contestação a falta de notificação e as respetivas razões, a acusação não é manifestamente infundada e não podia ser rejeitada.

1.2.2. Os arguidos responderam ao recurso, manifestando-se no sentido da sua improcedência, por adesão à fundamentação do despacho recorrido, entendendo, em suma, que, mesmo provando-se todos os factos da acusação, a decisão teria de ser necessariamente absolutória.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público limitou-se a apor o visto.

2. Questões a decidir

A única questão controversa é a de saber se a acusação podia ser rejeitada por manifestamente infundada, por falta de alegação dos factos relativos à verificação da condição objetiva de punibilidade.

3. Fundamentação

3.1. Despacho recorrido

(transcrição sem as notas de rodapé)

O Ministério Público acusou os arguidos AA e BB da prática de um crime de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º nº 1 e nº 2, e 105º nº 1, nº 4, e nº 7, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT, Lei nº 15/2001 de 5 de Junho).

Os factos elencados na acusação são os seguintes (os sublinhados são nossos):

1.º

A sociedade arguida AA, é uma pessoa colectiva com o NIF …, encontrando-se registada para o exercício da exploração de loja de conveniência e de minimercado (CAE …), tem sede na Avenida …, Edifício …, em …, e encontra-se inscrita no Instituto da Segurança Social, I.P., com o NISS ….

2.º

A gerência da sociedade arguida esteve sempre a cargo do arguido BB desde 25/03/2009, o qual, desde essa data e até aos dias de hoje, exerceu o cargo de gerente, sendo o responsável e exercendo as funções de gestão e de administração quotidiana da sociedade arguida, designadamente procedendo ao pagamento de salários a si próprio e aos trabalhadores da sociedade arguida e respectivas contribuições fiscais, dedução e pagamento das cotizações devidas à Segurança Social.

3.º

No período de tempo compreendido entre Julho de 2019 a Novembro de 2021, no exercício da sua actividade, a sociedade arguida teve sob a sua dependência laboral trabalhadores por conta de outrem e o próprio arguido BB, mediante o pagamento de retribuição mensal que, nessa qualidade, estava sujeita à retenção na fonte das contribuições que deveriam mensalmente ser entregues à Segurança Social.

4.º

No exercício das suas funções, impendia sobre o arguido BB, a obrigação de, em nome da sociedade arguida, reter no acto de pagamento das remunerações a si próprio e do pagamento das remunerações aos trabalhadores da sociedade arguida, as cotizações legais que pertencem e deveriam ser entregues à Segurança Social.

5.º

O arguido BB, enquanto trabalhador, e os trabalhadores da sociedade arguida foram pagos regularmente nos meses de Julho de 2019 a Novembro de 2021.

6.º

Nestes períodos, o arguido BB e a sociedade arguida, por intermédio do primeiro, entregou aos trabalhadores as correspondentes folhas de remunerações destinadas a mencionar o pagamento do salário, tendo descontado dos salários pagos ao ora arguido e dos salários pagos aos seus trabalhadores as contribuições devidas à Segurança Social, quer relativamente ao regime geral, conforme a lei obriga, e que corresponde ao desconto de 11% no vencimento dos trabalhadores e do seu próprio vencimento.

7.º

Os arguidos não entregaram à Segurança Social os descontos efectuados dentro dos prazos legais, nem posteriormente.

8.º

O arguido BB, e a sociedade arguida, por intermédio daquele, retiveram o montante global de € 5.360,80, nos períodos e montantes que infra se discriminam:

9.º

As quantias supra referidas deveriam ter dado entrada nos serviços da Segurança Social até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que diziam respeito ou nos 90 dias seguintes ao termo legal de pagamento.

10.º

O arguido BB sabia que estava legalmente obrigado a entregar as quantias supra mencionadas e não o fez naquela data, nem nos 90 dias subsequentes.

11.º

Por não ter sido localizado o seu paradeiro, o arguido BB e a própria sociedade arguida não foram, até à dedução da presente acusação, notificados nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, de que poderiam proceder, no prazo de 30 dias, a contar da data da notificação, ao pagamento das quantias em dívida, acrescidas dos acréscimos legais e respectiva coima e dessa forma, se extinguiria o procedimento criminal.

12.º

O arguido BB agiu livre, voluntária e conscientemente, em representação e no interesse da sociedade arguida, com o intuito de obter para a sociedade que geria uma quantia que bem sabia que não lhes pertencia, da qual eram meros depositários e não poderiam utilizar em proveito próprio ou no giro comercial da sociedade, ofendendo deste modo o erário da Segurança Social, sabendo que aquele dinheiro pertencia à Segurança Social, e a esta deviam fazer chegar dentro dos prazos legais estabelecidos, tendo agido da forma supra descrita contra a vontade da Segurança Social.

13.º

A actuação descrita ocorreu de forma homogénea, ao abrigo da oportunidade favorável à prática dos factos descritos, dado que após a prática dos primeiros factos não foi levada a cabo qualquer fiscalização ou penalização, mantendo-se as possibilidades de repetição da conduta descrita, a qual sabia o arguido BB ser proibida e punida pela lei penal.

14.º

Os arguidos actuaram bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Dispõe o art. 107º nº 1 do RGIT que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de Segurança Social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105º” do mesmo diploma.

Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo 107º que a este crime “é aplicável o disposto nos nº 4 e 7 do artigo 105º” do RGIT.

Por seu lado, e no que ora importa, estabelece o art. 105º do RGIT, sob a epígrafe “Abuso de confiança”, que:

1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

(...)

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Posto o que precede, entendemos que os factos indicados na acusação não são suficientes para atribuir aos arguidos responsabilidade criminal. Vejamos.

Do artigo 11º da acusação decorre que as remunerações retidas pelos arguidos (e depois não entregues à Segurança Social) foram oportunamente comunicadas à Segurança Social. Com efeito, apesar de a acusação não o dizer expressamente, é essa a única conclusão possível2 a partir do facto ali expressamente descrito: os arguidos podiam ter causado a extinção do procedimento criminal caso tivessem procedido no prazo de 30 dias (contados da respectiva notificação) ao pagamento das quantias em dívida à Segurança Social, acrescidas dos acréscimos legais e respectiva coima.

Porém, tal como consta do mesmo artigo 11º do libelo, os arguidos não foram para esse efeito notificados, uma vez que não foi localizado o seu paradeiro.

Ora, como decorre das normas supra citadas, caso a prestação não paga haja sido declarada pelo devedor do tributo à entidade recebedora, o crime só é punido (art. 107º nº 2 do RGIT) se se verificar o cumprimento da condição objectiva prevista no art. 105º nº 4 do RGIT. A conduta só é punível se o devedor for notificado para repor a verdade tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo adicional de 30 dias. Ficando por verificar aquela condição de punibilidade haverá que, por tal motivo, proferir decisão absolutória.

Ou seja, no caso sub iudice, mesmo que se provem todos os factos da acusação a conclusão necessária será uma decisão absolutória. Para haver lugar a responsabilização criminal dos arguidos sempre, e em qualquer caso, terá de acrescentar-se à matéria da causa factualidade que não consta da acusação.

A propósito de caso análogo, disse-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de Setembro de 2013 (publicado em www.dgsi.pt, processo nº 53/11.6TASRP.E1): Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006 (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008), a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.

De acordo com o art. 311º nº 2 do Código de Processo Penal, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução deve ser proferido despacho que rejeite a acusação se a mesma for manifestamente infundada. Lê-se na alínea d) do nº 3 do mesmo artigo que a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.

Pelos motivos expostos, uma vez que os factos ali descritos são insuficientes para se concluir pela responsabilidade criminal dos arguidos, rejeito a acusação de fls. 169 e seguintes.

Notifique e, oportunamente, restitua os autos ao Ministério Público (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Abril de 2018, publicado em www.dgsi.pt, processo nº 1559/16.6GBABF.E1) para, sendo caso, dar-se ao inquérito algum outro dos desenlaces previstos na lei (dedução de acusação isenta do vício apontado; arquivamento, etc.).

3.2. Análise

No despacho de saneamento a que se refere o artigo 311º do CPP, deve ser rejeitada a acusação manifestamente infundada, seja pelas formais das als. a), b) e c) do nº 3 (coincidentes com as nulidades previstas no artigo 283º nº 3 als. a), b) e c) do CPP), seja pela a causa material prevista na al. d) – os factos não constituírem crime – em que há uma apreciação antecipada do mérito, por manifesta falta de viabilidade substantiva do objeto do processo.

Do que se trata no caso em apreço é de se impedir, por razões utilidade processual e de garantias de defesa, que prossiga para julgamento uma acusação insuscetível de levar à condenação, por os factos imputados não serem suficientes para o preenchimento dos elementos do tipo penal e/ou da verificação das condições objetivas de punibilidade.

O artigo 107º do RGIT, com a epígrafe “abuso de confiança contra a segurança social” dispõe o seguinte:

«1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º

2 - É aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º.»

Por outro lado, resulta do disposto no artigo 105º nº 4 do RGIT que os factos só são puníveis se (a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e (b) a prestação comunicada à segurança social através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

A falta de pagamento das prestações não entregues e acréscimos de juros e coima, após a notificação a que se refere a al. b) do nº 4 do artigo 105º, constitui uma condição objetiva de punibilidade. O acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 6/2008 (DR I Série, nº 94, de 15mai2008), muito embora versasse sobre questão diferente da que aqui nos ocupa, relativa à aplicação no tempo da alteração legislativa que passou a impor a necessidade daquela notificação, qualificou-a expressamente nesses termos.

Podemos, assim, ter por seguro que aquela circunstância factual – a falta de pagamento após a notificação – não é um elemento do tipo de crime de abuso de confiança, mas sim uma condição objetiva de punibilidade, um requisito sem o qual o crime, embora já consumado, não é punível, visto o legislador ter entendido fixar como fundamento de impunibilidade a verificação do facto extrapenal de reparação do dano material do crime. Não cabe aqui dissertar teoricamente sobre a natureza jurídica das condições objetivas de punibilidade, para a qual a doutrina tem encontrado diversas formulações. No essencial, todas elas se reconduzem à ideia, suficientemente operativa para a finalidade que aqui nos ocupa, que é a de decidir um caso concreto, de se tratar de um elemento de facto presente na norma, exterior ao tipo de ilícito e ao tipo de culpa, que constitui, por opção de política legislativa, um pressuposto necessário para que a ação típica, já consumada, seja punível, isto é, passível de ação penal. Sendo um pressuposto de punibilidade, a questão controversa do caso em análise é a de saber se o elemento factual relativo à falta de pagamento da prestação em dívida após notificação para o efeito tem de ser alegado na acusação do Ministério Público ou se, numa situação em que não tenha sido possível proceder a tal notificação, o mesmo pode ser suprido pelo juiz do julgamento. Sendo a acusação a peça processual que fixa o objeto do processo submetido a julgamento com vista à prolação de uma decisão jurisdicional, objeto esse que só pode ser alterado nas situações excecionais dos artigos 358º e 359º do CPP, quando se trate de introduzir novos factos desfavoráveis ao arguido, não vemos como possa a mesma omitir validamente os factos que condicionam a punibilidade do crime. Se bem se reparar, o artigo 283º nº 3 al. b) do CPP, quando enuncia a narração dos factos que obrigatoriamente tem de constar da acusação, não se refere apenas aos factos necessários para o preenchimento do tipo de crime. A expressão “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena” tem um alcance mais vasto. Um facto do qual depende a punibilidade do crime está certamente incluído nos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, isto é, nos factos que, se provados, permitem chegar a uma decisão condenatória.

E tanto assim é que o artigo 368º nº 2 al. e) do CPP dispõe que, mais tarde, no momento da sentença, o tribunal decide sobre os factos alegados pela acusação, nomeadamente os relevantes para a questão de saber se se verificam os pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade (sublinhados nossos). Se tais factos não tivessem de ser alegados na acusação, uma vez que também não podem ser objeto de aditamento com recurso aos procedimentos dos artigos 358º e 359º do CPP (justificaremos esta afirmação adiante), não se vê como poderia o tribunal no momento da sentença decidir se ficaram ou não provados.

É determinante que, na sua substância e não apenas na forma, o Ministério Público exerça a ação penal com uma acusação que seja suficiente para permitir a realização de um julgamento vinculado a um tema viável – isto é, que possa terminar numa condenação – e para assegurar ao arguido a efetiva possibilidade de defesa, o que naturalmente pressupõe o conhecimento preciso dos factos imputados e a sua suficiência para integrar o tipo de crime em causa e permitir a sua punição. Esta exigência não é um formalismo técnico destituído de sentido material, porque está intimamente conexionada com a concretização de princípios constitucionais fundamentais, como a efetiva possibilidade de defesa e a estrutura acusatória do processo penal. Saber se o arguido foi ou não notificado para fazer um pagamento, se pagou ou não e se o prazo que lhe foi concedido era o certo e foi ultrapassado, é matéria de facto que tem de ser discutida no julgamento, que o arguido pode querer contrariar e relativamente à qual pode querer apresentar provas. Uma acusação que omita a alegação de tais factos não permite o exercício do direito ao contraditório em julgamento, com o alcance e finalidades resultantes dos artigos 32º nº 5 da CRP e 323º al. f) e 327º nº 2 do CPP e viola de forma grave os direitos de defesa e o princípio do processo equitativo, consagrados nos artigos 32º nºs 1 e 5 e 20º nº 4 da CRP, no artigo 6º nº 3 da CEDH e nos artigos 47º e 48º nº 2 da CDFUE.

Dissemos acima que a lei não admite o aditamento dos factos relevantes para a prova da verificação da condição objetiva de punibilidade em julgamento, com recurso aos mecanismos dos artigos 358º e 359º do CPP. Esta limitação tem todo o cabimento num processo que por imposição constitucional tem estrutura acusatória (32º nº 5 da CRP). O juiz penal está colocado numa posição de total independência em relação às partes e estas entre si, na fase do julgamento, têm uma posição equivalente no processo. A iniciativa do processo e a delimitação do objeto da imputação ao arguido é de quem acusa (no caso, o Ministério Público). Permitir que o juiz do julgamento promovesse ativamente a verificação de uma condição de punibilidade que não existia antes, “corrigindo” uma ação penal defeituosa, para, logo de seguida, alterar a factualidade imputada ao arguido, transformando uma acusação inviável numa acusação suscetível de levar à condenação, seria uma violação grosseira daqueles princípios. Isso faria do juiz, ao mesmo tempo, instrutor, acusador e julgador.

Muito embora o objeto do acórdão do STJ nº 1/2015, de 20nov2014 (DR 18, série I, de 27jan2015) tivesse sido outro, a jurisprudência aí fixada deve aplicar-se ao caso em apreço por similitude de razões. Se já concluímos que a acusação tem obrigatoriamente de descrever não apenas os factos do tipo penal, mas também os factos das condições objetivas de punibilidade, então a sua omissão há de ter as mesmas consequências. Se os factos da imputação dos elementos subjetivos do crime não podem ser aditados em julgamento com recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do CPP, por igualdade de razões não podem ser aditados os factos de cuja prova depende a punibilidade do crime. E se assim é, por maioria de razão não o poderão ser por via da alteração substancial prevista no artigo 359º do CPP, pois aí tratar-se-ia de transformar uma conduta não punível, ou seja, facto penalmente irrelevante, numa conduta punível, isto é, num facto passível de condenação penal.

Concluímos, portanto, que a acusação em causa omitiu a narração de um facto necessário para a verificação dos requisitos típicos e de punibilidade e que essa omissão não pode ser suprida em julgamento. Sendo assim, tal acusação é manifestamente infundada e não pode prosseguir para julgamento, devendo o juiz que recebe o processo, no momento do saneamento a que se refere o artigo 311º do CPP, rejeitá-la.

Porém, ao contrário do decidido no despacho recorrido, a causa de rejeição não é a prevista na al. d) do nº 3 daquele artigo 311º - os factos não constituírem crime – mas sim na al. b) – a acusação não conter a narração dos factos.

Os factos narrados não constituírem crime é uma causa de inviabilidade substantiva da acusação. Os factos narrados são aqueles a que se refere o artigo 283º do CPP, mas não são crime. A rejeição por este motivo corresponde a um julgamento antecipado do mérito que leva à extinção do procedimento criminal. A situação em apreço não é esta, de os factos não serem crime. O que sucede é que os factos narrados não são todos aqueles que o Ministério Público tinha de alegar. O que quer dizer que a acusação não contém a narração dos factos, uma vez que esta, para ser viável, tem de os incluir a todos. Como tal, do que se trata é da existência de uma causa formal para rejeição da acusação. A distinção é importante porque a rejeição da acusação pelas razões da al. d) não permite ao Ministério Público suprir o vício e apresentar uma nova acusação, ao passo que as razões da al. b) já o permitem – como, de resto, se assinalou no despacho sob recurso.

A solução que aqui acolhemos é aquela que tem sido maioritariamente seguida pela nossa jurisprudência, nomeadamente nos seguintes acórdãos: TRP, 7fev2018 (processo 485/17.6T9STS.P1), TRP, 3mai2023 (processo 209/21.3T9MCN.P1), TRP, 7jun2023 (processo 313/21.8T9MCN.P1), TRG, 23out2017 (processo 1418/07.3TAVCT.G1), , TRC 20set2017 (processo 417/15.6IDPRT.C1), TRE, 24set2013 (processo 53/11.6TASRP.E1), TRE, 26mai2020 (processo 389/18.5IDFAR.E1), TRE, 11mai2021 (processo 1391/11.3TAPMT.E1), TRE, 16dez2021 (processo 31/18.4T9CTX.E1), todos em www.jurisprudencia.csm.org.pt.

Não concordamos, por isso, com a interpretação da lei perfilhada no recurso, segundo a qual caberia ao juiz de julgamento suprir a omissão da acusação, bastando ao Ministério Público alegar que não foi possível proceder à notificação dos arguidos para se terem por suficientemente narrados os factos da condição objetiva de punibilidade. Isso é, salvo o devido respeito, uma ficção contra legem. A condição de punibilidade é a falta de pagamento das quantias retidas após notificação para o efeito; não é a falta de pagamento por impossibilidade de notificação.

No acórdão TRC, 23out2013 (processo 1231/11.3T3AVR.C1), consultável em www.dgsi.pt, afirmou-se que a notificação pode ser feita pela entidade à responsabilidade da qual o processo se encontrar no momento em que a questão do cumprimento se suscitar, dado que a lei não atribui a competência para ordenar o cumprimento do disposto no artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT a qualquer entidade concreta. Como tal, estando o processo em instrução, caberá ao respetivo juiz ordenar a notificação. Não concordamos porque estes fundamentos apoiam-se em dois equívocos. Em primeiro lugar, o momento em que se suscita a questão da verificação da condição objetiva de punibilidade é o da acusação, em que o Ministério Público introduz a ação penal em tribunal. É aí e não mais tarde que a questão da punibilidade da conduta se revela como relevante para verificar se a ação penal é viável. Em segundo lugar, o problema não é de determinação da entidade competente para determinar a notificação.

É que sem notificação o crime não é punível e não pode sequer haver acusação, donde decorre que a notificação tem de ser feita antes desse momento.

Por fim, temos de dizer que os acórdãos que o Ministério Público invocou no recurso como suporte para a sua tese não só não têm a nossa concordância, pelas razões já referidas, como não são plenamente aplicáveis ao caso nos termos pretendidos.

Nos acórdãos TRE, 27set2016 (processo 393/11.4IDFAR.E1) e TRE 18fev2020 (processo 481/15.8IDFAR.E1), consultáveis em www.jurisprudencia.csm.org.pt, em que se decidiu que a notificação podia ser ordenada pelo juiz de instrução, encontrando-se o processo nessa fase, apreciavam-se casos em que os processos tinham prosseguido com a omissão dos factos relativos às condições objetivas de punibilidade na acusação e as notificações já tinham sido feitas. No nosso caso a situação refere-se ao momento anterior, da rejeição da acusação em que a narração daquele facto é omissa.

Em conclusão, o recurso é improcedente.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso improcedente e em confirmar o despacho recorrido.

Não há lugar ao pagamento de custas.

Évora, 28 de janeiro de 2025

Manuel Soares

Carla Oliveira

Edgar Valente