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ADMISSIBILIDADE DE DEPOIMENTO DE ADVOGADO
SIGILO PROFISSIONAL
Sumário
I - Para se concluir pela violação do sigilo profissional não basta exercer uma profissão sujeita a tal sigilo, é ainda necessário que os factos que se pretende revelar se encontrem abrangidos pelo sigilo profissional, ou seja, factos cujo conhecimento seja obtido pelo exercício das funções. II - Não viola o segredo profissional previsto no art.º 92.º do EOA o Advogado que simultaneamente é Diretor de Recursos Humanos, que declara não estar obrigado ao dever de sigilo profissional, quando estão em causa factos cujo conhecimento não tenha sido obtido por força do exercício das funções de Advogado.
Texto Integral
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo cautelar de suspensão de despedimento em que é Requerente AA e Requerida EMP01..., veio a requerida recorrer da decisão que admitiu a prestação de depoimento da testemunha BB, advogado, diretor de recursos humanos da requerida, por o Tribunal a quo ter considerado que a testemunha era diretor de recurso humanos, jurista, não estando a atuar como advogado.
A testemunha BB foi inquirida na sessão de julgamento que teve lugar no dia 14.10.2024, passando a transcrever o que a este propósito se fez constar da respetiva ata: “TESTEMUNHAS DO REQUERENTE BB, advogado, residente na Rua ..., ... Antes de iniciar o seu depoimento, a Mm. ª Juiz fez sentir ao depoente a importância moral do juramento a prestar e o dever de ser fiel à verdade, advertindo-o, ainda, das sanções aplicáveis às falsas declarações. Aos costumes disse que é diretor de recursos humanos e jurista da requerida, exercendo pontualmente as funções de advogado também para a requerida, não o impedindo tais factos de dizer a verdade, não entendendo que esteja impedido de depor como testemunha em violação do segredo profissional a que está sujeito no âmbito da sua profissão. Prestou juramento legal. Inquirido, respondeu a toda a matéria. Neste momento, pelo ilustre mandatário da requerida foi pedida a palavra o que a Mm. ª Juiz concedeu e no uso da mesma foi dito, em resumo, que se opõe que a testemunha sob inquirição preste depoimento por ter exercido funções de advogado na requerida. A Mm. ª Juiz proferiu despacho no sentido de dizer que a testemunha não está impedida de prestar depoimento.”
Inconformada com tal despacho interlocutório na parte em que admitiu o depoimento da visada testemunha, veio a Requerida interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões que passamos a transcrever: “Conclusões:
(…)
O Requerente apresentou contra-alegação, concluindo pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente em separado e com efeito devolutivo.
Chegados os autos a este Tribunal, foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer no sentido da improcedência da apelação.
A Recorrente veio manifestar a sua discordância com o parecer do Ministério Público, concluindo pela procedência do recurso.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nº 1, do Código de Processo Civil), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar da admissibilidade do depoimento prestado pelo diretor de recursos humanos e advogado da requerida.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A constante do relatório que antecede.
A que acrescem os seguintes:
- A testemunha BB é advogado de profissão.
- Ao serviço da requerida a testemunha era o diretor dos recursos humanos e exercia a atividade de consulta jurídica e assessoria jurídica e quando necessário de patrocínio judiciário com mandato forense.
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
Da admissibilidade do depoimento da testemunha/advogado
A recorrente veio impugnar a admissibilidade de meio de prova, mais precisamente veio impugnar a admissibilidade do depoimento prestado pela testemunha arrolada pelo requerente/recorrido BB, pelo facto de estar inscrita na Ordem dos Advogados e nessa qualidade ter praticado atos próprios de advogado para a recorrente, estando por isso impedido de prestar declarações como testemunha no âmbito deste processo, uma vez que as suas declarações se encontram abrangidas pelo segredo profissional previsto no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados(doravante EOA).
Insurge-se assim a recorrente, quanto ao facto de ter sido admitido como meio de prova o depoimento da testemunha que é advogado de profissão e exerce ao seu serviço as funções de diretor de recursos humanos, em violação do prescrito no artigo 514.º do CPC e no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Vejamos se lhe assiste razão.
Prescreve o art.º 514.º do CPC, sob a epígrafe “Fundamentos de Impugnação” que, “A parte contra a qual for produzida a testemunha pode impugnar a sua admissão com os mesmos fundamentos por que o juiz deve obstar ao depoimento.”
Os fundamentos pelos quais o juiz deve obstar ao depoimento são os seguintes:
- quando a testemunha não tiver aptidão física e mental para depor sobre os factos que constituam objeto de prova – cfr. art.º 495.º n.º 1 do CPC.;
- quando a pessoa indicada como testemunha possa depor como parte – cfr. art.º 496.º do CPC;
- quando a pessoa que se apresente como testemunha não corresponda à que foi oportunamente arrolada como tal.
E prescreve o art.º 92.º da EOA o seguinte: 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional. 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5. 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.
Decorre ainda do prescrito do art.º 417.º do CPC. que “1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. 3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4. 4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Daqui resulta que o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem dois limites: o respeito pelos direitos fundamentais, impostos pela Constituição e o respeito pelo dever de sigilo. Um dos motivos da recusa em depor verifica-se quando o acatamento da colaboração importar a violação do sigilo profissional. Assim, caso a caso importa determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege pelo princípio da proporcionalidade (art.º 2.º da CRP). Face à existência de um interesse probatório legítimo, deve fazer-se um reequilíbrio dos valores em conflito rejeitando uma conceção intangível das normas sobre o sigilo.
Desta forma e tendo presente o ónus de colaboração, nada impede que um advogado arrolado como testemunha, que conheça factos relevantes para a descoberta da verdade, possa prestar depoimento, o que significa que o facto de se exercer a profissão de advogado não é por si só impeditivo de poder depor como testemunha.
Cabe ainda referir que estando em causa a violação do dever de sigilo profissional é necessário que determinado sujeito exerça determinada profissãoque lhe imponha esse dever – tal como sucede com a profissão de advogado - e que o sigilo respeite a factos cujo conhecimento tenha sido obtido por força do exercício das suas funções, ou seja impõe-se que os factos que se pretenda revelar se encontrem abrangidos pelo sigilo profissional.
Por fim, prescreve ainda o n.º 3 do art.º 497.º do CPC. que “Devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n.º 4 do artigo 417.º”
Daqui resulta que o advogado indicado como testemunha e admitido a prestar o seu depoimento deve ser o próprio a recusar prestar o seu depoimento, no cumprimento do dever de sigilo profissional que lhe é imposto pelo art.º 92.ºdo EOA, se os factos sobre os quais o mesmo é pretendido constituírem violação do dever profissional de sigilo. Acresce dizer que o depoimento de advogado prestado sobre factos abrangidos pelo sigilo profissional constitui prova obtida com violação do dever de segredo profissional, sendo de considerar como prova materialmente proibida e, por isso, ilícita, não podendo fazer prova em juízo (cfr. art.º 92.º, n.º 5, do EOA). A ofensa do dever de sigilo fará incorrer o advogado infrator em responsabilidade disciplinar, civil e criminal[1] – cf. art.º 92.º do EOA.
No caso, o requerente/recorrido arrolou como testemunha o Diretor de Recursos Humanos da requerida/recorrente, que também é Advogado e por isso pontualmente exerce tais funções para a requerida/recorrente. Está em causa um procedimento cautelar de suspensão de despedimento, no âmbito do processo disciplinar que culminou com o despedimento do requerente/recorrido, sendo imputadas ao requerente diversas infrações. Por outro lado, a testemunha em causa esclareceu, no início do seu depoimento, que apesar de pontualmente exercer as funções de Advogado para a requerida, sua entidade empregadora, considera não estar impedido de depor como testemunha. E por fim a requerida ao impugnar o depoimento da testemunha limita-se a alegar a violação do sigilo profissional em face da profissão da testemunha, sem que tenha alegado ou indicado quaisquer factos materiais e concretos sujeitos a segredo, cujo conhecimento tivesse sido obtido pela testemunha por força da profissão de Advogado, que agora pudessem estar em causa.
Importar verificar do preenchimento dos requisitos que permitem concluir pela violação do sigilo profissional, a saber: - estar determinado sujeito submetido ao dever de sigilo profissional por força do exercício da profissão – no caso a advocacia; - estarem em causa factos (concretos) cujo conhecimento seja obtido por força do exercício das suas funções (factos referentes a assuntos profissionais conhecidos exclusivamente por revelação do cliente ou revelados por ordem deste).
Na verdade, para se concluir pela violação do sigilo profissional não basta exercer uma profissão sujeita a tal sigilo, é ainda necessário que os factos que se pretende revelar se encontrem abrangidos pelo segredo profissional, ou seja, factos cujo conhecimento seja obtido pelo exercício das funções.
Ora, a testemunha em causa é funcionário da requerida, onde exerce funções de diretor de recursos humanos e em simultâneo é advogado, prestando apenas pontualmente, serviços à requerida na área da advocacia. O próprio, foi o primeiro a considerar, atenta a factualidade em causa, que não estava obrigado ao dever de sigilo profissional, razão pela qual se revelava de imprescindível a indicação pela recorrente dos factos sujeitos ao dever de sigilo, ou seja, aqueles que reportariam a assuntos profissionais conhecidos exclusivamente, por revelação do cliente (no caso o empregador) ou revelados por ordem deste. Tal não se verificou uma vez que a Recorrente se limitou a impugnar o depoimento, apenas alegando a qualidade de Advogado como facto impeditivo da sua prestação, sem que tivesse mencionado qualquer facto sobre o qual poderia incidir o depoimento, que a testemunha tivesse tomado conhecimento no exercício das funções de advogado.
Em suma, não viola o segredo profissional previsto no art.º 92 do EOA o Advogado que simultaneamente é Diretor de Recursos Humanos, que declara não estar obrigado ao dever de sigilo profissional, quando estão em causa factos cujo conhecimento não tenha sido obtido por força do exercício das funções de Advogado. Nada tendo sido alegado a este propósito e resultando da factualidade apurada que só pontualmente a testemunha prestou funções de advogado para a requerente, é de considerar que o meio de prova em questão foi obtido de forma regular e licita e sem violação de qualquer norma ou dever jurídicos.
Destarte, em nosso ver, a interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 514.º do CPC e 92.º da EOA por parte do tribunal a quo não traduz violação do regime jurídico aplicável ao caso sub judice, sendo por isso de confirmar a decisão recorrida e consequentemente improcede o recurso.
V - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 23 de janeiro de 2025
Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Francisco Sousa Pereira
[1] Neste sentido, ver, entre outros, o Parecer n.º 35/PP/2015-P, disponível na página da Ordem dos Advogados