I - Estando em causa uma investigação de um crime de pornografia de menores, cometido por meio de um sistema informático e em relação ao qual é necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, podia e devia a autoridade judiciária solicitar à fornecedora do serviço respetivo a identificação do subscritor do IP, para prova do crime cometido pelo arguido, pois constitui um dado pouco invasivo da privacidade do seu titular (cinge-se meramente à identificação do cliente - do utilizador do IP -, com a morada associada).
II - A informação prestada pela empresa operadora de telecomunicações relativa à identificação do utilizador do IP que realizou os uploads, com indicação da morada associada, foi obtida de modo legalmente permitido, pelo que não constitui prova proibida.
A convicção d o Tribunal resultou assim d a conjugação d as d e c l a r a ç õ e s produzid as em audiência com a prova pericial/d ocumental carread a para os autos, analisad a de uma forma crítica e à luz das regras d a experiência comum.
Concretamente, considerou-se desde logo o teor:
- Perícia forense de fls. 211 a 235;
- Auto de notícia de fls. 5 e 6;
- CD de fls. 7;
- Relatório remetido pelo Nacional Center For Missing Exploit Children (NCMEC) de fls. 8 a 12;
- Informação de fls. 29;
- Fls. 38 a 41;
- Auto de visionamento de conteúdo digital de fls. 42 a 52;
- Auto de busca e apreensão de fls. 75 e 76;
- Termo de consentimento de fls. 77;
- Autorização de fls. 78;
- Relatório de perícia preliminar de fls. 79 a 96 e CD de fls. 97;
- Auto de notícia e de detenção em flagrante delito de fls. 98 a 100;
- Auto de diligência de fls. 104 a 107;
- Fls. 166 a 168;
- Fls. 242 a 244;
- Auto de visualização e análise de exame digital de fls. 245 a 259.
O arguido recusou-se a prestar declarações, ao abrigo de um direito que lhe é concedido por lei.
Assim a convicção do Tribunal resultou da conjugação dos referidos meios de prova, com as declarações das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
Aqui chegados importa apreciar a questão da invalidade da prova suscitada pela defesa nas suas alegações finais, escudando-se no decidido no Acórdão da Relação de Évora de 05-03-2024, sumariado da seguinte forma:
“I - Pese embora o formulário utilizado pelo Ministério Público (invocando como fundamento legal para o pedido o artigo 14º da Lei nº 109/2009 e os artigos 267º, 262º e 164º do C. P. Penal), se os dados solicitados são obtidos a partir de um concreto IP em conexão com uma certa comunicação realizada (e não a partir de uma relação contratual), estamos perante dados conservados pela operadora nos termos do artigo 4º, nº 1, al. a), e nº 2, al. b), da Lei nº 32/2008, de 17/07 (normativo que foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Ac. do TC nº 268/2022).
II - Trata-se, por isso, de prova proibida, sendo que a admissão parcial dos factos pelo arguido, não deve, no caso dos autos, ser considerada como forma autónoma e independente de acesso aos factos, sem conexão estreita com a prova proibida, na medida em que é motivada pela apreensão e exame aos equipamentos informáticos onde é descoberta matéria com relevância criminal (que é prova proibida contaminada pela prova proibida original).
III - Por força do “efeito à distância” daquela proibição de prova (prova primária), a apreensão do equipamento/material informático, que teve lugar no âmbito da busca domiciliária realizada, mostra-se “contaminada”, não podendo ser utilizada a prova obtida por esse meio (prova sequencial ou secundária), sendo que, no caso concreto, não ocorre qualquer exceção ou limitação do “efeito à distância” decorrente da assinalada proibição de prova, designadamente a existência de prova sequencial obtida através de uma fonte independente e autónoma da prova inquinada ou a ocorrência da situação de “mácula dissipada”.”
Avançamos desde logo que não sufragamos tal entendimento.
Com efeito, resulta dos autos e foi confirmado pelo depoimento isento e objectivo de I, inspectora da PJ, que tiveram conhecimento dos factos através de uma comunicação (CyberTipline Report 105069997) remetida pela Nacional Center for Missing & Exploited Children por terem sido reportadas através da plataforma Twitter.Inc./VNE.co, acções susceptíveis de configurar a prática do crime em análise, tendo desde logo sido identificado o nome de utilizador – DombruTaboo -, o endereço electrónico – tugatopsexy@gmail.com – e ainda os endereços IP, datas e horas em que foram efectuados os carregamentos de conteúdos e acessos ao perfil/conta.
Com base nessa informação e por despacho judicial, foi solicitado à operadora a identificação do titular do contrato associado a tal endereço de IP, no grupo data/hora, tendo esta informado que o utilizador era o ora arguido – cfr. Fls. 9.
Nessa sequência, por despacho proferido em 30-06-2022, foi autorizada a busca domiciliária à residência do ora arguido, bem como a apreensão de quaisquer objectos relacionados com a investigação em curso – cfr. Fls. 64.
Realizada tal busca, para além dos demais aparelhos electrónicos, foi encontrado um telemóvel, tendo-se localizado no mesmo diversos ficheiros de pornografia de menores [após ter sido autorizada pelo próprio arguido a recolha de todos os elementos, incluindo registo de chamadas e de mensagens, dados de imagem, áudio e vídeo e outros dados (fls. 77) e o acesso às contas de correio electrónico e outras sediadas em ambiente virtual e quaisquer dados armazenados em serviços de internet (fls. 78)].
As informações que foram solicitadas à operadora e que levaram à identificação do arguido, independentemente da fundamentação legal utilizada no pedido de informação, dizem respeito a dados que não se reportam a comunicações efectuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17/07, tratando-se de dados de base, que se consubstanciam em elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis.
Conforme se refere no Ac. RE de 23-01-2024, disponível in www.gde.mj.pt:
“Pelo Acórdão nº 268/2022, publicado no Diário da República nº 108, Série I, de 03-06-2022, veio o Tribunal Constitucional:
“a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6º da mesma Lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 26º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no nº 1 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição.”
A Lei nº 32/2008, de 17/07, transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03, concernente à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.
É manifesto que o referido Acórdão concerne a dados anteriores armazenados, conservados e arquivados no âmbito da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, a que se aplica o regime da Lei nº 32/2008, de 17-07.
Só que, as informações solicitadas e obtidas nestes autos dizem respeito a dados que não se reportam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17-07, tratando-se de dados de base, que se consubstanciam em elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os quais constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação” e “o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)”, como se salienta no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional – neste sentido, vd., por todos, Acs. do STJ de 06-09-2022, Proc. nº 4243/17.0T9PRT-K.S1 e de 08-11-2022, Proc. nº 107/13.4P6PRT-D.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.”
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 21-06-2023, disponível in www.gde.mj.pt:
“Mas mesmo dando por assente os pedidos de IP às operadoras NOS e Vodafone, de acordo com a jurisprudência citada tal pedido a uma e a outra não está abrangido no âmbito das normas dos artigos 4º, 6º ou 9º da L. 32/2008. O número de telefone ou o nº de IP assumem um carácter permanente que resultam da celebração de um contrato entre o cliente e a prestadora de serviços de telecomunicações, pelo que nada têm que ver com dados relativos às comunicações eletrónicas em si mesmo consideradas e podem ser obtidos independentemente de qualquer comunicação. (cfr também ac. do STJ de 06-09-2022, proc. nº 4243/17.0T9PRT-K.S1, Teresa Almeida).
Esses dados, integrados nos chamados dados de base, continuam a estar disponíveis para utilização quer no regime de aplicação das escutas telefónicas ao abrigo dos artigos 187º a 189º do CPP, por lhe serem instrumentais, quer nos termos do disposto na Lei 41/2004, de 18/08, e na Lei 23/96, de 26/07, armazenados por seis meses por necessários à fracturação e pagamento dos serviços, quer segundo a Lei nº 109/2009, de 15/09, denominada de Lei do Cibercrime, concretamente do seu artigo 14º que permite a obtenção, pelas autoridades judiciárias, dos dados de subscritor e de acesso, elencados nas diferentes alíneas do nº 4, incluindo o IP, para prova de todos os crimes incluídos na previsão do art. 11º, nº 1, ou seja, dos crimes previstos na Lei do Cibercrime, dos cometidos por meio de um sistema informático ou, em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico.”
Igual entendimento se encontra plasmado no Ac. do STJ de 02-02-2023, disponível in www.gde.mj.pt:
“Como acima foi referido, a 1ª questão colocada pelo recorrente prende-se com a alegação da nulidade da prova constante dos autos por, na sua perspetiva, assentar nos chamados “metadados”, tendo sido recolhida com base nos artigos 4º, 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, que foram declarados inconstitucionais no acórdão do TC nº 268/2022, com força obrigatória geral, para todos os casos, o que também inclui o presente processo.
(…)
Como resulta claro da decisão recorrida, nomeadamente quando decidiu a referida questão prévia colocada pelo arguido na audiência, foi com base em comunicação das autoridades alemãs, através do Gabinete Interpol, dando conta da partilha de ficheiro com conteúdos de pornografia de menores através da rede "...", que logo referiu a lista dos endereços IP's pertencentes a ISP portugueses que partilharam ficheiros com imagens de abuso sexual de menor, que permitiu à Polícia Judiciária, “com recurso a ferramentas livremente disponíveis na internet”, a identificação do utilizador, isto é, do sujeito que utilizou o IP, identificação que foi obtida, através da autoridade judiciária competente, ainda articuladamente com a operadora, ao abrigo do disposto nos arts. 187º, nº 1, al. a), 189º, nº 2, do CPP e 14º, da Lei nº 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime), normas estas que não foram declaradas inconstitucionais pelo referido ac. do TC n.º 268/2022.
Ora, estando o arguido a ser investigado por crime de pornografia de menores, p. e p. no artigos 176º, nº1, alíneas b), c) e d) do CP, com a moldura abstrata de 1 ano a 5 anos de prisão (sendo até condenado pelo crime p. e p. no artigo 176º, nº1, alíneas c) e d), com a agravação prevista artigo 177º, nº 7, ambos do Código Penal, com moldura abstrata entre 1 ano e 6 meses de prisão e 7 anos e 6 meses de prisão), os elementos relativos à identificação do utilizador do IP podiam ser requeridos à operadora pela autoridade judiciária nos termos dos referidos arts. 187º, nº 1, al. a), 189º, nº 2, do CPP e do citado art. 14º, da Lei nº 109/2009, de 15-09.
Por isso, tem razão o Sr. PGA no seu Parecer, quando apela ao Acórdão do STJ de 08-11-2022, no segmento em que chama à atenção que «[…] o art. 189º, nº 2, do Código de Processo Penal permite aceder a dados de tráfego, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações e, por maioria de razão [in eo quod plus est, sempre inest et minus (no que é mais está sempre compreendido o que é menos)], a dados de base relacionados, neste caso, com a identificação dos titulares dos cartões de telemóvel [nos quais, como salienta o acórdão do TC 268/2022, «o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)»], aos quais o MP sempre poderia aceder por via do disposto no art. 14º, nºs 1 e 4, al. b), da Lei 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime), quando se investiguem os crimes previstos no nº 1 do artigo 187º, nomeadamente, crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.»
Aliás, o que sucedeu no caso em apreciação no acórdão sob recurso, foi o acesso à operadora para identificar o titular do contrato correspondente ao IP utilizado na prática do crime, o que (no caso concreto em apreciação) não tem a ver com comunicação efetuada, nem se relaciona com a Lei 32/2008, de 17-07, mesmo que essa lei ou normas a ela pertencentes tivessem sido mal invocadas, entre as normas que eram aplicáveis ao caso, acima indicadas.
De resto, no Acórdão deste STJ de 06-09-2022 (igualmente citado pelo Sr. PGA no seu douto parecer) também se esclarece o seguinte:
«[…] d. Não assiste razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do nº de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação” (Ac. 268/2022, TC).
e. Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa (…).”
E ainda no Ac. do STJ de 13-04-2023:
“O Supremo Tribunal de Justiça tem decidido que os dados identificativos do titular de IP assumem um caráter permanente, que resultam dos elementos contratuais celebrados pelo cliente com a fornecedora de serviço de telecomunicações, pelo que nada têm que ver com dados relativos às comunicações eletrónicas em si mesmo consideradas.
Não respeitando estes dados a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, mas a elementos contratuais com carácter permanente que podem ser obtidos independentemente de qualquer comunicação, a sua obtenção pelas autoridades judiciárias cai fora do âmbito deste diploma e da declaração de inconstitucionalidade do acórdão do Tribunal Constitucional (…)
Ainda que assim se possa considerar, no caso, apesar da declaração de inconstitucionalidade do acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, seria sempre permitida às autoridades judiciárias, a obtenção do endereço do titular do contrato correspondente ao IP utilizado na prática do crime em investigação.
Com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, a conservação e armazenamento de dados de base, designadamente, de dados de subscritor do IP pelos fornecedores de serviço, não passou a ser proibida.
Mercê da transposição da Diretiva nº 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas, o legislador nacional, pela Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, passou a regular o armazenamento das informações dos assinantes das comunicações eletrónicas e dos dados de ‘tráfego necessários à faturação detalhada dos assinantes e pagamento das comunicações.
A Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, permite a conservação e tratamento das informações dos assinantes das comunicações eletrónicas e mesmo dos dados tráfego necessários à faturação detalhada dos assinantes e pagamento das comunicações.
O art. 4º, nº 2, estabelece, como princípio geral, a proibição de armazenamento de dados de tráfego, salvaguardando apenas as exceções determinadas na própria lei.
Tal proibição é corroborada pelo art. 6º, nº 1, da mesma Lei, que estipula que «sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os dados de tráfego relativos aos assinantes e utilizadores tratados e armazenados pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem ser eliminados e tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação.». Os nºs 2 e 3 desta norma, introduzem exceções a esta proibição do nº 1, estipulando que os dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações podem ser guardados e tratados até ao final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado.
A Lei nº 41/2004 não fixa este período legal, durante o qual o pagamento pode ser reclamado, mas a Lei nº 23/96, de 26 de julho, diploma legal que define regras respeitantes à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo os serviços de comunicações eletrónicas, fixa no seu art. 10º, nº 1, que «o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação» e o seu nº 4 fixa, igualmente, em 6 meses, o prazo para eventual propositura da ação pelo prestador de serviços. Uma vez decorridos esses seis meses, tem efetiva aplicação a obrigação de eliminação dos dados de tráfego, fixada pelo art. 6º, nº 1 da Lei nº 41/2004. É também apenas nessa altura que se torna efetiva a proibição genérica de guarda de dados de tráfego, consagrada no art. 4º, nº 2, da mesma Lei.
A Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, estabelece no art. 1º, nº 4, que a aplicação do diploma não prejudica a possibilidade de existência de legislação especial que restrinja a sua aplicação no que respeita à proteção de atividades relacionadas com a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e à «prevenção, investigação e repressão de infrações penais».
Esta Lei nº 41/2004, que permite, além do mais, a conservação de dados de identificação dos clientes das operadoras de telecomunicações, não foi abrangida pela declaração de inconstitucionalidade do acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022.
A Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, não só permite a conservação dos dados de identificação do cliente, como permite a conservação e tratamento dos dados de tráfego do utilizador, pelo fornecedor de serviço de telecomunicações, no âmbito do direito privado, para efeitos contratuais, designadamente para informação ao cliente e cobrança dos serviços prestados.
Este diploma embora não regulando o acesso a esses dados pelas autoridades judiciárias, também não lhes veda o acesso aos dados de caráter permanente, como são os dados do titular do contrato correspondente ao IP utilizado na prática de um crime, para fins de investigação criminal, em que estão em causa interesses públicos, como o da realização da justiça.
O acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, tendo declarado inconstitucional o art. 6º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, não deixa de reconhecer a indispensabilidade da obtenção de metadados, para fins de investigação de crimes graves, de criminalidade grave, violenta ou altamente organizada.
A Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, chamada de Lei do Cibercrime, embora não regule a conservação de dados, regula a sua obtenção.
Também esta Lei não foi objeto de declaração de inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022.
O art. 14º, da Lei do Cibercrime, permite a obtenção, pelas autoridades judiciárias, dos dados de subscritor e de acesso, elencados nas diferentes alíneas do nº 4, incluindo o IP, para prova de todos os crimes incluídos na previsão do art. 11º, nº 1, ou seja, dos crimes previstos na Lei do Cibercrime, dos cometidos por meio de um sistema informático ou, em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico.
No caso em apreciação, estando em causa a investigação de um crime de pornografia de menores, cometido por meio de um sistema informático e em relação ao qual se mostrava necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, podia a autoridade judiciária, ao abrigo do art. 14º daquele diploma, requerer à fornecedora de serviço, a identificação do subscritor do IP, para prova do crime pela pessoa visada.
Estamos perante um dado de base pouco invasivo da privacidade do seu titular, pois cinge-se à simples identificação de cliente, do utilizador do IP, com a morada associada, que assume um caráter permanente, pelo que se nos afigura que a sua obtenção não se mostra sujeita ao prazo de 6 meses a que alude Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, em conjugação com Lei nº 23/96, de 26 de julho.
Ainda que assim não fosse, a obtenção através da fornecedora de serviços de telecomunicações, dos dados de identificação do utilizador do IP com a morada associada, que realizara o dito upload, foi obtida no prazo de 6 meses, desde a sua realização.”
Em face do que supra ficou exposto, entendemos que a informação prestada pela MEO relativa à identificação do utilizador do IP que realizou o dito upload, com indicação de morada associada, foi obtida de modo legalmente permitido, pelo que não constitui prova proibida, nos termos do nº 3 do art. 126º do Código de Processo Penal.
Da conjugação da prova já referida nos autos e considerada válida com as declarações da já aludida testemunha I, que descreveu a forma como tiveram conhecimento dos autos, as diligências efectuadas posteriormente e o resultado dessas mesmas diligências e ainda da testemunha C, especialista da PJ, que examinou o telemóvel onde se encontravam os ficheiros, dúvidas não restaram ao Tribunal de que, embora não tenha ficado demonstrado qualquer acto de partilha, o arguido detinha o material pornográfico indicado com a intenção de o divulgar e/ou ceder, para satisfação dos seus instintos libidinosos e de terceiros. Tal resulta manifesto desde logo porque os autos se iniciaram com a realização de uploads pelo arguido, actividade essa que exige que seja o próprio a dar a ordem para o efeito e não decorre do surgimento de uma janela de “pop-up” no ecrã. Acresce que o arguido obteve e importou os conteúdos referidos para as aplicações “Photo Vault” e “Mega,”, aplicações essas que permitem a encriptação de tais conteúdos, tornando-os ocultos e possibilitando que possam ser divulgados, exibidos ou cedidos a terceiros, assim que o acesso seja disponibilizado, o que é demonstrativo da intenção de partilha. Acresce o teor da conversação mantida entre o arguido e o outro indivíduo, que não deixa margem para dúvidas quanto às suas intenções.
As testemunhas L, S e V depuseram sobre as condições de vida e personalidade do arguido, nada mais acrescentando ao que já resultava do relatório social.
O Tribunal teve ainda em consideração o CRC junto aos autos.
Quanto aos factos não provados, foram os mesmos assim considerados porque a prova produzida não permitiu concluir que efectivamente o arguido já teria procedido à partilha dos ficheiros com terceiros.
Da medida da pena:
A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art. 71º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, n. 2, do CP).
Dispõe, ainda, o art. 40º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1). Acrescenta o art. 71º, nº 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena (neste sentido, acórdão do STJ de 17-03-1999, Proc. nº 1135/98 - 3ª Secção).
No caso concreto, o crime de pornografia de menores agravado nos termos do disposto no nº 8 do art. 177º é punido com pena de 1 ano e 6 meses de prisão a 7 anos e 6 meses de prisão.
Na determinação da medida da pena, haverá que ponderar as circunstâncias em que ocorreu o crime, o grau de ilicitude dos factos, a natureza da culpa, o motivo determinantes da conduta, a situação pessoal do arguido e condições de vida, a ausência de qualquer acto demonstrativo de arrependimento, as suas condições de vida e as necessidades de garantir a reprovação e a prevenção de crime com tão ampla incidência e com efeitos tão perversos, ao nível da alteração de comportamentos a que pode dar origem e a ausência de antecedentes criminais.
Assim temos de considerar:
- as fortes exigências em termos de prevenção geral uma vez que este tipo de crime atinge um dos bens que qualquer sociedade civilizada considera de mais sagrado, a inocência própria das crianças. No caso concreto, como resulta dos factos provados quanto às condições sociais do arguido, e atenta a postura dos próprios familiares e amigos, não existe até agora uma percepção por parte da comunidade em que o arguido se insere da dimensão e gravidade da sua actuação. Ou seja, será a partir deste julgamento e desta decisão que a reprovação social mais se fará sentir;
- No que respeita ao grau de ilicitude terá o mesmo de se considerar médio-elevado no que respeita à detenção de material pornográfico atenta a considerável quantidade, o teor dessas mesmas imagens, várias delas envolvendo crianças de tenra idade;
- O dolo na modalidade mais gravosa, o arguido agiu sempre com dolo directo;
- A personalidade do arguido e o seu nível de inserção socioeconómico, reflectidos nos factos provados, bem como as limitações decorrentes da sua condição física,
- A ausência de antecedentes criminais,
- A falta de interiorização da censura que a sua conduta merece, não demonstrando qualquer arrependimento.
Tudo visto e ponderado, considera-se adequada a condenação do arguido na pena de 4 anos de prisão.
Aqui chegados importa determinar se a execução desta pena de prisão deve ser suspensa na sua execução nos termos dos arts. 50º e segs. do Cód.Penal.
Entendemos que as exigências de prevenção geral, bem como as de prevenção especial o impedem.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-12-2015 (proferido no Proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, disponível in www.dgsi.pt), «Para qualquer homem médio, os atos sexuais que envolvam menores são repugnantes e proibidos. Estamos face a um tipo de comportamentos que “antes de o ser já o eram”, ou seja, a proibição e censura desses comportamentos é inata ao ser humano, mesmo que nenhuma lei o afirmasse».
Da Directiva 2011/92/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, a que supra se aludiu, consta nos seus considerandos gerais, além do mais, o seguinte:
«O abuso sexual e a exploração sexual de crianças, incluindo a pornografia infantil, constituem violações graves dos direitos fundamentais, em especial do direito das crianças à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, tal como estabelecido na Convenção das Nações Unidas de 1989 sobre os Direitos da Criança e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. (…) o Programa de Estocolmo – Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, atribui uma clara prioridade ao combate contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil.
A pornografia infantil, que consiste em imagens de abuso sexual de crianças e em outras formas particularmente graves de abuso sexual e exploração sexual de crianças, está a aumentar e a propagar-se mediante o recurso às novas tecnologias e à Internet. (…)
Crimes graves, como a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, deverão ser tratados de forma abrangente, abarcando a repressão dos autores dos crimes, a protecção das crianças vítimas dos crimes e a prevenção do fenómeno. O superior interesse da criança deve prevalecer sobre qualquer outra consideração quando se adoptam medidas para combater estes crimes, em conformidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. (…)»
Mais recentemente, no RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E AO CONSELHO, de 16 de Dezembro de 2016, que avalia a execução das medidas referidas no artigo 25º da Directiva 2011/93/UE, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016DC0872&from=PT, consta:
«A Internet fez aumentar drasticamente os abusos sexuais de crianças na medida em que:
• facilita a partilha de material com imagens de abusos sexuais de crianças, ao oferecer uma variedade de canais de distribuição, tais como a Web, as redes de entidades homólogas (peer-to-peer), as redes sociais, os serviços de anúncios, os grupos de debate, o protocolo de comunicação «Internet Relay Chat», as plataformas de partilha de fotografias, entre muitos outros. A partilha também é facilitada pelo acesso a uma comunidade de indivíduos que partilha as mesmas ideias à escala mundial, que é uma fonte de grande procura e de apoio mútuo;
• disponibiliza os meios técnicos e as medidas de segurança que podem facilitar o anonimato;
• como consequência da forte procura de material com imagens de abusos sexuais de crianças, as crianças continuam em risco de se tornarem vítimas, enquanto o anonimato pode dificultar muito a investigação e a ação penal relativas a estes crimes; e
• os novos materiais com imagens de abusos sexuais de crianças se tornaram uma moeda de troca. Para conseguirem aceder e manter o acesso aos fóruns, é frequente os participantes terem de entregar periodicamente novos materiais, o que incentiva a prática de abusos sexuais de crianças.
O abuso sexual de crianças em linha é um crime abominável, com consequências a longo prazo para as vítimas. Os danos são causados não apenas quando o abuso é efetivamente gravado ou fotografado, mas também todas as vezes que as imagens ou vídeos são carregados, colocados em circulação ou visualizados. Para as vítimas, o facto de saberem que as imagens e os vídeos onde aparecem a ser abusadas estão a circular, e que até podem encontrar alguém que tenha visto o material, acaba por constituir um trauma ainda maior e ser uma fonte de sofrimento adicional.
Existem indicações que sugerem que a idade média das vítimas que aparecem em material com imagens de abusos sexuais de crianças está em constante diminuição: de acordo com a International Association of Internet Hotlines (INHOPE), cerca de 70 % das vítimas que constam das denúncias tratadas pelas linhas telefónicas de emergência INHOPE em 2014 pareciam ser pré-púberes. A Internet Watch Foundation (IWF) divulgou valores idênticos em 2015, acrescentando que 3 % das vítimas tinham aparentemente dois anos de idade ou menos, e que um terço das imagens mostravam crianças a serem violadas ou sexualmente torturadas».
Perante este fenómeno crescente em número e gravidade das suas consequências, as decisões dos tribunais assumem papel preponderante na dissuasão da procura deste tipo de conteúdos, e também na cessação voluntária daqueles que neste preciso momento a eles estão a aceder, assim se procurando estancar e preferencialmente diminuir a procura, com o correspondente reflexo na oferta.
Ora, esse efeito, tendo em conta a facilidade de acesso, as dificuldades na investigação e na identificação dos infractores, só pode ser alcançado através da aplicação de penas de prisão efectivas.
Mas como já se disse, são também as necessidades de prevenção especial que não permitem a suspensão da execução da pena, sendo necessário e fundamental acautelar o risco de reincidência que, no caso concreto, se considera existir já que, como se disse, o arguido não revela ter interiorizado a censurabilidade dos seus actos.
Em resumo, não se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Donde não verá o arguido suspensa a execução da pena fixada.
Ponderando as circunstâncias supra referidas, mais será o arguido condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos – cfr. art. 69º-B nº 2 do C. Penal.
(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
1 - Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e, bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto provada nos pontos 1 a 13, dos factos provados, por se fundamentar em prova proibida.
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, quanto à medida concreta da pena a que o arguido foi condenado e da sua suspensão.
- Da impugnação do Acórdão relativamente à matéria de facto provada nos pontos 1 a 13, dos factos provados, por erro de julgamento, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo ser considerado não provado por ter origem em prova proibida, nos termos do disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Apreciada a peça recursiva apresentada pelo arguido, constata-se que a mesma faz referência expressa ao artigo 412º, do Código de Processo Penal, visando a apreciação de eventuais erros de julgamento da matéria de facto, relativamente aos factos provados sob os pontos 1 a 13.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova existente nos autos e a gravada em 1ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo nº 3 e, nº 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” (violação de normas de direito substantivo) ou “in procedendo” (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-03-2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18-04-2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo”.
Na situação concreta o arguido invoca que a matéria de facto provada nos pontos indicados na peça recursiva por si apresentada, têm origem em prova proibida, que via deste vício originário ou primário determina que toda a prova secundária ou derivada se encontre contaminada e por tal constituir também prova proibida nos termos do disposto no artigo 126º, do Código de Processo Penal e ser insusceptível de fundamentar um juízo de censura da conduta do arguido e determinar a sua absolvição por falta de prova.
Alicerça esta sua convicção no entendimento que os autos tiveram origem em dados facultados pela operadora de telecomunicações MEO, relativas à identificação e à morada do utilizador, num concreto lapso temporal, com a indicação das datas e horas de início e termo da ligação, sendo estes elementos identificativos obtidos a partir do IP e com as comunicações efectuadas e não a partir da relação contratual, o que determina que sejam dados conservados pela operadora nos termos do artigo 4º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea b), da Lei nº 32/2008, de 17-07 (normativo que foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Ac. do Tribunal Constitucional nº 268/2022), porque interferem com o direito de acesso aos dados pessoais informatizados e à proibição de acesso por terceiros e com o direito à reserva da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade, constituindo por tal metadados.
Contudo dos autos resulta inequivocamente, que tais dados informáticos, resultaram de uma injunção dirigida à operadora de telecomunicações MEO, para vir aos autos identificar o titular do contrato correspondente ao IP utilizado na prática do crime, não tendo qualquer relação com os conteúdos das comunicações, nem com a lei cujas normas foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional - Lei 32/2008, de 17-07, por interferirem com o direito de acesso aos dados pessoais informatizados e à proibição de acesso por terceiros e com o direito à reserva da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade, não constituindo por tal metadados.
Foi ao abrigo do disposto no artigo 14º, nº 1 e nº 4, alínea b), da Lei do Cibercrime – Lei 109/2009, de 15-09, que os dados foram solicitados e sendo os mesmos legalmente admissíveis para a prova em relação a todos os crimes que se incluam na previsão do artigo 11º, nº1, da Lei do Cibercrime, neste caso concreto, ao abrigo, quer da alínea b), quer da alínea c) da referida norma - sem qualquer limitação de âmbito subjetivo.
Estando em causa uma investigação de um crime de pornografia de menores, cometido por meio de um sistema informático e em relação ao qual é necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, podia e devia a autoridade judiciária solicitar à fornecedora de serviço a identificação do subscritor do IP, para prova do crime cometido pelo arguido, pois constitui um dado pouco invasivo da privacidade do seu titular – cinge-se meramente à identificação do cliente, do utilizador do IP, com a morada associada.
Em face do exposto, entendemos que a informação prestada pela MEO relativa à identificação do utilizador do IP que realizou os uploads, com indicação de morada associada, foi obtida de modo legalmente permitido, pelo que não constitui prova proibida, nos termos do nº 3 do art. 126º do Código de Processo Penal.
Assim, face a este acervo de prova, terá de se concluir nos termos feitos pelo Tribunal “a quo”, pois nenhuma outra prova directa ou indirecta existe sobre a ocorrência de tais factos.
A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada.
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Ademais, ressalvado sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, o mesmo olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do “favor rei”.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente.
Este entendimento de forma alguma, viola qualquer garantia de defesa do arguido, nomeadamente as constantes do artigo 32º, nº 1 e nº 5, da Constituição da República Portuguesa, não sendo inconstitucional, porque contrário ao aí estabelecido.
Apreciada a peça recursiva apresentada pelo arguido, constata-se que a mesma não faz referência expressa à impugnação da sentença proferida relativamente à matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá também ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local mencionado supra.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, decorre terem sido apreciados os factos aportados na acusação e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Por outro lado, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Não se verifica nenhuma violação do princípio da presunção da inocência, constante do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ou qualquer violação das garantias de defesa arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem”, não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação da matéria de facto por parte do recorrente B.
- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, quanto à medida concreta da pena a que o arguido foi condenado e da sua suspensão.
Importa desde logo ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e regularidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.
Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, deve aproximar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado “quantum” em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal “a quo”) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena.
Os critérios, que devem presidir à quantificação das penas concretamente aplicáveis, são os estabelecidos pelo artigo 71º, do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação da medida da pena”, estatui:
“1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
O nº 1 do artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
Por outro lado, há que ter presente que um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena, apenas se dirá de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 84, que “a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”.
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente às penas concretas e adequadas, o artigo 71º, nº 1, do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
A moldura penal abstracta para o crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, alínea d) e nº 4 e artigo 177º, nº 7 e nº 8, do Código Penal, é pena de 1 ano e 6 meses de prisão a 7 anos e 6 meses de prisão.
Resulta do Acórdão recorrido: “Na determinação da medida da pena, haverá que ponderar as circunstâncias em que ocorreu o crime, o grau de ilicitude dos factos, a natureza da culpa, o motivo determinantes da conduta, a situação pessoal do arguido e condições de vida, a ausência de qualquer acto demonstrativo de arrependimento, as suas condições de vida e as necessidades de garantir a reprovação e a prevenção de crime com tão ampla incidência e com efeitos tão perversos, ao nível da alteração de comportamentos a que pode dar origem e a ausência de antecedentes criminais.
Assim temos de considerar:
- as fortes exigências em termos de prevenção geral uma vez que este tipo de crime atinge um dos bens que qualquer sociedade civilizada considera de mais sagrado, a inocência própria das crianças. No caso concreto, como resulta dos factos provados quanto às condições sociais do arguido, e atenta a postura dos próprios familiares e amigos, não existe até agora uma percepção por parte da comunidade em que o arguido se insere da dimensão e gravidade da sua actuação. Ou seja, será a partir deste julgamento e desta decisão que a reprovação social mais se fará sentir;
- No que respeita ao grau de ilicitude terá o mesmo de se considerar médio-elevado no que respeita à detenção de material pornográfico atenta a considerável quantidade, o teor dessas mesmas imagens, várias delas envolvendo crianças de tenra idade;
- O dolo na modalidade mais gravosa, o arguido agiu sempre com dolo directo;
- A personalidade do arguido e o seu nível de inserção socioeconómico, reflectidos nos factos provados, bem como as limitações decorrentes da sua condição física,
- A ausência de antecedentes criminais,
- A falta de interiorização da censura que a sua conduta merece, não demonstrando qualquer arrependimento.
Tudo visto e ponderado, considera-se adequada a condenação do arguido na pena de 4 anos de prisão".
Ora, atentos os factos julgados provados, os bens jurídicos protegidos pela incriminação e as circunstâncias indicadas na decisão recorrida, não se vislumbra na matéria sedimentado no Tribunal “a quo”, qualquer margem que permita afirmar que a medida da culpa do arguido foi excedida, afigurando-se a pena fixada acima do limite médio abstratamente previsto, como doseada em medida adequada aos factos apurados e ademais fixada com equilibrado critério.
Nestes termos, é de manter a pena de 4 (quatro) anos de prisão aplicada ao arguido B, pela prática em autoria material de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, alínea d) e nº 4 e artigo 177º, nº 7 e nº 8, do Código Penal, posto que não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa –, antes se mostra adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do arguido, improcedendo também, nesta parte o recurso interposto.
Por fim, quanto à eventual suspensão da execução desta pena de prisão, a que se mostra condenado o arguido B.
Resulta do disposto no artigo 50º, do Código Penal:
“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que da simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Como resulta deste preceito legal, a suspensão da execução da pena de prisão depende da verificação de dois pressupostos: um formal, que exige que a pena aplicada não seja superior a 5 anos de prisão; e um pressuposto material, relativo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
A este propósito, ensina Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 341 e sgs.: “pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente. (...). Para formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto – o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto”.
“A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
“Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (...). Já determinámos (...) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”.
Resulta com clareza do Acórdão recorrido, que por subscrevermos, reproduzimos: “Entendemos que as exigências de prevenção geral, bem como as de prevenção especial o impedem. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-12-2015 (proferido no Proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, disponível in www.dgsi.pt), «Para qualquer homem médio, os atos sexuais que envolvam menores são repugnantes e proibidos. Estamos face a um tipo de comportamentos que “antes de o ser já o eram”, ou seja, a proibição e censura desses comportamentos é inata ao ser humano, mesmo que nenhuma lei o afirmasse».
Da Directiva 2011/92/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, a que supra se aludiu, consta nos seus considerandos gerais, além do mais, o seguinte: «O abuso sexual e a exploração sexual de crianças, incluindo a pornografia infantil, constituem violações graves dos direitos fundamentais, em especial do direito das crianças à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, tal como estabelecido na Convenção das Nações Unidas de 1989 sobre os Direitos da Criança e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. (…) o Programa de Estocolmo – Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, atribui uma clara prioridade ao combate contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil.
A pornografia infantil, que consiste em imagens de abuso sexual de crianças e em outras formas particularmente graves de abuso sexual e exploração sexual de crianças, está a aumentar e a propagar-se mediante o recurso às novas tecnologias e à Internet. (…)
Crimes graves, como a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, deverão ser tratados de forma abrangente, abarcando a repressão dos autores dos crimes, a protecção das crianças vítimas dos crimes e a prevenção do fenómeno. O superior interesse da criança deve prevalecer sobre qualquer outra consideração quando se adoptam medidas para combater estes crimes, em conformidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. (…)»
Mais recentemente, no RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E AO CONSELHO, de 16 de Dezembro de 2016, que avalia a execução das medidas referidas no artigo 25º da Directiva 2011/93/UE, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016DC0872&from=PT, consta: «A Internet fez aumentar drasticamente os abusos sexuais de crianças na medida em que:
• facilita a partilha de material com imagens de abusos sexuais de crianças, ao oferecer uma variedade de canais de distribuição, tais como a Web, as redes de entidades homólogas (peer-to-peer), as redes sociais, os serviços de anúncios, os grupos de debate, o protocolo de comunicação «Internet Relay Chat», as plataformas de partilha de fotografias, entre muitos outros. A partilha também é facilitada pelo acesso a uma comunidade de indivíduos que partilha as mesmas ideias à escala mundial, que é uma fonte de grande procura e de apoio mútuo;
• disponibiliza os meios técnicos e as medidas de segurança que podem facilitar o anonimato;
• como consequência da forte procura de material com imagens de abusos sexuais de crianças, as crianças continuam em risco de se tornarem vítimas, enquanto o anonimato pode dificultar muito a investigação e a ação penal relativas a estes crimes; e
• os novos materiais com imagens de abusos sexuais de crianças se tornaram uma moeda de troca. Para conseguirem aceder e manter o acesso aos fóruns, é frequente os participantes terem de entregar periodicamente novos materiais, o que incentiva a prática de abusos sexuais de crianças.
O abuso sexual de crianças em linha é um crime abominável, com consequências a longo prazo para as vítimas. Os danos são causados não apenas quando o abuso é efetivamente gravado ou fotografado, mas também todas as vezes que as imagens ou vídeos são carregados, colocados em circulação ou visualizados. Para as vítimas, o facto de saberem que as imagens e os vídeos onde aparecem a ser abusadas estão a circular, e que até podem encontrar alguém que tenha visto o material, acaba por constituir um trauma ainda maior e ser uma fonte de sofrimento adicional.
Existem indicações que sugerem que a idade média das vítimas que aparecem em material com imagens de abusos sexuais de crianças está em constante diminuição: de acordo com a International Association of Internet Hotlines (INHOPE), cerca de 70 % das vítimas que constam das denúncias tratadas pelas linhas telefónicas de emergência INHOPE em 2014 pareciam ser pré-púberes. A Internet Watch Foundation (IWF) divulgou valores idênticos em 2015, acrescentando que 3 % das vítimas tinham aparentemente dois anos de idade ou menos, e que um terço das imagens mostravam crianças a serem violadas ou sexualmente torturadas.» Perante este fenómeno crescente em número e gravidade das suas consequências, as decisões dos tribunais assumem papel preponderante na dissuasão da procura deste tipo de conteúdos, e também na cessação voluntária daqueles que neste preciso momento a eles estão a aceder, assim se procurando estancar e preferencialmente diminuir a procura, com o correspondente reflexo na oferta. Ora, esse efeito, tendo em conta a facilidade de acesso, as dificuldades na investigação e na identificação dos infractores, só pode ser alcançado através da aplicação de penas de prisão efectivas. Mas como já se disse, são também as necessidades de prevenção especial que não permitem a suspensão da execução da pena, sendo necessário e fundamental acautelar o risco de reincidência que, no caso concreto, se considera existir já que, como se disse, o arguido não revela ter interiorizado a censurabilidade dos seus actos. Em resumo, não se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Donde não verá o arguido suspensa a execução da pena fixada. Ponderando as circunstâncias supra referidas, mais será o arguido condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos – cfr. art. 69º-B nº 2 do C. Penal”.
Efectivamente, desde logo relevam-nos os autos uma muito relevante ilicitude dos factos, atento o tipo de crime, as vítimas do mesmo e a repulsa social que o mesmo provoca, evidenciando o arguido total indiferença face às consequências da sua actuação, que revela a indiferença do arguido às regras estabelecidas e as necessidades pessoais de reinserção.
Tendo presentes estas necessidades de prevenção geral e a personalidade revelada pelo arguido em julgamento, contudo, e também ponderando, por outro lado, o arguido não ter antecedentes criminais e a sua situação pessoal, pensamos que existe a possibilidade de uma inflexão em termos de vida por banda do mesmo, designadamente renegando a prática de actos ilícitos.
Em conclusão, ponderando a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e as suas condições pessoais, entendemos que a censura do facto e a ameaça da pena de prisão deverá evitar a repetição destes comportamentos delituosos no futuro e satisfazer as necessidades de prevenção geral e de socialização do arguido, realizando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, o recurso terá de proceder nesta parte.
Em face de tudo o que se deixa exposto, procede parcialmente o recurso apresentado pelo arguido B, revogando-se em parte o Acórdão recorrido, determinando-se a suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão, sujeita a regime de prova por igual período de 4 (quatro) anos, que deverá incidir na frequência de acções de consciencialização para a gravidade, a censura social, a sensibilização do repúdio social e o flagelo humano subjacente à exploração sexual de crianças, artigos 50º, nº 1 e 53º, nº 4, do Código Penal, mantendo-se inalterado o demais decidido.
Sem custas, atenta a procedência parcial do recurso interposto.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B, revogando-se em parte o Acórdão recorrido, determinando-se a suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão, sujeita a regime de prova por igual período de 4 (quatro) anos, que deverá incidir na frequência de acções de consciencialização para a gravidade, a censura social, a sensibilização do repúdio social e o flagelo humano subjacente à exploração sexual de crianças, artigos 50º, nº 1, e 53º, nº 4, do Código Penal, mantendo-se inalterado o demais decidido.
Sem custas.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 28-01-2025
Fernando Pina
Renato Barroso
Beatriz Marques Borges