CONDOMÍNIO
CONFLITO DE INTERESSES
ANULABILIDADE
DELIBERAÇÃO
Sumário

Sumário1:
I. Por força do artigo 157º do Código Civil, que prevê a aplicabilidade das disposições do capítulo em que se insere às associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia das situações o justifique, e “resultando do condomínio um sujeito jurídico a que se aplicam , subsidiariamente , em tudo o que não pressupõe a personalidade jurídica , as normas das associações propugnamos pela aplicação no regime da propriedade horizontal do impedimento de voto em caso de conflito de interesses”.
II. É que a não ser assim, bastaria que um condómino estivesse em condições de fazer aprovar todo o tipo de deliberações em seu benefício para submeter todos os outros ao pagamento de qualquer quantia sem qualquer limite, designadamente de utilidade para os restantes condóminos, imponto critérios injustos de distribuição das despesas.
III. Existe um conflito de interesses cada vez que alguém que ocupa determinado cargo público ou privado tem interesses pessoais, societários e/ou profissionais que se podem sobrepor aos interesses associados a esse cargo.
IV. O condómino em conflito de interesses com o condomínio no assunto a deliberar, não deixa, por isso, de ser titular do direito de voto, simplesmente, pela sua posição perante o condomínio, no caso considerado, não tem legitimidade para então o exercer, pois não pode aproveitar-se do condomínio, numa relação em que é extra socialmente interessado para alcançar ou influir na obtenção do consentimento do condomínio.
V. A sanção cominada para a violação da proibição de voto é a anulabilidade, que não será declarada se se demonstrar que as deliberações teriam sido aprovadas mesmo sem o voto viciado – é a chamada “prova de resistência”- a deliberação não será anulada se o condomínio provar que, sem os voto do condómino em causa, a deliberação teria sido igualmente adotada2.

Texto Integral

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,


I.RELATÓRIO.


AA intentou ação declarativa com forma de processo comum contra Condomínio do Lote 1, NIPC ..., com sede em ..., representado pelo seu administrador e Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda, a administradora do referido condomínio pedindo:


a) a anulação das deliberações da Assembleia Ordinária, constantes da Ata n.º 16 (pontos 2 a 5);


b) a exoneração da Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda. do cargo de Administradora de Condomínio do Lote 1;


c) A condenação a Ré, no pagamento de uma indemnização, a ser arbitrada pelo Tribunal, em resultado da sua conduta.


Alegou, em resumo, ser proprietária da fração autónoma designada pela letra “Q”, que é parte integrante do prédio urbano a que se refere o condomínio demandado, que desde a sua constituição é administrado pela 2ª Ré, que as deliberações referidas enformam de vícios que as tornam anuláveis.


Assim, a deliberação sobre o orçamento para o exercício de 2022 não constava da ordem de trabalhos, pelo que a aprovação daquele orçamento é anulável nos termos do disposto no artigo 1433º, n.º 1 do Código Civil, não tendo ainda obtido a maioria dos votos representativos do capital investido necessária para a sua aprovação, conforme previsto no artigo 1432º, n.º 5 do Código Civil, mas apenas os votos que correspondem a 419‰ relativos às frações de que é titular a 2ª Ré.


Acrescentou que a aprovação das contas de 2022 sem a regular aprovação do orçamento torna tal deliberação inválida.


Mais referiu que se verifica uma situação de conflito de interesses relativamente às deliberações de aprovação do orçamento e das contas de 2022, da eleição da ora 2ª Ré como administradora do condomínio, de aprovação do orçamento para 2023, em conformidade com o disposto no artigo 176º do Código Civil, o que vicia tais deliberações.


Acrescentou que a deliberação da eleição da 2ª Ré como administradora se encontra viciada de coação sobre o condómino da fração 106, e que o regime de repartição das despesas por fração por capacitação, em vez de por permilagem, estabelecido no artigo 1424º é ilegal, que se questiona se as deliberações foram tomadas com o quórum necessário para o efeito, que o ponto 5 relativo à imputação do IVA não foi colocado à votação dos condóminos, pelo que não podem ter-se por aprovados os montantes ali mencionados como devidos por apartamento.


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Os Réus, pessoal e regularmente citados, deduziram contestação, na qual invocaram a sua ilegitimidade passiva e a legalidade das deliberações da assembleia de condóminos.


A Autora pugnou pela legitimidade passiva das Rés.

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Na audiência prévia, por se ter entendido que o pedido referido na alínea b) - exoneração da Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda. do cargo de administradora do condomínio - só podia ser apreciado nos termos do artigo 1056º do Código de Processo Civil, que configura um processo de jurisdição voluntária cuja tramitação não é compatível com a tramitação de uma ação comum, e que o Tribunal Recorrido é materialmente incompetente para conhecer deste tipo de processos, existindo, pois, cumulação ilegal de pedidos e inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, nos termos dos artigos 37º e 555º, n.º 1 do Código de Processo Civil, determinou-se a notificação da Autora para a escolher quais os pedidos que pretende continuem a ser apreciados aos autos.


Tendo Autora optado pelos pedidos a) e c), foi decidida a continuação dos autos para apreciação de tais pedidos, e absolvidos os Réus da instância, relativamente ao pedido formulado na al. b).

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O Tribunal Recorrido notificou as partes para, nos termos dos artigos 3º, n.º 3 e 591º, n.º 1, al. b), 2ª parte do Código de Processo Civil, se pronunciarem acerca da possibilidade de ser proferido saneador-sentença nos autos, considerando a matéria já assente e que a decisão da causa dependia apenas da subsunção jurídica desses factos ao direito que já havia sido debatida pelas partes, tendo as partes mantido as posições já plasmadas nos articulados.


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Foi então proferido saneador sentença que julgou improcedente a arguida exceção de ilegitimidade e a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus Condomínio do Lote 1, com sede em ... e Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda., dos pedidos.


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É desta sentença que recorre a Autora, formulando após alegações, as seguintes conclusões:


I – É objeto deste recurso a douta decisão, de que se discorda, proferida nos autos supra identificados e que decidiu pela improcedência dos pedidos da Autora.


II – A sentença recorrida encontra-se ferida de nulidade, nos termos do art 615.º, n.º1, al. c) do Código de Processo Civil, uma vez que os fundamentos se encontram em oposição, com a decisão, nos termos do art.º 615.º, n.º1, al. c) do Código de Processo Civil.


III – A Meritíssima Juiz começa por considerar que haveria necessidade de perfazer a maioria relativa de 500+1 (quinhentos mais um) de votos, para aprovar o orçamento e as contas de 2022, mas, depois considera as contas aprovadas, sem se ter conseguido alcançar a referida maioria legalmente necessária.


IV – Do mesmo modo que considera um regulamento cuja aprovação não se encontra provada nos presentes autos, para justificar a cobrança de despesa condominial, invocado que não existe norma imperativa na feitura e aprovação de regulamento de condomínio, esquecendo-se por completo do art. 1429-A CC.


V – Também não se pode concordar com a matéria de fato dada como provada, devendo a mesma ser alterada por não se encontrar refletida a realidade factual em causa, nem nos documentos e argumentos esgrimidos pelas partes.


VI – Pelo que, a mesma deverá ser alterada, nos termos supra expostos, de forma a espelhar a verdadeira realidade dos factos e a permitir uma correta aplicação do direito e com isso, uma justa composição do litígio.


VII – Uma deliberação aprovada em assembleia de condomínio sobre uma matéria que não conste da ordem de trabalhos listada na convocatória encontra-se a violar o art.º 1432.º, n.º 4 e o art.º 1433.º, n.º 1, ambos do Código Civil, devendo ser declarada anulável.


VIII – A aprovação do orçamento de 2022 não constava da ordem de trabalhos aquando da convocatória para a Assembleia de Condóminos que se realizou em 25/03/2025 (Ata n.º 16), pelo que os condóminos não puderam tomar uma decisão consciente quanto ao participar ou não na Assembleia de Condóminos, pois não conheciam de antemão, todas as matérias que iriam ser discutidas.


IX – A Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda”, é uma empresa comercial, detentora da maior percentagem do capital investido no prédio, mas também é administradora do condomínio em causa, votando esta sem si própria, na sua eleição enquanto administradora e nos orçamentos que prepare, apresenta e executa, sem controlo externo.


X – A Ré sociedade “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda”, reúne, numa só pessoa, as qualidades de administradora, proprietária, condómina, loteadora e exploradora, monopolizando a gestão dos diversos lotes/ condomínios, da Urbanização e gerindo os mesmos de modo a alcançar o seu lucro.


XI – A Ré sociedade “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda” pratica valores muito superiores às demais empresas do ramo da administração, apresentando valor de orçamento anual que ultrapassa as demais empresas, no dobro, sem justificação.


XII – A Ré sociedade cobra valores de água, aos diversos condomínios, que não se encontra justificados, nem medidos, nem faturados, fazendo negocio consigo mesmo.


XIII – A Ré sociedade utiliza os condomínios, como se uma empresa sua se tratasse de empresa, em que os custos são imputados aos condomínios (custos com os trabalhadores, com as ferramentas da sua empresa, com a manutenção dos jardins e das piscinas, com o vigilante, com a agua), mas não o lucro (da venda alfarroba, azeitona e amêndoa das árvores), que esse fica para si.


XIV – O conflito de interesses é óbvio a partir do momento, em que as despesas relativas à empresa, seus trabalhadores e seus equipamentos, são debitados ao condomínio, como se da sua própria empresa se tratasse.


XV - No loteamento em discussão não existem áreas comuns aos diversos lotes (v.g. piscina, campo de ténis, parque infantil, parques de estacionamento, passeios, etc.), apenas áreas descobertas que são logradouros dos lotes privados e cujas áreas divergem, conforme confirmado pela própria Câmara Municipal de ..., em informação datada de 2021, e pelos registos prediais dos restantes lote.


XVI – A posição de administradora permite pois à Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda” elaborar as contas de cada condomínio a seu belo prazer, imputando aos lotes habitacionais as despesas com a gestão dos lotes/ frações não habitacionais, que são propriedade privada da Ré.


XVII – A Ré, a sociedade “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda”, tira partido da sua posição enquanto administradora de condomínio, para imputar as suas próprias despesas nas contas dos condomínios dos diversos lotes, bem como da sua posição e influência enquanto promotora/ loteadora das urbanizações para imputar os custos de gestão da sua empresa e das parcelas do loteamento que lhe pertencem, retirando daí benefícios injustificados.


XVIII – É flagrante o conflito de interesses existente entre a atividade comercial da Ré e a sua posição enquanto administradora dos diversos condomínios, em particular do Lote 1, ora em discussão, tendo em conta a maioria que detém enquanto proprietária e que fazem como o seu voto seja essencial na votação de cada uma das deliberações, que são tomadas em Assembleia geral.


XIX – No caso em concreto, existe um latente conflito de interesses, de modo a que a Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda” não deveria ter votado, na deliberação relativa à votação para a eleição da administração, na votação do orçamento para 2023, e ainda na votação do orçamento e contas para 2022, nos termos do art.º 176.º, n.º 1 do Código Civil.


XX – Conforme relatado na Petição Inicial, se tornou evidente aquando da Assembleia de Condóminos de 25/03/2023, na qual a Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda” ameaçou os condóminos do Lote 1 de lhes aplicar valores superiores pelo uso das piscinas, caso não fosse eleita enquanto administradora do condomínio.


XXI – As ameaças permaneceram como “alegadas” pelo simples facto de que não foi produzida prova testemunhal, uma vez que os presentes autos não foram conduzidos a julgamento, pela Meritíssima juiz.


XXI – Porque, a provar-se, por meio de prova testemunhal, seria declarada a nulidade da deliberação da nomeação da Ré, por se encontrar viciada de coação exercida sobre os condóminos presentes na Assembleia de Condóminos, nos termos do art.º 256.º do Código Civil.


XXII – Pelo que, os presentes autos deverão ser devolvidos ao Tribunal de 1ª Instância, para que seja agendada data para audiência de julgamento, nos termos do art.º 599.º e seguintes do Código de Processo Civil, para a produção de prova em falta, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil.


XXIII – A existência, válida e eficaz de um “regulamento geral” para a Urbanização do BB, implicaria também a existência de um “regulamento específico” para o Condomínio do Lote 1.


XXIV – Tal entendimento implicaria a existência de dois regimes de propriedade horizontal: um primeiro referente ao condomínio do Lote 1, e um segundo relativo ao conjunto de edifícios e unidades imobiliárias de todo o empreendimento.


XXV - Não existe uma propriedade horizontal de todo o empreendimento, não existe um título constitutivo comum às duas urbanizações, nem tão pouco existem partes comuns ao conjunto dos dez lotes da Urbanização do BB.


XXVI – A falta um título constitutivo único da propriedade horizontal, que integre o conjunto de edifícios que compõem o empreendimento, autonomamente constituídos em propriedade horizontal, impede se considere validamente constituído um condomínio geral do empreendimento, o que conduz à falta de personalidade judiciária da entidade autora.


XXVII – Existem sim duas urbanizações, independentes entre si, cada uma constituída por prédios (lotes) autónomos e independentes, cada um com a sua propriedade horizontal, pelo que não poderão existir despesas globais de uma urbanização, que onerem os proprietários/ as frações de uma outra urbanização, sobre as quais não existe o vínculo criado pelo respetivo título constitutivo/ propriedade horizontal.


XXVIII – O sistema de “capacitação” usado como método de cálculo de supostas despesas comuns da responsabilidade das frações autónomas dos diversos lotes, da Urbanização do BB, nunca foi deliberado ou aprovado, em assembleia de condóminos.


XXIX – Nem, tão pouco, foi deliberada ou aprovada a repartição das supostas despesas comuns, utilizando o critério de repartição de 70%/30%, entre as duas urbanizações.


XXX – As únicas partes comuns do Condomínio do Lote 1 correspondem apenas ao edifício em si mesmo, constituído em propriedade horizontal, e a um logradouro com 65m2, todas e quaisquer deliberações que aprovem despesas não respeitantes às partes comuns de cada lote individualmente deverão ser declaradas nulas.


XXXI – O “regulamento” junto aos autos pelos RR encontra-se vazio de validade por não ter sido respeitada a metodologia legalmente prevista no artigo 1429.º-A do Código Civil, necessária à sua existência na ordem jurídica, aquele não faz parte do título constitutivo da propriedade horizontal de cada um dos lotes da Urbanização denominada Urbanização do BB, nem consta de qualquer deliberação e aprovação em assembleia de condóminos, pelo que deve ser declarado nulo e de nenhum efeito.


XXXII – No caso em concreto, viola-se ainda o princípio da igualdade e da proporcionalidade, onera-se, injustificadamente, a Urbanização do BB e respetivos lotes e frações autónomas e independentes.


XXXIII – Chega-se à conclusão que a Meritíssima Juíza não compreendeu as questões tanto estruturantes, como fraturantes, que foram colocadas ao Douto Tribunal, sobre este empreendimento/ loteamento, nos quais existem 10 lotes/ condomínios independentes, os quais não têm espaços/ infraestruturas comuns, não existe uma assembleia organizada entre os vários condomínios, para aprovar ou discutir o uso dos espaços que não pertencem aos lotes/condomínios e despesas para a manutenção dos mesmos.


XXXIV – Face tudo a quanto exposto deverá a decisão ser revogada e substituída por outra que conceda o supra exposto, como é de DIREITO E JUSTIÇA.


Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que decida em conformidade com o exposto supra.


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Contra-alegaram os Réus formulando a seguinte síntese conclusiva:


A. A apelante invoca a nulidade da sentença, alegando que foi desconsiderada prova produzida. Considerando que a nulidade da decisão decorre do artigo 615.º, n.º 1, al c), do Código de Processo Civil.


B. O artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil comina com nulidade a sentença (ou uma decisão – artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença, isto é, uma desconformidade formal entre o ato e a exigência legal para a sua produção.


C. Esta nulidade verifica-se sempre que o raciocínio lógico-dedutivo formulado pelo tribunal a quo não encontra o eco correlativo na decisão, que vem a ser diversa daquela que a fundamentação indicaria. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio, mas decide em colisão com tais pressupostos.


D. Não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal, porque em sentido diverso do que os factos apurados indicariam ou contra lei que lhe imporia solução jurídica diferente. Conforme menciona o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.2.2020, Rosário Morgado, ECLI:PT:STJ:2020:3294.11.2TBBCL.G1.S1, a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.


E. Neste caso, não existe a apontada nulidade. Não invoca ou justifica a apelante que o raciocínio do tribunal está ferido de desconformidade entre os fundamentos e a decisão. E também não vemos que exista. Pelo contrário, a decisão proferida é concordante com os fundamentos e argumentos utilizados pelo tribunal de primeira instância e o raciocínio é claro e lógico.


F. Na realidade, o que decorre dos fundamentos da apelante para justificar a nulidade é, na verdade, uma manifestação de discordância da decisão de facto, entendendo a apelante que o tribunal não apreciou devidamente a prova produzida, como se evidencia da análise dos fundamentos.


G. Pese embora a manifestação de discordância da decisão de facto, a apelante não a impugnou, em conformidade com o disposto no artigo 640.º, do Código de Processo Civil.


H. Pretendendo a parte impugnar a decisão do tribunal de primeira instância quanto à matéria de facto, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de: 1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a); 2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos – n.º 1, al. b); 3) propor a decisão alternativa quanto a cada dos pontos de discordância – n.º 1, alínea c).


I. É entendimento pacífico da Doutrina e da Jurisprudência que é consagrado neste preceito um ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, devendo ser justificados os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância.


J. Esta exigência de fundamentação “tem razão de ser, quer para garantir o contraditório, quer para efeito de rigorosa delimitação do objeto de recurso, até porque o sistema consagrado não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, não é compreensível que a verificação do cumprimento de tais ónus se transforme num exercício meramente burocrático” – Cf. Código de Processo Civil anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, 3ª ed. Almedina, p. 831.


K. Neste caso, apenas na motivação, e nas conclusões (o que seria obrigatório), a apelante indicou que pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, mas limitou-se a fazer afirmações esparsas, superficiais e genéricas sobre o que o tribunal deu como provado ou que devia ter dado como provado, de forma inconsistente, muitas vezes avançando e misturando de forma indistinta argumentos de direito e matéria de facto, sem analisar os meios de prova produzidos e sem criticar de forma objetiva e concreta a convicção do tribunal para julgar de facto conforme fez.


L. Não pode, pois, o seu inconformismo com a decisão de facto ser conhecido, porque não deu cumprimento aos requisitos legais respeitantes à impugnação da matéria de facto.


M. Em conclusão, não existe nulidade da decisão e a alegação de nulidade também não pode ser aproveitada para efeitos de impugnação da matéria de facto, por não se mostrar cumprido o ónus de impugnação.


N. Pelo que, improcedem todas as conclusões constantes das alegações de recurso da Apelante a que se responde.


Nestes termos, e no mais de direito que V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, doutamente suprirão, deve o recurso interposto pela Autora, ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, assim fazendo V. Exas. a costumada Justiça.


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II. Questões a decidir.


O objeto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr. artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:


- Da nulidade da sentença;


- Da alteração da decisão de facto;


- Da aptidão da factualidade dada como provada para a decisão do pedido;


- Da reapreciação jurídica da causa, designadamente se devem ser anuladas as deliberações da assembleia de condóminos dos autos.


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III. FUNDAMENTAÇÃO


III.1. Fundamentação de facto.


O Tribunal Recorrido considerou que, com interesse para a boa decisão da causa, se encontram provados os seguintes factos:


1. A Autora AA tem inscrita a seu favor, pela Ap. 2788 de 17-07-2020, a aquisição por compra da fração autónoma designada pela letra “Q”, que é parte integrante do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito em ..., sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 3980, da freguesia de ...), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 6340º da União das Freguesias de ..., tal como resulta dos documentos 1 e 2 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


2. O imóvel referido em 1) encontra-se identificado na Ata de Condomínio, objeto da presente ação, como «Fração 108».


3. O imóvel referido em 1) encontra-se integrado na ..., em ....


4. O imóvel referido em 1) integra-se na Urbanização do BB, cujo loteamento foi autorizado pela Câmara Municipal de ..., por emissão do Alvará de Loteamento n.º 2/2001, em 04/05/2001, tal como resulta do documento 3 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


5. Os dez lotes que constituem a urbanização Urbanização do BB possuem, cada um, o seu título de propriedade horizontal e, consequentemente, o seu condomínio.


6) No dia 25 de março de 2023, realizou-se a Assembleia Geral Ordinária, a qual teve a seguinte ordem de trabalhos:


«Ponto 1: Apresentação e aprovação do Regulamento;


Ponto 2: Apresentação e aprovação das contas do exercício anterior (foram aprovados o orçamento e as contas relativos ao ano 2022);


Ponto 3: Eleição da entidade administradora e representante para o novo exercício;


Ponto 4: Apresentação e votação do orçamento para o novo exercício;


Ponto 5: Apresentação e informação IVA;


Ponto 6: Outros assuntos de interesse do condomínio.», tal como resulta do documento 4 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


7. A Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda. é proprietária das frações 002, 004, 005, 102, 103, 104, 202, 203, 204, 206 e 207 do condomínio Lote 1 da ..., com a permilagem de 419‰.


8. Antes de 25 de março de 2023 não foi aprovado orçamento do condomínio do Lote 1 para o ano de 2022.


9. Na assembleia de 22 de maio de 2022, a Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda decidiu não se recandidatava à administração do condomínio do Lote 1, não tendo havido outro candidato nessa assembleia, tal como resulta do documento 5 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


10. A permilagem considerada em relação à fração referida em 1) na ata de 25 de março de 2023 foi de 53 em 1000, sendo que, no cálculo das despesas tem sido sempre calculada no valor de 50 em 1000, sendo feito a mesma lógica para todas as frações.


11. A propriedade horizontal do Lote 1 foi constituída por escritura pública de 27 de outubro de 2023, tal como resulta de fls. 211 a 215, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


12. Do regulamento da Urbanização do BB consta que os condóminos podem usar a piscina, receção, parques infantis, instalações sanitárias comuns, parques de estacionamento e serviços de vigilância, serviços incluídos nas despesas de condomínio habitacional anuais, estando os condóminos “obrigados a pagar conjuntamente com as despesas anuais do condomínio habitacional, também as despesas anuais inerentes à conservação e manutenção do empreendimento”, tal como resulta de fls. 234 a 237, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


13. As despesas do empreendimento têm sido pagas nos termos aprovados nas assembleias de condóminos desde pelo menos 2009, tal como resulta das atas de condomínio e relatórios de juntos aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


14. A Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda. foi nomeada administradora do condomínio do Lote 1 na assembleia de 18 de janeiro de 2020, tendo permanecido nessas funções até à presente data.


15. A Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda decidiu não se recandidatar como administradora do condomínio na assembleia de condóminos de 1 de maio de 2022, tendo permanecido em funções até à assembleia de 25 de março de 2023, na qual se candidatou e foi eleita administradora, tendo o mesmo sucedido na assembleia de 28 de janeiro de 2024.


16. A assembleia de condóminos utiliza o sistema de capacitação para o cálculo das quotas de condomínio da responsabilidade de cada fração autónoma.


17. A Urbanização CC encontrava-se onerada com o pagamento de 30% das despesas gerais e a Urbanização do BB com os restantes 70%º.

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Na decisão recorrida não foram considerados quaisquer factos não provados com relevância para a boa decisão da causa.


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III.2. Da nulidade da sentença.


Entende o Recorrente que a sentença é nula, por existir contradição entre os seus fundamentos e a decisão, nos seguintes pontos:


- considera-se que haveria necessidade de perfazer a maioria relativa de 500+1 (quinhentos mais um) de votos, para aprovar o orçamento e as contas de 2022, mas, depois acaba por considerar as contas aprovadas, sem se ter conseguido alcançar a referida maioria:


- refere-se que não há norma imperativa que impeça que tenha sido aprovado o Regulamento da Urbanização do BB e que os administradores do mesmo atuem de acordo com esse regulamento e distribuam as despesas de acordo com o mesmo que foi aprovado, sem se referir como, onde, e por quem foi aprovado o referido regulamento, não existindo na matéria de facto dada como provada, que o mencionado regulamento alguma tenha sido aprovado, ou tendo-o sido, como o foi.


Vejamos.


Dispõe o artigo 154º do Código de Processo Civil, no seu nº1 que “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, esclarecendo o seu nº 2 que esta não pode consistir numa simples “adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na decisão”.


Este dever geral de fundamentação dos despachos e decisões (sentenças) proferidos no processo, decorre de exigência constitucional, prevista no artigo 205 nº1 da Constituição da República Portuguesa, que exige que as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo.


O dever de fundamentação, no que respeita à sentença e à decisão de facto, impõe a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme dispõe o artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil.


Tal como decorre do artigo 607º do Código de Processo Civil, a sentença comporta três partes distintas: o relatório, onde se procede à identificação das partes, do objeto do litígio e das questões a solucionar; a fundamentação, com enunciação dos fundamentos fáctico-jurídicos da decisão; e a decisão ou parte dispositiva em que o tribunal julga da procedência do pedido do autor ou réu reconvinte ou absolve da instância por falta de pressupostos processuais ou outra irregularidade insanável.


De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. c) do C.P.C. “é nula a sentença quando (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.


A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.


Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.


No que concerne ao orçamento e às contas de 2022, nenhuma contradição se surpreende na decisão recorrida, porquanto o que se constata na decisão é que a aprovação das contas relativas a tal ano ocorreu por votos que representam uma permilagem de 521(superior, pois a 500+1), e que a aprovação das contas sana a eventual irregular falta de apresentação do orçamento relativo a tal ano.


Ali pode ler-se:

“(…) Ora, o orçamento para o ano de 2022 não foi apresentado, mas as contas foram prestadas e aprovadas pela assembleia não obstante a ausência de orçamento e a Autora não invoca que que existe qualquer irregularidade com essas contas, ou seja, que não correspondam aos gastos e receitas efetivos do condomínio.

Embora fosse uma obrigação do condomínio apresentar ao orçamento, não o tendo feito em 2022 mas apenas na assembleia, tal está implícito no ponto 2 (para aprovação e contas tem que se partir de um orçamento), não é posto em causa que as despesas e as receitas ocorreram durante o ano, ou seja, que o condomínio continuou a funcionar (a que não será alheia a circunstância da administração do condomínio ter cessado funções na assembleia de 22 de maio de 2022, não tendo havido outro candidato, pelo que se manteve em funções), mas obviamente as contas desse ano teriam que ser discutidas e aprovadas (ou não), o que efetivamente sucedeu com a sua aprovação por maioria, tal como resulta da ata de 25 de março de 2023 aqui em análise, sendo que a aprovação do orçamento tardia e a posteriori, destituída de quaisquer outros factos, não inquina a deliberação com qualquer vício que conduza à sua invalidade.

O facto de não constar da ordem de trabalhos a aprovação do orçamento é inócuo, dado que na prática, não existiu um orçamento em 25 de março de 2023 relativo ao ano de 2022, que é uma estimativa, mas apenas a apresentação e aprovação das contas dos gastos e receitas efetivas do ano de 2022 (dado que já não está em causa uma previsão, mas um facto consumado).

Por outro lado, tal situação perde ainda mais relevância, uma vez que a Ré Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda sempre teria que se manter em funções até que fosse nomeada uma nova administração e teria que administrar o condomínio, tal como resulta do artigo 1435º, n.º 5 do Código Civil.(…)”

No que concerne ao Regulamento, o que se refere na decisão recorrida no ponto salientado pela Recorrente não se refere ao Regulamento do Condomínio mencionado no ponto I da Ordem de Trabalhos – esse não foi aprovado, como consta do ponto I da ata da assembleia de condóminos em causa - mas antes Regulamento da Urbanização do BB, referido no ponto 12 dos factos assentes.


É o que decorre do seguinte excerto:

“/…)Na situação dos autos, a Autora e os seus antepossuidores, bem como todos os demais comproprietários desde pelo mesmo 2009 que pagam as despesas do empreendimento nos termos agora deliberados pelo Regulamento Geral do da Urbanização do monte da Eira sem que o mesmo tenha sido posto em causa, aceitando a divisão dos valores efetuada, pelo que sempre se entenderia que se estava perante uma situação extraordinária em que, por verificação de abuso de direito na modalidade de supressio, deveria ser considerada válida a deliberação que aprovou o orçamento para o ano de 2023.

De facto, os demais condóminos aceitam tal divisão e apenas se tem notícia da Autora como discordando da mesma, o que reforça a convicção que, por a maioria concordar com a divisão das despesas há vários anos, deve-se manter a situação já existente.

Nem se diga que poderiam ter aceite por desconhecerem que alegadamente estavam a ser lesados, mas basta ler as atas para que resulta que a Autora desde que recentemente se tornou condómina, já alertou para essa situação e apenas a mesma se insurgiu com a situação, pelo que seria um abuso de direito alterar uma situação que tem decorrido com normalidade por um dos condóminos discordar das mesas, ao contrário da maioria.(…)”

Não se verifica, pois, qualquer incompatibilidade lógica, ou ininteligibilidade, ou ainda qualquer vício de raciocínio.


Não ocorre, portanto a nulidade arguida, pelo que improcede a pretensão recursiva neste segmento.


Apurar se o Tribunal Recorrido errou ao considerar improcedente a pretensão da Autora, prende-se, não com a regularidade formal da sentença, ou com a ocorrência de contradição entre os fundamentos e a decisão, mas com a apreciação do mérito da decisão, para avaliar se ocorreu erro de julgamento.


É a tarefa que empreenderemos de seguida.


*


III.3. Da alteração da matéria de facto.


A sentença recorrida foi proferida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 595º, nº 1, al. b) e nº 3, do Código de Processo Civil.


E a factualidade dada como provada foi assim considerada em resultado da “análise crítica e ponderada dos seguintes meios de prova”:


a) acordo das partes, nos termos do artigo 574º, nos 2 e 3 do Código de Processo Civil, relativamente aos factos disponíveis em causa nos autos.


b) documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados pelas partes ou constituem documento autêntico ou, tendo sido junto com a contestação, os Autores tinham 10 dias para o fazer após a notificação dos mesmos, independentemente de não ser admissível outro articulado nos autos (artigos 427º, 444º e 446º do Código de Processo Civil).


Ali se faz a seguinte referência:


“Especificadamente:


Factos 1 a 17 - Provados com base no acordo das partes e nos documentos juntos aos autos.”


Sustenta a Autora que:


- encontrando-se dado como provado o seguinte: «10) A permilagem considerada em relação à fração referida em 1) na ata de 25 de março de 2023 foi de 53 em 1000,sendo que, no cálculo das despesas tem sido sempre calculada no valor de 50 em 1000, sendo feito a mesma lógica para todas as frações.» estes valores não constam de qualquer documento oficial, seja este um regulamento, seja este uma escritura de propriedade horizontal ou mesmo de uma ata de condomínio do referido Lote, e que este valor não pode ser replicado por 24 frações, pois ultrapassará os 1000, de permilagem. E se dividirmos os 1000/24 frações, o valor alcançado será de 41,66, por fração, pelo que este ponto deverá ser retirado;


- ao ponto «11) A propriedade horizontal do Lote 1 foi constituída por escritura pública de 27 de outubro de 2023, tal como resulta de fls. 211 a 215, cujo teor se por integralmente reproduzido.» deverá ser aditado: “e da mesma não consta qualquer regulamento de condomínio”;


- ao ponto «12) Do regulamento da Urbanização do BB consta que os condóminos podem usar a piscina, receção, parques infantis, instalações sanitárias comuns, parques de estacionamento e serviços de vigilância, serviços incluídos nas despesas de condomínio habitacional anuais, estando os condóminos “obrigados a pagar conjuntamente com as despesas anuais do condomínio habitacional, também as despesas anuais inerentes à conservação e manutenção do empreendimento”, deverão seguir-se os seguintes:


“13) O referido regulamento não se encontra aprovado nas atas de condomínio, do Lote 1, juntas aos autos, nem da escritura de propriedade horizontal, desconhecendo-se se o mesmo se encontra validamente aprovado.” Este ponto foi um ponto controvertido, e não foi objeto de prova.


“14) Para além da assembleia de condomínio do lote 1, nunca foi realizada uma assembleia geral na qual os diversos lotes se encontrassem reunidos, para discutir o que seriam considerados espaços de uso comum, despesas associadas e respetiva forma de pagamento.”


- ao ponto «16) A assembleia de condóminos utiliza o sistema de capacitação para o cálculo das quotas de condomínio da responsabilidade de cada fração autónoma.» deverá ser aditado: “sem que tal método tenha sido objeto de discussão e aprovação nas diversas assembleias gerais do Lote 1”;


- ao ponto «17) A Urbanização CC encontrava-se onerada com o pagamento de 30% das despesas gerais e a Urbanização do BB com os restantes 70%.» deverá ser aditado: “sem que as proporções tenham sido objeto de deliberação e aprovação junto de uma assembleia geral dos diversos lotes, dos empreendimentos.


Ora, há desde logo que referir que a tarefa de analisar a impugnação da matéria de facto deve ser realizada tendo presente que por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insuscetível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (artigos. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do Código de Processo Civil).


As alterações que a Recorrente pretende ver introduzidas prendem-se, em qualquer dos casos, com a circunstância de os procedimentos e critérios vertidos nos pontos em causa não terem sido objeto de aprovação por deliberação da Assembleia de Condóminos.


Sucede que, em face da pretensão da Autora, tais factos são irrelevantes, pois a mesma funda a sua pretensão de anulação das deliberações em causa, não por observarem critérios que não foram sujeitos a aprovação, mas antes em irregularidades de convocatória, na existência de conflito de interesses, de coação, de ilegalidade do regime de capacitação em substituição do da permilagem, da utilização de “quorum subsidiário”, na falta de deliberação no que respeita à imputação do IVA.


Nesta perspetiva, admite-se que relevaria a circunstância de os documentos e critérios em causa e a que se referem os pontos de facto indicados, terem sido aprovados por assembleia de condóminos, mas não a de não o terem sido, facto negativo que, aliás, como a Recorrente admite, é controvertido, não sendo esse o fundamento de anulabilidade em que a Autora funda a sua pretensão.


Conclui-se, pois que, nesta parte, improcedem as conclusões do recurso.


*


III.4. Da aptidão da factualidade dada como provada para a apreciação da pretensão anulatória da Autora.


A Autora peticionou:


a) a anulação das deliberações da Assembleia Ordinária, constantes da Ata n.º 16 (pontos 2 a 5);


b) a exoneração da Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda. do cargo de Administradora de Condomínio do Lote 1;


c) A condenação a Ré, no pagamento de uma indemnização, a ser arbitrada pelo Tribunal, em resultado da sua conduta.


Tendo sido proferida decisão que absolveu da instância os Réus relativamente ao pedido formulado na al. b) – por se ter entendido que se verificada cumulação ilegal de pedidos - e de absolvição do pedido formulado na alínea c) – por se ter entendido que não foram alegados quaisquer danos que a Autora tivesse sofrido com a conduta da Ré - a Recorrente não dirige a sua pretensão recursiva quanto a tais segmentos da sentença recorrida, pelo que no presente recurso apenas está em causa o pedido formulado sob a al. a).


E mesmo quanto a este importa salientar que a Apelante não se insurge quanto ao ponto n.º 5 da ordem de trabalhos, relativamente ao qual se fundamentou a improcedência do pedido na circunstância de com respeito a tal ponto, “Apresentação e votação de IVA”, “não ter sido aprovada ou recusada qualquer deliberação de cobrança de IVA, como a própria Autora reconhece, pelo nada há a apreciar.”


O objeto do recurso dirige-se, pois, apenas quanto ao pedido formulado na al. a), na parte em que se pediu a anulação das deliberações da Assembleia Ordinária, constantes da Ata n.º 16 - pontos 2 a 4.


Alegando ser proprietária da fração autónoma designada pela letra “Q”, que é parte integrante do prédio urbano a que se refere o condomínio demandado, que desde a sua constituição é administrado pela 2ª Ré, entende que as deliberações referidas enformam de vícios que as tornam anuláveis.


Assim, a deliberação sobre o orçamento para o exercício de 2022 não constava da ordem de trabalhos, pelo que a aprovação daquele orçamento é anulável nos termos do disposto no artigo 1433º, n.º 1 do Código Civil, não tendo ainda obtido a maioria dos votos representativos do capital investido necessária para a sua aprovação, conforme previsto no artigo 1432º, n.º 5 do Código Civil, mas apenas os votos que correspondem a 419‰ relativos às frações de que é titular a 2ª Ré.


Acrescentou que a aprovação das contas de 2022 sem a regular aprovação do orçamento torna tal deliberação inválida.


Mais referiu que se verifica uma situação de conflito de interesses relativamente às deliberações de aprovação do orçamento e das contas de 2022, da eleição da ora 2ª Ré como administradora do condomínio, de aprovação do orçamento para 2023, em conformidade com o disposto no artigo 176º do Código Civil, o que vicia tais deliberações.


Acrescentou que a deliberação da eleição da 2ª Ré como administradora se encontra viciada de coação sobre o condómino da fração 106, e que o regime de repartição das despesas por fração por capacitação, em vez de por permilagem, estabelecido no artigo 1424º é ilegal, que se questiona se as deliberações foram tomadas com o quórum necessário para o efeito.


Estando em causa o conhecimento imediato do pedido deduzido pelo autor ou pelo réu, em sede de despacho saneador, em razão da viabilidade ou inviabilidade da pretensão daquele, importa não esquecer que, como explica Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pág. 659), tal conhecimento é admissível “quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa” e, designadamente, quando dos factos alegados pelo autor (na petição, na eventual réplica e em articulado complementar ou superveniente que porventura tenha tido lugar), determinam a procedência do pedido e os alegados pelo réu, para contrariar a pretensão do autor, não determinam a inviabilidade do mesmo. Em tal situação, é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para obviar à procedência do pedido.


Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 696-697) explicam que a “antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas”, designadamente quando “seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afectada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito”.


Do mesmo modo “se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da acção, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da acção para audiência final”.


E mais explicam que “nem sequer está afastada a possibilidade de apreciação do mérito, apesar da existência de outras soluções plausíveis sustentadas em matéria de facto ainda controvertida, desde que o juiz esteja ciente da segurança da sua decisão, embora neste caso deva avaliar os riscos de uma posterior anulação pela Relação, com fundamento da necessidade de ampliação da matéria de facto (artigo 662º, nº. 2, al. c), in fine)”.


Mas vamos por partes.


Na decisão recorrida, depois da descrição adequada do regime aplicável às deliberações de assembleia de condóminos, em termos que não merecem reparo e que, por isso, nos dispensamos de reproduzir, afirmou-se a improcedência do pedido relativamente aos seguintes pontos:

Ponto 2: Apresentação e aprovação das contas do exercício anterior (foram aprovados o orçamento e as contas relativos ao ano 2022);

Ponto 3: Eleição da entidade administradora e representante para o novo exercício;

Ponto 4: Apresentação e votação do orçamento para o novo exercício.

Desde logo considerou-se que não se verificavam os pressupostos da anulabilidade das mesmas previstos no artigo 176º do Código Civil, entendimento com que a ora Apelante não se conforma.


Vejamos então.


Decidiu-se no Acórdão desta Secção de 27.06.20243 que:


“I. Apesar de no regime jurídico da propriedade horizontal não existir uma norma como a do art.º 176º do Cód. Civil que veda o exercício do direito de voto ao associado, por si ou como representante doutrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, sufragamos o entendimento expresso por Sandra Passinhas4 de que “resultando do condomínio um sujeito jurídico a que se aplicam , subsidiariamente , em tudo o que não pressupõe a personalidade jurídica, as normas das associações propugnamos pela aplicação no regime da propriedade horizontal do impedimento de voto em caso de conflito de interesses”.


II. As deliberações tomadas com infracção deste impedimento legal, são anuláveis desde que o voto do condómino impedido seja essencial à existência da maioria necessária (cfr. art.º 176º, nº2 do Cód. Civil)”.


Sufragamos inteiramente tal entendimento.


Na verdade, por força do artigo 157º do Código Civil, que prevê a aplicabilidade das disposições do capítulo em que se insere às associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia das situações o justifique, e “resultando do condomínio um sujeito jurídico a que se aplicam , subsidiariamente , em tudo o que não pressupõe a personalidade jurídica , as normas das associações propugnamos pela aplicação no regime da propriedade horizontal do impedimento de voto em caso de conflito de interesses”.


É que a não ser assim, bastaria que um condómino estivesse em condições de fazer aprovar todo o tipo de deliberações em seu benefício para submeter todos os outros ao pagamento de qualquer quantia sem qualquer limite, designadamente de utilidade para os restantes condóminos, imponto critérios injustos de distribuição das despesas.


Existe um conflito de interesses cada vez que alguém que ocupa determinado cargo público ou privado tem interesses pessoais, societários e/ou profissionais que se podem sobrepor aos interesses associados a esse cargo.


O artigo 176º do Código Civil estatui que:


“1- O associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes.


2- As deliberações tomadas com infração no disposto no número anterior, são anuláveis se o voto do associado impedido for essencial à existência da maioria necessária”.


Esta é, claramente, uma norma proibitiva, que faz parte de uma das técnicas (a proibicionista) de regulação de conflito de interesses, no que ao caso respeita, no âmbito dos condomínios. Mais propriamente, é uma norma impeditiva de atuação em situação de conflito de interesses, que pressupõe, naturalmente, que a existência de uma incompatibilidade substancial entre o interesse direto e imediato do condómino e o interesse do condomínio – v.g., por exemplo, o interesse do condómino administrador, por um lado, em se manter em funções e ser por elas reconhecido, e, o interesse do condomínio em ser corretamente gerido, à luz dos seus objetivos societários.


Tal norma tem carácter injuntivo; isto é, o que nela se dispõe é que o condómino não pode exercer o direito de voto se, como vimos, estiver em discussão um assunto em que o seu interesse conflitua com o do condomínio5.


O conceito de conflito de interesses, pressuposto da proibição de voto, não é definido nesta norma, nem nos lugares paralelos do direito privado, nomeadamente no Código das Sociedades Comerciais que regula esta matéria a propósito da sociedade por quotas, no artigo 251º6, formulando uma cláusula geral, seguida de exemplos, e nas sociedades anónimas, no artigo 384º, n.º 67, cf. ainda a norma contida no artigo 410º, n.º 6 do Código das Sociedades Comerciais8, relativa à votação em caso de conflito de interesses.9


Porém, a estrutura do conflito, de qualquer conflito de interesses, e portanto, também no âmbito do condomínio, pode, como refere Manuel Pita10 “ser alcançada com base no último exemplo apresentado pelo CSC nos preceitos citados, “qualquer relação estabelecida ou a estabelecer entre a sociedade e o sócio, estranha ao contrato de sociedade”; se o sócio fosse admitido a votar sobre a definição dos termos da relação a estabelecer consigo, estaria a ser juiz em causa própria. Esta ideia de proibição de ser juiz em causa própria justifica também a proibição de voto nos outros exemplos e é ela que deve guiar a aplicação deste artigo.”


Para que de conflito de interesses se possa falar é necessário que se verifique uma “situação de incompatibilidade e de relevância material, bastando, porém, a sua simples potencialidade objetiva.


Quer isto dizer: é necessário que (i) os interesses fundamentais das partes em questão sejam verdadeiramente inconciliáveis, na justa medida em que a prossecução de um importa a exclusão ou, pelo menos, o prejuízo sério do outro; e (ii) que tal situação de incompatibilidade se refira a interesses materialmente relevantes que convoquem ao palco a necessidade do arbítrio do Direito. Tal não acontecerá se, não obstante a incompatibilidade, a prossecução ou frustração dos interesses em causa for social e economicamente irrelevante, segundo padrões de normalidade.”11


“A lei visa, assim, neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente.


A lei não se basta, portanto, com mecanismos reativos, designadamente a anulabilidade das deliberações abusivas que atribuam vantagens especiais aos sócios em situação de conflito de interesses. Com o impedimento de voto, ela intenta prevenir o risco de eles serem especialmente avantajados em detrimento da sociedade. O impedimento de voto é instrumento preventivo que atua no procedimento deliberativo; a anulabilidade de deliberação abusiva é instrumento reativo que atua sobre o conteúdo deliberativo”12.


O condómino em conflito de interesses com o condomínio no assunto a deliberar, não deixa, por isso, de ser titular do direito de voto, como refere a ora Apelada, simplesmente, pela sua posição perante o condomínio, no caso considerado, não tem legitimidade para então o exercer, pois não pode aproveitar-se do condomínio, numa relação em que é extra socialmente interessado para alcançar ou influir na obtenção do consentimento do condomínio.


A sanção cominada para a violação da proibição de voto é a anulabilidade, que não será declarada se se demonstrar que as deliberações teriam sido aprovadas mesmo sem o voto viciado – é a chamada “prova de resistência”- a deliberação não será anulada se o condomínio provar que, sem os voto do condómino em causa, a deliberação teria sido igualmente adotada13.


Um tal regime é, patentemente, simples emanação do princípio geral de aproveitamento do acto jurídico, traduzido pela regra utile per inutile non vitiatur: é de elementar bom senso – sublinha-se – não invalidar uma deliberação por serem nulos os votos inúteis para a deliberação a tomar14.


Expostas as considerações que antecedem, estamos em condições de regressar ao caso dos autos.


Entendemos que as deliberações relativas à aprovação do orçamento e contas do ano de 2022, da eleição da administração para o ano de 2023 e do orçamento para o ano de 2023 consubstanciam uma situação de conflito de interesses para a ora Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda.”.


Na verdade, em causa, em qualquer das deliberações, encontra-se a definição da sua própria remuneração pela prestação dos serviços de administração do condomínio, que, como resulta claro relativamente ao ano de 2023, de todas as propostas que foram apresentadas, era a mais onerosa - a Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda” propôs cobrar para os serviços de administração o valor de 3.501,76€, enquanto as demais cobrariam 3.188,16€ (Grupo Ria) e/ou 1.416,96€ (Homepro).


O mesmo acontece com o valor global, da administração do Lote 1, que para 2023, a Ré “Morgado-Nora Velha-Promoção Imobiliária e Turística, Lda.” propôs o valor de 21.927,94€ (anexo VIII da ata nº16) enquanto, as demais apresentaram 10.951,74€ (Grupo Ria) e 10.991,00€ (Homepro) – a Ré propôs cobrar mais do dobro do valor.


Existe, pois, um claro conflito de interesses entre a sociedade Ré, na exploração da sua atividade comercial no condomínio em questão, atividade essa orientada na obtenção de lucro, entre o seu interesse em se manter em funções e ser por elas remunerada, em valor muito superior ao proposto por outras sociedades, e, o interesse do condomínio, de todos os condóminos, em ser corretamente gerido.


E o certo é que nenhuma das deliberações passa na chamada “prova de resistência” ou seja, nenhuma teria sido aprovada sem o voto da Ré.


Quanto ao orçamento de 2022, que, de resto não constava da ordem de trabalhos, sendo por via de tal omissão, a deliberação também anulável, como entende a Apelante, o mesmo foi aprovado apenas com os votos da Ré, que representam 419‰, sendo que tal votação não cumpre sequer a maioria prevista no artigo 1432º, n.º 5 – a maioria do capital investido, ou seja 500+1.


No que concerne às contas e orçamento, respetivamente de 2022 e 2023 e à eleição, também não seriam aprovadas sem os votos da Ré, pois, retirando estes ficariam, no que aos pontos 2 e 3 respeita, 102‰ a favor (521‰-419‰) das mesmas e 143‰ contra (53‰+53‰+37‰ (frações 008, 108 e 205), e quanto ao ponto 4, 142‰(561‰-419‰) a favor e 143‰ contra (53‰+53‰+37‰ (frações 008, 108 e 205).


As deliberações tratam, pois, de matérias em que ocorre conflito de interesses entre a administradora, condómina e simultaneamente prestadora de serviços ao condomínio, que aufere remuneração e o preço de tal prestação, e o condomínio e a pretensão dos condóminos em que o mesmo seja gerido de forma eficiente e transparente, situação que a privaria do direito de voto, mas que foram aprovadas precisamente pelo domínio que a mesma detém no universo dos condóminos, para o que basta atender aos factos considerados provados e aos documentos nos mesmos referidos e a todos os juntos aos autos, que como é sabido, devem ser considerados nos termos do disposto no artigo 607º n.º 4 do Código de Processo Civil.


Assiste, pois, razão à Apelante quando entende que tais deliberações são anuláveis.


Sufragando-se embora interpretação dos preceitos legais aplicáveis diversa da realizada pelo Tribunal Recorrido, importa concluir que os autos reuniam os pressupostos para que o pedido fosse conhecido, sem necessidade de produção de prova quanto a factos controvertidos, pois do confronto da vertente fáctica da causa de pedir com as várias soluções plausíveis de direito, pode concluir-se que essa atividade probatória se apresenta como inútil - nenhum dos factos articulados pela Ré permitia a afirmação da validade das deliberações em causa, em face da verificação do conflito de interesses e da não subsistência das mesmas em face do comumente designado “teste de resistência”.


E, por isso, a ação estava inevitavelmente votada ao sucesso, sem necessidade de mais provas.


O que determina, sem necessidade de maiores considerações e de análise de mais argumentos, a procedência da apelação.


*


IV.DECISÃO


Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, e, em consequência, declara-se anuladas as deliberações constantes dos pontos 2 a 4 da ata n.º 16 da assembleia do condomínio Réu realizada no dia 25 de março de 2023.


Custas pelas Apeladas.


Registe e notifique.


*


Évora, 30.01.2025


Ana Pessoa


Maria Adelaide Domingos


Manuel Bargado

__________________________________

1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎

2. Cf. Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. I, Almedina, pág. 715.↩︎

3. Proferido no âmbito do processo n.º 467/21.3T8TMR.E1↩︎

4. A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal, Almedina, pag. 230 e segs.↩︎

5. Cf. Pedro de Albuquerque e Diogo Costa Gonçalves, “O impedimento do exercício do direito de voto como proibição genérica de atuação em conflito”, publicado na Revista de Direita das Sociedades, Ano III (2011), n.º 3, págs. 682 e 683.↩︎

6. 1 - O sócio não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade. Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar de deliberação que recaia sobre:

a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização;

b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal;

c) Perda pelo sócio de parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204.º, n.º 2;

d) Exclusão do sócio;

e) Consentimento previsto no artigo 254.º, n.º 1;

f) Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão de fiscalização;

g) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade.↩︎

7. “Um acionista não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando a lei expressamente o proíba e ainda quando a deliberação incida sobre:

a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do acionista, quer nessa qualidade quer na de membro de órgão de administração ou de fiscalização;

b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o acionista ou deste contra aquela, quer antes quer depois do recurso a tribunal;

c) Destituição, por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social;

d) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o acionista, estranha ao contrato de sociedade.”↩︎

8. “O administrador não pode votar sobre assuntos em que tenha, por conta própria ou de terceiro, um interesse em conflito com o da sociedade”.↩︎

9. Como referem Pedro de Albuquerque e Diogo Costa Gonçalves, na obra citada a págs 685:

“III – Dois exemplos de escola ajudam a ilustrar esta ideia.

Se A e B (pai e filho), são acionistas de uma mesma sociedade e em determinada Assembleia Geral se vai deliberar a constituição de certa relação jurídica com o pai A, não só este está impedido de votar como, possivelmente, também B não poderá votar já que é de supor que terá um interesse indireto, colateral ou correlacionado com o interesse principal em conflito.

Do mesmo modo, se em determinada Assembleia Geral se vai deliberar a realização de certa operação económica com o acionista X, Y, também acionista e entidade promotora ou financiadora da operação em causa, também não poderá votar na referida Assembleia Geral.

Em ambos os exemplos de escola outra coisa não se faz do que aplicar a norma que se retira do artigo 384.°/6: a proibição de exercício do direito de voto em situação de conflito de interesses.”↩︎

10. Código Civil Anotado, Ana Prata, Coord., Almedina, 2022, pg. 231.↩︎

11. Pedro de Albuquerque e Diogo Costa Gonçalves, “O impedimento do exercício do direito de voto como proibição genérica de atuação em conflito”, publicado na Revista de Direita das Sociedades, Ano III (2011), n.º 3, pág. 680. Estes Autores defendem a possibilidade de verificação de uma presunção “hominis” de atuação em conflito de interesses, nos seguintes termos:

“28. Tendo em conta a normalidade do comércio jurídico e as práticas difundidas na vida económica é possível sustentar a existência de presunções hominis de atuação em conflito de interesses.Tais presunções terão por objeto, sobretudo, a atuação de outros acionistas que, sem estabelecer uma relação com a sociedade, possam estar em conflito de interesses nos termos ilustrados.

29. Basta, para o efeito, que segundo critérios de razoável normalidade, um homem médio, com o mínimo de conhecimento da atividade económica e ante a informação disponível, possa estar convicto da existência de um conflito de interesses.

30. A verificação de uma presunção hominis implica uma moderação do ónus da prova, permitindo uma produção de prova prima facie sempre que, segundo juízos de razoabilidade, o facto desconhecido é tido como certo pela experiência comum e o esforço da sua comprovação se revela manifestamente excessivo ou, até, impossível.

31. A verificação de uma presunção hominis de conflito de interesses importa, assim, a inversão do ónus da prova, passando a caber ao acionista sobre o qual a presunção recai a realização do esforço necessário a provar a inexistência de uma situação de conflito.”

↩︎
12. Cf. Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, Almedina, pág.130.↩︎

13. Cf. Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. I, Almedina, pág. 715.↩︎

14. José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, cit., pág. 42, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 268, Brito Correia, Direito Comercial, Volume II, Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1990, pág. 318 e Acs. da RC de 02.11.10 e da RL de 07.07.09, www.dgsi.pt.↩︎