PROVAS
INDEFERIMENTO
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
RECURSO DE APELAÇÃO
Sumário

I - A recusa ou indeferimento pelo juiz de uma diligência probatória cuja determinação se lhe impusesse, por respeitar precisamente aos factos relevantes para a situação a decidir, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá reger-se no quadro da regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma.
II - A prevalência da apelação como meio impugnatório explica que a violação do art. 411º do CPC não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível.
III - Desta decisão caberá recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir sem a realização necessária do meio de prova que se impunha).
IV - O exacto critério legal que delimita a intervenção do tribunal e que importa aplicar no caso concreto vem tão só a ser o de saber se a diligência probatória pretendida e indeferida é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.

Texto Integral

Processo: 1857/23.2T8LOU-B.P1

Referência: 96147974

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo de Execução de Lousada - Juiz 2

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Isoleta Almeida Costa

2º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do porto:

I.

Nos autos de execução de despejo veio a executada AA juntar aos autos requerimento, concluindo pelo pedido que lhe seja concedido o prazo de 5 meses para entregar o imóvel, alegando para tanto, e em síntese dificuldades financeiras (é divorciada, sem filhos, trabalhou em lides domésticas vive praticamente com o rendimento social de inserção (RSI), atualmente no montante de Euros 209,1; Diz que a Executada não tem familiares que a possam ajudar economicamente ou alojá-la; O estado de saúde da Executada é precário no aspeto físico e psíquico, acrescendo que não tem meio de transporte próprio, nem existe rede de transportes públicos regulares e diários nas zonas circundantes da cidade de Marco de Canaveses, o que encarece e limita a sua vida, tornando-a insustentável economicamente; No aspeto físico está seriamente debilitada já que se encontra desnutrida, alimentando-se essencialmente a pão seco e sofre de tendinites que a impedem de fazer esforço contínuo e prolongado; sofre permanentemente de artrite reumatoide; No aspeto psíquico sofre de progressiva depressão, crónica; Tem tido assistência psiquiátrica no Hospital ... e nos Serviços de Consulta Externa da Santa Casa da Misericórdia ... e tais deficiências incapacitam-na para o trabalho permanente, atenta também a sua idade; Por outro lado, face ao seu rendimento atual e à impossibilidade de melhorar a sua situação económico-financeira, a Executada não consegue auferir o suficiente para tomar de arrendamento uma habitação que a satisfaça ainda que de forma primária e rudimentar. Em biscates e serviços domésticos pontuais aufere, por vezes, uma média de cerca de Euros 100,00/mês; Na verdade, na zona da freguesia ..., na sua atual composição que engloba a área das extintas freguesias de A..., ..., ..., ..., ..., ou seja, na área da cidade de Marco de Canaveses e na área circundante não se encontram casas para arrendar por um valor da ordem de Euros 100,00/200,00 por mês.

A Exequente opôs-se ao pretendido diferimento da desocupação.

A Sra Juiz indeferiu-o, considerando que os fundamentos alegados não concretizam a hipótese legal que justifica a pretensão, sendo que, por isso, mais e antes indeferiu as diligências de prova requeridas pela executada, nessa parte declarando o seguinte: “o tribunal consigna entender serem totalmente dilatórias (as diligências requeridas) considerando os critérios necessários para ser concedida o deferimento da desocupação como supra se explicitará, razão pela qual se entende dispormos de todos os elementos para proferir de imediato decisão.”

É desta decisão que vem interposto recurso, pela executada/requerente, mediante as seguintes CONCLUSÕES:

1) A ação declarativa de processo comum foi instaurada em 23/11/2018;

2) Na falta de contestação da ré/recorrente foi esta condenada de preceito no pedido deduzido – entrega do imóvel e pagamento das rendas e legais acréscimos por decisões transitadas em julgado;

3) Por razões processuais e meramente formais não foi discutida a situação substantiva em apreço, incluindo, o instituto do apoio judiciário, face à literalidade das nossas leis em detrimento da sua substância;

4) O exequente/autor, uma vez transitada em julgado a decisão condenatória, instaurou a respetiva execução de sentença para recuperar o arrendado e o valor das rendas;

5) Face à situação criada com a condenação de preceito, a recorrente/executada logo começou a diligenciar, juntamente com os serviços de assistência social, no sentido de arrendar um imóvel para o seu realojamento, mas em vão, face à gravíssima crise habitacional, tarefa que não tem sido possível concretizar, inclusive, por carência económica do próprio agregado familiar;

6) Instaurada a execução de sentença a executada/recorrente deduziu o incidente de diferimento da desocupação do locado em 05/04/2022 que foi contestado pelo autor/exequente;

7) Contudo, o douto Tribunal “a quo” não considerou tal incidente de diferimento da desocupação do locado pelas razões expostas no despacho proferido em 04/09/2024 e notificado em 05/09/2024, com fundamento em ser meramente dilatório e sem interesse específico e adequado aos fins em vista; considerou o Tribunal “a quo” inexistir a identificação de qualquer tipo de prova;

8) O Tribunal “a quo” rejeitou todo o tipo de prova apresentado – testemunhal, pericial e documental, inclusive, a prova apresentada pelo próprio senhorio e recorrido, apesar da forma especificada e de modo a abranger todos os segmentos da vida da recorrente;

9) A rejeição da prova indicada pela executada/recorrente constitui denegação do direito de produzir prova, de fazer valer a tese que explanou no respetivo incidente, de explicar a sua situação fáctico-jurídica, amplamente justificada, inclusive, da sua situação substantiva de arrendatária no condicionalismo de um período meramente temporário, como é da essência da lei, na manutenção de um mero alojamento transitório;

10) E tudo isto sem prejuízo da recorrente continuar a sua saga na busca de uma habitação onde possa ser realojada, face à gravíssima situação habitacional, ao seu precário estado de saúde física e psíquica e ao seu estado de extrema pobreza;

11) A recorrente optou pela realização de uma perícia quanto ao seu estado de saúde, face à sua abrangência e como melhor instrumento e meio para comprovar o seu precário estado físico e psíquico, além da sua iliteracia;

12) O período pretendido de diferimento da desocupação do locado representaria uma válvula de escape nesta reta final, graças também à ajuda e intervenção da Segurança Social, sempre prestimosa nestas situações; fará a diferença entre a “rua” e uma vida nova que pretende;

13) Compulsado o aliás douto despacho do Tribunal “a quo” evidente se torna que nada de concreto se analisou ainda que transitoriamente, referindo apenas o exequente as alegadas fantasias dos cães e dos gatos da recorrente, ignorando o bom estado do arrendado, sendo certo que o exequente nada tem a ver com o recheio existente no arrendado;

14) A norma do artigo 864.º do Código de Processo Civil quando interpretada, como sucedeu no caso em apreço, no sentido de considerar o livre arbítrio na análise da prova do Tribunal é materialmente inconstitucional por respeitar a matéria de facto existente “ab initio” e, como tal, consumada;

15) O Tribunal “a quo” ao eliminar intempestiva e precocemente toda a produção da prova da recorrente cortou “cerce” a possibilidade de a executada comprovar os seus argumentos fáctico-jurídicos e que sustentariam a sua posição substantiva do mesmo, considerando um período temporal limitado e transitório para o seu regime social de habitação em ordem a um realojamento minimamente digno;

16) O Tribunal “a quo” ao decidir, como decidiu, não acolher qualquer tipo de prova da executada/recorrente incorreu em nulidade absoluta e insuprível, impossibilitando todo o seu futuro, inclusive, face ao fator surpresa do aliás douto despacho proferido;

17) Ocorreu, pois, uma interpretação inconstitucional, por desproporcional da constituição e, por isso, contrária e violadora dos objetivos que lhe pertencem defender, ou seja, o alojamento habitacional, como base da dignidade humana;

18) A letra da lei – artigos 864.º e 865.º do Código de Processo Civil - é bem explícita quanto à indicação de prova para que com a sua produção se permita formar a convicção do Tribunal e depois expressando-a e decidindo de modo fundamentado e dentro da verdade material e do direito aplicável e da função social da propriedade privada que a Constituição da República Portuguesa tem de acautelar e defender numa sociedade plúrima e solidária;

19) Em matéria de arrendamento a lei terá de ser vinculativa, bem tipificada, expressa e fundamentada, sem qualquer margem para qualquer arbítrio, definindo concretamente os legítimos interesses das provas em função das situações concretas;

20) Deve, pois, ser declarado inconstitucional o disposto no artigo 864.º do Código de Processo Civil quando permite lançar mão do critério prudente arbítrio, porque qualquer decisão deve ser imune ao seu uso. Assim, a denegação da produção da prova no caso concreto – artigos 864.º e 865.º do Código de Processo Civil – envolve a sua inconstitucionalidade, pelo que se justifica a revogação do aliás douto despacho proferido e a produção da prova indicada, com todas as consequências daí emergentes, por violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e consubstanciar nulidade insanável;

21) A sua arguição afigura-se tempestiva, face à ocorrência factual já no domínio da legislação Constitucional aplicável desde o início da relação locatícia;

22) O incidente de diferimento da desocupação do locado deve ser considerado vital, como situação de emergência no arrendamento habitacional, na vida e no futuro das pessoas, assim considerado e valorado pela lei e pelos Tribunais na escala de valores essenciais da dignidade humana para evitar situações que podem tornar-se irrecuperáveis, como sucede com muitos que caem irremediavelmente “na rua”;

23) O douto despacho em apreço violou, além do mais, o disposto nos artigos 615.º, alínea c), 627.º, 629.º, n.º 3, alínea a), 631.º, 639º, 645.º, alínea a), 647.º, 644.º, n.º 2, alínea d), e 195.º do Código de Processo Civil;

Nestes termos, já pela rejeição dos meios de prova apresentados pela recorrente – artigo 644.º, n.º 2, alínea d), já pela inconstitucionalidade do disposto nos artigos 864.º e 865.º todos do Código do Processo Civil, que permitem apelar ao arbítrio do julgador, violando o princípio da proporcionalidade do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, deve ser revogado o aliás douto despacho em crise e ordenar-se a produção de prova, face também ao princípio da verdade material – artigos 2.º e 6.º do Código de Processo Civil e 2.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, tudo com as legais consequências, assim se fazendo inteira Justiça e conferindo-se a devida dignidade de valor ao incidente de diferimento da desocupação do locado, como elemento estrutural do direito de habitação.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões do recorrente, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).

No caso, a questão a tratar vem a sê-lo a da nulidade da decisão integrada pelo indeferimento dos meios de prova cuja produção fora pedida pela requerente do diferimento da desocupação e respectiva consequência quanto à decisão subsequente do incidente mesmo.

É que sempre improcedente, s.m.o, a argumentação da inconstitucionalidade da interpretação das normas processuais civis pelo tribunal, ao indeferir “discricionariamente” os meios de prova arrolados.

Pois que, como resulta da fundamentação de um tal indeferimento, em causa a desnecessidade da produção dos meios de prova, por se ter julgado que os factos alegados pela requerente não caracterizavam os pressupostos legais do pedido de diferimento…

Com o que não emerge a interpretação cuja falta de conformidade constitucional vem posta em causa. Convocável já o erro de ajuizamento quanto ao enquadramento da situação alegada nos pressupostos legais, mas não o indeferimento “discricionário” dos meios de prova.

Ausente, assim, o objecto do pretendido juízo de inconstitucionalidade.

Quanto às demais desconformidades constitucionais aventadas, por referência às normas constitucionais que estabelecem direitos atinentes à habitação:

A um tempo, ainda quando se convoque a inconstitucionalidade de uma decisão judicial, tem de suscitar-se fundamentadamente qual a dimensão interpretativa ou aplicativa que é desconforme às normas constitucionais convocadas.

Sucede que não foram trazidas pela recorrente quaisquer alegações a propósito das disposições constitucionais e de força reforçada invocadas como tendo sido violadas pela decisão recorrida, limitando-se a recorrente a reputar como violadas as disposições respectivas.

Donde, em parte alguma, as alegações supõem uma apreciação de natureza normativa ou interpretativa daquelas disposições, expressando antes uma discordância quanto à forma como o tribunal recorrido aplicou determinados preceitos de direito ordinário ao seu caso. A falta de normatividade do recurso em apreço, nessa parte, decorre transversalmente do requerimento de interposição.

Donde, nesse segmento, a recorrente não enunciou, no recurso dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, qualquer questão de inconstitucionalidade com adequada dimensão normativa. Invocou, é certo, de forma totalmente conclusiva, a violação de preceitos constitucionais. Evidentemente, não o fez numa perspetiva normativa (ou seja, tendo por referência uma ou mais normas de direito infraconstitucional ou a interpretação destas, enunciadas com autonomia formal e substancial). O que torna improcedente, rectius, de impossível sindicância qualquer questão de constitucionalidade.

Sempre, a propósito já da conformidade constitucional da disposição legal mesma (o art. 864º do CPC), como se refere no já longínquo Ac. do T. C. de 26/09/2001, “(…) o preceito constitucional do artigo 65º, onde se alberga uma diretriz programática, traduzível, nas palavras de Inocêncio Galvão Telles, “no dever político imposto ao Estado no sentido de este adoptar as providências adequadas à realização – tão desejável – do nobre ideal que é o de todos poderem realmente ter, para si e sua família, uma habitação condigna, com os requisitos enunciados no citado preceito constitucional [o artigo 65º]” (…). É assim que nos números seguintes do artigo 65º (escreve este autor) se enunciam “as grandes linhas do que o Estado deve fazer para atingir o assinalado objetivo: programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento do território e em planos de urbanização, incentivar apoiar as iniciativas tendentes a resolver os problemas habitacionais, estimular a construção privada, adoptar uma política de rendas compatíveis com o rendimento familiar e de acesso à habitação próprias, exercer o controlo do parque imobiliário e definir e executar uma adequada política dos solos”.

Não se convoca, em situações como a decidenda, qualquer conflito de direitos à habitação, na acepção abstracta e imprópria em que a Constituição emprega esta fórmula, porque tais «direitos» não se movem no círculo das relações entre particulares, antes têm como alvo o Estado, no sentido de que a este cabe a responsabilidade política de planear, adoptar e executar providência tendentes a criar as condições necessárias para todos poderem ter habitação condigna. É tarefa de que têm de se ocupar os órgãos legislativos, governativos, administrativos, não os órgãos jurisdicionais.

Irrefutável que o direito à habitação deve ser visto como uma projecção da dignidade humana (Ac. do TC n.º 507/94, de 14.07.1994, Processo n.º 129/93, in www.tribunalconstitucional.pt, como todos os demais deste Tribunal Constitucional citados sem indicação de origem), não é menos certo que a sua colocação sistemática - no Título pertinente aos «direitos sociais», e não no Título pertinente aos «direitos, liberdades e garantias» -, denota bem que não se está perante o primeiro dos direitos fundamentais; e nem mesmo perante o primeiro dos direitos sociais, já que o precedem o direito à segurança social e solidariedade (art. 63º da C.R.P.) e o direito à saúde (art. 64º da C.R.P.).

Outrossim, como direito social que é, e conforme desde logo denunciado de forma expressa pelos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 65º citado, o «direito à habitação tem (…) o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios -como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios» (Ac. do TC n.º 581/2014, de 17.09.2014, Processo n.º 650/12).

De todo o modo, «certo, como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, pag. 835 que “O direito à habitação é não apenas um direito individual mas também um direito das famílias (…). Quanto ao seu objecto, como direito de defesa, o direito à habitação justifica medidas de protecção contra a privação da habitação (limites à penhora da morada de família, limites mais ou menos extensos aos despejos – sublinhado nosso). Como direito social, o direito à habitação não confere um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação (…).”

Acresce que o direito à habitação não é um direito absoluto que se sobreponha a qualquer outro, nomeadamente o direito de propriedade.

Tudo para dizer da improcedência do recurso no que tange às “questões” de desconformidade constitucional “suscitadas”.


*

Vejamos o mais, sendo que à decisão importam os precisos termos da alegação pela requerente dos factos em que se estriba a pretensão de diferimento da desocupação, pelo requerido prazo de 5 meses.

Preceitua o artigo 864.º do CPC, sob a epígrafe Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação:

1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.

2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:

a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;

b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.

Já quanto aos termos do diferimento da desocupação, rege o artigo seguinte;

1 - A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:

a) Tiver sido deduzida fora do prazo;

b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;

c) For manifestamente improcedente.

É sabido que no diferimento de desocupação em causa, há que conciliar o direito ao despejo do senhorio com direitos de personalidade fundamentais do inquilino, como são os direitos ao sossego e ao repouso, à reserva da intimidade da vida pessoal, familiar e doméstica no domicílio, para o que releva o direito fundamental à habitação. Deve o tribunal ajuizar no seu prudente arbítrio, balanceando os interesses em conflito, de inquilino e senhorio, discorrendo sobre os elementos de facto concretos, balizando-os pelos critérios normativos do nº 2 do art. 864º do CPC.

Tem sido reiteradamente sustentado que para que a pretensão do arrendatário proceda, não lhe basta invocar que se encontra em alguma das situações previstas, impondo-se-lhe ainda o ónus de invocar e demonstrar as concretas circunstâncias a que o juiz deverá atender para conceder o diferimento da desocupação, ou seja, o facto de não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam o local arrendado, a sua idade, o seu estado de saúde e a sua situação económica e social – cf. Maria Olinda Garcia, in Arrendamento Urbano - Regime Substantivo e Processual, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, a págs. 37-38, apud acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-05-2018, processo n.º 320/17.5T8LSA.C1, na base dedo dados da dgsi. (embora a propósito da hipótese paralela do art. 15º do NRAU).

Tem-se entendido também que, no contexto deste incidente “Estão em causa critérios com forte componente de discricionariedade, suportados por motivos de oportunidade e conveniência, em que o Tribunal se baseia para decidir, de forma homóloga à jurisdição voluntária. E terão de ser demonstrados a boa-fé, aqui psicológica, que não, apenas jurídica, do arrendatário e, em sede de factos – que, nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil lhe cumpre alegar e provar – o não dispor de outra habitação, em termos imediatos e, ainda, para aferir da premente necessidade de permanência no locado: - o número de pessoas que consigo habitam (por também terem, eventualmente, de ser realojadas); - a idade do arrendatário (critério sempre presente até no revogado artigo 107.º n.º 1, alínea a) do RAU e 36.º n.º 1 do NRAU); e - o estado de saúde, (que muitas vezes pode condicionar, ou dificultar, a imediata mudança de residência).– cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-03-2016, processo nº 2090/15.2YLPRT.L1-6, na mesma base de dados.

Além disso, a apreciação da pretensão em causa estará sempre balizada por exigências de boa fé, que hão-de presidir à configuração do quadro socioeconómico do inquilino existente ao momento em que se coloca a questão do diferimento da desocupação do locado, não deixando de considerar que serão sempre razões sociais imperiosas que haverão de justificar a restrição do direito do senhorio, para o que releva ainda, como tem sido reconhecido pela jurisprudência, o critério de a desocupação imediata do local causar ao inquilino um prejuízo muito superior à vantagem conferida ao senhorio.

Seguro é que a jurisprudência, aparentemente maioritária, tem reconhecido que o diferimento da desocupação não é uma decorrência automática da verificação de um dos fundamentos das alíneas a) e b) do n.º 2 do mencionado artigo, mas tais fundamentos constituem um pressuposto necessário – cf. neste sentido, na doutrina, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 3ª Edição, pág. 894; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II – Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, 2020, pág. 298 – “Esta cláusula geral não opera automaticamente, exigindo-se que, em concreto, ocorra uma das circunstâncias previstas nas als. a) ou b) do n.º 2 do art. 864º (que operam como presunções legais da verificação de razões sociais imperiosas), não podendo o diferimento da desocupação ser entendido como mais um derradeiro prazo, de concessão automática.”; Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª Edição, pág. 213 e 222 – “O diferimento da desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, apenas podendo ser deferido se estiver em causa algum dos fundamentos referidos no art.º 864º, n.º 2, CPC.”.

Assim é que o recurso ao diferimento da desocupação de imóvel constitui um meio de tutela extra-ordinário[1] concedido ao arrendatário, a depender, pois, do enquadramento na hipótese legal típica que o concede.

Isto posto,

Como anota A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, anotação ao art. 630º do CPC, deve submeter-se ao regime geral de impugnação da legalidade do uso de poderes discricionários, a invocação da ausência dos pressupostos definidos pela lei ou a alegação de que o acto extravasa o quadro das possibilidades legais[2], possibilidade que opera quando colocado em causa no recurso da decisão final, directa ou indirectamente, o juízo de subsunção pelo tribunal recorrido.

O poder de indeferir ou rejeitar meios de prova requeridos pelas partes é discricionário em si, ainda quando vinculado à verificação efectiva das condicionantes previstas nas normas que o estabelecem, impertinência ou fim dilatório. Assim, o despacho que indefere meios de prova não é recorrível a se com fundamento na sua ilegalidade, designadamente pela não verificação de qualquer das referidas condicionantes ou pela ausência de invocação destas. É-o apenas e só quando se invoque (ainda que indirectamente) o erro do juízo de dispensa, em termos de não se afirmar a “desnecessidade” ou impertinência da prova requerida.

É o que é determinado pela coerência sistemática do processo civil, num sistema que, após a reforma do CPC, como é generalizadamente reconhecido, intendeu reforçar os poderes do juiz quanto à tramitação processual e à produção da prova, robustecendo a oficiosidade, quer mediante a ampliação dos poderes de direcção e iniciativa, quer, reflexamente, na limitação aos recursos versando sobre tais decisões. Sobre a questão, por todos, A. Geraldes, loc. cit. e Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 380.

O juiz é o destinatário da prova, não lhe sendo exigido que fique, a requerimento da parte, admitindo diligências probatórias impertinentes ou desnecessárias. Há, nos artigos 410 e 411º do CPC, como em variadas disposições a propósito de cada um dos concretos meios de prova admissíveis (v.e., 476º, n.º 1, 490º e 516º do CPC), as quais se constituem como concretizações daquele princípio geral da admissão “apenas” vinculada ao interesse ou utilidade probatória dos meios de prova requeridos, autorização normativa para que o julgador rejeite, recuse ou não admita meios de prova requeridos/pretendidos, em linha com os princípios constitucionais da duração razoável do processo e da eficiência da função pública de julgar. O indeferimento de meios de prova quanto a factos que sejam irrelevantes não caracteriza cerceamento de defesa ou do direito de acção.

O juiz como condutor do acto processual do julgamento, ainda quanto a questões incidentais, nos limites impostos pela sua discricionariedade, pode motivadamente indeferir ou recusar a produção de meios de prova que se apresentem como impertinentes ou irrelevantes para o deslinde da controvérsia.

No âmbito do princípio do inquisitório, previsto no art. 411º do CPC, não incumbe ao juiz apenas ordenar as diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes. Sempre, além desta prova de iniciativa oficiosa, “ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio” (como mostra o segmento do citado dispositivo legal: “mesmo oficiosamente”)[3].

O juiz como condutor do acto processual do julgamento e, neste, da produção da prova, não apenas pode, como tem de determinar a realização das diligências probatórias que tenha como necessárias ao esclarecimento dos factos relevantes. E bem assim pode recusá-las quando não importem ou interessem.

Em si, de forma autónoma e em abstracto, sem a impugnação concomitante e relevante da matéria de facto adquirida ou indemonstrada, não é admissível o recurso autónomo/interlocutório da decisão de indeferimento de meios de prova.

Ora, na situação decidenda, o recurso interposto daquelas decisões, ainda quando se funde directa e imediatamente na alegação de que o despacho excede os limites da discricionariedade pressuposta, sempre convoca a apreciação quanto a estarem em causa naquelas diligências probatórias factos interessantes ao objecto do litígio ou controvérsia.

É o que justifica agora a apreciação da correcção ou bondade da fundamentação expendida para a recusa daqueles meios de prova e, reflexamente, para o juízo de falta de alegação dos pressupostos do deferimento da desocupação pedida.

Quando se considere já o requerimento indeferido, temos para nós que a Requerente convoca não apenas uma, mas ambas as alíneas do nº 2 do artigo 864º do CPC. Assim, desde logo, o facto presuntivo da exigida conexão entre a falta de pagamento da renda que se constitui como causa do despejo exequendo e a incapacidade absoluta para o trabalho (que tem de haver-se, pois, como superior a 60%, na interpretação que se impõe do alegado)…

Ainda quando se possam haver por redundantes algumas das requeridas diligências probatórias, não pode afirmar-se que as mesmas não interessam à prova de factos susceptíveis de se reconduzirem às hipóteses da norma convocada para fundamentar a pretensão. Muito menos que tais factos não resultem do requerimento.

Com o que, ainda que mediante algum enviesamento do que estava em causa na decisão recorrida, se afigura assistir razão à Recorrente, impondo-se anular a decisão recorrida, como a decisão do incidente subsequente, por forma a que sejam determinadas/ordenadas/deferidas as diligências probatórias requeridas pela apresentante que sejam havidas por mais oportunas/eficientes à demonstração dos factos por ela aduzidos para fundamentar o deferimento da desocupação, só então/após sendo proferida decisão sobre a aquisição probatória respectiva e juízo quanto à justificação e termos do diferimento peticionado.

É que sempre temos para nós que a recusa ou indeferimento pelo juiz de uma diligência probatória cuja determinação se lhe impusesse, por respeitar precisamente aos factos relevantes para a situação a decidir, tratando-se de uma situação que não é regulada por norma especial, deverá reger-se no quadro da regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão. Neste caso, a eventual nulidade da decisão decorre de um efeito consequencial, obtido por via do n.º 2 do art. 195.º do CPC, e não da subsunção às causas autónomas de nulidade das decisões previstas no art. 615.º do mesmo diploma.

Não sufragamos também o entendimento de que o meio processual único para a arguição da nulidade (processual) decorrente do indeferimento ou recusa, como violação legal, a um tempo, dos princípios do inquisitório e do dispositivo[4], seja a reclamação perante o tribunal que proferiu a decisão, no prazo de dez dias (arts. 149.º e 199.º, n.º 1, do CPC), podendo ser interposto recurso da decisão que incida sobre a mesma reclamação. Caso em que, sempre a nulidade processual arguida apenas nas alegações de recurso se deveria considerar sanada, por não respeitar a vício da decisão recorrida e na medida em que não se reporta ao indeferimento de uma reclamação oportunamente apresentada. Nessa tese, a nulidade processual decorrente da preterição do inquisitório convocada pela recorrente deveria ter sido objecto de reclamação, no prazo de dez dias a contar das ocasiões acima aventadas, perante o tribunal recorrido, nos termos da segunda parte do art. 196.º e arts. 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, todos do CPC, uma vez que não se coloca a hipótese prevista no n.º 3 da última disposição. Não tendo sido deduzida tempestivamente tal reclamação perante o tribunal a quo, sempre se verificaria o efeito preclusivo de perda da faculdade de exercício.

A exemplo do que sugerem Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, em As outras nulidades da sentença cível, Julgar Online, setembro de 2024, p. 1 a 79[5], a p. 48, a propósito de uma hipótese paralela ou assimilável, que vem a ser a da violação de norma legal expressa sem a estatuição da consequência respectiva, a saber, a inobservância da regra da contraditoriedade, parece-nos que a prevalência da apelação como meio impugnatório explica que a violação do art. 411º do CPC não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível.

Desta decisão caberá recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir sem a realização necessária do meio de prova que se impunha).

O exacto critério legal que delimita a intervenção do tribunal e que importa aplicar no caso concreto vem tão só a ser o de saber se a diligência probatória pretendida e indeferida é necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, juízo este já afirmado, como antecede.

III.

Julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, por forma a que sejam determinadas/ordenadas/deferidas as diligências probatórias requeridas pela apresentante que sejam havidas por mais oportunas/eficientes à demonstração dos factos por ela aduzidos para fundamentar o deferimento da desocupação, só então/após sendo proferida decisão sobre a aquisição probatória respectiva e juízo quanto à justificação e termos do diferimento peticionado, anulando-se, pois, ainda a decisão do incidente já proferida.

Custas pelo apelado/exequente.


Porto, 23 de Janeiro de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Isoleta de Almeida Costa
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Para uma parte, aparentemente maioritária, da jurisprudência, constituindo-se como norma excepcional. No sentido já de que se trata de norma especial, pelo que não está vedada a sua aplicação por analogia, Acórdão da Relação de Lisboa de 11.12.2019, no Processo n.º 2068/19.7T8FNC-A.L1-2, acessível na base de dados da dgsi.
[2] Ainda Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, III, tomo 1, 2ª edição, p. 23.
[3] Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in CPC anotado, Vol. 2º, pág. 208.
[4] Sendo esta uma inevitável coincidência de ambos, num processo de natureza colaborativa ou cooperativa, como exposto.
[5] Bem assim, como antecede, quanto à natureza do vício.