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EXAME CRÍTICO DA PROVA
NULIDADE DA SENTENÇA
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Sumário
I - O exame crítico da prova não se basta com a apreciação das provas, uma a uma, isoladamente, de forma segmentada. Do juiz exige-se mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição. II - O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência. III - É precisamente nas situações em que não há prova direta, mas existe prova indiciária, que intervêm decisivamente a inteligência e a lógica do juiz. Primeiramente, a inteligência que associa o facto/indício a uma máxima da experiência ou a uma regra científica. Depois intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória. A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. IV - A sentença, em termos de fundamentação, tem de ser autossuficiente e o juízo probatório, incluindo sobre a prova documental, tem de ficar expresso, para que possamos apreender qual o raciocínio seguido pelo julgador que lhe permitiu extrair as ilações/Inferências feitas. E isto não se retira da sentença recorrida e, por isso, procede a arguição de nulidade da decisão, por manifesta insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, não se vislumbrando como supri-la, porquanto, até se admite a bondade do julgamento da matéria de facto, só que o Tribunal a quo deverá convencer os destinatários processuais, no dito exame crítico da prova, dessa mesma correção. V - Essa nulidade não impõe, necessariamente, o reenvio para novo julgamento, bastando-se com a sua reformulação nos termos indicados. É ao Juiz que elaborou a sentença que competirá decidir se para suprir a apontada nulidade precisa ou não de repetir o julgamento ou se ainda está na posse dos elementos que lhe permitam fazê-lo sem a tal recorrer.
Texto Integral
I – RELATÓRIO 1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de Estremoz, foi o arguido V condenado, por sentença proferida em 12 de junho de 2024, como autor material, na forma consumada de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 2, do Código Penal, em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos art.ºs 291.º, n.º 1, alínea b), e art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, assim como na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 5 meses.
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1.2. Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
“1. Vem interposto o presente recurso, da douta Sentença proferida no Processo Comum 157/21.7T9ETZ, que condenou o ora recorrente pela prática, como autor material e na forma consumada de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137º, nº 2, do Código Penal, em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, alínea b), e art, 69º, nº 1, al. c) do C. Penal, na pena de 5 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano assim como o condenou na proibição de conduzir veículos com motor por um período de 5 meses, nos termos do disposto no art. 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal. 2. Através do presente recurso pretende-se impugnar a douta decisão, não só quanto à matéria de facto dada como provada, mas também quanto às consequências jurídicas daí extraídas, considerando a decisão insuficientemente elencada e fundamentada e erradamente apreciada e julgada. 3. A articulação, a correta avaliação e valoração, o correto julgamento, o exame crítico de tudo o que resultou da discussão da causa, da prova produzida em audiência, dos demais elementos probatórios constantes dos autos e das diligências realizadas, assim como o recurso às regras da lógica, da experiência, do senso comum e da razão, a terem acontecido, impunham que o recorrido fosse absolvido pelos crimes pelos quais vinha acusado. 4. Considerou o Tribunal a quo que o arguido, que seguia atrás do motociclo, iniciou a ultrapassagem ainda em local proibido, por existir traço contínuo, tendo o motociclo virado à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços, onde residia, não tendo o arguido conseguido evitar a colisão, excluindo, desde logo, a versão dos factos apresentada pelo arguido, que referiu que não ia a ultrapassar o motociclo, sendo que este seguia encostado à direita, do lado de dentro da berma quando, de repente, e de forma repentina virou tudo à esquerda. 5. A douta sentença evidencia o vício de insuficiência de fundamentação para a decisão da matéria de facto, previsto no artigo 410º, nº2, a) do CPP e, também, a violação das garantias de defesa em processo penal previstas no artigo 32º da CRP, nomeadamente a violação do princípio in dubio pro reo, na determinação da norma aplicável, pois a dúvida sobre os pressupostos da decisão a proferir deveriam ter sido valorados a favor da pessoa visada, na medida que a condenação não assenta em qualquer facto seguro e a prova tem de ir para além da dúvida razoável. 6. Nenhuma prova direta há sobre os factos imputados ao arguido: não há nenhuma testemunha ocular dos factos, sendo que nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou a dinâmica do acidente, nem o embate, apenas sabendo o que se tinha passado no local após o embate, quando o ofendido já estava ferido no chão. 7. Refere a sentença que o Tribunal fica sem saber se a vítima sinalizou a manobra de mudança de direção à esquerda. O tipo de motociclo não tem sinal de piscas, devendo as manobras ser sinalizadas pelo motociclista com os braços, o que não sabemos se efetivamente aconteceu (…) certo é que nenhuma testemunha o presenciou. 8. Menciona ainda que para a produção do resultado morte poderá ter contribuído o tipo de capacete utilizado pela vítima (…) ficando até dúvidas sobre se o mesmo o usava apertado no momento da condução. 9. O Tribunal a quo formou a sua convicção nos depoimentos da testemunha J, conjugados com a prova documental referida na douta sentença, sendo que, com o devido respeito, o depoimento dessa testemunha bem como o relatório final da investigação, assinado por essa mesma testemunha, evidenciam simples hipóteses, insuscetíveis para só por si (por se tratar de meras conjeturas) alicerçarem o juízo seguro subjacente a uma condenação. 10. Através da prova produzida, não se consegue determinar, com precisão, como o Tribunal a quo fez, que a causa do embate se tenha devido a uma ultrapassagem do arguido: o acidente e o embate ocorreram a alguns metros depois do final do traço contínuo, da proibição de ultrapassagem. 11. As marcas de travagem surgem no traço descontínuo, e as mesmas demonstram uma ligeira inclinação da direita para a esquerda, o que pode perfeitamente ser consentâneo com o momento em que o arguido saiu da faixa da direita para entrar na faixa da esquerda. 12. Considera o recorrente que foram incorretamente julgados os pontos de facto constantes de 8 a 12, 19 e 23 dos factos provados e que os mesmos deveriam ser eliminados e passar a constar dos factos não provados, por não ter sido apresentada prova nesse sentido. 13. No que se reporta ao facto provado em 8., nenhuma das testemunhas arroladas no processo afirmou que o arguido tivesse abrandado a marcha, aproximando-se do limite esquerdo do eixo da via e tivesse iniciado a manobra de mudança de direção à esquerda pelo que, não tendo sido feita prova nesse sentido a mesma não deveria ter sido considerada nos factos provados (vide declarações das testemunhas, A (7:47m) e C (11.53 minutos). 14. Também não se pode dar como provado que o arguido tivesse visto que o ofendido pretendia virar à esquerda no entroncamento e ainda assim tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem pela esquerda, sem aguardar que o ciclomotor concluísse a manobra (factos 9, 10 e 11) pois não houve testemunhas oculares que tivessem atestado esses factos e a própria decisão fundamenta existirem dúvidas se a vítima sinalizou a manobra de direção à esquerda, sendo que, além do mais, o arguido referiu claramente e por inúmeras vezes nas suas declarações que não vinha a ultrapassar nem existia, da sua parte, qualquer intenção de o fazer e, em relação ao condutor do ciclomotor, que “ele vinha naquela linha onde as motorizadas andam sempre, na linha da berma (11:10m)”; “eu acho que o senhor nem se apercebeu de mim, o senhor nem se apercebeu que vinha um carro atrás” (13:17m); “ele virou de uma só vez” (para entrar no lado esquerdo) (13:50m). 15. De igual modo, resulta dos factos provados descritos em 12. que a vítima, após o embate, foi projetada no ar cerca de 22.20 metros para a frente do veículo, contudo, da prova produzida em audiência de julgamento resulta precisamente o contrário, ou seja, o arguido não foi projetado no ar (vide declarações das testemunhas A (4:24m) e C (7:03m), pelo que tal facto dado como provado deverá ser corrigido retirando-se do mesmo a menção “foi projetada no ar”. 16. Também não podem ser dados como provados os pontos 19 e 23 da douta sentença, na medida que o arguido não se apercebeu que o condutor do motociclo iria virar à esquerda nem resultou da prova testemunhal que a vítima tivesse dado quaisquer indicações de que iria ser efetuada essa manobra (vide declarações do arguido, aos minutos 11:10, 13:17 e 13:50; da testemunha A, aos 7:43m e da testemunha C, aos 50:10m até ao fim). 17. Nem que o arguido tivesse grosseiramente violado as regras da circulação rodoviária, não obedecendo aos sinais quer no pavimento quer na sinalização vertical, tanto que o mesmo se afastou, já no traçado descontínuo, o mais possível para a esquerda. 18. O Tribunal a quo para dar como provados os factos relativos à dinâmica do acidente, socorreu-se, para além do depoimento da testemunha J (testemunha da GNR, o qual não presenciou o acidente e foi das últimas testemunhas a chegar ao local, já após a GNR local haver tomado conta da ocorrência e a vítima haver sido transportada para o Hospital bem como a própria motorizada haver sido retirada da zona onde ocorreu o acidente), da prova documental referenciada a fls. 9 da douta sentença, em especial nos croquis do acidente de viação, de fls. 39-40 e 176 a 176. 19. Sucede que cada croqui, elaborado por entidades diferentes, identifica pontos diferentes como sendo o local do embate, não tendo sido apurado, efetivamente, o local exato onde o embate teve lugar. 20. Porém, dúvidas não existem de que o mesmo ocorreu a alguns metros após a proibição de ultrapassagem (cerca de 8 metros), ou seja, em zona de circulação permitida. 21. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não valorizou, como deveria, as declarações do arguido e a existência de dúvidas no que se refere ao facto de a vítima não usar o capacete apertado no momento da condução bem como a circunstância de não ter sinalizado a manobra de mudança de direção. 22. Devem assim constar dos factos não provados os seguintes: - não se provou que a vítima usava o capacete apertado no momento da condução e - não se provou que a vítima, na aproximação ao entroncamento, se tivesse aproximado do limite esquerdo do eixo da via e tivesse sinalizado a manobra de mudança de direção à esquerda, para o Largo da Fonte dos Cabaços. 23. Pelo que o acidente terá sido provocado pela violação do dever de cuidado exigido pela vítima e não por uma condução perigosa do arguido, que, sem nada que o antevisse, se viu perante um obstáculo à sua frente, tendo reagido da forma que o fez, para tentar evitar que os danos fossem ainda maiores. 24. Não podemos assim afirmar que existiu nexo causal entre as normas violadas e os danos ocorridos, imputando esses danos ao arguido. 25. Na sentença ficou por completar o criterioso exame da prova produzida em julgamento, relevantes para a boa decisão da causa e para uma melhor compreensão dessa condenação, pelo que a mesma é nula, nos termos prevenidos no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP. 26. Os factos supra elencados deveriam ter sido dados como não provados, face à prova produzida. Não o tendo sido, estamos perante erro de julgamento, o que vicia a douta sentença recorrida. 27. A douta sentença, com o devido respeito, enferma assim de inúmeros vícios quanto à convicção do tribunal e apreciação da prova produzida, fundamentação da mesma e aplicação do princípio da livre apreciação da prova, devendo por tal ser substituída por outra. 28. Mas, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que os factos pelos quais o arguido, ora recorrente, foi condenado e que, segundo o Tribunal a quo, consubstanciam o nexo de causalidade entre a sua conduta e o acidente ocorrido, não integram o nº 2 do art. 137º do Código Penal, pelo qual o arguido foi acusado e condenado, mas sim o nº 1. 29. A negligência grosseira implica uma especial intensificação, não só a nível da culpa, mas também ao nível do ilícito, e só se verifica perante uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-legal, o que, neste caso, de forma alguma aconteceu. 30. Atentos os motivos supra aduzidos, caso não se entendesse pela absolvição do arguido, a prova carreada para os autos sempre impunha uma medida concreta da pena mais baixa daquela que foi aplicada, nomeadamente uma pena de multa. 31. O mesmo raciocínio seria de aplicar à pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor por um período de 5 meses. 32. A sanção acessória de inibição de conduzir veículos com motor pelo período de cinco meses constante da decisão recorrida, não teve em conta, como deveria, as consequências que ora recorrente teria na sua atividade laboral, sendo excessiva e desproporcionada. 33. As exigências de prevenção geral e especial podem bastar-se, atendendo às circunstâncias pessoais e económicas do arguido, pela aplicação de uma pena acessória de inibição de conduzir por um período de 3 meses, nos termos do disposto no nº 1, al. a) do art. 69º do C. P. 34. Não obstante, ainda que se entendesse que a sanção acessória aplicada é a adequada, existem decisões judiciais que permitem que a proibição de conduzir ocorra fora do horário de trabalho.”
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1.3. Notificada da interposição do recurso, a assistente respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“A. No que respeita à matéria de facto, considera o Arguido que foram incorretamente considerados como provados os seguintes factos (“8 a 12, 19 e 23 dos factos provados”). B. Andou bem o Tribunal ao não dar credibilidade à versão propalada pelo Arguido, que é absolutamente idílica, inverosímil e retrata um cenário de verdadeira “santificação” da sua conduta enquanto condutor. C. No cenário descrito pelo Arguido, não haveria qualquer razão para que o acidente tivesse ocorrido – teria bastado ao Arguido que tivesse travado a sua viatura e, eventualmente, desviar-se um pouco para a direita, assim evitando o embate com o Sr. M que, na sua versão, estaria a deslocar-se rápida e subitamente para o lado esquerdo. D. Neste sentido, foi bastante impressivo o depoimento da testemunha J, na audiência de 30.04.2024. E. No que ora releva, explica concretamente a testemunha, entre minutos 00:38:00 a 00:41:00, que haveria plenas condições para evitar o embate com o Sr. M, atendendo às circunstâncias por si descritas quanto às específicas características da via de trânsito. F. Entre minutos 00:45:45 a 00:47:00, deixa transparecer o que acima se descreveu. Neste âmbito, a fazer fé na versão do Arguido e a acreditar-se que este conservava, como afirma, uma distância de segurança face ao Sr. M e que estava atento ao mesmo, então sempre teria condições para evitar o embate e a morte daí decorrente – o que, como sabemos, não conseguiu… G. Como tal, se não conseguiu evitar o embate, concluir-se-á – como bem concluiu o Tribunal a quo – que o Arguido não cumpriu o dever de salvaguardar a distância de segurança e não atuou no sentido de adequar a sua condução às concretas condições ali verificadas, violando os deveres que se lhe impunham. H. Refere o Arguido que nenhuma das testemunhas logrou depor, de forma concreta, sobre a dinâmica do acidente e das circunstâncias anteriores, o que não corresponde à verdade. I. Releva atentar no depoimento da testemunha A, na audiência de 07.05.2024, esclarecendo que, no momento do acidente, estava próxima do local do embate, a percorrer uma estrada a escassos metros do mesmo, asseverando que não tinha visibilidade para o local do embate mas que, dada a pouca distância, conseguiu ouvir a dinâmica do mesmo. J. A minutos 00:01:30 e entre minutos 00:10:35 a 00:10:55 do seu depoimento, começa por referir que, no local onde estava, conseguiu ouvir o motociclo do Sr. M a abrandar, descredibilizando o Arguido. K. No fim do seu depoimento, entre minutos 00:14:20 e 00:14:30, a instâncias da Mandatária do Arguido, mais refere não ter ouvido o Arguido a buzinar a sua viatura, conforme o mesmo alega. L. Este depoimento, ainda que curto, é de manifesta relevância ao referir que, antes do embate, o Sr. M já estava a abrandar o seu motociclo para iniciar a manobra de viragem à esquerda, o que, novamente, desmente a versão do Arguido. M. Segundo o Arguido, a viragem do Sr. M para a esquerda teria sido súbita, repentina e sem qualquer desaceleração ou nenhum outro sinal de viragem. N. Ora, tal versão é inteiramente contraditória com o descrito por esta última testemunha, que atesta e explica com clareza ter ouvido o abrandamento do motociclo, o que, certamente, deveria ter sido percecionado pelo Arguido e permitido ao mesmo antecipar a manobra realizado pelo condutor que o mesmo acabou por vitimar. O. Nos autos, existe ampla prova e demonstração de que o Arguido efetivamente realizou uma manobra de ultrapassagem manifestamente proibida e, ademais, que essa ultrapassagem não terá sido, ao contrário do que alegou o Arguido, uma qualquer “manobra de recurso” impulsionada pela suposta negligência do Sr. M. P. Neste sentido, advogam claramente as provas vertidas nos croquis descritivos da dinâmica do acidente e os relatórios explicativos que estes integram, bem como os relatórios finais elaborados pelos Militares da GNR J e C, por sua vez testemunhas com um enorme relevo nesta sede. Q. Ao contrário do que alega o Arguido, qualquer uma destas testemunhas teve um depoimento muito claro e sincero quanto à dinâmica do acidente. Teceram argumentos e constatações factuais perfeitamente cognoscíveis e rigorosas, apoiadas na sua experiência, conhecimento e apreciação dos elementos probatórios por si analisados com cuidado e rigor, não se limitando às supostas “conjeturas” que o Arguido alega sem qualquer tipo de fundamento. R. Releva ter em linha de conta o depoimento da testemunha J, na audiência de 30.04.2024 e que, perante instâncias quer da Mandatária do Arguido, quer do Mandatário da Demandada, depós de maneira firme e confirmativa do teor do seu relatório final em que considerava o acidente ocorrido como sendo derivado de uma conduta culposa e evitável do Arguido. S. No início do seu depoimento, entre minutos 00:05:15 e 00:08:20, refere impressivamente que era impossível que a manobra do Arguido tenha sido outra coisa senão uma ultrapassagem proibida, reforçando-o entre minutos 00:17:15 e 00:18:15 do seu depoimento. T. Não se antevê, nestes arestos, qualquer conjetura ou hipótese teórica por parte da testemunha em apreço. Conjetura hipotética e inverosímil será, isso sim, a possibilidade aventada pelo Arguido e Demandada de que a ultrapassagem só teria ocorrido já após a zona de permissão – o que a testemunha, com base num juízo técnico, considera fundadamente impossível. U. Inexiste, na decisão a quo, um qualquer vício de insuficiência da prova produzida e obtida em audiência para a comprovação da matéria de facto tida por provada, do mesmo modo que, ao contrário do alegado no recurso, tampouco se verifica uma qualquer nulidade de sentença, muito menos que resulte de uma pretensa falta de fundamentação. V. A sentença é muito clara e concreta ao demonstrar quais os meios de prova de que se socorreu para dar cada facto como concretamente demonstrado, e essa análise, repita-se, baseia-se no amplo e completo acervo documental do processo, auxiliado e complementado pelos depoimentos das testemunhas, entre os quais aqueles que acima se citaram. W. Resta concluir pela total improcedência do recurso apresentado pelo Arguido desde logo no que respeita à pretensa impugnação da matéria factual concreta e especificamente impugnada nas alegações. X. Quanto ao Ponto 8 da matéria de facto, o abrandamento resulta comprovado de forma cabal pelo depoimento da testemunha A e não é desmentido, de forma alguma, pela testemunha C. Por outro lado, a mudança de direção para a esquerda, além de comprovada pela prova produzida, resulta da própria circunstância de o Sr. M residir no sítio para o qual virava. Y. Quanto ao Ponto 9 da matéria de facto, é evidente e incontestado nos autos que o Arguido tenha visto, previamente o Sr. M. Quanto à perceção da pretensão de viragem, a mesma resulta, desde logo, do que se referiu quanto ao Ponto 8 – sendo comprovadamente notória a sua redução de velocidade e aproximação ao lado esquerdo, seria daí também notório que o Arguido se teria apercebido desse abrandamento e aproximação. Neste conspecto, já se demonstrou cabalmente que o depoimento do Arguido não merece credibilidade e, como tal, não é apto a infirmar o juízo valorativo do Tribunal a quo. O Arguido, de resto, não indica qualquer elemento probatório apto a decidir em sentido oposto quanto a este facto. Z. Os Pontos 10 e 11 da matéria de facto resultam sobejamente demonstrados através da análise cuidada e atenta do acervo documental dos autos – relatórios fotográficos, croquis e relatórios explicativos, complementados pelos depoimentos das testemunhas J e C. O depoimento do Arguido, não sendo credível, não permite contrariar o peso da prova abonatória e, no demais, o Arguido não indica em sede de conclusões qualquer elemento de prova que infirme a valoração por parte do Tribunal a quo. AA. Quanto ao Ponto 12 da matéria de facto, não se vislumbra tampouco que os depoimentos das testemunhas J e C, no seu todo, infirmem esta conclusão. Pelo contrário, ambas as testemunhas confirmaram o teor dos seus relatórios e documentos por si elaborados na altura do acidente e que atestam, com rigor, a distância da projeção. Em todo o caso, e sem conceder, a infirmação deste ponto individual não seria apta a fazer cair, no mais, o sentido e teor geral da decisão recorrida. BB. Quanto aos Pontos 19 e 23 da matéria de facto assumem natureza objetiva e claramente demonstrada nos autos, desde logo, repita-se, pelo acervo documental dos autos – relatórios fotográficos, croquis e relatórios explicativos, complementados pelos depoimentos das testemunhas J e C, qualquer um deles absolutamente assertivo quanto à natureza ilícita e negligente da ultrapassagem, explicando detalhadamente a impossibilidade física de esta manobra se ter iniciado já na zona da sua permissão. CC. No mais, a possibilidade de o Arguido ter adotado um comportamento diligente e apto a evitar o perigo e dano resulta também sobejamente clara destes elementos probatórios. Por fim, também com referência a tais pontos, o Arguido não indica nas conclusões qualquer meio de prova apto a infirmá-los, para lá do seu inoperante depoimento que já amplamente se logrou votar ao descrédito. DD. Concluiu-se, a variadíssimos títulos e em conformidade com o vertido na sentença, que o Arguido incumpriu de forma clara com um amplo conjunto de deveres que lhe incumbiam enquanto condutor no momento da sua conduta ilícita. EE. É absolutamente inquestionável, face a esta circunstância e a toda a prova produzida nos autos, que o acidente não se teria produzido se o Arguido não tivesse realizado a manobra estradal proibida nos termos em que a fez, o que, por si só, atesta suficientemente e para lá de qualquer dúvida a manifesta existência de um nexo causal entre a conduta do Arguido e o resultado verificado – a morte do Sr. M.”
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1.4. O Ministério Público também respondeu ao recurso interposto, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um vício da sentença, que não se confunde com a eventual omissão, a montante de diligências consideradas indispensáveis para a descoberta da verdade, nomeadamente em audiência de julgamento. Trata-se de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito que é diferente da insuficiência de prova para a decisão de facto proferida. Ac. do STJ in BMJ 430 - 247. b) Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º Código de Processo Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustenta rum facto. c) Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pressupõe uma outra evidência e a argumentação da Recorrente gira, então, em volta de uma melhor avaliação, ponderação e, quiçá, interpretação do que foi dito e do que está escrito, donde estrutura a existência daquele apontado vício, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspetiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto, que lhe foi desfavorável. d) Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não podem ser confundidos – como de forma patente, faz a Recorrente - com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o Tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º Código Processo Penal. e) Ora, face aos factos dados como provados, designadamente, os que constam do n.º 1 ao n.º 25 da sentença recorrida onde se descreve o modo e circunstâncias como o arguido agiu, a sua conduta tinha que ser tipificada e, consequentemente condenado como autor material de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 2, do Código Penal, em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, alínea b), e art.º 69º, nº 1, al. a), do C. f) Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. g) A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco, mormente, o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício, este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe. h) discorda a Recorrente do julgamento firmado sobre os factos contidos nos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 19 e 23 da matéria de facto dada como provada, devendo os mesmos transitar para o elenco da matéria de facto dada como não provada, pretendendo o Recorrente, escudando-se no principio in dubio pro reo, que sejam valoradas as suas declarações, em detrimento dos demais elementos de prova (documental e testemunhal) constantes nos autos. i) Relativamente à matéria de facto dada como provada, o tribunal alicerçou a sua convicção com base na apreciação conjunta de toda a prova produzida, interpretada com recurso às regras da experiência comum. j) Quanto aos factos constantes nos pontos 8 a 12, 19 e 23 da matéria de facto dada como provada, o Tribunal a quo, ateve-se na prova documental constituída por: participação de acidente de viação de fls. 15 a 17, 28, 30-31 - croqui do acidente de viação de fls. 39-40, e de fls. 176 a 178 - relatório de exame ao local de fls. 18 a 20; relatórios fotográficos de fls. 21 a 27, de fls. 156 a 165, de fls. 166 a fls. 175, - informação de fls. 80 a 84; relatório de ocorrência de fls. 89-90; sinalização na ER 381 entre o Km 0,000 e o Km 1,500, de fls. 128 a 131, - relatório final da investigação de fls. 149 a 154, conjugada com o depoimento da testemunha J, Cabo da GNR. k) Prova essa que, conjugada entre si, permitiu concluir que o arguido, que seguia atrás do motociclo, iniciou a ultrapassagem ainda em local proibido, por existir traço contínuo (facto provado 5), tendo o motociclo virado à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços, onde residia, não tendo o arguido conseguido evitar a colisão. l) O tribunal a quo deu ainda relevância ao croqui, junto a fls. 40, que assinala o número 33 como local provável do embate, o ponto 16 do auto de medições de fls. 178, que assinala vestígios de fissuras no pavimento, originadas possivelmente pelas partes metálicas do ciclomotor, e as fotografias número 18, de fls. 16, número 2, de fls. 167, fotografia 16, de fls. 174, sendo que todas demonstram que a travagem ocorreu já do lado esquerdo da via, na faixa de rodagem de sentido contrário e muito próximo na cortada à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços. m) Arredando, assim, o tribunal a quo a versão dos factos apresentada pelo arguido, que referiu que não ia a ultrapassar o motociclo, sendo que este seguia encostado à direita, do lado de dentro da berma quando, de repente e de forma repentina, virou tudo à esquerda. n) Ora, se assim fosse, o arguido, seguindo atrás, não iria embater no local indicado no croqui, sendo-lhe possível evitar a colisão, desde que tivesse guardado uma distância de segurança em relação ao motociclo. o) Nenhum dos excertos invocados pelo arguido permitem infirmar a totalidade dos factos cujo julgamento vem impugnado, ou se possa afirmar que estejam erradamente julgados. p) Não basta para sustentar que a leitura que o tribunal fez da prova produzida não é a mais adequada. Necessário será demonstrar que a análise da prova à luz das regras da experiência comum ou pela existência de provas irrefutáveis, não só não consentem tal leitura, como exigem, impõem uma de sentido diverso. q) Ressalta, de forma límpida, do texto da sentença (fundamentação da convicção sobre a matéria de facto), ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação, apreciando prova válida e sem contrariar as regras da experiência comum. r) A morte do ofendido, seria evitada se o arguido tivesse agido com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, ou seja, respeitando a linha longitudinal continua existente na via, abstendo-se de iniciar uma manobra de ultrapassagem na proximidade de um entroncamento e mantendo a distância de segurança do veículo que seguia à sua frente (ainda para mais quando o mesmo era um ciclomotor), regras de trânsito essas que se lhe impunham e que o mesmo bem conhecia, uma vez que era previsível a situação de perigo, na medida em que, - como se disse - se aproximava de um entroncamento e que seguia na sua frente um ciclomotor, recaindo, por isso, sobre o arguido a observância do dever de cuidado. s) No caso concreto, era espectável que o recorrente agisse de outro modo, como estava vinculado por força da legislação rodoviária como, aliás, atuaria um homem mediamente prudente colocado na posição do arguido. t) No caso em apreço estamos perante uma negligência consciente, nos termos previstos no art.º 15.º, al. a) do Código Penal, porquanto o arguido, ainda que conhecedor das regras do Código da Estrada, aproximando-se de um entroncamento, efetua uma manobra de ultrapassagem transpondo uma linha contínua, por desatenção e eventual leviandade, prevendo que da sua conduta poderia resultar um acidente grave (pois qualquer cidadão mediamente prudente, colocado na posição do arguido, conseguiria prever), como de resto se verificou. u) Mesmo que se considerasse negligência inconsciente não deixaria de ser uma negligência grave e/ou grosseira. Ac. do STJ, de 06/05/93, proc. nº 44236. v) A situação analisada enquadra claramente a previsão do art.º 15.º, al. a) do Código Penal, sendo em nosso entendimento uma negligência grosseira, visto que, estamos perante um comportamento que ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigado, evidenciando uma conduta insensata, irrefletida, esquecendo elementares precauções exigidas pela prudência e ignorando que além de si, circulava naquela via de trânsito, à sua frente, um “frágil” ciclomotor tripulado pelo ofendido, sendo que qualquer “toque” do veículo tripulado pelo arguido nesse ciclomotor seria apto a causar um acidente, com consequências nefastas para o tripulante daquele, como efetivamente se veio a verificar. w) A violação de normas jurídicas de comportamento, contidas em leis ou regulamentos, são indícios, por excelência, de contrariedade ao cuidado objetivamente devido. x) A produção do resultado típico, ou seja, a morte de uma vítima, resulta como consequência da criação pelo arguido, de um risco proibido de ocorrência do resultado, para a qual não se provou ter a vítima mortal, contribuído seja de que modo for. y) Perante o grau particularmente aumentado de negligência, é nosso entendimento que a factualidade provada deverá ser enquadrada na previsão do artigo 137.º nº 1 e 2 do Código Penal, pelo que a sentença recorrida não merece censura. z) A pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 5 (cinco) meses é justa e adequada, face às elevadas exigências de prevenção geral que o caso concreto conclama. aa) Se a condução de veículos a motor é essencial para a vida diária e profissional do arguido, tal deveria constituir um fator acrescido para se abster de praticar uma condução imprudente, com desrespeito pelas mais elementares regras estradais, no exercício de uma atividade (condução) que tem tanto relevo para si próprio.”
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1.5. Nesta Relação, o Exo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acompanhar a posição assumida na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância que pugna pela manutenção da decisão recorrida, com a consequente improcedência do recurso.
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1.6. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente.
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1.7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior [cf. acórdão do STJ, de 15.04.2010, in www.dgsi.pt “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art.º 410.º, do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no acórdão n.º 7/95, do STJ, DR, I, Série A, de 28.12.95).
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente da respetiva motivação, extraímos as seguintes questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso: 1.ª Determinar se a sentença recorrida é nula por falta de exame crítico dos meios de prova – art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código do Processo Penal; 2.ª Determinar se a sentença recorrida padece do vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do Código do Processo Penal – insuficiência da matéria de facto para a decisão; 3.ª Determinar se se verifica um erro de julgamento por parte do tribunal de primeira instância relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 8 a 12, 19 e 23; o princípio da livre apreciação da prova; a violação do in dubio pro reo; 4.ª Caso improcedam as questões anteriores determinar se o recorrente deverá ser condenado pela prática do crime de homicídio negligente previsto no art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal e não pelo seu n.º 2 (com negligência grosseira); 5.ª Determinar se a pena de 5 (cinco) meses de prisão e sanção acessória de inibição de conduzir (5 meses) devem ser reduzidas por se mostrarem excessivas, ponderando-se, ainda, se a pena principal a fixar deverá ser não privativa da liberdade (pena de multa) e a segunda ser cumprida fora do horário laboral.
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2.2. A sentença recorrida 2.2.1. O tribunal de primeira instância deu como provados os seguintes factos, com interesse para a decisão do presente recurso: 1. No dia 30, de agosto de 2021, pelas 13.55 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula (……), na Estrada Regional 381, ao Km 1,300, na freguesia da Glória, em Estremoz, no sentido Estremoz -Redondo. 2. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, M circulava na mesma estrada, na mesma direção, e na mesma via de trânsito, conduzindo um ciclomotor, com a matrícula (…..). 3. O ciclomotor com a matrícula (…..), circulava à frente do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula (…..). 4. Nesse percurso, ao Km 1.300, existe um entroncamento do lado esquerdo, que liga aquela estrada a uma estrada para o Largo da Fonte dos Cabaços. 5. Antes desse entroncamento, no pavimento existe a marca longitudinal “M1-Linha Contínua” e “M19-Guias”, ambas marcas de cor branca e bem visíveis no pavimento. 6. E existia sinalização vertical – C14a – proibição de ultrapassar. 7. O limite de velocidade para a circulação de todos os veículos, naquele local, era, à data dos factos, de 90Km/h. 8. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, na aproximação ao entroncamento, o condutor do ciclomotor de matrícula (…..), abrandou a marcha, aproximou-se do limite esquerdo do eixo da via, e iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda, para o Largo da Fonte dos Cabaços. 9. O arguido viu que o ciclomotor conduzido por M circulava à sua frente, e pretendia virar à esquerda naquele entroncamento. 10. Todavia, iniciou a manobra de ultrapassem pela esquerda do ciclomotor de matrícula (…..), sem aguardar que o ciclomotor conduzido por M que, naquele preciso momento, invadia a faixa de rodagem contrária com intenção de mudar de direção para a esquerda e entrar assim na estrada que o ia levar ao Largo da Fonte dos Cabaços, concluísse a manobra. 11. Mercê dessa manobra, o arguido obstruiu a faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, na qual circulava, naquele preciso momento, o ciclomotor de matrícula (…..) conduzido por M, que não conseguiu evitar o embate frontal, da parte frontal lateral direita do veículo de mercadorias conduzido pelo arguido, com a parte lateral esquerda do ciclomotor. 12. Após o embate, M, foi projetado contra o vidro da frente e pára-brisas do lado direito do veículo ligeiro de mercadorias conduzido pelo arguido, após o que foi projetado no ar cerca de 22,20 metros para a frente do veículo, ficando imobilizado a cerca de 22,60 metros do local do embate, na via de trânsito no sentido Estremoz - Redondo. 13. Em consequência direta e necessária do embate e projeção no solo, M sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas, cervico-medulares e torácicas graves, lesões essas que foram a causa direta e adequada da sua morte. 14. No local, a estrada tem a configuração de um entroncamento, com duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com a largura total de 7,10 metros. 15. Na ocasião do acidente a estrada encontrava-se livre e desimpedida. 16. A via onde ocorreu o acidente é em asfalto, em bom estado de conservação, sendo àquela hora o trânsito reduzido em ambos os sentidos. 17. As condições atmosféricas eram boas, encontrando-se o piso seco e limpo, não se tendo apurado a interferência de fatores atmosféricos ou de outros veículos na produção do acidente. 18. Não existe qualquer marca de travagem do veículo de matrícula (…..), antes do local do embate com o ciclomotor de matrícula (…..). 19. O arguido devia ter permitido ao condutor do ciclomotor de matrícula (…..) concluir a manobra de mudança de direção à esquerda, não tendo usado da precaução e destreza devidas, que era capaz de adotar e que devia ter. 20. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, estando ciente que com a sua conduta poderia vir a provocar lesões corporais e até a morte do condutor do ciclomotor de matrícula (…..), mas com isso não se conformando. 21. Com a sua conduta, o arguido exerceu uma condução imprudente e temerária, face às condições concretas de circulação que a via proporcionava. 22. O arguido agiu sem a precaução devida e de que era capaz, sendo que a conduta devida e exigível lhe era acessível, possuindo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento, o que não fez. 23. Ao atuar da forma supra descrita, o arguido violou grosseiramente as regras da circulação rodoviária, não obedecendo à marca longitudinal “M1-Linha Contínua” e “M19-Guias”, ambas marcas de cor branca e bem visíveis no pavimento, e não obedeceu ao sinal vertical – C14a ali existente - criando desse modo perigo para avida e para a integridade física do condutor do ciclomotor de matrícula (…..) (como aconteceu). 24. O acidente e as suas consequências ficaram também a dever-se à manifesta falta de cuidado e de atenção, e desrespeito pelas regras elementares da circulação rodoviária tendo, dessa forma, causado perigo para a vida e a integridade física do condutor do ciclomotor de matrícula (…..) (como aconteceu). 25. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que assuas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais resultou provado: 26. O Arguido é empresário e explora a actividade de queijaria. 27. Aufere um valor equivalente ao vencimento mínimo nacional. 28. Vive com a esposa e três filhos, todos menores de idade. 29. Resulta do relatório social elaborado pela DGRSP: “V, de 40 anos de idade, apresenta, tanto quanto nos foi possível apurar, um percurso de vida globalmente ajustado nas diferentes áreas. Apresenta-se como pessoa humilde e respeitosa e muito perturbada com a vivência/ocorrência em resultado da qual emergiu o presente processo. Face ao exposto, de acordo com a informação colhida e perceção dos seus traços de personalidade, parece-nos estar perante individuo com competências que lhe permitem entender e cumprir, sendo o caso, a medida que possa vir a resultar no âmbito do presente processo. Paralelamente, não se perceciona a necessidade de acompanhamento por parte deste serviço de reinserção social.” 30. O Arguido tem o 9.º ano de escolaridade. 31. O arguido não regista antecedentes criminais. 2.2.2. O tribunal de primeira instância deu como não provados os seguintes factos: a) O arguido conduzia o veículo a velocidade de pelo menos 90 km/h. b) Acresce que, o arguido apesar de saber que podia colocar em perigo a vida do condutor do ciclomotor de matrícula (…..), tal como veio a acontecer, não cuidou de manter uma velocidade que lhe permitisse imobilizar o veículo em segurança, no espaço livre e visível à sua frente, dever que se lhe impunha e de que este era capaz. c) O arguido não adequou a velocidade que imprimiu ao veículo de matrícula (…..), ao local em que circulava, e à presença do ciclomotor de matrícula (…..). d) O acidente ficou a dever-se ao facto de o arguido, indiferente às características da via, designadamente a existência de um entroncamento, e à sinalização, conduzir a velocidade superior à que lhe era permitida naquele local. e) O arguido pretendeu conduzir com velocidade superior à permitida, colocando em perigo a vida e a integridade física dos outros utentes da via, o que acabou por acontecer, resultado este que previu, mas com o qual não se conformou.
2.2.3. A motivação da decisão recorrida foi a seguinte: Preceitua o artigo 127.º do C.P.P. que, salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente. O tribunal alicerçou a sua convicção com base na apreciação conjunta de toda a prova produzida, interpretada com recurso às regras da experiência comum. O Arguido optou por prestar declarações, tendo, no essencial, negado ter ultrapassado o motociclo, e que este, que circulava do lado de dentro da berma, do lado direito, virou repentinamente à esquerda, o que deixou o arguido sem hipótese de evitar a colisão. Os factos 1 a 4 resultam provados pelas declarações do arguido, em concatenação com toda a demais prova documental dos autos. Os factos 6 e 7 provaram-se pela prova documental arrolada com a acusação, em conjugação com os depoimentos das testemunhas J e C, militares da GNR. A demais matéria, consignada em 8 a 26, teve por base a prova documental constituída por: - participação de acidente de viação de fls. 15 a 17, 28, 30-31 - croqui do acidente de viação de fls. 39-40, e de fls. 176 a 178 - relatório de exame ao local de fls. 18 a 20, - relatórios fotográficos de fls. 21 a 27, de fls. 156 a 165, de fls. 166 a fls. 175, - informação de fls. 80 a 84, - relatório de ocorrência de fls. 89-90, - sinalização na ER 381 entre o Km 0,000 e o Km 1,500, de fls. 128 a 131, - relatório final da investigação de fls. 149 a 154. Estes elementos, avaliados em conjugação com os depoimentos da testemunha C, Cabo da GNR, permitem concluir que o arguido, que seguia atrás do motociclo, iniciou a ultrapassagem ainda em local proibido, por existir traço contínuo (facto provado 5), tendo o motociclo virado à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços, onde residia, não tendo o arguido conseguido evitar a colisão. Para esta conclusão, o Tribunal socorre-se dos seguintes elementos: i. O local onde se dá o embate entre a viatura do arguido e o motociclo (croqui de fls. 39-40 e fls. 176 a 178); ii. O facto de a viatura do arguido ser um ligeiro de mercadorias, mais pesado; iii. A circunstância de existir uma distância curta entre o fim da proibição de ultrapassar e o local de viragem à esquerda (fls. 178). iv. A inexistência de marcas de ultrapassagem antes do local da colisão (fls. 178) v. O local onde a viatura conduzida pelo arguido fica imobilizada (fls. 178, ponto 6). vi. A posição final do motociclo; vii. As marcas no pavimento (fls. 178) viii. Os danos registados no ligeiro conduzido pelo arguido. Mais especificamente, releva o croqui, a fls. 40, que assinala o número 3 como local provável do embate, o ponto 16 do auto de medições de fls. 178, que assinala vestígios de fissuras no pavimento, originadas possivelmente pelas partes metálicas do ciclomotor, e as fotografias número 18, de fls. 16, número 2, de fls. 167, fotografia 16, de fls. 174, sendo que todas demonstram que a travagem ocorreu já do lado esquerdo da via, na faixa de rodagem de sentido contrário e muito próximo na cortada à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços. Fica assim arredada a versão dos factos apresentada pelo arguido, que referiu que não ia ultrapassar o motociclo, sendo que este seguia encostado à direita, do lado de dentro da berma quando, de repente e de forma repentina, virou tudo à esquerda. Ora, se assim fosse, o arguido, seguindo atrás, não iria embater no local indicado no croqui, sendo-lhe possível evitar a colisão, desde que tivesse guardado uma distância de segurança em relação ao motociclo. As lesões da vítima – facto provado 14, provaram-se a partir do relatório de autópsia do INML de fls. 59 a 60 e do exame pericial de toxicologia forense de fls. 61-62.
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Quanto aos factos 27. a 31, relativos às condições socioeconómicas do arguido, os mesmos resultaram provados pelas declarações prestadas pelo Arguido. O facto 32. relativo aos antecedentes criminais, resulta provado pelo teor do certificado de registo criminal (cfr. referência Citius 3984139).
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Relativamente aos factos não provados da acusação, inexistem elementos probatórios que levem a concluir que o arguido conduzia em excesso de velocidade. Aliás, a testemunha C referiu que dos elementos recolhidos concluiu que o arguido seguia dentro dos limites de velocidade.
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2.3. Apreciação do recurso 1.ª Questão Determinar se a sentença recorrida é nula por falta de exame crítico dos meios de prova – art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código do Processo Penal
Invoca o recorrente que o tribunal a quo na sentença ficou por completar o criterioso exame da prova produzida em julgamento, relevante para a boa decisão da causa e para uma melhor compreensão dessa condenação, pelo que a mesma é nula, nos termos prevenidos no artigo 379.º, n.º 1,alínea a), do Código do Processo Penal.
Vejamos.
Nos termos do art.º 379.º, do Código de Processo Penal:
“1. É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º; (…).”
Dispõe, de sua vez, o n.º 2, do art.º 374.º, quanto aos requisitos da sentença:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos:
- Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados;
- Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
As sentenças judiciais, constituindo atos decisórios necessariamente fundamentados – art.ºs 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 97.º, n.ºs 1, al. a) e 5, do Código de Processo Penal –, devem especificar os motivos de facto e de direito que lhes servem de sustentação e observar os demais requisitos fixados no art.º 374.º, do citado Código.
A enumeração da matéria de facto provada e não provada visa garantir, para além de qualquer dúvida, que o julgador contemplou todos os factos submetidos à sua apreciação.
Quanto ao conteúdo do dever de fundamentação da sentença ou do acórdão, escreveu-se no acórdão do TRL, de 18.01.2011, inwww.dgsi.pt: “A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo. A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.”.
Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são, nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência [neste sentido acórdão do TRP, de 15.07.2009, disponível em www.dgsi.pt].
O juiz tem que deixar expresso o caminho que percorreu para decidir porque julgou determinados factos como provados e outros como não provados.
A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.
É este o entendimento há muito sedimentado no âmbito da jurisdição constitucional, de que destacamos os acórdãos com os n.ºs 1165/96 e 464/97 (ambos pesquisados em www.dgsi.pt).
Ao nível do Supremo Tribunal de Justiça está, também, sedimentado o entendimento de que a motivação visa, não só o controlo da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência, mas também a reconstituição do processo lógico-mental seguido pelo julgador.
Assim, no acórdão de 12.05.1999 [processo n.º 406/99, 3.ª secção, parcialmente reproduzido e comentado por Eduardo Maia Costa na Revista do Ministério Público n.º 78, 144 e ss.], depois de se reconhecer que, face à nova redação do n.º 2, do art.º 374.º (introduzida pela reforma do Código de Processo Penal de 1998), havia que “abandonar a orientação que se bastava com as fontes de prova havendo, agora, que indicar as provas e fazer o seu exame crítico”, escreveu-se:
“… a fundamentação da matéria de facto radica-se na transparência que o legislador pretende seja o julgamento e é útil para que as partes e o público em geral (dada a publicidade da audiência) possam perceber o raciocínio lógico feito pelo julgador, servindo de instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e aquilatar da sua justeza (…)”.
Importa destacar o acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), que resume, de forma exemplar, em que consiste esta exigência legal de fundamentação das sentenças:
“Não dizendo a lei em que consiste o “exame crítico das provas”, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade e de prudência na inter-relação dos factos e comportamentos, compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, que permitam ao julgador esclarecer objectivamente quais os elementos probatórios que o elucidaram, porquê e de que forma, com vista a possibilitar a compreensão racional da decisão”.
Esse exame corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que levaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão e, portanto, deve permitir alcançar que a opção tomada não é fruto do arbítrio do julgador, de uma sua qualquer tendenciosa inclinação, mas sim de um processo sério assente em razões lógicas e nas regras da experiência.
Ora, o tribunal recorrido, na motivação da sua decisão, omitiu o exame crítico da prova, quase se limitando a enumerar as fontes de prova:
“Preceitua o artigo 127.º do C.P.P. que, salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente. O tribunal alicerçou a sua convicção com base na apreciação conjunta de toda a prova produzida, interpretada com recurso às regras da experiência comum. O Arguido optou por prestar declarações, tendo, no essencial, negado ter ultrapassado o motociclo, e que este, que circulava do lado de dentro da berma, do lado direito, virou repentinamente à esquerda, o que deixou o arguido sem hipótese de evitar a colisão. Os factos 1 a 4 resultam provados pelas declarações do arguido, em concatenação com toda a demais prova documental dos autos. Os factos 6 e 7 provaram-se pela prova documental arrolada com a acusação, em conjugação com os depoimentos das testemunhas J e C, militares da GNR. A demais matéria, consignada em 8 a 26, teve por base a prova documental constituída por: - participação de acidente de viação de fls. 15 a 17, 28, 30-31 - croqui do acidente de viação de fls. 39-40, e de fls. 176 a 178 - relatório de exame ao local de fls. 18 a 20, - relatórios fotográficos de fls. 21 a 27, de fls. 156 a 165, de fls. 166 a fls. 175, - informação de fls. 80 a 84, - relatório de ocorrência de fls. 89-90, - sinalização na ER 381 entre o Km 0,000 e o Km 1,500, de fls. 128 a 131, - relatório final da investigação de fls. 149 a 154. Estes elementos, avaliados em conjugação com os depoimentos da testemunha C, Cabo da GNR, permitem concluir que o arguido, que seguia atrás do motociclo, iniciou a ultrapassagem ainda em local proibido, por existir traço contínuo (facto provado 5), tendo o motociclo virado à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços, onde residia, não tendo o arguido conseguido evitar a colisão. Para esta conclusão, o Tribunal socorre-se dos seguintes elementos: i. O local onde se dá o embate entre a viatura do arguido e o motociclo (croqui de fls. 39-40 e fls. 176 a 178); ii. O facto de a viatura do arguido ser um ligeiro de mercadorias, mais pesado; iii. A circunstância de existir uma distância curta entre o fim da proibição de ultrapassar e o local de viragem à esquerda (fls. 178). iv. A inexistência de marcas de ultrapassagem antes do local da colisão (fls. 178) v. O local onde a viatura conduzida pelo arguido fica imobilizada (fls. 178, ponto 6). vi. A posição final do motociclo; vii. As marcas no pavimento (fls. 178) viii. Os danos registados no ligeiro conduzido pelo arguido. Mais especificamente, releva o croqui, a fls. 40, que assinala o número 3 como local provável do embate, o ponto 16 do auto de medições de fls. 178, que assinala vestígios de fissuras no pavimento, originadas possivelmente pelas partes metálicas do ciclomotor, e as fotografias número 18, de fls. 16, número 2, de fls. 167, fotografia 16, de fls. 174, sendo que todas demonstram que a travagem ocorreu já do lado esquerdo da via, na faixa de rodagem de sentido contrário e muito próximo na cortada à esquerda para o Largo Fonte dos Cabaços. Fica assim arredada a versão dos factos apresentada pelo arguido, que referiu que não ia ultrapassar o motociclo, sendo que este seguia encostado à direita, do lado de dentro da berma quando, de repente e de forma repentina, virou tudo à esquerda. Ora, se assim fosse, o arguido, seguindo atrás, não iria embater no local indicado no croqui, sendo-lhe possível evitar a colisão, desde que tivesse guardado uma distância de segurança em relação ao motociclo. As lesões da vítima – facto provado 14, provaram-se a partir do relatório de autópsia do INML de fls. 59 a 60 e do exame pericial de toxicologia forense de fls. 61-62.
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Quanto aos factos 27. a 31, relativos às condições socioeconómicas do arguido, os mesmos resultaram provados pelas declarações prestadas pelo Arguido. O facto 32. relativo aos antecedentes criminais, resulta provado pelo teor do certificado de registo criminal (cfr. referência Citius 3984139).
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Relativamente aos factos não provados da acusação, inexistem elementos probatórios que levem a concluir que o arguido conduzia em excesso de velocidade. Aliás, a testemunha C referiu que dos elementos recolhidos concluiu que o arguido seguia dentro dos limites de velocidade.”
Como se constata, temos uma valoração praticamente individualizada da prova, faltando efetuar uma valoração conjunta e crítica.
O exame crítico exigido não se basta com a apreciação das provas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada.
Do juiz exige-se mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição.
O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Como melhor explica José António Mouraz Lopes [A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português – Legitimar, Diferenciar, Explicar, Almedina, 2011, p. 232]:
“Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto reconhecendo-se que toda a prova, antes de provar deve ser provada. No decurso do processo analítico efectuado não pode prescindir-se da perspectiva conjunta do modo como cada uma das provas é integrada no quadro probatório global. Se, como se referiu, cada um dos elementos de prova tem de exigir uma disponibilidade para ser avaliado como se realmente «tivesse sido o único disponível», a articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez se irá reflectir no resultado da totalidade da prova atendível, sendo por isso reciprocamente necessários os dois momentos de valoração”.
Para mais, ao que parece, inexistem testemunhas oculares do acidente.
Ora, é precisamente nas situações em que não há prova direta, mas existe prova indiciária, que intervêm decisivamente a inteligência e a lógica do juiz.
Primeiramente, a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou a uma regra científica. Depois intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.
No caso concreto ficamos sem saber o teor dos depoimentos testemunhais (qual o seu conteúdo), e qual a respetiva importância para a decisão.
Trata-se de uma situação grave (homicídio negligente), em que, por isso, a fundamentação deve ser clara e inequívoca quanto ao raciocínio feito pelo tribunal para dar como provada a dinâmica do acidente.
Por outro lado, há testemunhas que até poderiam ser relevantes (tendo em conta a que é convocada pelo arguido, no recurso e na resposta da assistente ), como, por exemplo, o de A, mas a que o tribunal não alude.
Acresce que, não consegue perceber-se qual o raciocínio seguido pela senhora juíza, para concluir como concluiu, posto remeter para os documentos juntos aos autos, com especial relevância para o croquis, fazendo menção ao “local provável do embate”, a “vestígios de fissuras no pavimento, originadas possivelmente pelas partes metálicas do ciclomotor” etc., não fazendo sequer referência, na motivação da decisão de facto, às partes dos veículos embatidas, pese embora tenha dado como provado, no ponto 11., que o embate foi “frontal, da parte frontal lateral direita do veículo de mercadorias conduzido pelo arguido, com a parte lateral esquerda do ciclomotor.” – itálico e sublinhados nossos.
Como é sabido a sentença, em termos de fundamentação, tem de ser autossuficiente e o juízo probatório, incluindo sobre a prova documental, tem de ficar expresso, para que possamos apreender qual o raciocínio seguido pelo julgador que lhe permitiu extrair as ilações/Inferências feitas .
E isto não se retira da sentença recorrida e por isso procede a arguição de nulidade da decisão, por manifesta insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, não se vislumbrando como supri-la, porquanto, até se admite a bondade do julgamento da matéria de facto, só que o Tribunal a quo deverá convencer os destinatários processuais, no dito exame crítico da prova, dessa mesma correção.
Entendemos, porém, tal como vem sendo decidido pela jurisprudência, que essa nulidade não impõe, necessariamente, o reenvio para novo julgamento, bastando-se com a sua reformulação nos termos indicados [por todos, acórdãos do TRG, de 26.03.2007, processo n.º 1835/07-1, e do TRE, de 13.11.2012 processo n.º 2975/11.5GBABF.E1, disponíveis em www.dgsi.pt]
É ao senhor Juiz a quo que competirá decidir se para suprir a apontada nulidade precisa ou não de repetir o julgamento ou se ainda está na posse dos elementos que lhe permitam fazê-lo sem a tal recorrer.
Procedendo esta questão suscitada no recurso, fica prejudicada a apreciação das restantes.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente o recurso e, consequentemente, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do Código de processo Civil, anular a sentença recorrida para que o Tribunal a quo reformule a motivação da matéria de facto, completando-a com a indicação da prova que lhe permitiu dar como provados uns factos e não provados outros, com indicação do exame crítico das provas mostrando-se, em consequência, prejudicado o conhecimento do demais suscitado pelo recorrente.
Sem tributação.
Notifique.
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(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
Évora, 14 de janeiro de 2025
Maria José Cortes
Renato Barroso
Fátima Bernardes