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CESSÃO DE CRÉDITO
HABILITAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
ADMISSIBILIDADE
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Sumário
I – O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que aprovou um regime simplificado de cessão de créditos em massa, dispensa, para a habilitação processual atinente à cessão de créditos aí prevista, a dedução do incidente de habilitação previsto no art.º 356.º do CPC. II – Para essas cessões de créditos a habilitação opera mediante a simples junção aos autos de cópia do contrato de cessão. III – Se a questão atinente à falta de eficácia da cessão de créditos em relação à devedora apenas surgir com a contestação apresentada pela requerida, não é de impor à requerente a junção do respetivo documento comprovativo da notificação da cessão com o requerimento inicial de habilitação. IV - O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder/dever de diligenciar pela obtenção da prova necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411º do Cód. de Processo Civil). V - Se dos elementos constantes dos autos se mostrar indiciado o pressuposto da necessidade ou da imprescindibilidade do documento para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, a sua realização impõe-se ao tribunal, pelo que terá aquele de usar dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo art. 411º do CPC.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
Por requerimento de 23 de janeiro de 2024, junto aos autos de execução que Banco 1... - Sucursal em Portugal instaurou contra AA, veio «EMP01....» deduzir incidente de habilitação de cessionário, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, requerendo que seja «ordenado que a Requerente substitua a posição e qualidade da Requerida Banco 1... - Sucursal em Portugal, relativamente aos créditos referidos, requerendo igualmente que sejam substituídos os elementos de identificação para a Cessionária» (ref.ª ...86).
Como fundamento alegou, em síntese:
Mediante contrato de cessão de créditos, celebrado entre Banco 1... - Sucursal em Portugal e a Requerente EMP01..., outorgado em 12 de Dezembro de 2023, aquele cedeu à EMP01... o crédito que ora se reclama, pelo preço de € 1.310.615,92.
A cessão de créditos ocorrida, preenche os pressupostos previstos no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28/03.
No âmbito do contrato celebrado a Banco 1... cedeu as garantias constituídas ao abrigo ou relacionadas com os contratos celebrados com os devedores, bem como quaisquer outras eventualmente constituídas para garantia desses créditos.
A cessão importou ainda o direito de receber, exigir e recuperar quaisquer montantes acessórios ou principais, bem como o direito de exercer todos os poderes que a Banco 1... detinha em relação aos seus créditos.
O contrato de cessão de créditos teve por objeto o crédito detido pela Requerente sobre o Executado.
A identificação dos concretos créditos cedidos nos inúmeros documentos do contrato efetua-se através do número de cliente e nome do devedor, pelo que apenas poderá ser esse o critério identificativo a utilizar.
Juntou um documento denominado “Contrato de Cessão de Créditos”, datado de 12/12/2023.
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Notificada, a executada AA apresentou, em 14/02/2024, contestação, concluindo pela improcedência do pedido de habilitação do adquirente ou cessionário (ref.ª ...28).
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A requerente EMP01... respondeu, a 5/03/2024, reiterando o teor do requerimento inicial e requerendo ao Tribunal a admissão da junção de um novo documento, que corporiza “a folha correspondente ao crédito em discussão nos autos – contrato n.º ...94” (ref.ª ...09).
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A executada pronunciou-se, a 17/03/2024, tendo pugnado pela extemporaneidade do documento e pela sua consequente inadmissibilidade (ref.ª ...95).
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Por despacho de 19/04/2024, foi agendada tentativa de conciliação, tendo sido determinado à requerente a exibição nessa diligência do original do contrato de cessão celebrado a fim de ser examinado pela executada (ref.ª ...85).
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A 03/05/2024, a requerente apresentou um requerimento (ref.ª ...39), dando «conhecimento que o contrato foi assinado digitalmente através de uma plataforma electrónica certificada para o efeito – “DocuSign” (Docusign | #1 in Electronic Signature and Intelligent Agreement Management) - conforme consta dos documentos anexos ao contrato de cessão (vide pág. 18 a 26), assim melhor identificada - Certificat de réalisation – DocuSign Envelope ID F5C67F813E9C42469747F25E0318FC4D».
Mais esclareceu que «a cessão foi notificada à executada, em 04 de janeiro de 2024», tendo requerido a junção da respetiva carta.
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Realizada tentativa de conciliação a 09/05/2024, a mesma revelou-se inviável (ref.ª ...39).
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A executada pronunciou-se, em 15/05/2024, concluindo pela extemporaneidade da alegação de facto da Requerente e do documento apresentado a 03/05/2024 (ref.ª ...00).
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Datada de 09/07/2024, o Tribunal “a quo” proferiu a seguinte decisão (ref.ª ...06):
«Conforme decorre com clareza do DL 42/2019, a tramitação do incidente de habilitação intentado ao abrigo deste diploma reveste manifesta desformalização, pelo que se encontra acentuado o poder de inquisitório do tribunal.— O tribunal entende que o documento junto em 3/5 é relevante e suscitou-se no decurso da tramitação dos autos, pelo que se admite o mesmo.— Notifique, sendo a requerente da habilitação para juntar a documentação que permita fazer a correspondência entre a parte do anexo de créditos cedidos juntos e o crédito exequendo.--- (…)».
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Inconformada com esta decisão dela recorre a requerida tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (ref.ª ...10):
«B.1 - O despacho recorrido viola e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes dos artigos 341.º e 342.º, do C.C., e, ainda, dos artigos 293.º, n.º 1, 356.º, n.º 1, alínea a), parte final, e alínea b), 411.º, 552.º, n.º 1, alínea d), 572.º, alínea c), 573.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 574.º, n.º 1 a 3, e, finalmente, 588.º, n.º 1 e 2, todos do C.P.C. B.2 - O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, veio estabelecer um regime simplificado para a cessão de créditos em massa. B.3 - As principais alterações trazidas por este diploma legal prendem-se, por um lado, com a dispensa de habilitação processual dos adquirentes no âmbito dos processos em que os créditos estejam a ser exigidos e, por outro, com a simplificação das operações de registo associadas à cessão. B.4 – Uma das principais regras que resulta daquele diploma legal é que quanto à habilitação do cessionário, este último considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objecto de cessão, competindo-lhe, somente, juntar ao processo, para o efeito, cópia do contrato de cessão de créditos. B.5 - Não será, assim, necessário deduzir um incidente de habilitação processual. Todavia, B.6 - A simples junção da cópia do contrato de cessão não exime o requerente do ónus da prova dos factos tendentes a demonstrar a existência do contrato de cessão e o seu objecto relevante. B.7 – Nem invalida que se executado/devedor possa impugnar a validade do acto de cessão de créditos ou invocar que a cessão ocorreu para tornar mais difícil a sua posição processual. B.8 - o mecanismo que melhor satisfaz essa eventualidade é permitir ao executado/devedor lançar mão do mecanismo que lhe permite artigo 356.º, n.º 1, alínea a), parte final, Pelo que, B.9 - Ainda que de forma subsidiária, é aplicável ao regime simplificado para a cessão de créditos em massa, a que alude o Decreto-lei n.º 42/2019, de 28 de março, não apenas aquela norma, como, ainda, artigo 293.º, n.º 1, e o artigo 356.º, alínea b), ambos do C.P.C. Isto visto, B.10 – De acordo com os desenvolvimentos processuais acima descritos, no Requerimento apresentado, em 03/05/2023, veio a Apelada impugnar o conteúdo da alegação de facto discorrida pela Apelante na sua Contestação, designadamente, alegando, agora, que (…) a cessão foi notificada à executada, em 04 de janeiro de 2024 (…) introduzindo e requerendo a admissão de um documento que assim denominada: Carta (…). Ora, B.11 – Ante as disposições legais supra citadas é extemporânea a apresentação daquele documento denominado: Carta e a lei não admite, pois o mesmo devia ter sido apresentado com o articulado inicial onde se alegaram, eventualmente, os factos correspondentes e que pelo identificado documento se pretende provar. Noutro âmbito, B.12 - O princípio do inquisitório ou da oficiosidade constitui o contraponto do princípio do dispositivo. B.13 - Associados ao subprincípio do impulso processual do princípio do dispositivo, surgem diversos ónus processuais, dos quais se destacam o ónus de prova e, inerentemente, o ónus de proposição das provas em juízo nas respectivas peças processuais. Por seu turno, B.14 - O princípio do inquisitório informa o campo de iniciativa processual do juiz, designadamente, no âmbito da instrução do processo. Porém, B.15 - A realização oficiosa de diligências probatórias para o esclarecimento da verdade, não se deverá traduzir numa gratuita substituição das partes, mas deverá ser assumida com vista a obviar dificuldades insuperáveis ou assaz excessivas e após esgotados os meios de que a parte disponha para esse efeito. Pois, B.16 - O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade. Por isso, B.17 - O Tribunal a quo não pode, ao abrigo do princípio do inquisitório, admitir a junção aos autos do documento em causa no Requerimento referido. Porquanto, B.18 - Está, de motu próprio, a admitir a realização de uma diligência que compete, unicamente, à parte. B.19 – Como decorre, uma vez mais, da cronologia processual relevante supra referenciada a constante introdução de documentos nos presentes autos após o articulado inicial, é notório que a Apelada negligenciou, grosseiramente, o ónus que sobre si impendia. Ou seja, B.20 - A Apelada alheando-se por completo, quer do princípio da autorresponsabilidade das partes, quer do princípio dispositivo pelo qual continua a nortear-se o processo civil português. Perante isto, B.21 - Vir, após o articulado inicial, em requerimentos anómalos e sucessivos – para um incidente processual simples e que se quer célere – e até o Tribunal, escudado no princípio do inquisitório, introduzir novos documentos é remendar a notória ausência de prova e, por outro lado, no nosso entendimento, transferir para o Tribunal o ónus da sua própria incúria processual. B.22 - O disposto no artigo 411.º, do C.P.C. não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias. Finalmente, B.23 – Ao contrário do consignado no Despacho Recorrido o documento denominado: Carta (…) que, alegadamente, visa comprovar que (…) a cessão foi notificada à executada, em 04 de janeiro de 2024 (…) não é, ao abrigo do instituto jurídico da cessão de créditos e do regime simplificado instituído pelo Decreto-lei n.º 42/2019, de 28 de março, relevante para a decisão do presente pleito. Termos em que, invocando-se o Douto suprimento do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, com as consequências daí decorrentes, designadamente, julgando, irreversivelmente, extemporânea a apresentação do mencionado documento, devendo o mesmo ser desentranhado dos autos, por inadmissível, e devolvido à Requerente, aqui Apelada. Porém, como sempre, V. Ex.ªs decidirão como for de JUSTIÇA.».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...49).
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objeto do recurso.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se deve ser admitido, ou não, o documento junto em 3/05/2024 (carta de notificação à executada da cessão de créditos).
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III. Fundamentos
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidas),
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IV. Fundamentação de direito
A fim de delimitarmos com rigor a questão a decidir no presente recurso – malgrado a extensão das alegações da apelação e as diversas incidências processuais narradas no relatório –, importa ter presente que está unicamente em discussão a admissibilidade do documento apresentado, pela requerente, com o requerimento de 5/03/2024, que corporiza a alegada carta de notificação à executada da cessão de crédito, efectivada em 4 de janeiro de 2024.
Atentas as conclusões da apelação, impor-se-á aferir da extemporaneidade da junção desse documento e da correspetiva alegação fáctica que a parte se propõe provar, assim como da violação do princípio do dispositivo e do inquisitório e, por último, da irrelevância/impertinência do documento apresentado.
Para tanto, mostra-se necessário tomar em consideração o regime jurídico do procedimento simplificado de habilitação de cessionário estabelecido no Dec. Lei n.º 42/2019, de 21 de março.
Na verdade, não oferece dúvidas que o requerimento apresentado pela sociedade «EMP01....», na sequência do qual recaiu a decisão recorrida, configura um requerimento para a substituição processual do exequente, ao abrigo do que determina o Dec. Lei n.º 42/2019.
Do preâmbulo desse diploma legal decorre que: “(…) O presente decreto-lei corporiza uma das medidas aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/2017, de 8 de junho, no âmbito daquele Programa [Programa Capitalizar], com vista a melhorar os processos e procedimentos conexos com as operações de cessão de créditos em massa, com recurso aos meios tecnológicos apropriados. A agilização do mercado no que toca à transação de carteiras de crédito contribui significativamente para a melhoria das condições de financiamento das empresas e para a redução dos níveis de créditos não produtivos. Cria-se, assim, um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas (…)”.
É manifesto ter sido intenção do legislador criar um regime simplificado para cessão de créditos em massa, o que, de resto, é confirmado pelo art. 1º do mencionado Dec. Lei, com a epígrafe “Objecto”, que determina: “O presente decreto-lei estabelece um regime simplificado para a cessão de créditos em massa”.
Segundo a definição dada pelo art. 2º, “[c]onsidera-se cessão de créditos em massa aquela em que o cessionário seja uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos sempre que o preço de alienação global dos créditos a ceder seja, no mínimo, de (euro) 50 000,00, e a carteira seja composta por, pelo menos, 50 créditos distintos”.
Nos termos do art. 3.º (“Habilitação legal do cessionário”):
«1 - O cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão. 2 - Para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil. 3 - O cedente deve informar o cessionário sobre quaisquer causas que sejam instauradas contra si respeitantes a certo crédito cedido nos termos do presente decreto-lei, no prazo máximo de cinco dias após a sua citação».
Assim, na cessão de créditos em massa não é preciso deduzir incidente de habilitação de cessionário, nos termos do art. 356º, n.º 1, do CPC, para substituir processualmente o anterior credor/exequente, não havendo assim lugar à notificação do devedor para contestar, de acordo com a alínea a) daquele preceito.
Basta o cessionário juntar aos autos a cópia do contrato de cessão de créditos e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial.
Não haverá lugar a autuação de apenso, nem ao pagamento de taxa de justiça por desencadeamento de incidente de habilitação[1].
O juiz, quando muito, determina que seja tida em conta a modificação subjetiva operada por força da lei e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial[2].
Esta forma simples e célere proporcionada pelo legislador para fazer operar nos processos as transmissões de crédito efetuadas em grande escala adequa-se, afinal, ao direito substantivo, que não cria particulares dificuldades à eficácia da cessão de créditos perante o devedor (cfr. arts 577.º, 578.º e 583.º do CC)[3].
Nos referidos termos, é de concluir que o Decreto-Lei n.º 42/2019, dispensou doravante, e no restrito âmbito das entidades e operações nele previstas, qualquer incidente de habilitação de cessionário, não consagrando apenas a simplificação do previamente instituído no Código de Processo Civil[4].
Como se explicitou no Ac. da RC de 4/06/2024 (relator Fernando Monteiro), in www.dgsi.pt., “[s]e a lei dispensou o incidente e se se basta com a junção da cópia da cessão, podemos tirar as seguintes ilações: Embora notificada da junção do documento, a parte contrária não é notificada para deduzir oposição; A qualquer momento, salvo caso de extinção do processo, o documento da cessão pode ser junto; Não é discutida a validade da cessão, conferindo-se apenas se está em causa uma cessão de créditos em massa. Admitir-se-á, no limite, a constatação de ostensiva violação formal na contratação”.
De qualquer modo, como nos diz o Ac. da RL de 30/11/2022 (relator Adeodato Brotas), in www.dgsi.pt., “o executado/devedor, se pretendesse impugnar a validade do ato de cessão de créditos ou invocar que a cessão ocorreu para tornar mais difícil a sua posição processual, sempre poderia fazê-lo através de incidente em que suscitasse esses fundamentos. De contrário, poderíamos estar perante a impossibilidade do exercício do contraditório, enquanto elemento estrutural do processo equitativo, é um princípio fundamental do direito adjectivo, consagrado na Constituição (art.º 20.º n.º s 1 e 4) e na lei ordinária (art.º 3.º do CPC)”[5].
Concretizando o caso, verifica-se que, tendo sido requerida a habilitação de cessionário, a executada apresentou contestação, concluindo pela improcedência dessa pretensão.
Como fundamento da impugnação deduzida invocou: i) desconhecer a autenticidade do denominado Contrato de Cessão de Créditos, alegadamente, celebrado entre a Requerente e a Requerida, Banco 1..., quer quanto ao seu teor quer quanto às assinaturas nele apostas; ii) desconhecer a legitimidade e os poderes para o acto de quem o assina em representação da Requerente e da Requerida, Banco 1...; iii) o documento junto não comprovar a invocada cessão de créditos, uma vez que do mesmo não consta a identificação concreta dos créditos cedidos, designadamente, no que concerne ao alegado crédito sobre a ora executada; iv) não se mostrar evidenciado que a alegada cessão de créditos tenha produzido efeitos em relação à executada, porquanto esta nunca foi notificada de qualquer cessão de créditos entre a Requerente e a Requerida, Banco 1... – Sucursal em Portugal, nos termos da imposição contemplada no artigo 583.º, do Código Civil.
Ulteriormente, a requerente apresentou resposta, reiterando o teor do requerimento inicial e requerendo ao Tribunal a admissão da junção de um novo documento, merecendo essa junção nova oposição por parte da requerida.
Subsequentemente, e na decorrência da prolação do despacho que agendou uma tentativa de conciliação e determinou à requerente a exibição nessa diligência do original do contrato de cessão celebrado a fim de ser examinado pela executada, veio aquela dar conhecimento que o contrato foi assinado digitalmente através de uma plataforma electrónica certificada para o efeito, mais esclarecendo que «a cessão foi notificada à executada, em 04 de janeiro de 2024», conforme comprovativo da carta de notificação cuja junção requereu.
E foi precisamente a admissão desse documento – e a correspetiva alegação – que mereceu veemente oposição por parte da recorrente.
Num plano estritamente formal, dir-se-ia assistir razão à recorrente, posto que o documento em causa poderia ter sido apresentado com o articulado da resposta à contestação, visto que neste a executada invocou nunca ter sido notificada da cessão de créditos.
Para tanto a recorrente apega-se estritamente à letra dos arts. 552º, n.º 1, al. d), 572º, al. c), 574º, n.º 1 a 3 e 588º, n.ºs 1 e 2, do CPC, bem como dos arts. 293º, n.º 1 e 356º, al. b), do mesmo diploma legal.
Com o devido respeito, fazemos uma leitura diferente da situação concreta em face do quadro legal.
Com efeito, como bem assinala a recorrente, o «Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, veio estabelecer um regime simplificado para a cessão de créditos em massa», sendo que «as principais alterações trazidas por este diploma legal prendem-se, por um lado, com a dispensa de habilitação processual dos adquirentes no âmbito dos processos em que os créditos estejam a ser exigidos e, por outro, com a simplificação das operações de registo associadas à cessão»; «[u]ma das principais regras que resulta daquele diploma legal é que quanto à habilitação do cessionário, este último considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objecto de cessão, competindo-lhe, somente, juntar ao processo, para o efeito, cópia do contrato de cessão de créditos»; pelo que «[n]ão será, assim, necessário deduzir um incidente de habilitação processual», igualmente é de aceitar que a «simples junção da cópia do contrato de cessão não exime o requerente do ónus da prova dos factos tendentes a demonstrar a existência do contrato de cessão e o seu objecto relevante», «[n]em invalida que [o] executado/devedor possa impugnar a validade do acto de cessão de créditos ou invocar que a cessão ocorreu para tornar mais difícil a sua posição processual», sendo que, como vimos, a jurisprudência tem propugnado que poderá “fazê-lo através de incidente em que suscite esses fundamentos”[6].
Considerando o procedimento simplificado de habilitação de cessionário, o qual dispensa, para a habilitação processual atinente à cessão de créditos aí prevista, a dedução do incidente de habilitação previsto no art. 356.º do CPC e no caso de ser deduzido pelo cessionário bastar-se a lei com o ónus imposto de juntar ao processo cópia do contrato de cessão (n.º 2 do art. 3.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 42/2019), mostrando-se o exercício do contraditório atenuado – embora não expurgado, como se disse –, não se impõe o recurso ao rígido regime estatuído no art. 293º, n.º 1, do CPC.
Tal como o documento da cessão pode ser junto em qualquer momento, salvo caso de extinção do processo, não repugna que a carta comprovativa da notificação da cessão de créditos possa igualmente ser junta em momento posterior ao da dedução do requerimento inicial ou, mesmo, da apresentação da resposta.
No caso, tal apresentação deu-se na sequência da prolação do despacho de agendamento da tentativa de conciliação, não se vislumbrando que daí tenha resultado qualquer prejuízo, quer de ordem formal como substantiva, para a defesa da requerida/recorrente. Aliás, esta não deixou atempadamente de impugnar o teor do referido documento, bem como a alegação que lhe subjaz – de que a cessão de crédito foi notificada à executada em 04 de janeiro de 2024 –, pelo que a defesa dos seus direitos está devidamente acautelada.
Importa também não olvidar que a questão atinente à (falta de) eficácia da cessão de créditos em relação à devedora apenas surgiu com a contestação apresentada pela requerida/recorrente, pelo que não se impunha à requerente/recorrida a alegação dessa facticidade e a junção do respetivo documento comprovativo com o requerimento inicial de habilitação.
Daí que se subscreva a afirmação contida na decisão recorrida de o documento em causa poder (vir a) ser relevante para a demonstração de uma questão apenas suscitada no decurso da tramitação dos autos.
Donde se não conclui pela extemporaneidade do aludido documento.
Como segundo argumento do recurso apresentado erige a recorrente a violação, na decisão recorrida, dos princípios do dispositivo e do inquisitório, posto que «vir, após o articulado inicial, em requerimentos anómalos e sucessivos – para um incidente processual simples e que se quer célere – e até o Tribunal, escudado no princípio do inquisitório, introduzir novos documentos é remendar a notória ausência de prova e, por outro lado, (…), transferir para o Tribunal o ónus da sua própria incúria processual».
Dito por outras palavras, a apelante acusa a apelada de negligência grosseira quanto ao ónus de apresentação tempestiva de documentos e imputa ao Tribunal recorrido, ao ter-se socorrido do disposto no art. 411º do CPC, a descaracterização e invalidação do princípio base do impulso processual que compete às partes, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
Vejamos.
Como ponto prévio dir-se-á que não se tendo concluído pela extemporaneidade do documento apresentado, poder-se-ia concluir que a menção feita na decisão recorrida ao princípio do inquisitório para admitir o referido meio de prova estaria prejudicada ou, pelo menos, revelar-se-ia dispensável.
Sem embargo, não deixaremos de analisar, ainda que brevemente, a questão colocada pela recorrente sob esse prisma.
Atento o princípio do inquisitório, expressamente consagrado no art. 411.º do CPC, “[i]ncumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Sem prejuízo de, em obediência ao princípio do dipositivo estabelecido no n.º 1 do art. 5º do CPC, caber às partes o ónus de invocar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, o princípio do inquisitório impõe ao juiz, quanto àqueles factos e aos demais de que lhe é lícito conhecer, o poder/dever de diligenciar no sentido da descoberta da verdade eda justa composição do litígio.
O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder-dever de procura da verdade material, dentro do âmbito limitado pelo objeto do processo[7]. Outorga-se ao juiz um poder para garantir que este reúna toda a prova necessária à formação completa e esclarecida da sua convicção[8].
Os poderes probatórios do juiz são-lhe conferidos pela lei processual tendo em vista uma finalidade concreta que o art. 411º do CPC refere expressamente: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. Por outras palavras, o juiz deverá providenciar pela obtenção da prova necessária à formação da sua convicção quanto aos factos que lhe é lícito conhecer e que possam ter utilidade para a solução da controvérsia suscitada no processo[9].
O mesmo é dizer que o princípio do inquisitório onera o juiz com um poder vinculado ou um poder-dever, que não um poder discricionário[10].
Por assim ser, a partir do momento em que se aperceba de que a realização de certa diligência probatória é necessária para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, o juiz não tem o poder discricionário de a ordenar ou não; está, sim, vinculado à prática do ato[11].
O referido princípio aponta para uma conceção do processo em que a investigação da verdade material é também da responsabilidade do juiz, constituindo, dessa forma, uma compressão ao princípio do dispositivo[12].
Com efeito, o art. 411º do CPC postula “um critério de plenitude do material probatório no sentido de que todas as provas relevantes devem ser carreadas para o processo, por iniciativa das partes ou, se necessário for, por iniciativa do juiz (…). O objetivo final da atividade do juiz é, assim, a descoberta da realidade dos factos na medida em que tal seja possível”[13].
Assim, a lei processual atribui ao juiz poderes ao nível da determinação das diligências probatórias necessárias ao apuramento da verdade ou da junção ao processo de meios de prova não indicados pelas partes quanto aos factos que lhe é lícito conhecer (enunciados no art. 5º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Esta regra é transversal ao momento instrutório da ação e vale para qualquer um dos meios de prova que a lei enuncia[14].
O princípio do inquisitório, porém, coexiste com outros igualmente consagrados no nosso CPC, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova”[15].
Considerando que sobre as partes continua a incumbir a iniciativa da prova, “o inquisitório deve orientar-se por um padrão mínimo de objetividade, condição para ser exigível que o juiz adopte certa conduta em matéria instrutória. Para isso muito contribuirá o zelo probatório das partes”[16].
O que significa que o princípio do inquisitório não afasta a auto-responsabilidade das partes quanto à obrigação de indicarem, tempestivamente nos momentos processuais próprios, os meios de prova[17].
Deste modo, caso a parte tenha omitido o cumprimento dos seus deveres processuais, concretamente na apresentação dos requerimentos probatórios no tempo adjetivamente oportuno, o juiz só deverá exercitar o poder-dever conferido pelo art. 411º do CPC quando resultar patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos ou da produção de outras provas a necessidade da produção de um outro meio de prova (como sucede, no art. 526º do CPC, com a inquirição de pessoa não indicada como testemunha), manifestando‑se tal necessidade em termos tais que permitam concluir que a inevitabilidade da produção desse meio de prova ocorreria mesmo que a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório. A não ser assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais específicos na medida em que a parte, subsidiariamente, poderia invocar o regime do art. 411º do CPC (e do art. 526º do CPC)[18].
Daí o requisito da relevância do meio de prova para o esclarecimento da verdade e a apreciação do tema da prova controvertido, não bastando a mera vontade da parte na sua produção.
A negligência das partes, só por si, não é suficiente para estreitar a margem de manobra do juiz que queira mais bem investigar os factos, determinando, por exemplo, a produção da prova no exercício de um poder-dever que a lei lhe atribui para satisfazer o interesse público da descoberta da verdade e da realização da justiça[19].
Em suma,como sublinha Paulo Pimenta[20], o “equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção de duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”.
À luz do aludido princípio, o tribunal tem “uma margem relativamente generosa de actuação, na busca da prova necessária ao alcance do conhecimento (prático) da verdade dos factos submetidos a juízo”. E se há, aqui, “uma certa assimetria entre as partes e o juiz, no sentido em que este pode, por regra, promover diligências instrutórias tendo por base, apenas, a conveniência das mesmas, enquanto que a parte não pode, sem mais, determinar o juiz a recorrer a elas”, “[t]al diferença na posição destes sujeitos processuais não deve surpreender e espelha, de certo modo, a (…) diferente natureza jurídica do direito da parte à prova e do poder-dever do juiz na investigação dos factos”, sublinhando-se, mais uma vez, que o essencial, no que toca ao último, é não esquecer que, “por força deste, o juiz deve diligenciar pela prova em função do seu juízo quanto à respectiva necessidade”, sendo o modo de surgimento mais natural do uso dos poderes instrutórios do juiz “desligado da vontade das partes, eventualmente até contra essa mesma vontade”[21].
Feitos estes considerandos teóricos, importa relembrar que, na oposição apresentada à cessão de créditos, a ora recorrente disse desconhecer o alegado contrato de cessão de créditos, celebrado entre a Requerente e a Requerida, Banco 1..., cujo teor nunca lhe foi comunicado e do qual apenas teve conhecimento através da notificação para a habilitação do adquirente ou cessionário.
Mais aduziu que a alegada cessão de créditos não produziu efeitos em relação a si, porquanto – reiterou – nunca foi notificada de qualquer cessão de créditos entre a Requerente e a Requerida, Banco 1..., nos termos da imposição contemplada no art. 583.º do Código Civil.
Na resposta apresentada, a requerente alegou que a Requerida foi notificada da cessão de créditos no âmbito da própria ação executiva, o que inviabilizaria, e até por força da contestação deduzida pela própria requerida, a alegação de uma suposta ineficácia da cessão em apreço por falta de conhecimento da mesma.
Ulteriormente, a requerente veio esclarecer nos autos que «a cessão foi notificada à executada, em 04 de janeiro de 2024», tendo requerido a junção aos autos da respetiva carta comprovativa da notificação.
Como é sabido, a pertinência de determinado meio de prova decorrerá da circunstância de o mesmo se destinar à demonstração de factos necessitados de prova. Por outras palavras, a relevância dos meios de prova só pode aferir-se pela possibilidade desse meio probatório relevar para a formação da convicção do julgador relativamente aos factos que careçam de prova.
Isto porque o poder-dever, conferido/imposto ao Tribunal pelos arts. 411º do CPC, pressupõe, por exemplo, que o documento seja (objetivamente) necessária ao esclarecimento da verdade. O mesmo é dizer que, desde que esse concreto meio probatório satisfaça a condição de ser necessário, o tribunal pode (e deve) ordená-lo, não sendo este poder discricionário.
Em contraponto, nos termos do art. 443º, n.º 1, do CPC, o juiz não deve admitir a junção de documentos que sejam impertinentes ou desnecessários.
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Cfr. Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2018, Almedina, pp. 511/512:
«Documento impertinente é o que diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da ação. De um modo abrangente, pode afirmar-se que um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de facto importante para apreciar a fiabilidade de outro meio de prova. (…) São desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar do processo documento de igual ou superior relevo.»
Ora, no caso sub júdice, tendo sido invocada a falta de eficácia da cessão de créditos em relação à requerida, por o referido contrato de cessão jamais lhe ter sido notificado, a admissão do referido documento visa precisamente auxiliar o Tribunal “a quo” na averiguação e apuramento da facticidade que subjaz à afirmação/infirmação daquela alegação.
Deste modo, é inequívoco que a indicada prova documental, sem embargo da demais prova a produzir, é suscetível de revestir uma relevância essencial com vista à formação da convicção do julgador quanto à perceção, averiguação e apuramento da questão atinente à falta de eficácia da cessão de créditos.
Por fim, também não se vislumbra em que termos a atividade oficiosa do tribunal possa destinar-se a suprir a falta de diligência das partes no tocante à indicação dos meios de prova.
Como vimos, o documento foi apresentado pela própria parte, como suporte do esclarecimento por si prestado quanto à notificação extrajudicial à requerida do denominado “Contrato de Cessão de Créditos”.
Aliás, mesmo que não tivesse sido espontaneamente apresentado pela parte, conquanto fosse dada notícia nos autos de ter sido efetivada a referida notificação extrajudicial, sempre se imporia ao Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 411º do CPC, providenciar para que a parte carreasse aos autos o respetivo documento comprovativo.
Decisivo ao sucesso da pretensão probatória da parte é que o tribunal se convença fundadamente de que a diligência a promover é absolutamente necessária ao esclarecimento dos factos e que esta necessidade se impõe, por si, desligada da vontade que a parte manifestou na sua realização. Tal vontade é meramente acidental, pois que – tal como no caso dos autos – não revelou autonomamente para a decisão do juiz.
E, como tem sido salientado[22], a amplitude dos poderes/deveres do juiz, decorrentes do princípio do inquisitório impõe que o julgador admita, por exemplo, um requerimento probatório ainda que apresentado intempestivamente sempre que existam fortes razões para concluir que os meios de prova em causa podem contribuir decisivamente para a apreciação do mérito das pretensões.
Em suma, sempre seria de concluir estarem demonstrados os requisitos do uso de poderes instrutórios, tais como: i) a admissibilidade do meio de prova; ii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; iii); a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer[23].
Assim, mesmo que se tivesse concluído pela extemporaneidade da apresentação do referido meio de prova, sempre seria de concluir que o mesmo é pertinente e indispensável à demonstração/infirmação daquela facticidade, sendo, por conseguinte, essencial ou imprescindível à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa.
Termos em que improcede este fundamento da apelação.
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Por fim, defende a recorrente que, ao contrário do consignado no despacho recorrido, o aludido documento – que, alegadamente, visa comprovar que a cessão de créditos foi notificada à executada em 04 de janeiro de 2024 – não é, ao abrigo do instituto jurídico da cessão de créditos e do regime simplificado instituído pelo Decreto-lei n.º 42/2019, de 28 de março, relevante para a decisão do presente pleito.
A resposta à questão enunciada depreende-se já da posição adoptada quanto ao ponto antecedente, onde se explicitaram todas as incidências fáctico-processuais atinentes à invocada questão da falta de eficácia da cessão de créditos em relação à devedora, bem como da pertinência do meio probatório em apreço.
Aliás, a posição ora expressa pela recorrente não deixa de estar em frontal contradição com a posição processual por si expressamente assumida no articulado da contestação, na medida em que, a fim de se fazer valer da falta de eficácia da alegada cessão de créditos, alegou – repetidamente – jamais ter sido notificada de qualquer cessão de créditos entre a Requerente e a Requerida, Banco 1..., nos termos da imposição contemplada no art. 583.º do Código Civil.
A ser como a recorrente propugna – e tendo em conta o dever de atuação de boa fé que compete às partes, estando-lhes vedado deduzir oposição cuja falta de fundamento não devam ignorar (arts. 8º e 542º, n.º 2, al. a), do CPC) –, fica por explicar a razão pela qual invocou essa questão como fundamento da sua defesa, posto, como agora defende, a mesma ser irrelevante para a discussão da causa.
Ademais, a ser o referido documento impertinente e inócuo para a discussão da causa, fica também por explicar a acérrima oposição que a junção do referido documento mereceu – e merece – por parte da recorrente.
Em suma, o indicado meio de prova é pertinente e indispensável à infirmação daquela questão invocada na contestação, sendo, por conseguinte, essencial ou imprescindível à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa.
A decisão recorrida merece, assim, confirmação, improcedendo as conclusões da apelante.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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VI. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527.º do CPC).
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Guimarães, 30 de janeiro de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
António Beça Pereira (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)
[1] Cfr. Ac. da RG de 18/03/2021 (relatora Maria João Matos), in www.dgsi.pt. [2] Cfr. Ac. da RL de 21/10/2021 (relatora Maria do Céu Silva), in www.dgsi.pt; e ainda blog ippc, Jurisprudência 2021 (209) de 01/06/2022. [3] Cfr. Ac. da RL de 09/09/2021 (relator Jorge Leal), in www.dgsi.pt. [4] Cfr. Ac. da RG de 18/03/2021 (relatora Maria João Matos), in www.dgsi.pt. [5] Cfr., no mesmo sentido, Ac. da RL de 09/09/2021 (relator Jorge Leal), in www.dgsi.pt. [6] Cfr., Acs. da RL de 09/09/2021 (relator Jorge Leal) e de 30/11/2022 (relator Adeodato Brotas), in www.dgsi.pt. [7] Cfr. Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Andrade e Castro, Elementos de Direito Processual Civil - Teoria Geral – Princípios - Pressupostos, 2ª ed., 2018, UCEP, pp. 151. [8] Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, p. 273. [9] Cfr. Nuno Lemos Jorge, Os problemas instrutórios do juiz: alguns problemas, Julgar, n.º 3, Setembro/dezembro 2007, Coimbra Editora, p. 65. [10] Cfr. Luís Lameiras, “O princípio do Inquisitório: um poder-dever ou um poder discricionário do juiz?”, II Colóquio de Processo Civil, 2016, Almedina, p. 30. [11] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, 2014, Almedina, p. 363 e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 32. [12] Cfr. Rita Lobo Xavier e Outros, obra citada, pp. 151. [13] Cfr., Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., 2017, Almedina, p. 154. [14] Cfr. Luís Lameiras, obra citada, p. 29. [15] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 484. [16] Cfr. Paulo Pimenta, obra citada, p. 372. [17] Cfr., sobre a articulação entre o princípio da autorresponsabilidade das partes e do inquisitório, Ac. da RC de 6/06/2017 (relator Arlindo Oliveira), Ac. da RG de 23/05/2019 (relatora Conceição Sampaio), Ac. da RG de 20/03/2018 (relator João Diogo Rodrigues), Ac. da RP de 09/02/2015 (relator João Nunes), Ac. da RL de 6/06/2019 (relatora Laurinda Gemas) e Ac. da RL de 11/07/2019 (relator Luís Filipe Sousa), todos disponíveis in www.dgsi.pt. [18] Cfr., versando,em concreto, a prova testemunhal,Luís Filipe Sousa, Prova testemunhal,p. 275e Ac. da RL de 21/02/2019 (relatora Gabriela Cunha Rodrigues), in www.dgsi.pt. [19] Cfr., Ac. da RP de 2/05/2013 (relator José Araújo Barros) e Ac. da RL de 21/02/2019 (relatora Gabriela Cunha Rodrigues), in www.dgsi.pt. [20] Cfr. Paulo Pimenta, obra citada, pp. 372/373 (nota 871). [21] Cfr. Lemos Jorge, estudo citado, pp. 74 e 75 e o Ac. desta Relação de 12/11/2020 (relatora Margarida Sousa), in www.dgsi.pt.. [22] Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 69. [23] Cfr. Lemos Jorge, Estudo citado, pp. 74 e 75.