I. Tendo a pena por finalidade a protecção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a ressocialização do agente, e não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, a sua dimensão concreta resultará da medida da necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem ultrapassar a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o seu ponto mais baixo, onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela.
II. Estando em causa o tráfico internacional por via marítima, de cerca de 4 toneladas de canábis, com a utilização de duas lanchas voadoras tripuladas por vários indivíduos e de diversos instrumentos de navegação, tendo o recorrente, enquanto transportador por mar do estupefaciente, agido com dolo intenso e persistente, estando inserido em termos familiares, laborais e sociais e não tendo antecedentes criminais, sendo muito elevadas as exigências de prevenção geral, e não passando despercebidas as exigências de prevenção especial, a pena de 6 anos de prisão fixada pela 1ª instância, situada sobre o primeiro quarto da moldura penal abstracta aplicável, mostra-se necessária, adequada e proporcionada, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente, pelo que, a merecer alguma censura, não seria, seguramente, a da sua severidade, devendo, por isso, ser mantida.
Acordam, em audiência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro – ..., mediante despacho de pronúncia, além de outros, foi o arguido AA, com os demais sinais nos autos, submetido a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, sendo-lhe imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de ..., com referência à Tabela I-C anexa.
No decurso da audiência de julgamento de ... de ... de 2024 foi proferido o seguinte despacho:
Da prova produzida no decorrer da audiência de julgamento resultaram indiciados factos que consubstanciam uma alteração aos que se mostram narrados na acusação e se consubstancia no seguinte:
1. Em dia anterior a ... de ... de 2023, BB, CC e DD foram contactados, em Marrocos, para efetuarem o transporte de canábis daquele país para Espanha, em troca de ficarem naquele país como emigrantes;
2. BB, CC e DD acordaram em efetuar o mencionado transporte;
3. Em concretização do acordado, BB, CC e DD foram conduzidos à embarcação com 12,8 metros de comprimento, com o casco de cor cinza e flutuadores de cor preta, sem marca, nem número de casco e sem quaisquer inscrições de registo ou pavilhão, com 4 motores fora de borda, da marca “Yamaha”, modelo XTO ...HP V. - XF...NSA, cada um deles com a potência de 425 HP e com os números de série .GR-N-..., .GR-N- ......., .GR-N ....... e .GR-N..... .., na qual se encontravam acondicionados 127 (cento e vinte e sete) embalagens contendo a canábis discriminada no artigo 3º da acusação, pontos 3.1. a 3.19;
4. De seguida, fizerem rumar a embarcação para as coordenadas latitude 36º, 09’ e 57’’N e longitude 007º, 25’ 26”W, onde a mesma veio a ser avistada pela força área, antes das 12h39 no dia ... de ... de 2023;
5. Naquele local foi igualmente avistada pela força aérea embarcação com 12,1 metros de comprimento, com o casco de cor cinza e flutuadores de cor branca, sem marca, nem número de casco e sem quaisquer inscrições de registo ou pavilhão, com 4 motores fora de borda, da marca “Yamaha”, modelo XTO ...HP- XF...NSA, cada um deles com a potência de 375 HP e com os números de série .GT-N-......, .GT-N- ......, .GT-N ...... e .GT-N-......, a bordo da qual se encontravam AA e EE, os quais haviam sido contratados, em Espanha, para aguardarem naquela posição a embarcação identificada em 3) e procederem ao transbordo da canábis que se encontrava no interior da mesma, para o interior da embarcação em que se encontravam;
6. Nessa sequência, a força aérea comunicou à Autoridade Marítima e à Polícia Judiciária, as coordenadas geográficas onde avistou as embarcações identificadas em 3) e 4), o que determinou que o comandante da Marinha e da Polícia Marítima desse ordem para uma embarcação da marinha e uma embarcação da polícia marítima se deslocassem para as coordenadas geográficas conhecidas;
7. A hora não apurada, mas antes das 17h30, as embarcações identificadas em 3) e 4) vieram a ser localizadas pela embarcação da marinha nas coordenadas de latitude 36º 06’N e longitude 007º 24’W, tendo os fuzileiros que se encontravam bordo da mesma intercetado tais embarcações e colocado os tripulantes das mesmas numa única embarcação;
8. Pelas 15h30 do dia ... de ... de 2023, chegou ao local mencionado em 7) a embarcação da polícia marítima;
9. Nessa sequência, AA, EE, BB CC e DD foram conduzidos, pelos militares da marinha, para o Porto Comercial de..., local para onde também foram conduzidas a embarcação identificada em 3), com a canábis identificada em 3.1. a 3.19 a bordo, e a embarcação identificada em 4), a qual, devido a avaria, veio atrelada a uma embarcação de reboque;
10. No Porto Comercial ..., a polícia judiciária procedeu à apreensão das 127 embalagens identificadas em 3) e, pesagem, por amostragem, das mesmas, e efetuou teste rápido DIK 12, de uma amostra do produto que se encontrava, a qual reagiu positivamente para canábis;
11. Nessa sequência, conduziu às instalações da Polícia JudiciáriaAA, EE, BBCC e DD, os quais foram constituídos arguidos;
12. AA e EE, ao atuaram da forma descrita, quiseram, de forma livre a voluntária, participar no plano de transporte da canábis carregada na embarcação identificada em 3) para o Reino de Espanha, mediante o transbordo para a embarcação identificada em 4);
Os factos acima comunicados consubstanciam, no nosso entendimento, uma mera alteração não substancial dos factos que constam da acusação, com procuraremos demonstrar pelas razões que se seguem:
Existe uma alteração de factos quando se subtraem ou aduzem aos factos conhecidos – independentemente do momento processual em que tal modificação se opere – algum ou alguns factos, ou outros factos, quer estes se relacionem com o tempo do cometimento, com o lugar, com o evento, com o nexo de causalidade, com o agente ou com elementos subjetivos da imputação.
A este propósito, cumpre referir que se parte do conceito processual do facto, como acontecimento histórico, como pedaço de vida que a acusação submete à apreciação judicial.
Em segundo lugar, atento o disposto no artigo 1.º, alínea f) do Código de Processo Penal, importa sublinhar que “nem toda a alteração dos factos implica uma modificação do facto processual, ou seja do objeto do processo. A transformação ou alteração dos factos só implica uma modificação ou alteração do objeto do processo quando for qualificável como substancial, i. e., na expressão da lei, quando tenha por efeito o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, ou a imputação de um crime diverso” [cf. FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos e a sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, ..., pág. 98, sublinhado nosso].
Isto significa que se a modificação dos factos for de natureza não substancial, por não implicar o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ou a imputação de um crime diverso, o objeto do processo não se altera, muito embora haja que salvaguardar o direito de defesa e de contraditório do arguido, face aos novos factos, nos termos do artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Para efeitos do critério legal assim descrito, refira-se não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias de execução do crime (incluindo o dia, hora, local e modo de execução), desde que essas circunstâncias não constituam um outro “facto histórico unitário”, sendo este composto por todas as ações do agente que tenham um conteúdo ilícito semelhante e uma estreita continuidade espácio-temporal [PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 39].
O que fica dito reflete a conceção prevalecente na doutrina e na jurisprudência quanto ao conceito de objeto de processo, o qual se pode definir «como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida» [FREDERICO ISASCA, “Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português”,2.ª edição, p. 84].
Aplicando-se as considerações tecidas ao caso dos autos, verifica-se os factos comunicados são uma concretização do modo como se desenrolou a operação de transporte de canábis, especificando em que embarcações se faziam transportar, qual a embarcação que trazia a canábis a bordo que embarcação os mesmos e qual o grau de participação de cada um desses arguidos no mencionado transporte.
Em face do exposto, relativamente a esses factos dá-se a palavra aos arguidos, na pessoa dos seus ilustres defensores nos termos e para os efeitos do artigo 358º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.
Concedido que foi prazo para os arguidos se pronunciarem, vieram os arguidos BB, CC e DD arguir a inconstitucionalidade da interpretação do art. 4º, nº 1 do Tratado celebrado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para repressão do tráfico de droga no mar, no sentido de que concede o reconhecimento à outra parte de um direito de representação que legitima a intervenção dos seus navios e aeronaves de guerra, ou de outros navios e aeronaves com sinais exteriores visíveis ou identificadores de que estão ao serviço do Estado e devidamente habilitados para o feito, sobre os navios de outro Estado que se encontrem a operar fora das suas águas territoriais, por violação do art. 5º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, a actuação da Marinha Portuguesa deve ser declarada ilegal por violação deste preceito.
Por despacho proferido na audiência de julgamento de ... de ... de 2024, foi rectificado o ponto 8 do despacho que teve por objecto a comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, passando a ler-se «17h30» onde se escreveu «15h30».
Por acórdão de ... de ... de 2024 foi decidido [na parte em que agora releva]:
«1. ENQUADRAMENTO DAS QUESTÕES PRÉVIAS:
O n.º 1, do artigo 368º, do Código de Processo Penal [doravante CPP] determina que o tribunal decida das questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão, quer as que obstam ao conhecimento de mérito, quer as que, não obstando ao conhecimento de fundo, influem nesse mesmo conhecimento [OLIVEIRA MENDES et. al., in Código de Processo Penal Comentado, 2021, 3ª edição revista, anotação 2 ao artigo 368º, do CPP, p. 1124], o que se passa a fazer nos termos que se seguem.
No caso dos autos, foram invocadas questões prévias por todos os arguidos em sede de contestação [referidas no Relatório do presente acórdão], sendo que parte delas haviam sido invocadas em sede de requerimento de abertura de instrução [doravante identificado por RAI] e as quais foram apreciadas pela M.ma Juíza de Instrução em sede de decisão instrutória, que as julgou improcedentes.
A decisão da M.ma Juíza de Instrução sobre as questões invocadas em sede de RAI não faz caso julgado formal, atento o disposto no n.º 2, do artigo 310º, do Código de Processo Penal, pelo que sendo novamente invocadas na fase de julgamento não podem deixar de ser apreciadas [no sentido ora apontado se pronunciou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2009, disponível, em texto integral, no endereço eletrónico www.tribunalconstitucional.pt] e NUNO BRANDÃO [in artigo intitulado “A nova face da instrução”, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 18º, n.ºs 2 e 3, p. 239, apud MAIA COSTA, in anotação 3 ao artigo 310º, do Código de Processo Penal, p. 991, da obra coletiva intitulada “Código de Processo Penal, Comentado, Almedina-2021, 3ª Edição Revista].
Relativamente às questões que hajam sido invocadas em sede de instrução e aí decididas, mas cuja apreciação não volta a ser suscitada em sede de julgamento, não carecem de apreciação individualizada por banda do tribunal do julgamento, salvo se o mesmo discordar da solução encontrada.
Dito de outra forma, ainda que o tribunal do julgamento possa oficiosamente apreciar questões prévias que hajam sido suscitadas em sede de instrução, mas não em sede de julgamento, dado que as mesmas, como ficou dito, não formam caso julgado, a reapreciação oficiosa só deve lugar quando o tribunal do julgamento pretenda alterar o sentido das decisões anteriores, por delas discordar.
Posto isto, entende o tribunal que as soluções perfilhadas pela M.ma Juíza de Instrução relativamente às questões cuja apreciação não foi renovada em sede de julgamento, não merecem censura, razão pela qual este tribunal considera que: i) Não se mostram verificados os requisitos da exceção do caso julgado; ii) não ocorre violação do artigo 92º, n.º 1, do Código de Processo Penal e do artigo 6º da Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/10/2010 relativo ao direito à interpretação e tradução em Processo Penal; iii) a acusação não padece de nulidade; e iv) o artigo 21º, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro não é inconstitucional.
No que concerne à apreciação das questões prévias suscitadas em sede de julgamento [invocadas nas contestações, alegações e requerimento de resposta à comunicação e alteração não substancial de factos], a única suscetível de obstar ao conhecimento de mérito é o da incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Porém, a apreciação da mencionada questão em momento prévio à fixação dos factos, pressupõe que o local onde as embarcações identificadas na acusação foram abordados estivesse, desde logo, assente, o que não sucede nos presentes autos, considerando que os arguidos, em sede de contestação e alegações puseram em causa a exatidão do local da abordagem, o que implica que o tribunal tenha primeiro de examinar e valorar criticamente os meios de prova que sustentam a localização da abordagem das embarcações.
O exame crítico dos meios de prova é feito em sede de fundamentação da matéria de facto, pelo que, só após tal fundamentação estará o tribunal em condições para apreciar se este tribunal é ou não dotado de competência internacional para apreciar os factos imputados aos arguidos da acusação, por remissão da pronúncia, pelo que a questão da (in)competência internacional dos tribunais portugueses será apreciada em sede de fundamentação da matéria de facto, inexistindo outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento de mérito.
(…).
IV. DISPOSITIVO
Face ao exposto, decide-se:
Condenar AA pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico, p. e p. pelo nº 1, do artigo 14º e artigo 26º, do Código Penal e nº 1, do artigo 21º, do Decreto Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C, anexa ao referido diploma legal, na pena de seis anos de prisão;
(…)».
*
Inconformado com a decisão, recorreu o arguido AA para o Tribunal da Relação de Évora, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:
1.º O recorrente impugna a decisão de facto relativa à parte final do ponto 5) e, por arrasto, os pontos 15), 16) e 17), por introduzir dois factos: a contratação do recorrente em Espanha para rumar até um determinado ponto geográfico com a missão de aí aguardar a embarcação identificada em 3) e fazer o transbordo do estupefaciente para a embarcação onde veio a ser abordado e detido.
2.º Sob 1), 2) e 3) da decisão de facto dá-se como apurado que os co-arguidos de nacionalidade marroquina aceitaram transportar a canábis apreendida, até Espanha, país onde ficariam como emigrantes.
3.º Para tanto, tal como se decide sob 4) no dia .../.../23, colocaram em marcha o projecto criminoso e fizeram rumar a embarcação, sendo que em determinado ponto do trajecto foram avistados – aquele ponto é o preciso local geográfico onde ocorre um avistamento.
4.º É com a comunicação referida no ponto 6) que nasce o presente processo.
5.º A informação do avistamento é de 8 embarcações (tal como se exara a fls.26 do acórdão ora recorrido), realidade que a decisão de facto omite e cria a aparência que aquela localização era o ponto de encontro – acordado – das duas embarcações.
6.º A decisão de facto atribui uma finalidade à tripulação da embarcação identificada em 5) que o recorrente impugna, porque altera o projecto delineado sob 1) a 3) e cria dificuldade para apreender o sentido da decisão.
7.º O projecto não era afinal dos três co-arguidos, mas, pelo menos de mais dois elementos, sendo um deles o recorrente, que a decisão apura ter sido contratado em Espanha para aguardar numa concreta posição e aí, fazer o transbordo da droga da embarcação daqueles homens que queriam levar a droga para Espanha, para lá ficarem.
8.º Mais decide que o encontro das duas embarcações tinha uma localização previamente definida, que é a que coincide com o local onde – inopinadamente – ocorreu o avistamento de 8 embarcações pela força aérea portuguesa.
9.º O avistamento tem respaldo na prova; a contratação em Espanha para aguardar em localização previamente determinada para fazer o transbordo, não.
10.º É sempre a partir da Motivação que se alcança o convencimento da decisão enquanto tal, sempre temperada pelo princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência.
11.º Assim, importa atentar que, se para a decisão de facto que o recorrente aceita, a fundamentação tem uma base sólida para explicitar a razão da decisão se apresentar dessa forma, já quanto ao ponto 5 o mesmo não acontece em toda a extensão do ali decidido.
12.º Ou seja, nada se aponta quanto ao facto das embarcações identificadas nos pontos 3) e 5) terem sido avistadas em 4) e no momento da abordagem estarem na localização geográfica indicada no ponto 7) da decisão de facto.
13.º O que está em causa é que essas localizações tenham sido acordadas e não fruto de factores aleatórios como as correntes ou mesmo a avaria da embarcação identificada em 5) da decisão de facto.
14.º Por isso, o recorrente acata a decisão nos moldes em que se mostra tomada sob 5) 1ª parte.
15.º Mas questão distinta é a que se prende com a sua contratação em Espanha e com a missão que lhe foi confiada: ...aguardarem naquela posição a embarcação, identificada em 3) e procederem ao transbordo da canábis que se encontrava no interior da mesma, para o interior da embarcação em que se encontravam.
16.º A unidade lógica do pensamento que percorre a decisão ora impugnada quebra-se neste preciso ponto 5) in fine e 16).
17.º Aliás a decisão de facto sob 13) quanto à identificação/especificação de quem dava as orientações sobre o rumo da embarcação identificada sob o ponto 3), usa a expressão “as pessoas”.
18.º O segmento da decisão de facto que se impugna altera, sem que se explicite na fundamentação, aquele propósito assente em 1) e 2) e faz a alteração, infundada dar um novo rumo; afinal a embarcação identificada em 3) não ia fazer o transporte até Espanha, mas, antes, até àquele preciso ponto em que se encontrava outra embarcação para fazer o transbordo.
19.º Até poderia ser, mas, para tanto, a decisão de facto tinha, forçosamente, de ter apurado algo mais, para demonstrar que a matéria apurada em1), 2) e3), tinha alterado, o que não acontece e a decisão salta de todo um raciocínio estruturado, para aquela parte final do ponto 5), segurando, também do nada o que conclui sob os pontos 15), 16) e 17) da decisão de facto.
20.º Ainda acresce que a contratação em Espanha é uma realidade obscura – não é acolhida em parte nenhuma do teor da fundamentação, que a omite; a prova pré-constituída não abona elementos que sustentem essa contratação em Espanha e da prova produzida nada resulta quanto a tal e concorre para a ausência desta prova o facto indesmentível da abordagem e detenção ter sido antecedida pela informação da força aérea portuguesa, o que ocorre mais de três horas antes da abordagem (cfr. fls 3 e auto de notícia de fls. 13, invocadas a fls. 55 do acórdão). 25
21.º Aqui chegados, aquele bom e velho princípio é aqui chamado: a decisão é tão justa quanto se aproxime de uma realidade apreendida por todos e não só por mentes eruditas ou privilegiadas.
22.º O recorrente não alcança nem porque a sua contratação terá sido em Espanha, tanto mais que se encontrava no Porto antes de se deslocar para o porto de pesca da Isla Cristina de onde partiu, nem porque tinha de fazer um transbordo de droga para o barco onde se encontrava, por sinal com avaria (cfr.fls. 1125/1227; fls 9/11, dos autos que sustentam a fundamentação e a decisão de facto sob 9.2))
23.º As duas realidades decididas quanto ao transbordo e contratação do recorrente não resultam nem de prova directa, nem indirecta e não há, naturalmente regra da experiência ou livre apreciação que albergue a decisão porque não resulta de elemento nenhum dos que com cuidado foram invocados.
24.º O recorrente apresentou uma razão para estar ali – al. b) dos factos não provados (cfr. fls. 25 do acórdão ora recorrido).
25.º E certo é que a embarcação em que o recorrente se encontrava tinha uma avaria – cfr. ponto 9.2 da decisão de facto.
26.º E certo é que, pese embora tenha sido decidido não provado, o recorrente afirmou que fora lá reparar a embarcação.
27.º E certo é, da mesma forma, que a embarcação identificada em 3) estava em condições de prosseguir viagem até ao destino – Espanha.
28.º Esta realidade dá consistência à decisão de facto sob 1) e 2): os tripulantes aceitaram levar a droga até Espanha, país onde tinham interesse em ficar.
29.º Ao invés, a decisão recorrida decide que a embarcação identificada em 3) iria ficar sem droga para levar até Espanha e apenas teria de chegar até às coordenadas indicadas sob 4) da decisão de facto para fazer um transbordo.
30.º A decisão de facto nesta parte – os tripulantes da embarcação identificada em 5) iam fazer o transbordo dessa droga para a embarcação que tripulavam – salvo o devido respeito não faz sentido.
31.º Se a localização, a proximidade, a avaria, o carregamento de 127 fardos são evidências que o recorrente não perde sequer tempo a impugnar, já não faz o mesmo quanto à sua alegada contratação em Espanha e o encargo de fazer o transbordo.
32.º A fundamentação invocada para o apuramento de tal matéria é parca, na medida em que se socorre do que é inelutável infirmar: perícia de fls. 1125/1127; fotográficas de fls. 9 a 11, remissão para fls. 3 quanto à localização, no mais, afasta a credibilidade das declarações do recorrente.
33.º A fundamentação tem um único argumento pertinente, o que tem a ver com o conhecimento do recorrente quanto à natureza ilícita da carga na embarcação identificada em 3).
34.º Já não tem é a virtualidade de convencer-se com o teor do texto da fundamentação que encontra quanto à contratação e modus operandi gizado na decisão sob 5), 16) e 17).
35.º Mais se diga que, não sendo proibido o recurso ao método de apuramento dos factos pela prova indirecta, o princípio que deve nortear este raciocínio falha, na medida em que os pequenos passos dados pelos factos conhecidos, para retirar a conclusão que é o facto que não se evidencia sofre hiatos e, portanto, saltos lógicos.
36.º Vejamos, a fundamentação é exímia a explicitar a convicção a que chega quanto ao conhecimento do recorrente quanto à carga ilícita na embarcação identificada em 3).
37.º Com efeito, é bem assertiva a ponderação de que quem transporta droga não aborda embarcações sob pena de serem denunciados e comprometerem alcançar o que se propuseram.
38.º Mas, ainda que se faça vénia a este raciocínio, o recorrente com esse “saber” não se coloca na posição de ser agente activo no cometimento do crime de tráfico.
39.º Note-se que a realidade dos factos é indesmentível no que aqui importa e consta da decisão de facto sob 9.2) e até 13), para lá do que consta sob os pontos 1) a 3).
Atente-se:
40.º O recorrente não é tido nos contactos iniciais em Marrocos, que são confessados pelos arguidos que neles participaram (ponto 1);
41.º A embarcação onde se encontra é avistada, por referência ao ponto 4), nas proximidades de mais 7 embarcações (fls. 3 dos autos, invocada na fundamentação do acórdão a sua fls. 55);
42.º A embarcação onde o recorrente se encontra está de forma irrefutável avariada (decisão de facto sob o ponto 9.2) e perícia 1125/1127);
43.º A embarcação identificada em 3) tem todos os aparelhos identificados em 12) da decisão de facto e servem, tal como se decide sob 13) dessa decisão, para os tripulantes da embarcação identificada em 3) comunicarem com “as pessoas” que davam orientações;
44.º Os tripulantes da embarcação identificada em 5) onde se encontrava o recorrente não são identificados como as referidas “pessoas” que davam orientações.
45.º Esses mesmos tripulantes da embarcação 5), por seu turno, afirmaram que estavam naquela embarcação a repará-la e que foi esse o propósito da sua deslocação aquele local e embarcação.
46.º A decisão de facto, adianta que a explicação fornecida pelo recorrente não é credível e, nos termos em que se mostra exarado sob B), al b), não acolhe a razão dada para ali estar, apesar da embarcação estar efectivamente avariada – perícia de fls. 1125/1127.
47.º A fls. 55 do acórdão recorrido, extrai-se a razão pela qual o tribunal a quo afasta a credibilidade das declarações do ora recorrente: não são credíveis, atendendo ao contexto em que foram avistadas e por força das regras da experiência.
48.º Antes de avançar, o contexto em que as embarcações foram avistadas padece de lacuna na decisão de facto: não são duas, mas 8 embarcações (cfr. fls. 26 do acórdão, já acima referida e fls. 3, invocado na motivação).
49.º E, socorrendo-nos das regras da experiência, aferidas pelo pensamento do homem medianamente avisado, mal se entende que a fundamentação persista em dar como apurado que o transbordo de mais de 4 toneladas de canábis seja para uma embarcação avariada. 28
50.º Com que fito? Era, afinal, para abandonar as 4 toneladas em alto mar? Veja-se que a embarcação identificada sob 5) teve de ser rebocada – cfr. teor da decisão de facto sob 9.2): “devido a avaria, veio atrelada a uma embarcação de reboque”.
51.º O que as regras da experiência mostram à saciedade é esta realidade que de tão simples, até nem se vê: se fosse mesmo para fazer o transbordo, os tripulantes das duas embarcações tinham do mais que tempo para o fazerem naquela janela de tempo, superior a três horas, que mediou o avistamento em 4) e a abordagem em 8).
52.º O recorrente aceita que o tribunal a quo invoque a proximidade para justificar que o recorrente não tinha como não ver os fardos, e, por consequência, como não admitir a possibilidade da existência de droga,
53.º Mas é impossível encaixar no quadro mental de um homem médio que estava lá numa embarcação avariada para colocar na mesma 4 toneladas de canábis, transbordando-as de uma embarcação em boas condições.
54.º A fundamentação, a fls. 56 do acórdão, vai ao ponto de invocar a irrelevância da avaria para afirmar a tese do transbordo, mas com o dito não se alcança porque não possam ser as ferramentas levadas ou usadas pelo recorrente e, mais per nente, porque é que decorridas mais de três horas desde o avistamento até à abordagem teve de ser atrelada a uma embarcação de reboque, porquanto a avaria de que padecia impedia a sua navegação.
55.º A decisão de facto, salvo o devido respeito, porque omitiu que as outras 6 embarcações rumaram a outras paragens e só tinha ali duas das oito avistadas, tentou a justificação da existência das duas como se estivessem ligadas e aí perdeu o foco inicialmente apurado.
56.º É que, em bom rigor, a única embarcação que não se justifica estar ali é a identificada em 3), na medida em que tinha um carregamento de 4 toneladas de haxixe e meios para sair dali, rumo a Espanha, como o apurado de 1) a 3).
57.º Ao invés a embarcação identificada em 5) é a única que se justifica que ali permanecesse, pois só navegava, como se viu, desde que atrelada a embarcação de reboque.
58.º A decisão de que se recorre, decidiu atribuir um significado à proximidade de uma embarcação carregada com 4 toneladas de canábis com outra à deriva, por avaria no motor, ao invés de decidir que, na verdade, apesar de terem sido avistadas 8 embarcações, no momento da abordagem, 6 já tinham rumado a destino fora do alcance visual e apenas se encontravam lá duas embarcações.
59.º A decisão bem andaria se decidisse que se encontravam próximas duas embarcações, uma por estar avariada e à deriva e outra que, por razões não apuradas, também ali se encontrava, pese embora o carregamento de canábis.
60.º A proximidade é o alicerce para a tese do transbordo definido na fundamentação, mas contrariou as regras da experiência, pelas seguintes razões:
I. Não atentou que a avaria no motor coloca a embarcação à deriva, o que quer dizer sem capacidade para definir o rumo e que a proximidade pode ser o fruto do acaso; e
II. Não atentou que as horas passadas desde o avistamento até à abordagem, não justificam a ausência de movimentação de fardos de uma embarcação para a outra, caso o objectivo fosse o transbordo.
61.º A avaria é objecto de esforço de minimização para o alegado transbordo, mas o que não deixa de ser certo é que das 8 embarcações só ali estavam 2:
I. uma, porque avariada, e
II. outra carregada com 127 fardos contendo canábis.
62.º É que se fosse na verdade para fazer o transbordo, cinco homens, num hiato de mais de três horas entre o avistamento e a abordagem teriam, ao menos movido um fardo de uma embarcação para outra.
63.º Ainda que a fls. 62 do acórdão se faça o enquadramento jurídico dos factos, a ideia do transbordo é invocada de forma insistente e permanente e é só por essa via que se consegue aproximar o recorrente de um elemento da conduta que leve ao preenchimento do tipo legal p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93.
64.º Só que, a decisão de facto arrisca um facto, que depois ignora na fundamentação: a contratação do recorrente em Espanha para fazer o alegado transbordo.
65.º Da prova apenas resulta com singeleza o seguinte:
I. Por razões não apuradas das 8 embarcações avistadas apenas se mantiveram nas imediações 2, sendo que uma tinha uma avaria.
II. Os ocupantes da embarcação com avaria não podiam ignorar que a embarcação que estava nas proximidades continha fardos de produto que não podiam deixar de previsivelmente considerar ser haxixe/canábis.
66.º Saber, porque estava próximo, dentro de um barco com avaria no motor, no caso, não preenche o elemento de conduta necessário para a incriminação.
67.º Este enquadramento decorrente do que objectivamente a prova dá à saciedade, com a decisão de facto constante dos pontos 1) a 3) e com a localização identificada em 4) para a sinalização do avistamento de 8 embarcações não permite considerações como as que se materializam no esforço do preenchimento do crime, como as que constam de fls. 82 a 84 do acórdão ora recorrido.
68.º Atente-se no 3º parágrafo de fls. 82:
Em face da factualidade ora descrita, é de afirmar, relativamente ao transporte de canábis que estava a acontecer aquando da intervenção da marinha, é de afirmar, que todos os arguidos intervieram ativamente na fase de planeamento do transporte da canábis, bem como na sua fase executiva.
69.º O planeamento não decorre da prova e nem sequer é referido na fundamentação, como supra se disse, para lá do já especificamente apontado.
70.º E mais se atente no que se refere a fls. 83:
Tais condutas correspondem ao preenchimento de um elemento típico do crime de tráfico de estupefacientes, pois são actos que antecedem imediatamente, sem solução de (des)continuidade substancial e temporal, acto de transbordo da canábis, o que permite afirmar uma conexão de perigo típico.
71.º Do que vem de ser dito, é a teorização para o enquadramento legal e não, como devia, a fundamentação para tornar apreensível a decisão de facto, que coloca o recorrente como agente da prática de condutas susceptíveis de preencher o tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93.
72.º A relativização da avaria, a contratação em Espanha sem respaldo na prova, a exponenciação da proximidade geográfica, a omissão do avistamento das demais embarcações e toda a criação de argumentos para o colocar numa operação de transbordo foram a forma de lograr a condenação.
73.º No entanto, a decisão padece de vício e, é nula, por força do artigo 410º, nº 2 als b) e c) do CPP.
74.º A decisão padece de vício decisório, resultante do texto, o que a fere de nulidade, a saber:
I. apura factos que contêm quebra no raciocínio lógico e dificultam a apreensão do seu sentido: pontos 1),2) , 3) e 4), por um lado e parte final do ponto 5),na medida em que o destino da embarcação identificada em 3) deixa de ser Espanha e passa a ser a localização geográfica apurada em 4);
II. apura factos – contratação do recorrente em Espanha para levar a embarcação até à localização identificada em 4) – sem respaldo na prova e omissos na fundamentação, por não lhe ser feita referência na Motivação;
III. apura factos – pontos5), última parte, 6) e 16) – com omissão da prova na sua total dimensão – fls. 3 e 13 dos autos, a que corresponde a fundamentação de fls. 55 do acórdão (com explicitação clara a fls. 26 do acórdão),criando a ideia errada que apenas existiram 2 embarcações, em vez de 8 na localização apontada em 4), pretendendo transformar a localização não no marco do avistamento, mas o marco previamente acordado para um encontro;
75.º No que decorre com o texto do acórdão, conjugado com as regras da experiência, e que consubstancia de igual modo que a decisão enferme de nulidade:
I. contraria a ordem natural das coisas alavancar a proximidade de duas embarcações, como decorre dos pontos 4), 7) e 8) numa operação de transbordo de 4 toneladas de canábis, quando a decisão (ponto 9.2)) sustentada na perícia e com a totalidade dos 127 fardos contendo canábis na embarcação 3) e com uma janela temporal de, pelo menos 5 horas, não regista a movimentação, por cinco homens, de pelo menos um fardo; a decisão sob 4), 7) e 8) dão nota do tempo decorrido e os pontos 10) a 14)atestam a ausência da carga na embarcação identificada em 3).
II. contraria a ordem natural a tentativa de minimização da efectiva avaria para agarrar o recorrente a uma conduta, a única para lhe imputar o cometimento e uma acção capaz de preencher o tipo p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93;
III. contraria as regras da experiência, sem prova pré-constituída ou produzida em audiência ao dar como não apurado que o recorrente estava na embarcação identificada em 5) para o reparar.
76.º Verificado que se mostra o vício que o recorrente suscita à luz do artigo 410º, nº 2, als. b) e c) d CPP, a questão a saber é se é possível tomar a decisão ou, se pelo contrário, se impõe o reenvio, nos termos do artigo 426º do CPP.
77.º Defende o recorrente que a prova, atestado que se mostra o vício decisório a parte final do ponto 5), 15), 16) e17)e, bem assim, o facto não apurado sob B), al. b), a decisão do tribunal ad quem é possível, pelo que devem ser alterados:
A parte final do ponto 5 da decisão de facto deve ser eliminada e, por consequência os pontos 16) e 17), sendo que o ponto 15), no que aos tripulantes da embarcação identificada em 5, na 1ª parte, diz respeito deve ser reparada a sua menção.
78.º Da prova pré – constituída e produzida resulta com singeleza, tal com já referido que:
I. Por razões não apuradas das 8 embarcações avistadas apenas se mantiveram nas imediações as que vieram a ser identificadas sob 3) e 5) da decisão de facto, sendo que esta tinha uma avaria, como decorre do ponto 9.2) da decisão e a outra, identificada em 3) continha 127 embalagens, tal como daí resulta, que vieram a ser apreendidas.
II. Os ocupantes da embarcação identificada em 5) procedia uma reparação da embarcação.
79.º Atente-se que mesmo que a proximidade permitisse a visualização dos fardos, a proximidade é por força da embarcação ESTAR À DERIVA.
80.º E assim, no caso, não preenche o elemento de conduta necessário para a incriminação do recorrente.
81.º E, como tal, deve o recorrente ser absolvido por não ter participação no cometimento dos factos delituosos.
82.º A decisão recorrida, para lá de ter violado o artigo 127º do CPP violou, outrossim, os artigos 14º e 26º do CP e o artigo 21º do DL 15/93.
DO DIREITO
83.º Se não for concedido provimento à pretensão do recorrente nos termos acima explanados, o quadro factual é o que decorre da síntese de fls. 82 do acórdão, no seu 2º e 3º §.
84.º Ainda assim, à luz dos artigos 40º e 71º do CP, os parâmetros encontrados (cfr. fls 91 do acórdão recorrido) para arbitrar a pena concreta no cometimento do crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93, com impacto para a ilicitude do facto e dolo, foram os seguintes:
qualidade do produto estupefaciente: canábis, vulgo «droga leve;
dimensão da operação logística envolvida na operação de transporte da canábis;
quantidade da canábis transportada;
coautoria;
estatuto/função de cada um dos arguidos e as respetivas vantagens económica;
grau de culpa;
sentimentos manifestados e motivo para o cometimento do crime;
condições pessoais e situação económica dos arguidos;
conduta anterior aos factos: primário;
conduta posterior aos factos e à falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, nada de relevante se apurou.
85.º O recorrente não ousa questionar as elevadas exigências de prevenção geral decorrentes da imagem global ilustrada dos factos apurados.
86.º E serão sempre mais exigentes que as de prevenção especial, atenta a globalidade das circunstâncias da acção e das condições pessoais apuradas na decisão de facto, com relevo a ausência de averbamentos no CRC.
87.º Acrescenta, no entanto, que o recorrente é um transportador, entre os outros “transportadores” que já tinham trilhado grande distância, desde Marrocos até aos locais apurados em 4) e 7).
88.º O seu estatuto e seu peso ou capacidade de decisão e implicação em qualquer planeamento resumem-se a uma fase posterior ao verdadeiro e determinante plano de acção.
89.º A decisão de facto sob 1), 3) e 5) marca o início desta acção delituosa – contacto para transporte de canábis para Espanha.
90.º O “planeamento” destes arguidos é neste concreto estádio – transporte.
91.º A decisão não apura se sabia mais, para lá da missão de transporte e o ponto 13) da decisão de facto elucida ao referir as “pessoas que davam orientações”, mas não ao recorrente, o que força a importância muito relativa do recorrente.
92.º O ponto 12) da decisão quanto às apreensões e, bem assim, no ponto B), al a) quanto a quem se fazia transportar na embarcação identificada em 3) da decisão de facto não permitem assegurar que nesse contacto com as tais “pessoas” que davam orientações.
93.º O recorrente, que se fazia transportar na embarcação identificada sob o ponto 5) da decisão de facto, não obstante o labor do tribunal a quo, para evidenciar a logística, está numa embarcação à deriva por ter o motor avariado – é o que decorre do ponto 9. 2) e fls. 1125/1127.
94.º Aqui chegados o recorrente defende, por todos os princípios que norteiam a escolha da medida da pena, uma pena, antes de mais, inferior a 6anos de prisão.
95.º E, desde logo, aponta que não deve ser fixada qualquer diferenciação nas penas arbitradas.
96.º A razão invocada na decisão recorrida, a fls. 94, é a confissão dos arguidos de nacionalidade marroquina.
97.º A fls. 56 do acórdão, na análise crítica das declarações dos arguidos, o juiz a quo considera que as declarações por aqueles prestadas contrariam as regras da experiência no que mais importava, sob o ponto de vista da tese do libelo acusatório, por daí implicar o recorrente.
98.º A confissão do óbvio, como caso acontece, é irrelevante, na medida em que não passa de notória estratégia de defesa para minorar as consequências penais da sua actuação.
99.º No caso, quer aqueles cidadãos tivessem assumido, ou não, que transportavam aquela carga, era difícil, atenta a detenção em flagrante, negar e que tenham sido contactados para o transporte e que não eram donos do estupefaciente, as regras da experiência alcançam o mesmo resultado pela inexistência de sinal indicativo da capacidade económica para suportar o preço de 4 toneladas de canábis.
100.º Que tinham forte motivação, tinham , o objectivo era de económico, era alcançar, a qualquer custo, e de forma rápida, incremento económico.
101.º É frequentemente apontado ao crime de tráfico as nefastas consequências por estar de mãos dadas com outro tipo de criminalidade, invocando-se, não raras vezes, os crimes de natureza patrimonial.
102.º Pois bem, a emigração ilegal, deve também ser considerada.
103.º No fundo, invocando o bem jurídico que deve ser salvaguardado pelo crime de tráfico de estupefacientes, em última análise, o respeito da vida, saúde e dignidade da pessoa humana, também passa por travar a emigração ilegal.
104.º Não deixa de merecer reparo a fls. 94 a comparação a propósito do sentido crítico do recorrente.
105.º A fls. 25 do acórdão, na matéria não apurada sob B), al. b), na análise crítica das declarações prestadas pelo recorrente a fls. 55 e 56 e na decisão de facto sob o ponto 26), a fls. 19 do acórdão resulta que o recorrente apresentou uma razão para se encontrar na embarcação identificada em 5).
106.º Só nesse contexto – dado como não apurado – surge a contrapartida económica de 1500,00 euros.
107.º Ora, se as suas declarações foram arredadas para infirmar o cometimento dos factos que lhe foram imputados, não pode uma parte das declarações ser “repescada” para o prejudicar.
108.º O que se propunha fazer – reparar a embarcação– merecia aquele valor e em si, 36 a sua actuação era legítima e não gratuita, mas nesse contexto e não noutro.
109.ºAssim, em suma, a decisão mal andou ao fazer a diferenciação, com a justificação dada.
110.º Acresce, todavia, uma realidade apurada – os pontos 18) a 30) da decisão de facto – que não foram atendidos na devida conta para a fixação da medida concreta da pena.
111.º A situação pessoal do recorrente coloca-o como pessoa integrada na sua comunidade, com trabalho e com estabilidade pessoal, familiar e económica.
112.º A decisão ora recorrida, encara o recorrente a fls. 92 do acórdão, como um transportador, sem qualquer participação no lucro que a venda da carga poderia gerar.
113.ºAssim, não se mostrando apurado que o recorrente soubesse o peso da carga, mais fardo ou menos fardo teria expressão económica, sem dúvida, mas sem qualquer reflexo no prémio da actividade delituosa.
114.º Quanto à co-autoria, atentando ao ponto 13) da decisão de facto, o domínio da acção, com apelo às regras da experiência, é sempre superior a quem tem contacto com as “pessoas” que dão as orientações e não é definitivamente o caso do recorrente.
115.º A ser efectuada diferenciação, o que até se aceita, não pode ser em desfavor do recorrente: o investimento no projecto delituoso, atenta a localização onde são avistados em 4) é expressivo na distância que uns e outros tiveram de andar, o que se expressa na intensidade do dolo.
116.º Desta sorte, a pena do recorrente não pode ir além de 5 anos de prisão, porque não se coloca neste crime a questão da escolha do tipo de pena, face à moldura prevista no artigo 21º do DL 15/93, que só admite pena de prisão.
117.º Mas, a circunstância fundamental do recorrente, estar sediado a norte, ter vida familiar estabilizada, trabalho e condições económicas estáveis arredam-no da procura de lucro fácil.
118.º Tratar-se 4 toneladas de canábis não deve ser considerado factor impeditivo na medida em que a decisão recorrida não apura, para lá de ser canábis, se o recorrente sabia qual era a dimensão da carga a transportar pela embarcação.
119.º Mais não apura se o recorrente, tinha conhecimento prévio das condições acordadas quanto aos demais co-arguidos.
120.º A decisão cinge-se ao ponto 5), com expressão quanto ao dolo nos pontos 15), 16) e 17) e não mais.
121.º Há ainda o indesmentível facto da embarcação onde se encontrava ter uma avaria no motor (ponto 9.2) da decisão).
122.º O relevo da sua actuação resulta comprometido.
123.º Não se ignora que o 4º § de fls. 82 baliza o enquadramento.
124.º Mas aponta-se à decisão a indefinição quanto ao alegado transbordo, na medida em que desde a hora apontada na decisão sob 4) e a apontada sob 7), a carga mantinha-se onde sempre estivera, desde a saída de Marrocos, apesar de no total dos tripulantes das duas embarcações se contarem braços de 5 homens.
125.º Tais circunstâncias, com o apelo para a matéria acima referida sob 18) a 30) da decisão de facto, com especial atenção ao momento actual e não à data dos factos, é de justiça ponderar o recurso ao instituto da suspensão da execução da pena, nos termos do que se mostra previsto ao artigo 50º, nº 2 do CP.
126.º A ponderação que ora se demanda ao tribunal ad quem, na medida em que as suas condições pessoais actuais sob 28) e29) da decisão de facto, a privação de liberdade desde Janeiro de 2023 e a ameaça do cumprimento da pena de prisão são garantes do juízo assenta neste voto de confiança, que a ameaça da prisão neste caso é adequada e suficiente para que as finalidades da punição não saiam defraudadas.
127.º Nunca se perca de vista que a decisão não logrou ir além de um estatuto do recorrente que ultrapassasse o mero transportador.
128.º E, ao que decorre da decisão de facto, sob os pontos 4), 7) e 8), com reduzida capacidade de acção, não só pela inegável avaria, como também inegável movimentação e fardos da embarcação 3) para a 5).
129.º Até podia ser esse o propósito, até podia estar lá para o efeito, mas … não ocorreu e a embarcação identificada em 3) era a única que tinha o contracto com as “pessoas” (ponto 13) da decisão) e era a única que podia sair dali (a contrário ponto 9.2) da decisão).
130.º A suspensão execução da pena, pese embora seja reportada ao estado actual, não deixa para trás as condições em que o recorrente de acordo com a decisão recorrida se colocou com uma conduta capaz de preencher o tipo de ilícito pelo qual está condenado – tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93.
131.º A verdade é que a situação do recorrente (num barco que teve ser atrelado a embarcação de reboque para chegar a terra) em pouco difere da que estaria se se colocasse com uma casca de noz para carregar 127 fardos.
132.º A decisão recorrida deve ser revogada nesta parte e deve condenar o recorrente na pena de 5anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeito a regime de prova que assegure a sua reintegração na comunidade.
133.º Deve para tanto ser elaborado plano de reinserção, nos termos do artigo 53º do CP.
134.º A decisão recorrida violou os artigos 40º, 71º e 50º do CP.
(…).
Termos em que se impõe a revogação da decisão recorrida nos termos supra ditos.
*
O recurso foi admitido por despacho de ... de ... de 2024.
*
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
a) Não se conformando com a pena de prisão efectiva que lhe foi aplicada, vem o recorrente, nas suas conclusões de recurso, invocar que o Tribunal “a quo” deveria ter aplicado uma pena suspensa, não privativa da liberdade.
b) Entende, assim, que a pena de prisão que lhe foi aplicada deveria ser suspensa.
c) O arguido reconduz pois as suas conclusões à questão da apreciação da escolha e determinação da medida concreta da pena, versando desta forma o recurso sobre matéria de direito;
d) As finalidades das penas apresentam uma função quer de prevenção geral, quer de prevenção especial positiva;
e) As necessidades de prevenção geral relativamente ao crime em causa são bastante elevadas se atentarmos à problemática de consumo que a que esta associado o crime em causa.
f) A suspensão da pena não deverá ocorrer quando o tribunal não puder concluir que essa medida é adequada a realizar as finalidades das penas públicas e afastar o arguido da delinquência.
g) Havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, a suspensão da pena deve ser negada.
h) No caso dos autos, o recorrente dedicava-se ao tráfico de estupefacientes de forma organizada e a nível internacional.
i) Face à sua conduta ficou arredada qualquer possibilidade de aplicar outra pena que não a pena de prisão.
j) Acresce que aos olhos da comunidade a aplicação de uma pena suspensa tem inerente um juízo de impunidade e injustiça.
k) Bem andou o Tribunal ao decidir como decidiu.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso e ser confirmada a decisão condenatória, fazendo assim, V. Ex.as, a tão costumada JUSTIÇA.
*
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Évora, por decisão sumária de ... de ... de 2024 do Exmo. Juiz Desembargador relator, foi ordenada a sua subida ao Supremo Tribunal de Justiça, para conhecimento do recurso.
*
*
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal apôs o seu visto.
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Colhidos os vistos, realizou-se a audiência, após o que, o tribunal reuniu e deliberou nos termos que seguem.
*
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*
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A. Factos provados
A matéria de facto provada que provém da 1ª instância [com execpção das condições pessoais dos co-arguidos] é a seguinte:
“(…).
1. Em dia anterior a ... de ... de 2023, BB, CC e DD foram contactados, em Marrocos, para efetuarem o transporte de canábis daquele país para Espanha, em troca de ficarem naquele país como emigrantes;
2. BB, CC e DD acordaram em efetuar o mencionado transporte;
3. Em concretização do acordado, BB, CC e DD foram conduzidos à embarcação com 12,8 metros de comprimento, com o casco de cor cinza e flutuadores de cor preta, sem marca, nem número de casco e sem quaisquer inscrições de registo ou pavilhão, com 4 motores fora de borda, da marca “Yamaha”, modelo XTO ...HP V. - XF...NSA, cada um deles com a potência de 425 HP e com os números de série .GR-N-......., .GR-N- ......., .GR-N ....... e .GR-N..... .., na qual se encontravam acondicionados 127 (cento e vinte e sete) embalagens contendo:
........6600 placas de canábis (resina) com o peso de 633600.000 gramas, com um grau de pureza de 33% de T.H.C. correspondentes a 4181760 doses individuais;
3.2. 6600 placas de canábis (resina) com o peso de 631373.000 gramas, com um grau de pureza de 31% de T.H.C. correspondentes a 3914512 doses individuais;
3.3. 6270 placas de canábis (resina) com o peso de 599907.000 gramas, com um grau de pureza de 33.3% de T.H.C. correspondentes a 3995380 doses individuais;
3.4. 5940 placas de canábis (resina) com o peso de 570090.000 gramas, com um grau de pureza de 32.4% de T.H.C. correspondentes a 3694183 doses individuais;
3.5. 3300 placas de canábis (resina) com o peso de 315849.000 gramas, com um grau de pureza de 30.4% de T.H.C. correspondentes a 1920361 doses individuais;
3.6. 3300 placas de canábis (resina) com o peso de 318254.000 gramas, com um grau de pureza de 32.1% de T.H.C. correspondentes a 2043190 doses individuais;
3.7. 700 placas de canábis (resina) com o peso de 68450.000 gramas, com um grau de pureza de 35.5 % de T.H.C. correspondentes a 485995 doses individuais;
3.8. 3300 placas de canábis (resina) com o peso de 313892.000 gramas, com um grau de pureza de 34.4% de T.H.C. correspondentes a 2159576 doses individuais;
3.9. 1650 placas de canábis (resina) com o peso de 159186.000 gramas, com um grau de pureza de 30.8% de T.H.C. correspondentes a 980585 doses individuais;
3.10. 600 placas de canábis (resina) com o peso de 57323.000 gramas, com um grau de pureza de 31.4% de T.H.C. correspondentes a 359988 doses individuais;
3.11. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28570.000 gramas, com um grau de pureza de 31.2% de T.H.C. correspondentes a 178332 doses individuais;
3.12. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28705.000 gramas, com um grau de pureza de 31.4% de T.H.C. correspondentes a 180267 doses individuais;
3.13. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28453.000 gramas, com um grau de pureza de 31.4% de T.H.C. correspondentes a 178684 doses individuais;
3.14. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28342.000 gramas, com um grau de pureza de 31.4% de T.H.C. correspondentes a 177987 doses individuais;
3.15. 600 placas de canábis (resina) com o peso de 56931.000 gramas, com um grau de pureza de 31.4% de T.H.C. correspondentes a 357526 doses individuais;
3.16. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28468.000 gramas, com um grau de pureza de 31.6% de T.H.C. correspondentes a 179917 doses individuais;
3.17. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28421.000 gramas, com um grau de pureza de 32,6% de T.H.C. correspondentes a 185304 doses individuais;
3.18. 300 placas de canábis (resina) com o peso de 28863.000 gramas, com um grau de pureza de 32.9% de T.H.C. correspondentes a 189918 doses individuais;
3.19. 600 placas de canábis (resina) com o peso de 57208.000 gramas, com um grau de pureza de 33% de T.H.C. correspondentes a 377572 doses individuais;
4. De seguida, fizerem rumar a embarcação para as coordenadas latitude 36º, 09’ e 57’’N e longitude 007º, 25’ 26”W, onde a mesma veio a ser avistada pela força área, antes das 12h39 no dia ... de ... de 2023;
5. Naquele local foi igualmente avistada pela força aérea embarcação com 12,1 metros de comprimento, com o casco de cor cinza e flutuadores de cor branca, sem marca, nem número de casco e sem quaisquer inscrições de registo ou pavilhão, com 4 motores fora de borda, da marca “Yamaha”, modelo XTO ...HP- XF...NSA, cada um deles com a potência de 375 HP e com os números de série .GT-N-......, .GT-N- ......, .GT-N ...... e .GT-N-......, a bordo da qual se encontravam AA e EE, os quais haviam sido contratados, em Espanha, para aguardarem naquela posição a embarcação identificada em 3) e procederem ao transbordo da canábis que se encontrava no interior da mesma, para o interior da embarcação em que se encontravam;
6. Nessa sequência, a força aérea comunicou à Autoridade Marítima e à Polícia Judiciária as coordenadas geográficas onde avistou as embarcações identificadas em 3) e 5), o que determinou que o comandante da Marinha e da Polícia Marítima desse ordem para uma embarcação da marinha e uma embarcação da polícia marítima se deslocassem para as coordenadas geográficas conhecidas;
7. A hora não apurada, mas antes das 17h30, as embarcações identificadas em 3) e 5) vieram a ser localizadas pela embarcação da marinha nas coordenadas de latitude 36º 06’N e longitude 007º 24’W [a cerca de 65 milhas náuticas a Sul da Foz do ... e a 54 milhas náuticas do farol de ...], tendo os fuzileiros que se encontravam bordo da mesma intercetado tais embarcações e colocado os tripulantes das mesmas numa única embarcação;
8. Pelas 17h30 do dia ... de ... de 2023, chegou ao local mencionado em 7) a embarcação da polícia marítima;
9. Nessa sequência, AA, EE, BB, CC e DD foram conduzidos, pelos militares da marinha, para o Porto Comercial ..., local para onde também foram conduzidas:
9.1. a embarcação identificada em 3), com a canábis identificada em 3.1. a 3.19 a bordo, e;
9.2. a embarcação identificada em 5), a qual, devido a avaria, veio atrelada a uma embarcação de reboque;
10. No Porto Comercial ..., a polícia judiciária apreendeu as embarcações identificadas em 3) e 5) e as 127 embalagens identificadas em 3) e procedeu à pesagem, por amostragem, das mesmas, e efetuou teste rápido DIK 12, de uma amostra do produto que se encontrava, a qual reagiu positivamente para canábis;
11. Nessa sequência, conduziu às instalações da Polícia JudiciáriaAA, EE, BB, CC e DD, os quais foram constituídos arguidos;
12. No interior da embarcação identificada em 3), em sacos e bolsas, foi encontrado e apreendido:
12.1. Um aparelho de radar GPS da marca Garmin, que se encontrava na consola da embarcação;
12.2. um cartão de memória da marca Gigastone, com capacidade de 16Gb, o qual foi retirado daquele aparelho de GPS identificado em 11.1. , com o valor de € 3 (três euros);
12.10. um aparelho GPS portátil da marca Garmin, modelo GPS Map78, cor cinzento e branco, sem cartão no interior, em razoável estado de conservação, com o valor de € 100 (cem euros);
.... um telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI ..., com cartão SIM da marca Iridium número ..., e respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de €450 (quatrocentos e cinquenta euros);
12.4. um telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI ..., com cartão SIM da marca Iridium número ... e respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros);
12.5. um telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI ..., com cartão SIM da marca Iridium número ... e respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros);
12.6. um telefone satélite da marca Iridium, com o IMEI ..., sem cartão SIM, sem a respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 200 (duzentos euros);
12.7. um telefone satélite da marca Iridium, sem indicação de IMEI, sem cartão SIM e sem respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 180 (cento e oitenta euros);
12.8. um aparelho de envio de mensagens via satélite da marca SpotX, modelo Spot XB, de cor preto e laranja, com autocolante amarelo com o número ..., em razoável estado de conservação, com o valor de € 120 (cento e vinte euros);
12.9. um aparelho GPS da marca Garmin, modelo GPS Map276 Cx, cor cinzento, em razoável estado de conservação, com o valor de € 180(cento e oitenta euros);
12.11. um telemóvel da marca Nokia, modelo TA-1174, cor cinzento e preto, com IMEI1 ... e IMEI..., com cartão Sim da operadora Maroc Telecom com o número ..., e com respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de €7 (sete euros);
12.12. um telemóvel da marca Nokia, modelo TA-1174, cor cinzento e preto, com IMEI1 ... e IMEI2 ..., com cartão Sim da operadora Vodafone com o número ... e com respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 7 (sete euros);
12.13. um telemóvel da marca Nokia, modelo TA-1174, cor cinzento e preto, com IMEI1 ... e IMEI2 ..., com cartão Sim da operadora Vodafone com o número ... e com respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 7 (sete euros);
12.14. um telemóvel da marca Nokia, modelo TA-1174, cor cinzento e preto, com IMEI1 ... e IMEI2 ..., com cartão Sim da operadora Vodafone com o número ... e com respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de €7 (sete euros);
12.15. um telemóvel da marca Nokia, modelo TA-1174, cor cinzento e preto, com IMEI1 ... e IMEI2 ..., com cartão Sim da operadora Maroc Telecom com o número ..., e com respetiva bateria, em razoável estado de conservação, com o valor de € 7 (sete euros);
12.16. um telemóvel da marca Apple, modelo Iphone 8, de cor vermelho, com capa de proteção preta, com cartão nano SIM da operadora Vodafone com o número ..., com indicação do IMEI no suporte de introdução do cartão nano SIM com indicação do IMEI ..., o qual se encontrava activo em língua castelhana, e com mensagem visível no ecrã em árabe, em razoável estado de conservação, com o valor de € 60 (sessenta euros);
12.17. um telemóvel da marca Apple, modelo Iphone 11, de cor verde claro, com cartão nano SIM da operadora móvel UZO com o número ..., com ecrã ativo e menu visível em língua portuguesa, em razoável estado de conservação, com o valor de € 100 (cem euros);
12.18. um telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A33, de cor preto, com o IMEI ..., com dois cartões nano SIM, um da operadora móvel Maroc Telecom com o número ..., e o segundo da operadora móvel Vodafone com o número ..., com ecrã ativo e em língua castelhana, com capa de proteção de cor azul escuro, em razoável estado de conservação, com o valor de € 80 (oitenta euros);
12.19. um telemóvel da marca Huawei, modelo P30 Pro, com dois cartões nano SIM inseridos, um da operadora móvel Vodafone com o número ..., e o segundo da operadora móvel Orange com o número ..., com capa de proteção de cor verde, com ecrã ativo em língua castelhana, em razoável estado de conservação, com o valor de € 80 (oitenta euros), sendo que entre a capa de proteção e o telemóvel Huawei, estavam guardadas: cinco notas dobradas:
12.19.1. uma de valor facial cinquenta Dirhams marroquinos;
12.19.2. uma nota do Banco Central Europeu (BCE) de valor facial € 50 (cinquenta euros);
........3. três notas do BCE de valor facial € 20 (vinte euros);
13. O aparelho de radar GPS mencionado em 12.1, o cartão de memória referido em 12.12., os telefones de satélite identificados em .... a 12.7, o aparelho de envio de mensagens identificado em 12.8 e os aparelhos GPS descritos em 12.9 e 12.20 visavam permitir que a embarcação identificada em 3) conseguisse rumar até às coordenadas fornecidas aos arguidos BB, CC e DD e para comunicar com as pessoas que davam orientações sobre o rumo da embarcação e o destino da mesma;
14. Os telemóveis identificados em 12.11 a 12.19 e as quantias monetárias referidas em 12.19.1 a ........3 têm proveniência desconhecida;
15. AA e FF, CC e DD não são titulares de qualquer autorização legal ou administrativa que os habilite a cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou deter canábis resina e seus derivados;
16. BB, CC e DD, de comum acordo em execução de um plano previamente aceite por todos, e aceitando as condutas uns dos outros, quiseram, de forma livre a voluntária, deter e transportar canábis nos moldes descritos em 3) 4) e 7) para proceder ao seu transbordo para a embarcação identificada em 5), cientes que não eram titulares da autorização mencionada em 13) e que, dessa forma, incorriam em conduta proibida e punida por lei;
17. AA e EE, de comum acordo e aceitando a conduta um do outro, quiseram, de forma livre a voluntária, participar no plano de transporte da canábis carregada na embarcação identificada em 3), mediante o transbordo para a embarcação identificada em 5), cientes que não eram titulares da autorização mencionada em 13) e que, dessa forma, incorriam em conduta proibida e punida por lei;
18. AA é o elemento mais novo de uma fratria de 3, de um agregado familiar com um estrato socioeconómico mediano, com referência à atividade do pai/avós paternos, como trabalhadores por conta própria na área da agricultura;
19. O agregado de origem desagregou-se quando este tinha cerca de 3 anos de idade, tendo (numa fase inicial) AA e o irmão permanecido junto da mãe e a irmã permanecido junto do pai;
20. O processo de desenvolvimento decorreu num contexto sociofamiliar pautado pela preocupação familiar ao nível da transmissão de valores sociais comummente aceites pela sociedade, mas igualmente, numa dinâmica relacional conturbada, em termos psicoafectivos, face à incompatibilidade de personalidades dos pais e consequente ciclo de aproximação/rutura relacional, com residência em espaços habitacionais distintos;
21. AA concluiu o 11º ano, abandonando o sistema de ensino, com cerca de 18 anos de idade, após o que iniciou atividade remunerada como empregado de bar;
22. Aos 20 anos começou a trabalhar como nadador-salvador, atividade que manteve durante cerca de 4 anos, desenvolvendo, no Inverno, tarefas indiferenciadas em unidade fabril ou na compra/venda de automóveis usados;
23. Aos 21 anos adquiriu Carta de Marinheiro;
24. No ano de 2008 deslocou-se para o ..., onde trabalhou em atividade ligada à área marítima turística e obteve a Carta de Patrão da Costa;
25. Entre 2010 e 2019, trabalhou, em moldes regulares, para diferentes entidades patronais/empresas marítimo-turísticas, nas ..., como Marinheiro (numa fase inicial) e Skipper de embarcações de recreio;
26. No âmbito da atividade referida em 23), AA adquiriu conhecimentos e/ou experiência na área de ... naval;
27. Na data referida em 4) dos factos provados, AA:
27.1. trabalhava, desde o verão de ..., em moldes regulares, na empresa marítimo-turística ... (com sede em ...), como Skipper de cruzeiros no ..., com certificação profissional/Cédula Marítima desde ..., não registando vínculo laboral por opção própria, porque, nesse contexto, a remuneração era maior;
27.2. Paralelamente desenvolvia a atividade de compra/venda de automóveis usados (deslocando-se, para o efeito, à ...) e de compra/venda de Criptomoedas, mediante utilização de plataforma corretora especializada;
27.3. Auferia, do exercício da atividade mencionadas em 25.1 e 25.2., uma média mensal de € 2.000 (dois mil euros), sendo que no âmbito da atividade de Skipper na ..., auferia 150 Euros/dia (assegurando a empresa as despesas com alimentação, alojamento durante os cruzeiros de uma semana, no ..., a que acrescia valor variável referente a gratificações dos passageiros;
27.4. Vivia, em união de facto, desde há 3 anos, com GG, 25 anos de idade, tendo, em comum, um descendente, na atualidade com 3 anos de idade;
27.5. O agregado, residia, havia pelo menos 6 meses, na morada indicada nos autos, que corresponde a um apartamento arrendado;
27.6. Mantinha uma relação afetivamente distanciada com a sua mãe [que havia exigido que o mesmo e a sua companheira desocupasse um imóvel de sua propriedade], e com o pai [na sequência de divergências relacionadas com projeto de AA de arrendar imóveis propriedade (por herança familiar) do ascendente];
27.7. Mantinha uma relação afetiva próxima com os irmãos;
28. Após AA ser preso preventivamente à ordem destes autos, a sua companheira passou a exercer atividade laboral num salão de ... e ausentou, temporariamente para o ..., para visitar familiares;
29. Na atualidade, AA:
29.1. Mantém, em meio prisional, um comportamento coadunante com as normas vigentes do mesmo:
29.2. usufrui de visitas da companheira, dos irmãos e um amigo;
30. AA é primário;
(…)”.
B) Factos não provados
Não se provaram os seguintes factos:
a) AA e EE faziam-se transportar na embarcação identificada em 3) dos factos provados;
b) AA e EE encontravam-se na embarcação identificada em 5) dos factos provados para proceder à sua reparação, desconhecendo a operação de transporte de canábis em que participavam BB, CC e DD;
c) AA, EE, BB, CC e DD agiram com o propósito de disseminar a canábis pela Europa, através da venda e cedência a terceiros, pretendendo obter com essa atividade quantias monetárias como compensação.
C) Motivação de facto [na parte relevante]
“(…).
2. INDICAÇÃO/EXAME CRÍTICO DAS PROVAS QUE SERVIRAM PARA FORMAR A CONVICÇÃO:
Tendo presentes as considerações prévias acima tecidas relativamente à admissibilidade e valoração da prova pré-constituída está agora ao tribunal em condições de dar cumprimento ao último dos segmentos do disposto no artigo 374º, n.º 2, do CPP, isto é, indicar quais a provas [válidas] e exame crítico das mesmas que serviram para formaram a convicção do tribunal, o que faz nos termos que se seguem:
O apuramento da matéria descrita em 1), 2 e 3) assentou, em primeira linha, nas declarações dos arguidos BB, CC e DD, que, em audiência de julgamento declararam, de forma credível, que foram contactados em Marrocos para efetuar o transporte de canábis, como forma de poderem chegar a Espanha, país para onde queriam emigrar [o arguido DD, em sede de instrução, na declarações prestadas perante juíza de instrução, que podem ser validamente valoradas pelas razões acima expostas, já havia referido isso mesmo].
Quanto às caraterísticas da embarcação onde os arguidos se fizeram transportar, o tribunal atendeu ainda ao relatório pericial junto a fls. 1222/1224.
O apuramento da matéria descrita em 3.1. a 3.19 assentou no teor do relatório exame pericial junto a fls. 710 a fls. 713 dos autos.
Explicitando.
Considerando que a substância apreendida nos termos mencionados 10) dos factos provados foi, posteriormente, sujeita ao exame pericial que se encontra junto a fls. 710/713 dos autos, não oferece dúvida que a mesma era canábis com os pesos líquidos e com graus de pureza indicados no exame pericial.
Com efeito, valem aqui as considerações acima tecidas relativamente à preservação da cadeia de prova.
Ora, nos termos no n.º 1, do artigo 163º, nº1, do Código de Processo Penal, “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”
Nos termos do n. 2 do mesmo preceito : “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”
Este regime decorre do ensinamento do professor FIGUEIREDO DIAS [In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão de 1981, pp. 209/210], segundo o qual «perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto porém ao juízo científico, a apreciação há de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo nos casos inequívocos de erro, mas nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência.»
Resulta deste regime que o resultado da perícia não é livremente valorável pelo julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência em relação às conclusões do perito. O julgador só pode arredar a conclusão inscrita no relatório pericial com fundamento numa crítica material da mesma natureza.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de ........2004 [in CJ 2004-I, pp . 197-200, relator ARMINDO MONTEIRO], «Não vale uma crítica material procedente do julgador, alicerçada no seu critério pessoal, na forma particular de subjetivar os resultados, os factos, assente em conhecimentos meramente profanos, tudo sem apoio em conceitos científicos; se o julgador pudesse fundamentar a divergência sem apelo ao critério científico, seria uma forma, clara, de iludir, frustrar o comando imperativo resultante do n° 2, do art. 163°, do CPP, contraditória, até, nos seus termos, caindo‑se na proibição a obstar, não se conciliando essa fundamentação própria e interpretação pessoal com a indispensabilidade do apoio científico”.
Os juízes que constituem o tribunal coletivo não manifestam qualquer divergência com os resultados da perícia, desde logo pela inexequibilidade de recolher elementos probatórios científicos que contrariem a natureza, quantidade e grau de pureza do produto apreendido.
O apuramento da matéria descrita 4), assentou na confissão dos arguidos BB, CC e DD por referência à mensagem de correio eletrónico junta a fls. 3 verso, onde consta a comunicação 12h39, pelo que avistamento ocorreu antes de tal hora, não se fazendo constar que foi às 11h00 [hora indicada a fls. 4] ou às 12h00, como consta do auto de notícia de fls. 13, por HH, autor de ambos os documentos, não soube precisar a hora certa.
Relativamente à matéria descrita 5) e matéria vertida na alínea b), o tribunal valorou as declarações de todos os arguidos, coincidentes quanto ao facto de se fazerem transportar em embarcações diferentes, BB, CC e DD na embarcação que acondicionava a canábis e AA e EE numa outra embarcação, cujas características são as que constam da perícia 1125/1227, sendo que tais declarações se mostram suportadas pelas fotografias juntas a fls. 9 a fls. 11 dos autos.
Relativamente à localização de tal embarcação, valem as considerações acima tecidas quanto a fidedignidade dos aparelhos que atestaram tal localização.
Termos em que se considerou provada a matéria descrita em 5), desde “Naquele local .. até a bordo da qual se encontravam AA e EE” e, por decorrência lógica, não provada a matéria vertida na alínea a).
No que concerne à participação dos arguidos AA e EE no plano de transporte da canábis, o tribunal, considerou não credíveis, atendendo ao contexto em que as embarcações foram avistadas e às regras da experiência comum, as versões apresentadas pelos arguidos.
Explicitando.
AA declarou que foi contratado por um tal de “Manolo”, para quem já havia trabalhado no passado, para proceder à reparação da embarcação identificada em 5) em alto, dado que, além de piloto, possui conhecimentos de ..., tendo-lhe sido oferecida a quantia de € 1.500 pelo serviço.
Questionado sobre se não achou estranho ser conduzido a uma embarcação à deriva no alto mar, sem registo ou pavilhão [sem papeis, para usar a expressão do arguido], disse que perguntou ao Manolo se a embarcação tinha alguma coisa de ilegal, tenho aquele respondido que não.
Logo por aqui, se notou que o próprio arguido não achou normal ser contratado para reparar uma embarcação nas referidas condições e o facto de ter desconfiado de a mesma trazer algo de ilegal, aponta, desde logo, para a indiciação de que o mesmo sabia ao que ia, ou seja, para se encontrar com outra embarcação, que trazia a canábis, para efetuar o transbordo. O facto de a perícia atestar que, efetivamente, a embarcação em causa registava avaria nos motores, não afasta o juízo de indiciação apontado, dado que é comum as embarcações usadas neste tipo de operação avariarem [dadas as distâncias que percorrem e a carga que transportam], pelo que a tripulação vai precavida com caixas de ferramentas e baterias de substituição, assim se justificando o facto de ter sido encontrado a bordo da embarcação e caixa de ferramentas e baterias.
O que fica dito, vale para a explicação dada por EE, em tudo semelhante à de AA.
Acresce que, de forma mais decisiva, não faz sentido, segundo a regras da experiência comum, a explicação dada pelos mencionados arguidos e pelos arguidos BB, CC e DD, para as embarcações se encontrarem muito próximas uma da outra quando foram avistadas pela força aérea.
Com efeito, segundo os arguidos, tal proximidade ficou a dever-se ao facto de a BB, CC e DD terem avistado a embarcação onde estavam os arguidos AA e EE e decidiram aproximar-se da mesma para perguntar o que se estava a passar, não tendo existido entendimento quanto à palavras trocadas devido à barreira da língua, segundo disse o arguido II, ou tendo sido trocada palavras em espanhol, segundo os arguidos CC e DD, onde lhe foi reportado que tinham uma varia, após o que se afastaram.
Ora, quem transporta toneladas de canábis não aborda embarcações desconhecidas em alto mar, sob pena de exporem a operação de transporte de que aceitaram fazer parte e, nessa sequência, serem denunciados à autoridade e detidos.
No contexto apurado, a proximidade das duas embarcações, permite o juízo de inferência, para além da dúvida razoável, de que a embarcação onde os arguidos AA e EE se fazia transportar se encontrava naquele local para proceder ao transbordo da canábis.
Note-se que o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados poderá alcançar-se quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível, conforme resulta da jurisprudência [acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, Relator Armindo Monteiro, proc. 07P4588, de 12-03-2009, Santos Cabral proc. 09P0395, de 06-10-2010, Henriques Gaspar, proc. 936/08.JAPRT, de 07-04-2011, Santos Cabral proc 936/08.0JAPRT.S1, de 09-02-2012, Armindo Monteiro, proc. 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 09-02-2012, Santos Cabral, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-01-2009, Carlos Almeida, proc. 10693/08, 3ª secção e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2005, Oliveira Mendes, proc. 1056/05, todos acessíveis in www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, atrás indicado] e a doutrina [nomeadamente a citada abundantemente nos acórdãos acima referenciados e ainda no estudo Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade” do Juiz Conselheiro SANTOS CABRAL, publicado in Revista Julgar. N.º 17, pp. 13/33], que coincidem nos seguintes conceitos:
1º - Os indícios são os factos base, alcançados a partir de provas diretas [testemunhais, periciais, documentais, etc.] e sob plena observância dos requisitos de validade do procedimento probatório.
2º - A partir desses factos-base e mediante um raciocínio lógico e dedutivo, deve poder estabelecer-se um juízo de inferência razoável com o facto ou factos aprovar. Este juízo de inferência deve revelar-se conforme com as regras de vida e de experiência comum – ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites. Apesar de se basear em critérios generalizantes, esse juízo de inferência deverá ter em consideração o concreto contexto histórico em que se inserem os factos individualizados, com a concorrência de todas as especificas circunstâncias aí relevantes.
3º - A eficácia probatória da prova indiciária depende da existência de uma ligação precisa e direta entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando;
4º - Embora se admita a eventualidade da existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, entende-se necessário que os factos indiciadores sejam plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes;
5º -A capacidade demonstrativa da prova indiciária não pode ser determinada pela análise isolada de cada indício ou facto base, nem de uma forma meramente formal.
Com efeito, os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o acusado e o crime, quer os “contra indícios”, ou seja os indícios de teor negativo que a partir de máximas de experiência, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Com efeito, “só após o sopesar das provas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno e só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária - quando é este tipo de prova que está em causa - pode alicerçar a convicção do julgador ”.
Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo.
No caso, pelas razões apontadas, a explicação dada pelos arguidos não consubstancia uma possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, razão pela qual se considerou provada a matéria descrita em 5), segmento final e, por decorrência lógica, não provada a matéria vertida na alínea b) [versão dos arguidos].
O apuramento da matéria descrita em 6) a 9.2) assentou nos depoimentos das testemunhas JJ, KK, HH, AA e LL já acima analisados e considerados credíveis; com efeito, aquando da análise da questão da legitimidade da intervenção da força aérea e da marinha foi indicado todo o percurso desde o avistamento à abordagem das embarcações e da condução das mesmas e dos suspeitos até ao ..., apresentando os depoimentos das testemunhas AA e LL idoneidade, porque introduziram no Ploteer cartográfico da EAV em que se fizeram transportar as coordenadas que lhe foram fornecidas, oferecendo tais aparelhos fidedignidade porque dotados de um sistema de GPS [um aparelho digital de localização, que procede à receção de sinais de um sistema de satélites artificiais].
O apuramento da matéria descrita em 10) a 12.19.3 assentou nos depoimentos das testemunhas MM e NN, inspetores da polícia judiciária que assinaram os autos de apreensão, cuja validade já foi acima afirmada e, como tal, fazem prova do que foi apreendido e onde do local onde se encontrava o que foi apreendido. Relativamente ao valor dos bens apreendidos, o tribunal atendeu ao respetivo auto de exame direito e avaliação, cuja validade também foi acima afirmada.
O apuramento da matéria descrita em 13) foi admitida pelo arguido CC, que afirmou que lhe foram fornecidos telefones de satélite e GPS para se orientarem, e pelo arguido DD que falou no aparelho descrito em 12.8;
O apuramento da matéria descrita em 14) , dado o facto de os telemóveis e dinheiro se encontrarem todos juntos dentro de um saco, na embarcação que trazia a canábis, não foi possível atribuir a posse a cada um dos arguidos, que também não reclamaram tal posse, pelo que se fez constar que tinham proveniência desconhecida.
A matéria descrita em 15) foi confessada pelos arguidos.
O apuramento da matéria descrita em 16) e 17), isto é, matéria relativamente aos elementos do tipo subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes e consciência da ilicitude do mesmo, o tribunal atendeu às declarações dos arguidos BB, CC e DD, que confessaram o dolo, e a juízos de inferência extraídos a partir da factualidade dada como provada, conjugados com a regras da experiência comum no que se refere aos arguidos AA e EE.
Explicitando.
O crime de tráfico de estupefacientes [cf. melhor desenvolvido em sede de subsunção dos factos ao direito] é um crime doloso.
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa.
Não obstante, é a doutrina hoje dominante, a cujo entendimento nos acolhemos, que, na sua formulação mais geral, o dolo pode ser conceitualizado como o conhecimento (representação) e vontade de realização do facto material típico [FIGUEIREDO DIAS, com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, 3ª edição, outubro de 2019, § 4, p. 407], constituído pelos elementos objetivos, naturalísticos ou normativos de uma infração.
Engloba, assim, os elementos:
a) intelectual - a exigência de que o agente conheça as circunstâncias de facto que pertençam ao tipo legal – e;
b) volitivo - a vontade ou desejo de produzir certo resultado ou ato.
O último elemento confere ao dolo três graus distintos, consoante o agente atue: com intenção de realizar o facto ilícito - dolo direto [cf. artigo 14º, n.º 1, do Código Penal]; a realização do facto típico seja consequência necessária, mas não diretamente desejada, da sua conduta - dolo necessário [cf. artigo 14º, n.º 2, do C.P.]; a realização do facto típico seja consequência possível, da sua conduta e, não obstante, o agente atue conformando-se com essa realização - dolo eventual [cf. artigo 14º, n.º3, do C.P.].
O dolo, conceptualizado nos termos que antecedem, na ausência de confissão ou perante o silêncio da pessoa a quem é imputado, só é suscetível de prova indireta.
Acolhendo-nos à bem conseguida síntese de RUI PATRÍCIO [in O dolo enquanto elemento do tipo penal: questão de facto ou questão de direito? – Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Ano letivo de 1996/97, Universidade de Lisboa], diremos que “os atos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os atos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-empírica (…) por outras palavras, o apuramento do dolo do agente, enquanto ato interior e conceito mentalístico é uma conclusão, uma ilação e uma atribuição de significado social que o tribunal criminal extrai a partir dos factos imputados ao arguido que forem dados como provados, factos esses lidos à luz das regras da experiência da vida, da normalidade social, da experiência comum”.
A jurisprudência, desde há muito, trilha o mesmo caminho da doutrina, conforme resulta do teor do acórdão da Relação do Porto de .../.../83 [in BMJ, n.º 324, p.620], onde se refere que “o dolo pertence à vida interior de cada um, sendo, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só sendo possível captar a sua existência através de factos materiais comuns”.
Já neste século o acórdão da Relação de Coimbra de 16-11-2005 [disponível, em texto integral, in www.dgis.pt] reafirmou o entendimento que vem se sendo referido ao decidir que “não obstante o dolo pertencer ao íntimo de cada um, ser um ato interior, revestindo natureza subjetiva, o facto de o arguido exercer o direito ao silêncio não impede que a existência daquele seja captada através de dados objetivos, através das regras da experiência comum”.
Revertendo ao caso dos autos, tendo presentes as considerações acima tecidas, verifica-se, pelas razões acima exaradas, que os arguidos AA e EE seguiam numa embarcação para efetuar o transbordo da canábis que era transportava na embarcação onde seguiam o demais arguidos, pelo que resulta evidente que sabiam estar a participar numa operação de transporte marítimo de canábis, tendo como função proceder ao transbordo dessa droga.
No que à consciência da ilicitude concerne, é de convocar a que a este propósito se escreve no acórdão da Relação de Coimbra de ........2002 [disponível, em texto integral, in www.dgsi.pt], onde se lê “Relativamente aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e se tem de exigir que seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados, crimes naturais, crimes em si ou mala in se, seja os previstos, desde logo, no C. Penal, ou mesmo em legislação avulsa, mas sedimentados pelo decurso do tempo, é inaplicável o artigo 16º do C. Penal, sendo que o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artigo 17º C Penal, caso em que o afastamento da culpa só ocorre quando a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável.
Ora, o crime de tráfico de estupefacientes pertence aos chamados “crimes naturais” [“crimes em si” ou “mala in se”], isto é, crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados.
Aliás, a versão rebuscada que os arguidos AA e EE apresentaram para negar que tinha conhecimento do transporte de canábis, relevam, por si só, a consciência da ilicitude.
Termos em que se considerou provada a matéria descrita em 16) e 17), sendo que a matéria descrita na alínea c) foi dada como não provada, dado que não foi feita prova sobre o destino da canábis após chegar ao seu destino, não decorrendo das regras da experiência que os arguidos é que iriam vendê-la e receber o dinheiro da venda. Pelo contrário, são mero transportadores, que recebem dinheiro ou promessa de emigração legal, pela operação de transporte, não participando nos lucros da venda da canábis.
O apuramento do descrito em 18) a 29.2 e 30) assentou nas declarações do arguido AA e no teor do relatório social do mesmo, concordantes relativamente à suas condições pessoais e socioeconómicas e na análise do teor do certificado do registo criminal do referido arguido, o qual atesta que o mesmo não sofreu condenações.
O apuramento do descrito em 31) a 35) assentou nas declarações do arguido EE, no teor do relatório social do mesmo, depoimento da testemunha OO, seu filho, concordantes relativamente à suas condições pessoais e socioeconómicas e na análise do teor do certificado do registo criminal do referido arguido, o qual atesta que o mesmo não sofreu condenações.
O apuramento do descrito em 36) a 43) assentou nas declarações do arguido BB, no teor do relatório social do mesmo, depoimento da testemunha PP, sua mãe, concordantes relativamente à suas condições pessoais e socioeconómicas e na análise do teor do certificado do registo criminal do referido arguido, o qual atesta que o mesmo não sofreu condenações.
O apuramento do descrito em 44) a 53) assentou nas declarações do arguido CC, no teor do relatório social do mesmo, concordantes relativamente à suas condições pessoais e socioeconómicas e na análise do teor do certificado do registo criminal do referido arguido, o qual atesta que o mesmo não sofreu condenações.
O apuramento do descrito em 54) a 61) assentou nas declarações do arguido DD, no teor do relatório social do mesmo, depoimento da testemunha QQ, sua mãe concordantes relativamente à suas condições pessoais e socioeconómicas e na análise do teor do certificado do registo criminal do referido arguido, o qual atesta que o mesmo não sofreu condenações.
Consigna-se que o depoimento prestado por escrito pela testemunha RR [Almirante, ...] não se revelou útil para o apuramento dos factos descritos na acusação ou alegados pela defesa, considerando não ter razão de ciência direta sobre os mesmos.
(…).
D) Fundamentação quanto à determinação da medida concreta da pena [na parte relevante]:
“(…).
B) DETERMINAÇÃO DA PENA CONCRETA DE PRISÃO:
Para proceder à determinação da medida concreta da pena de prisão interessa ter presente o disposto no artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual a determinação da pena concreta se faz em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.
B-1.) Do modelo de determinação da medida concreta da pena:
Vários modelos têm surgido para solucionar a questão de saber a forma como estas entidades distintas (culpa e prevenção) se relacionam no processo unitário da medida da pena.
Face ao disposto no artigo 40.º do Código Penal, que veio tomar posição expressa quanto à questão dos fins das penas, afigura-se-nos inquestionável que é o modelo da “moldura da prevenção” proposto por FIGUEIREDO DIAS [in, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 285, § 409pp. 227/231], aquele que melhor se adequa ao espírito desta norma, quanto mais não seja por “nela ter sido consagrado o seu pensamento” [assim o afirma JOSÉ GONÇALVES DA COSTA, in RPCC, ano III, 1993, pág. 327].
O que fica dito resulta reforçado pelo facto de o Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos na última década, ter acolhido, de modo largamente maioritário, as lições de Jorge de FIGUEIREDO DIAS [sobretudo plasmadas na obra Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime] e de ANABELA MIRANDA RODRIGUES [plasmadas na obra A determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1985]. Isso mesmo é referido, sob uma perspetiva crítica por LOURENÇO MARTINS [In Medida da Pena, Finalidades e Escolha, sobretudo pp. 187 e ss.] Para este autor, o modelo que melhor se adapta ao nosso quadro legal, é o da teoria mista ou integradora dos fins das penas, cujos pressupostos são desenvolvidos a fls. 491/492 da obra citada], e, sob numa perspetiva concordante, por SOUTO MOURA [In estudo intitulado a jurisprudência do S.T.J. sobre a fundamentação e critérios da escolha e medida da pena, publicado in www.stj.pt/documentação/estudos/penal, pp. 12 e ss.].
Segundo aquele modelo, primordialmente, a medida da pena há de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma «moldura de prevenção», isto é, que fornece um quantum de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo) – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente. Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável – podem e devem atuar ponto de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade [In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do crime, p. 227 e ss. e, quanto ao juízo de culpa, ANABELA RODRIGUES, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pp. 478 e ss.].
B- 1.1.) Critérios de aquisição e de valoração dos fatores de medida da pena:
Tendo presente o modelo adotado, importa, de seguida, eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos fatores da medida da pena, nomeadamente os referidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
Neste âmbito, há que ter em consideração:
B- 1.1.1.) A determinação do substrato da medida da pena:
Para efeito de medida da pena o conceito «substantivo» de facto é insuficiente para conter todos os fatores de medida da pena, se se considerar que aquele conceito é somente integrado pelas categorias do tipo-de-ilícito e do tipo-de-culpa.
Na medida da pena deve ser tido em consideração um tipo complexivo total, isto é, que não se basta com as categorias do tipo-de-ilícito e do tipo-de-culpa, mesmo quando a elas se acrescente a categoria da punibilidade, mas que abarque a categoria da punição (que suporta a consequência jurídica), integrada pelo princípio da carência punitiva [FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 232/234].
B-1.1.2. O princípio da proibição de dupla valoração:
O referido princípio, consagrado no artigo 71º, n.º 3, do Código Penal, implica que não devem ser tomadas em consideração, na medida concreta da pena, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime. Todavia, o que fica dito não obsta em nada a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso, v.g. não deve ser valorado da mesma forma um sequestro de 3 dias ou de 3 meses [FIGUEIREDO DIAS, ob., cit., pp. 234 e ata da 26º sessão da Comissão Revisora do Projeto da parte geral do Código Penal, in BMJ, 49, pág. 74/75].
Ainda neste âmbito importar referir que os fatores que influem na determinação da medida são, muitas vezes, dotados de particular ambivalência.
Por exemplo um mesmo fator, na perspetiva da culpa, pode funcionar como agravante e, na perspetiva da prevenção, funcionar com atenuante.
B- 1.2.) Os concretos fatores de medida da pena:
O artigo 71º, n.º 2, do Código Penal elenca, de forma não exaustiva, os concretos fatores de medida de pena que o tribunal deve ter em consideração, os quais, como se infere do que atrás ficou dito, devem valorados de acordo com o modelo adotado e dentro dos limites impostos pelo substrato da medida da pena e o princípio da proibição da dupla valoração.
Tendo presentes estas considerações, é nosso entendimento que, no caso concreto assumem relevância os seguintes fatores:
1. A qualidade do produto estupefaciente: a canábis consubstancia um estupefaciente com menor potencial aditivo [vulgo «droga leve»] e, como tal, atenua o grau de ilicitude do facto;
2. O dimensão da operação logística envolvida na operação de transporte da canábis: a operação de transporte, envolveu o uso de duas lanchas semirrígida de alta velocidade, com valor comercial de milhares de euros, o que consubstancia uma operação logística de média/elevada envergadura e sofisticação, dados os meios materiais e humanos apontados, o que, como tal, se configura como fator que eleva o grau da ilicitude;
3. A quantidade da canábis transportada: Os arguidos participaram no transporte de quantidade superior a quatro toneladas, que é uma quantidade muito elevada, suscetível de ser dividida em milhões de doses e, como tal, configura um fator que eleva, de forma acentuada, a ilicitude; Com efeito, embora as quantidades máximas fixadas no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26 de março, indicado na perícia efetuada ao produto apreendido não sejam de aplicação automática constituem indicadores fortes dos quantitativos máximos de consumo médio individual, tendo o valor de prova reforçada, pelo que o julgador só pode divergir desse juízo se recolher elementos de prova que permitam, fundadamente, por em causa tais valores, nomeadamente apurando o consumo médio de cada consumidor em concreto. Daí que o valor reforçado dos valores determinados nos exames periciais e limites fixados na Portaria 94/96, de 26-03 servirão para fixar o valor de referência no caso concreto se, dos autos, não resultarem elementos de prova sobre o consumo médio individual das pessoas a quem se destinavam [veja-se, a título de exemplo acórdão do STJ de 30-04-2008 e da Relação de Porto de 10-02-2021, ambos disponíveis, em texto integral, no endereço eletrónico www.dgsi.pt];
4. A coautoria, enquanto união de esforços que diminui as possibilidades de proteção do bem jurídico e maximiza as hipóteses de êxito da realização típica, constitui motivo de agravação.
5. O lugar de cada um dos arguidos na estrutura da operação de tráfico de canábis e as respetivas vantagens económica: as funções dos arguidos era a de meros transportadores da canábis, não sendo donos da mesma e não tendo qualquer participação nos lucros que a sua venda poderia gerar;
6. No que se refere ao grau de culpa, assume relevância, como fator de agravação, a elevada intensidade dolosa do crime de tráfico, pois os arguidos agiram sob a forma de dolo direto, que a forma mais gravosa de culpa, o que implica um maior juízo ético-social de desvalor;
7. No que se refere aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins e os motivos que o determinaram, apurou que os arguidos de nacionalidade marroquina agiram motivados pelo desejo de imigração para Espanha para angariarem meio que lhe permitissem sustentar as famílias que deixaram no país de origem; relativamente aos arguidos AA e EE nada se apurou para além do óbvio desígnio de querer obter vantagem patrimonial pelo o serviço de “transportador” ;
8. Relativamente às condições pessoais e situação económica dos arguidos, verifica-se que todos cresceram em ambiente normativo a nível afetivo, no que concerne à escolaridade, verifica-se que, com exceção de EE, nenhum dos arguidos terminou o ensino secundário, sendo os arguidos CC e DD são analfabetos; a nível laboral, todos integraram o mercado de trabalho, sendo que os arguidos AA e EE chegaram a auferir rendimentos suficientes para prover às suas necessidade, enquanto os demais arguidos apresentavam dificuldades económicas assinaláveis, associadas a doenças próprias ou de familiares, a quem prestavam ajuda económica;
9. Relativamente à conduta anterior aos factos, assume relevância, como fator de atenuação, o facto de os arguidos serem primários;
10. Relativamente à conduta posterior aos factos e à falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, nada de relevante se apurou.
Sopesando todos os fatores expostos, é de afirmar que a imagem global do ilícito praticado revela elevadas exigências de prevenção geral, pois, todos os arguidos, aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando fronteiras, desse modo participando na globalização deste crime e não se importando de serem usados como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação o lucro, com total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e da sociedade em geral.
Com efeito, o transporte internacional de estupefacientes, pela difusão rápida e eficiente das drogas junto dos mercados que abastecem os consumidores, constitui uma conduta especialmente danosa, cuja perseguição se mostra essencial para dificultar e impedir a circulação das drogas e o abastecimento daqueles mercados.
O que fica dito, não obsta a que, para efeitos de diferenciação da pena concreta a aplicar, se possa levar em consideração o tipo de contributo individual de cada um dos coautores.
Assim sendo, considerando que os arguidos de nacionalidade marroquina confessaram os factos, relevando, assim sentido crítico, que a motivação do crime era imigração ilegal e não o lucro fácil, entende-se que devem ser punidos de forma menos severa que os arguidos AA e EE, que não revelaram sentido crítico a agiram com o fito de obterem vantagem patrimonial não inferior a € 1500 (segundo os próprios).
Termos em que se julga adequados fixar a seguintes penas:
- Cinco anos e nove meses de prisão para os arguidos BB, CC e DD;
- Seis anos de prisão para os arguidos AA e EE.
(…)”.
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Âmbito do recurso
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente – que de tão extensas e repetitivas, dificilmente cumprem o papel que lhes é assinalado pela norma supra identificada –, as questões a decidir no recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:
- A de saber se o acórdão recorrido enferma dos vícios decisórios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal;
- A de saber se foi incorrectamente determinada a medida concreta da pena de prisão;
- A de saber se deve ser substituída a pena de prisão.
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Da existência no acórdão recorrido dos vícios decisórios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal
1. Alega o recorrente – entre outras, conclusões 1, 4 a 6, 9, 13, 16, 18, 22, 23, 26, 28, 33, 37, 38, 43, 48, 49, 51, 53, 55 a 57, 60, 72, 73 e 77 – que o processo nasce com a comunicação da Força Aérea Portuguesa, do avistamento de oito embarcações, número que não consta dos factos provados e cria a aparência de ser a localização destas o ponto de encontro previamente estabelecido para as duas embarcações tripuladas pelos arguidos, que a sua [do recorrente] contratação em Espanha para ir fazer o transbordo da droga não tem respaldo na prova produzida, que nada aponta para que a localização das duas embarcações tripuladas pelos arguidos tenha sido acordada e que não tenha sido fruto das correntes marítimas e da avaria sofrida pela embarcação tripulada, além do mais, pelo recorrente, que a unidade lógica da decisão de facto se quebra com as dadas como provadas, contratação em Espanha para efectuar o transbordo da droga, da embarcação tripulada pelos arguidos de nacionalidade marroquina, para a embarcação por si e pelo arguido de nacionalidade espanhola, tripulada, sem que se explicite a alteração do propósito referido nos pontos 1 e 2 dos factos provados, pois que, afinal, a embarcação tripulado pelos arguidos marroquinos já não iria fazer o transporte da droga até Espanha, mas só, até ao ponto do transbordo, que [o recorrente] não percebe por que razão a sua contratação ocorreu em Espanha, quando se encontrava no Porto antes de ir para ..., de onde partiu, nem percebe por que razão tinha de efectuar o transbordo da droga para a embarcação que tripulava quando esta, como se considerou provado, estava avariada, pois não existe prova directa, prova indirecta ou regra da experiência que acolha esta matéria, sendo certo que a embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos estava em condições de seguir viagem até Espanha e que apresentou uma explicação – que o tribunal não credibilizou – para ali se encontrar [reparação da embarcação onde foi detectado], que o único fundamento válido esgrimido pelo acórdão recorrido se reduz ao seu conhecimento da natureza ilícita da carga transportada na embarcação tripulada pelo arguidos marroquinos, pois quem transporta carga desta natureza não aborda outras embarcações, sob pena de se denunciar, mas este conhecimento não o coloca como agente do crime, que todos os aparelhos de navegação e comunicação apreendidos se encontravam na embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos, que as regras da experiência demonstram que, se fosse para fazer o transbordo da droga, os tripulantes das duas embarcações, dadas as mais de três horas decorridas entre o avistamento e a abordagem, tiveram tempo suficiente para o fazer, ainda que estivessem em causa mais de 4 toneladas de droga, não fazendo sentido ao homem médio, fazer tal operação, mudando a carga de uma embarcação operacional para uma embarcação avariada, que em bom rigor, a embarcação que não tem justificação para se encontrar no local da abordagem é a tripulada pelos arguidos marroquinos, pois a tripulada por si [recorrente] está justificada pela avaria sofrida, impeditiva de navegar, que sendo a proximidade entre as duas embarcações, a justificação para o dado como provado transbordo, ocorre violação das regras da experiência, pois o tribunal a quo não atentou que a avaria coloca a embarcação à deriva, incapacitando-a de definir o rumo, podendo aquela proximidade ser fruto do caso, e não atentou em que as horas decorridas entre o avistamento e a abordagem não explicam por que razão não foram movimentados fardos de droga de uma embarcação para a outra se o transbordo fosse o objectivo traçado, que a relativização da avaria da embarcação, a infundada contratação em Espanha, a exponenciação da proximidade geográfica, a omissão na matéria de facto provada do avistamento de outras embarcações, logrando a sua condenação, consubstanciam a existência dos vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, impondo-se, para a sua sanação, a eliminação da parte final do ponto 5 dos factos provados e a passagem dos pontos 16 e 17 dos mesmos, a factos não provados, a eliminação do ponto 15 dos factos provados da referência feita aos tripulantes da embarcação identificada em 5 dos mesmos factos [o recorrente e o arguido de nacionalidade espanhola], passando o ponto b) dos factos não provados, a facto provado.
Os vícios decisórios previstos no nº 2 dos art. 410º do C. Processo Penal – a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e c) o erro notório na apreciação da prova – traduzem defeitos lógicos da decisão penal, rectius, da sentença – e não, do julgamento –, que se evidenciam pelo respectivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, o que determina que, para a sua comprovação, não seja legalmente admissível lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo.
As regras da experiência são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais, em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro de Ferreira,, Curso de Processo Penal, II, pág. 30). São as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 324), as regras extraídas de casos semelhantes portanto, a inferência que permite a afirmar que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos (Santos Cabral, Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade, Julgar, Ano 17, 2012, Edição da ASJP, pág. 24) ou, dito ainda de outro modo, são regras gerais de carácter científico com validade universal ou afirmações do princípio da normalidade id quod plerumque accidit, segundo o qual, perante a ocorrência ‘normal’ de um facto determinado, se admitem produzidos igualmente todos os factos que o costumam acompanhar (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª Edição, 2017, pág. 88).
Deste modo, perante um facto assente, o juiz deve presumir e dar como provada a ocorrência de outro facto, que é consequência normal daquele, segundo os conhecimentos colhidos na experiência comum (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Teoria da Prova, Volume 2 Tomo 1, 2024, UCP Editora, pág. 125).
O regime legal dos vícios decisórios não contempla a reapreciação da prova [contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto], estando a actuação do tribunal ad quem, limitada à sua detecção e, não sendo possível saná-los, a ordenar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal).
2. O recorrente invoca a presença no acórdão recorrido dos vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, portanto, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e do erro notório na apreciação da prova.
Vejamos se assim é.
a. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, contemplada na alínea b), do citado número e artigo, pode apresentar-se sob distintas vestes, ora consistindo na oposição entre factos provados, na oposição entre factos provados e factos não provados, na oposição entre a matéria de facto e a respectiva motivação de facto, na oposição entre argumentos da própria motivação de facto, ou na oposição entre a fundamentação e a decisão.
O recorrente não indicou com a recomendável precisão e clareza os pontos da matéria de facto onde entende existir a oposição lógica e inultrapassável, em que deve traduzir-se toda e qualquer contradição insanável.
No entanto, se bem entendemos cremos que, a argumentação levada às conclusões formuladas, no que respeita ao vício da decisão em análise, cremos que a questão se coloca entre o projecto criminoso levado aos pontos 1 a 4 dos factos provados – portanto, e em síntese, o acordo feito em Marrocos antes de ... de ... de 2023, entre os três arguidos de nacionalidade marroquina, por um lado, e indivíduo ou indivíduos não identificados, por outro, para que aqueles três efectuassem um transporte de canábis, de Marrocos para Espanha, a troco de ficarem neste país como emigrantes, acordo cuja execução os três arguidos de nacionalidade marroquina iniciaram, tripulando uma embarcação com 12,8 metros de comprimento, sem identificação nem pavilhão, equipada com quatro motores com a potência, individual, de 425 HP, carregada com 127 fardos com cerca de 3982 kgs de canábis, que fizeram rumar para as coordenadas latitude 36º,09’ e 57’’ N e longitude 007º,25’ 26’’ W, local onde foi avistada por aeronave da Força Aérea antes das 12h39 do dia ... de ... de 2023, sendo que aí foi também avistada uma outra embarcação com 12,1 metros de comprimento, sem identificação nem pavilhão, equipada com quatro motores com a potência, individual, de 375 HP, tripulada pelo recorrente e pelo arguido de nacionalidade espanhola – e a circunstância dada como provada no ponto 5 dos factos provados – portanto, e em síntese, a embarcação tripulada pelo recorrente encontrava-se no referido local, por terem sido, este e o arguido de nacionalidade espanhola, contratados para aí aguardarem pela embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos, e procederem então, ao transbordo da canábis que esta embarcação transportava, para a embarcação que recorrente e arguido de nacionalidade espanhola tripulavam.
Na perspectiva do recorrente, será contraditório o projecto dos arguidos marroquinos de transportarem a droga até Espanha e aí ficarem como emigrantes, e o transbordo da droga em alto mar, impeditivo de aqueles fazerem o transporte da droga até Espanha.
Pois bem.
Com ressalva do respeito devido por diversa opinião, não vemos que exista qualquer contradição, e muito menos, insanável.
Desde logo, porque o acordo estabelecido entre os arguidos de nacionalidade marroquina com quem os abordou em Marrocos, para efectuarem o transporte de canábis para Espanha, não afasta a imprescindibilidade de, na sua execução, se incluir o transbordo, total ou parcial, da droga por eles transportada, designadamente, quando estivessem a cerca de 65 milhas náuticas a Sul da foz do rio Guadiana portanto, a cerca de 120 km de Espanha.
Acresce que não se apuraram [ainda que, para o caso, seja irrelevante] as concretas circunstâncias de tempo, eventualmente acordadas, em que os arguidos de nacionalidade marroquina efectivariam a sua emigração para Espanha.
Em qualquer caso, não vemos que exista qualquer incongruência lógica insuperável, que invalide o juízo probatório conducente à decisão de facto, não padecendo o acórdão recorrido de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
b. Existe erro notório na apreciação da prova, contemplado na alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal) quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo.
Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).
O recorrente sustenta a existência do vício, essencialmente, na violação das regras da experiência comum, por não ser compreensível, para qualquer cidadão, que tenha sido contratado para se deslocar a um determinado ponto geográfico em pleno oceano, para proceder ao transbordo de várias toneladas de canábis, de uma embarcação operacional e, portanto, capaz de chegar ao destino previsto pelos seus próprios meios, para uma embarcação avariada e, por isso, incapaz de navegar.
Colocada a questão nestes termos, é evidente a falta de razoabilidade da operação descrita, pois o transbordo da droga para uma embarcação avariada e incapaz de navegar pelos seus próprios meios significaria, quase necessariamente, a perda da carga. Mas a situação que resulta da matéria de facto provada não é, evidentemente, esta.
Explicando.
Começamos por dizer que o plano de transporte marítimo de droga de Marrocos para o continente europeu que integra o objecto dos autos não foi completamente apreendido para o processo, quer porque intervenientes existem que não estão identificados, quer porque existem pormenores que serão conhecidos dos arguidos – todos ou de alguns – e que não foram revelados por estes, aliás, em exercício legítimo de um direito. Aliás, disto mesmo é dada nota na motivação de facto do acórdão recorrido.
Tendo no horizonte esta constatação, o que sabemos, para além do propósito assumido pelos arguidos de nacionalidade marroquina, referido nos pontos 1 e 2 dos factos provados e iniciado nos termos que constam dos pontos 3 e 4 dos mesmos factos, é que pelas 12h39 do dia ... de ... de 2023, uma aeronave da Força Aérea Portuguesa avistou a embarcação tripulada pelos arguidos de nacionalidade marroquina num local de alto mar, definido pelas coordenadas latitude 36º, 09’ e 57’’N e longitude 007º, 25’ 26”W, sendo que a mesma aeronave também avistou, neste mesmo local, a embarcação tripulada pelo recorrente e pelo arguido de nacionalidade espanhola.
Também sabemos que as duas embarcações não tinham identificação nem pavilhão visível e estavam equipadas, a tripulada pelos arguidos marroquinos, com quatro motores fora de borda com 425 HP cada um, e a tripulada pelo recorrente e pelo arguido espanhol com quatro motores fora de borda com 375 HP cada um.
Sabemos ainda que tendo a Força Aérea Portuguesa comunicado a localização dos avistamentos à Autoridade Marítima e à Polícia Judiciária, foi determinado que uma embarcação da Marinha Portuguesa e uma embarcação da Polícia Marítima se deslocassem para o local indicado, tendo a embarcação da Marinha Portuguesa, ainda antes das 17h30 do mesmo dia, localizado as embarcações tripuladas pelos arguidos marroquinos e pelo recorrente e pelo arguido espanhol no local definido pelas coordenadas de latitude 36º 06’N e longitude 007º 24’W, situado a cerca de 65 milhas náuticas a Sul da foz do rio Guadiana e a 54 milhas náuticas do farol de ..., tendo então os militares da embarcação da Marinha Portuguesa procedido à abordagem das embarcações tripuladas pelos arguidos,
Sabemos, por fim, que tendo chegado ao local, pelas 17h30 do mesmo dia, a embarcação da Polícia Marítima, foi decidido conduzir para o porto de ... os cinco arguidos e as duas embarcações por estes tripuladas, levando a tripulada pelos arguidos marroquinos as cerca de 4 toneladas de canábis, e sendo a tripulada pelo recorrente e pelo arguido espanhol rebocada.
Pois bem.
O recorrente aceita ser incomum que a tripulação de uma embarcação transportando cerca de 4 toneladas de canábis, em alto mar, opte por se aproximar de uma outra embarcação que se encontra parada, e interpele os tripulantes desta para saber o que se passa [versão apresentada pelos arguidos marroquinos na audiência de julgamento, como consta da motivação de facto do acórdão recorrido]. E, efectivamente, viola as regras da normalidade que a tripulação de uma ‘lancha voadora’ carregada de droga, que faz a travessia entre o continente africano e o continente europeu, se preocupe com outra embarcação, com as mesmas características, que se encontra parada em alto mar, ao extremo de interromper viagem e aproximar-se desta, correndo o óbvio risco de perder a carga que transportava, fosse pela intervenção da autoridade policial marítima, fosse pelo furto/roubo da mesma.
Mais incomum ainda, é a circunstância de, não existindo qualquer relacionamento entre os arguidos marroquinos e o recorrente e o arguido espanhol, como pretende o recorrente [afirmando na conclusão 56 que nenhuma justificação existia para que a embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos, carregada de droga e capaz de se movimentar para Espanha, permanecesse junto da embarcação por si tripulada, imobilizada pela avaria], os arguidos marroquinos tenham mantido a sua embarcação, carregada com a droga e plenamente capaz de navegar, junto da avariada embarcação tripulada pelo recorrente, durante mais de 2 horas, em pleno mar alto. Acresce ser igualmente incomum a versão apresentada pelo recorrente, de que ali se encontrava para proceder à reparação da embarcação avariada, sem que presente estivesse também a embarcação necessária para o seu transporte até ali, não sendo razoável pensar que, a ter sido transportado por terceiros, ali o tivessem deixado à deriva, sem a certeza de que pudesse proceder à reparação [tanto mais que não é ... de motores fora de borda].
Na verdade, a única justificação razoável e plausível para tal ter acontecido é a de que todos os arguidos estavam comprometidos com o transporte da droga de África para a Europa.
Convocando agora a pedra angular da argumentação do recorrente para demonstrar o vício em análise, levada, no essencial, às conclusões 49 a 51, 56, 57, 60 e 62 e nos termos da qual, seria incompreensível a sua contratação para proceder ao transbordo em alto mar, de um carregamento de droga, retirando-a de uma embarcação em boas condições de navegabilidade e colocando-a numa embarcação avariada e incapaz de navegar pelos seus próprios meios, sendo certo que, com os demais arguidos, teve tempo para o fazer, pois a efectivação de tal operação teria como consequência o abandono da droga em alto mar.
Porém, e como é fácil de perceber, os acontecimentos não tiveram lugar da forma descrita pelo recorrente.
Já tivemos oportunidade de referir que não foi possível apreender para o processo a totalidade do projectado transporte de droga por via marítima, de África para a Europa, em que foram intervenientes todos os arguidos e ainda outras pessoas que não foram identificadas, e isso mesmo refere o acórdão recorrido na motivação de facto.
Porém, o que é lógico inferir, para além de qualquer dúvida razoável, do facto provado de a embarcação tripulada pelo arguidos marroquinos e a embarcação tripulada pelo recorrente e pelo arguido espanhol se encontrarem juntas, desde o seu avistamento pela aeronave da Força Aérea Portuguesa às 12h39 do dia ... de ... de 2023 até à sua intercepção por militares da Marinha Portuguesa, a hora não apurada, mas antes das 17h30 do mesmo dia, é que o recorrente e os demais arguidos participavam, todos, na execução do transporte da droga por via marítima.
A razão do encontro das duas embarcações tripuladas pelos arguidos, e cujas características e motorizações apontam, com toda a evidência, para a actividade de tráfico de droga por via marítima em grandes quantidades, no ponto onde foram avistadas pela Força Aérea, pode bem ter sido o transbordo, total ou parcial, da droga transportada até ali, pela embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos.
Acontece que a embarcação tripulada pelo recorrente e pelo arguido espanhol avariou e, não obstante o tempo decorrido até ao momento da abordagem feita pelos militares da Marinha Portuguesa – não tendo sido concretamente apurado, considerando que o avistamento da Força Aérea ocorreu pelas 12h39 e só depois foi comunicado às autoridades marítimas, e que a abordagem das embarcações pelos militares da Marinha Portuguesa aconteceu a cerca de 65 milhas náuticas da foz do rio Guadiana e a cerca de 54 milhas náuticas do farol de ..., não terá, seguramente, sido inferior a 2 horas –, não foi possível reparar a avaria, razão pela qual, como nos parece óbvio, não foi sequer iniciada a operação de transbordo.
Deste modo, o recorrente não foi contratado para efectuar o transbordo da droga em alto mar, de uma embarcação em perfeitas condições de navegar, para uma embarcação incapaz de navegar. Foi contratado para efectuar tal operação, para uma embarcação em perfeitas condições de navegar, operação que, por via da inesperada e, pelo menos, em tempo útil, irreparável avaria nesta embarcação surgida, não veio a ter lugar.
Cumpre referir, a propósito, que o recorrente frequentemente refere que a sua contratação ocorreu em Espanha, sem que tal circunstância de lugar se mostre justificada no acórdão recorrido, nem vendo razão para tal entendimento, quando, como menciona na conclusão 22, se encontrava no Porto e depois de deslocou para ..., para embarcar.
Ter o recorrente sido contratado em Espanha, em Portugal, ou noutro país qualquer, é manifestamente indiferente para a questão sub judice. Compreende-se, por isso, que o acórdão recorrido, tendo abordado a sua contratação na motivação de facto, aí não tenha referido as razões do convencimento alcançado quanto ao local onde foi aquela firmada.
Sem prejuízo do que antecede, sempre diremos, no entanto, que se o local surge, de alguma forma, surge tenuemente indiciado pelo nome do seu contratante [um tal Manolo], como se lê na motivação de facto, essa indiciação acaba um pouco mais reforçada pela própria argumentação do recorrente, pois se saiu de ..., é admissível que o acordo tenha ocorrido em Espanha.
Em suma, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não descortinamos qualquer violação de regras da experiência comum na decisão de facto que considerou provada a sua contratação para, em alto mar, proceder, com os demais arguidos, à questionada operação.
Na verdade, sob a invocação dos vícios da decisão, o que o recorrente faz, aliás, no amplo exercício do seu direito de defesa, é suportar a sua convicção, numa diferente valoração dos meios de prova, pretendendo substituí-la à convicção alcançada pelo tribunal a quo, criticando-a, muito particularmente, no que respeita ao uso feito da prova indirecta ou por inferência.
Porém, na motivação de facto do acórdão recorrido resulta claramente expresso o raciocínio lógico seguido na formação da convicção alcançada, com manifesto respaldo na apreciação e valoração das provas produzidas, incluindo, da prova indirecta – devidamente tratada – e plena observância do princípio ínsito no art. 127º do C. Processo Penal, nada havendo a censurar, nesta sede, à decisão de facto proferida.
Concluindo agora, não enferma o acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova.
c. Em várias das conclusões formuladas [conclusões 5, 48, 55 e 58] refere o recorrente a circunstância de, quando a Força Aérea faz o avistamento, o que vê e depois relata à autoridade marítima é a existência de oito embarcações nas coordenadas que indicou, embora o que consta dos pontos 4 e 5 dos factos provados é o avistamento das duas embarcações tripuladas pelo arguidos, omissão que criou uma aparência de ser aquela concreta localização geográfica o ponto de encontro acordado para as embarcações tripuladas pelos arguidos.
Embora o recorrente não convoque, para esta situação, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, não deixaremos de a ele nos referir-nos.
Resulta da informação enviada pela Força Aérea Portuguesa para a Polícia Judiciária no dia ... de ... de 2023 – junta aos autos –, ter sido feito o avistamento de 8 embarcações, com o seguinte descrição:
- Duas embarcações paradas, ambas com 4 motores, uma com fardos, na posição 36 09 12 N, 0725 26 W;
- Uma embarcação parada, com 2 motores e 4 tripulantes, com jerricans de combustível, na posição 36 21 57 N, 07 20 05 W;
- Duas embarcações paradas, ambas com 3 motores, cada uma com 3 tripulantes, com jerricans de combustível, na posição 36 27 30 N, 07 14 14 W;
- Duas embarcações paradas, uma com 2 motores, 4 tripulantes e sem carga, e outra com 3 motores, 2 tripulantes e com fardos, na posição 36 34 05 N, 07 15 39 W; e,
- Uma embarcação em movimento, rumo 270, com 3 motores e 2 tripulantes, sem carga visível, na posição 36 46 08 N, 07 23 16 W.
Como facilmente se percebe, as embarcações tripuladas pelos arguidos são as duas primeiras referidas.
A segunda constatação que podemos retirar é que, embora relativamente próximas [como resulta das coordenadas indicadas], as oito embarcações referidas não se encontravam todas juntas. Não obstante, a sua relativa proximidade em alto mar conjugada com as respectivas características, motorizações e cargas, aponta para que a área observada se situe numa rota habitual de tráfico de estupefacientes.
Por último, o emparelhamento de embarcações, uma com carga de droga e outra sem carga, parece ser comum.
Embora a Força Aérea Portuguesa tenha comunicado, como dissemos, o avistamento de oito embarcações, este número não constava, desde logo, da acusação pública, bem se compreendendo a opção tomada pelo dominus do inquérito pois, para além do relativo afastamento resultante das coordenadas acima indicadas, quando a Marinha Portuguesa chega ao local, cerca de 2h depois, e aborda as embarcações presentes, estas reduziam-se às duas tripuladas pelos arguidos, não havendo possibilidade de, posteriormente, identificar as embarcações e respectivos tripulantes não presentes e realizar diligências para os relacionar as embarcações e embarcações tripuladas pelos arguidos.
As mesmas razões são integralmente aplicáveis ao acórdão recorrido, sendo certo que, o facto de, em determinado tempo, terem sido observadas oito embarcações, relativamente próximas, em nada altera a análise da conduta do recorrente e demais arguidos [nos termos que, infra, se referirão].
Em suma, a factualidade provada que consta do acórdão recorrido contém todos os factos necessários para suportar a decisão de direito proferida, razão pela qual, não sofre o mesmo de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
3. Não se detectando no acórdão recorrido, pelas sobreditas razões, qualquer dos vícios decisórios previstos nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, tem-se a matéria de facto provada que dele consta, definitivamente fixada e nos exactos termos em que o foi.
Assim, preenchendo a provada conduta do recorrente o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa, deve manter-se a sua condenação pela prática de tal infracção.
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Da incorrecta determinação da medida concreta da pena de prisão
4. O crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, é punível com pena de prisão de 4 a 12, insurgindo-se o recorrente contra a medida concreta da pena fixada pela 1ª instância – 6 anos de prisão – considerando-a excessiva e pretendendo que o seu quantum seja fixado em não mais de 5 anos de prisão.
Em abono da pretensão deduzida alega o recorrente – entre outras, conclusões 87, 88, 90, 92, 94, 95, 101, 102, 106, 107, 110, 111, 114 e 116 a 118 – que não passou de um transportador, entre outros transportadores com maior distância navegada, limitando-se o seu estatuto e capacidade de decisão à fase do transporte e sem contactos com quem dirigia a operação, que não devia ter sido feita diferenciação entre os arguidos quanto às penas impostas, pois a valorada confissão dos arguidos marroquinos é irrelevante por ter por objecto o óbvio, que as nefastas consequências apontadas ao crime de tráfico pelo seu relacionamento com a criminalidade de natureza patrimonial, também se mostram causadas por outro tipo de criminalidade como a emigração ilegal, que se as suas declarações [do recorrente] não foram credibilizadas quanto à justificação para se encontrar na embarcação onde foi detido, também o que disse sobre a contrapartida recebida [€ 1500] pela, não dada como provada, reparação da embarcação, não poderia ter sido relevado para efeitos de compensação obtida com a actividade ilícita, que as suas condições pessoais, demonstrativas da sua capacidade de trabalho e da sua integração económica, familiar e social, não foram devidamente consideradas, pois afastam-no da procura do lucro fácil, não devendo as 4 toneladas de canábis transportadas ser impeditivas da fixação da pena em não mais de 5 anos de prisão, na medida em que a decisão não apura que soubesse a quantidade de estupefaciente transportado.
Vejamos.
O art. 40º, nº 1 do C. Penal, com a epígrafe «Finalidade das penas e das medidas de segurança» estabelece que, [a] aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e dispondo o seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Prevenção – geral e especial – e culpa são, assim, os factores a relevar na determinação da medida concreta da pena. A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto, enquanto a culpa, dirigida ao agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.).
O critério legal de determinação da medida da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal. Nos termos do disposto no seu nº 1, a determinação da medida da pena é feita, dentro da moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, estabelecendo o seu nº 2, que, para tal efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número, umas, relacionadas com a execução do facto – alíneas a) a c) e e), parte final –, outras, com a personalidade do agente (alíneas d) e f) – e outras, ainda, com a conduta anterior e posterior do agente – alínea e).
Podemos, pois, dizer, com Figueiredo Dias, e para concluir, que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).
Tendo a pena por finalidade a protecção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a ressocialização do agente, e não podendo a mesma, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, a sua dimensão concreta resultará da medida da necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem ultrapassar a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o seu ponto mais baixo, onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como, de forma modelar, se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014, proferido no processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1 (in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Decorre do que fica dito que a determinação da medida da pena não resulta de um poder discricionário do juiz nem da sua arte de julgar, mas da aplicação de um critério legal ao caso concreto, sendo, pois, o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.
Contudo, precisamente porque estamos no âmbito da aplicação de um critério legal que comporta a ponderação de diversos parâmetros, o resultado, o quantum da pena, não é fixável com precisão matemática, razão pela qual, a intervenção do tribunal de recurso só deve tornar-se efectiva quando seja evidente a violação de tal critério – por falta de razoabilidade ou violação das regras da experiência comum – na configuração das operações necessárias à determinação da pena.
5. Revertendo para o caso concreto, vemos que o acórdão recorrido ponderou as seguintes circunstâncias:
- A qualidade do estupefaciente transportado, considerando a canábis como droga leve, devido ao seu menor potencial aditivo, como factor atenuativo do grau de ilicitude do facto;
- A dimensão da operação logística, envolvendo duas embarcações de elevada velocidade e sofisticados meios, conferindo-lhe uma envergadura média/elevada, considerada factor agravante da ilicitude do facto;
- A elevada quantidade de canábis transportada, cerca de 4 toneladas, susceptível de conversão em milhões de doses individuais, considerada factor agravante da ilicitude do facto;
- A co-autoria, enquanto potenciadora do êxito da realização típica, considerada factor agravante;
- A função de transportador executada pelo recorrente, não sendo proprietário da canábis, nem participando nos lucros que a sua venda geraria;
- A elevada intensidade do dolo, que foi directo, agravando o juízo ético-social de desvalor;
- O óbvio desígnio de pretender obter vantagem patrimonial pelo serviço de transportador;
- O grau de escolaridade atingida e a sua situação económica, decorrente da actividade laboral desempenhada, capaz de prover às suas necessidades; e,
- A inexistência de antecedentes criminais.
Ponderou ainda, as elevadas exigências de prevenção geral dada a elevada danosidade causada pelo crime de tráfico internacional e, sem as ter expressamente nomeado, quanto às exigências de prevenção especial, a indiferença revelada quanto ao dano causado pela sua conduta no bem jurídico tutelado pela incriminação, perante o objectivo do lucro a alcançar com a conduta criminosa.
Aqui chegados, alguma notas prévias se impõem.
Em primeiro lugar, não se vislumbra que relevo possa ter a convocada questão de o crime de tráfico e outras actividades ilícitas se encontrar associado não só à criminalidade de natureza patrimonial, como também a outros tipos de criminalidade, designadamente à emigração ilegal, pois, tendo sido, como o próprio recorrente aceita, considerado um mero transportador, sem influência maior, no projecto criminoso traçado e executado, tal circunstância, a ser, in casu, verdadeira, em nada influenciou a operação de determinação da medida concreta da pena fixada pela 1ª instância, como resulta claramente da fundamentação desta mesma operação, que consta do acórdão em crise.
Em segundo lugar, porque não consta dos factos provados a concreta quantia correspondente ao lucro visado pelo recorrente com a conduta criminosa que executou, o mesmo sucedendo na fundamentação da determinação da medida concreta da pena, apenas sendo referida a importância de € 1500, na referência feita no acórdão recorrido, às declarações por si [recorrente] prestadas, não se vê como, no âmbito da determinação da medida da pena, possa ter sido, como invoca, prejudicado, com a valoração, apenas nesta parte, de tais declarações.
Em terceiro lugar, a valoração, com maior ou menor efeito atenuativo, da confissão parcial produzida pelos arguidos marroquinos, não pode ter qualquer reflexo na determinação da medida concreta da pena aplicada ao recorrente pela 1ª instância, uma vez que, não tendo este confessado, ainda que parcialmente, a prática dos factos, não se coloca a questão de eventual tratamento desigual.
Por último, resulta dos factos provados, como dissemos já, insusceptíveis de modificação, que o recorrente não podia desconhecer, não com a precisão do peso indicado por uma balança, mas pelo juízo decorrente do patente número de fardos transportados na embarcação tripulada pelos arguidos marroquinos, a quantidade de canábis nesta existente, quando foram interceptados pela Marinha Portuguesa.
Quanto ao mais.
a. Dentro da ilicitude pressuposta pela moldura penal aplicável ao crime de tráfico e outras actividades ilícitas – moldura seguramente severa – consideramos que o grau de ilicitude do facto, atentas as concretas circunstâncias a atender, deva considerar-se muito elevado.
Embora a canábis seja comummente qualificada como droga leve – qualificação que, contudo, não tem reflexo na lei penal portuguesa –, pela menor aptidão aditiva que tem e pela menor danosidade sanitária que causa, comparativamente a outros tipos de substâncias designada por drogas duras, designadamente, a cocaína e a heroína, certo é que, não só, como vem sendo, há anos, noticiado, é o estupefaciente mais consumido na Europa, como também é a droga de iniciação e por isso, com maior prevalência nas franjas mais jovens da sociedade, havendo que analisar com distanciamento e objectividade, face aos elementos que a ciência nos vai fornecendo, a pretensa inocuidade do seu consumo, a coberto daquela leve qualificação.
Por outro lado, carregando o grau de ilicitude, temos também a elevada quantidade de canábis transportada, cerca de 4 toneladas desta droga, quantidade que, aliás, está em linha com as que, normalmente são transportadas na via marítima do tráfico entre Marrocos e a Europa, no desenvolvimento do tráfico internacional de estupefacientes.
Os meios náuticos utilizados, os instrumentos de navegação apreendidos, o número de intervenientes na operação de transporte, e o planeamento que a operação de tráfico necessariamente exigiu, revela um nível elevado de sofisticação na prática do crime.
Finalmente, sendo o crime de tráfico e outras actividades ilícitas um crime de perigo, a circunstância de toda a carga de estupefaciente ter sido apreendida, em alto mar, pelas autoridades marítimas e policiais, não foram significativas as consequências do facto, na real afectação do bem jurídico tutelado.
Concordamos com o acórdão recorrido quando considera elevada a intensidade do dolo com que o recorrente actuou.
Com efeito, o mesmo revestiu a forma de dolo directo, e toda a conduta do recorrente, pelas circunstâncias de tempo e de modo como foi levada a cabo revela uma elevada, reflectida e persistente energia criminosa.
Note-se, a propósito, que o dolo de que cuidamos é o que se reflecte na concreta função que coube ao recorrente, no âmbito do programado plano criminoso, portanto, o dolo enquanto transportador por mar do estupefaciente, e não o dolo de quem, em todo o caso, desconhecido, comandou a operação de tráfico.
Militam a favor do recorrente a circunstância de exercer uma actividade remunerada lícita, que lhe proporcionava a obtenção de proventos capazes de suprirem as necessidades do agregado familiar composto por si, pela companheira e por um filho menor, de estar inserido familiar e socialmente, e de não ter antecedentes criminais.
Concordamos, obviamente, com o acórdão recorrido quanto a serem muito elevadas as exigências de prevenção geral, quer por estarmos perante um caso, cada vez mais frequente, de tráfico de estupefacientes internacional, realizado por via marítima, na rota Marrocos – Europa, envolvendo, por regra, consideráveis quantidades de produtos estupefacientes, quer porque o tráfico de estupefacientes em geral, continua a ser praticado em toda a parte, com uma elevada frequência, com pesadas consequências para a comunidade, quer a nível sanitário, quer porque o respectivo consumo está na origem de parte significativa da criminalidade violenta contra a propriedade devendo, em suma, pelo alarme social que causa tal actividade, merecer uma resposta robusta, mas sempre proporcionada, do sistema de justiça.
Relativamente às exigências de prevenção especial, não assumindo estas, o volume e a premência daquelas outras, dada, conforme referido, a inserção laboral, familiar e social do recorrente e a inexistência de antecedentes criminais, certo é que o mesmo não revelou, por qualquer forma, ter interiorizado o desvalor da conduta praticada e assumido a necessidade da sua censura comunitária, sinalizando traços de uma personalidade desvaliosa.
b. Sendo muito elevado o grau de ilicitude do facto, tendo sido o mesmo praticado com elevada sofisticação de meios, sendo elevada a intensidade do dolo com que o recorrente actuou, militando a seu favor a inserção laboral, familiar e social e a inexistência de antecedentes criminais, deste modo se sobrepondo as circunstância agravantes às circunstâncias atenuantes, sendo ainda muito elevadas as exigências de prevenção geral e não passando despercebidas as exigências de prevenção especial, a pena de 6 anos de prisão decretada pela 1ª instância, situada precisamente sobre o primeiro quarto da moldura penal abstracta aplicável, mostra-se necessária, adequada e proporcionada, do mesmo modo que se mostra plenamente suportada pela medida da culpa do recorrente, pelo que, se alguma censura merecerá, não será, seguramente, a da sua severidade.
Em conclusão, mostrando-se necessária, adequada, proporcionada e plenamente suportada pela medida da culpa do recorrente a pena de 6 (seis) anos de prisão fixada pela 1ª instância, não se descortinando, portanto, razões para a pretendida intervenção correctiva deste Supremo Tribunal na medida concreta da pena, deve a mesma ser mantida.
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Da substituição da pena de prisão
6. A peticionada substituição da pena de prisão fixada pela 1ª instância – cuja argumentação integra as conclusões 124 a 132 – tem como pressuposto a sua redução de 6 anos de prisão para quantum não superior a 5 anos de prisão.
A confirmação da pena de 6 anos de prisão fixada pela 1ª instância, afasta, irremediavelmente, esta pretensão do recorrente.
Com efeito, dispõe o art. 50º do C. Penal, no seu nº 1 que, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
São dois, pois, os pressupostos de cuja verificação, faz a lei depender a aplicação desta pena de substituição.
Um, de natureza formal, tem por objecto a medida concreta da pena principal a substituir, que não pode ser superior a cinco anos de prisão.
Outro, de natureza material, traduz-se na necessidade de formulação pelo tribunal, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as suas condições de vida, as circunstâncias do crime e a sua conduta anterior e posterior a este, a mera censura do facto e a ameaça da prisão darão adequada e suficiente realização às finalidades da punição. Sendo estas finalidades a protecção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na comunidade (art. 40º, nº 1 do C. Penal), são as exigências de prevenção geral e especial o suporte desta pena de substituição.
Mantida a decretada pena de 6 anos de prisão, inverificado se mostra o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, o que determina a improcedência desta pretensão do arguido.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais, e Tabela III, a este anexa).
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Comunique, de imediato, à 1ª instância, com cópia do presente acórdão.
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 15 de Janeiro de 2025
Vasques Osório (Relator)
António Latas (1º Adjunto)
Celso Manata (2º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)