I. A perícia de psiquiatria forense constitui um meio de prova de valor qualificado, nos termos dos artigos 159.º e 163.º do CPP, não podendo o seu estatuto epistemológico, desde que não validamente contrariado, e como tal reconhecido pelo tribunal, ser posto em causa pelo teor de um depoimento testemunhal.
II. A relevância do conteúdo do depoimento de testemunha psicóloga que acompanhou a arguida em período próximo da prática dos factos, não poderia ser valorado enquanto prestado na qualidade de Expert Witness, uma vez que está pressuposto que tais “testemunhas” fornecem o seu testemunho sem ter contactado previamente com os factos ou tido uma conexão direta e pessoal com os mesmos.
III. Apesar de a perícia de Psiquiatria Forense ter sido elaborada e produzida em três “momentos” bem precisos (relatório inicial, relatório complementar e esclarecimentos adicionais do Senhor Perito), não pode dizer-se que, por tal facto e pela circunstância de não terem sido escrupulosamente observados as indicações da Recomendação para a realização de Perícias de Psiquiatria da Direção da Secção de Subespecialidade de Psiquiatria Forense (SSPF) do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, tal meio de prova não possa funcionar como perícia e com o inerente valor probatório.
IV. Resultando dos elementos factuais demonstrados nos autos que o resultado morte do recém-nascido é imputável à atuação da arguida, impõe-se indagar se a morte deve ser imputada a título de homicídio (simples, qualificado ou privilegiado) ou de infanticídio.
V. Para que se considere preenchido o tipo de crime de infanticídio, previsto no art. 136.º, do CP, é necessário que a mulher tenha atuado sob a influência perturbadora do parto e tenha praticado o infanticídio durante ou logo após o parto. Quer se analise esta determinação da conduta como um elemento da tipicidade da conduta, ou como um elemento relevante em sede de culpa do agente, o certo é que “o estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g., por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher), como exogenamente (pelo particular peso que para a mãe assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente – v.g. a supra aludida “desonra” – ou economicamente fundada)”.
VI. Não se tendo concluído por qualquer indício de anomalia psíquica, estado psicótico ou dissociativo, ou de perturbação ou de desorganização de personalidade da arguida, é correto afastar o preenchimento da circunstância típica do crime de infanticídio e qualificar a conduta como crime de homicídio qualificado, p. p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), do CP.
VII. Ponderando o grau de culpa, as necessidades de reprovação, de prevenção geral e especial e de ressocialização e reintegração, situação económico-financeira da arguida e suas condições de vida, apesar da ausência de antecedentes criminais, no quadro de uma moldura legal da pena entre os doze (12) anos e vinte e cinco (25) anos, fixar na medida de treze (13) anos de prisão a pena ajustada às demonstradas circunstâncias do facto e da culpa da arguida, afigura-se adequado e não se mostra uma pena desproporcionada nem injusta.
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Aveiro/..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, de ... de ... de 2024 (Ref.ª Citius ...), foi a arguida e ora Recorrente AA, melhor identificada nos autos, julgada e condenada, nos seguintes termos:
- pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos de prisão;
- pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de nove (9) meses de prisão; e
- em cúmulo jurídico, na pena única de 13 (treze) anos e 3 (três) meses de prisão.
2. Em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...) recorreu a arguida AA dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto (doravante, também ...), o qual, por acórdão de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), negou provimento a tal recurso, confirmando a decisão recorrida.
3. Deste acórdão do ... recorre a arguida AA, em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), concluindo a sua motivação de recurso, nos seguintes termos (transcrição):
«1º
Da análise do Acórdão, ora impugnado, verifica-se que a prova pericial efectuada teve um papel determinante na decisão aí proferida, sendo certo que o Tribunal a quo considerou que a mesma tem a força probatória “…que lhe é reconhecida pelo preceituado no artigo 163º, nº 1, do Código de Processo Penal”.
2º
Perante este resultado pericial, ante o exposto no artigo 163º nº 1 do CPP, entendeu o Tribunal que não existia “…razão de ciência, ou conhecimento técnico, passível de fundamentar uma divergência, motivo pelo qual conferiu completa força probatória à apontada perícia e seus esclarecimentos…”.
3º
Considerando que a Arguida, na data da prática dos factos, estava plenamente dotada das suas capacidades de avaliação da sua conduta, de se autodeterminar de acordo com essa avaliação e de agir de forma por que o fez, sabendo da punibilidade da sua conduta.
4º
Salvo melhor opinião, entendemos que o relatório pericial padece de vícios que abalam a credibilidade do juízo técnico daí decorrente, sendo certo que é esse juízo que, presuntivamente, está subtraído à apreciação do julgador, devido à necessidade de especiais conhecimentos para percecionar (compreender) e apreciar (valorar) factos.
5º
Uma perícia tem por base o cumprimento de três pressupostos essenciais, a imparcialidade do perito, deve ser realizada em prazo razoável e sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
6º
Defendemos que só o primeiro destes pressupostos foi cumprido.
7º
No que tange à componente temporal, salientamos que o relatório pericial psiquiátrico foi realizado cerca de 18 (dezoito) meses depois dos factos, quando já decorria a audiência de discussão e julgamento, depois da questão ter sido suscitada pela defesa, quando apresentou a sua prova.
8º
No que concerne ao respeito pelo princípio da igualdade de armas e do contraditório, pugnamos, na esteira do que já foi dito acerca do pressuposto temporal, que o mesmo não foi devidamente observado.
9º
O relatório de prova pericial deve ser elaborado de acordo com o estatuído no art.º 157º do CPP, o queequivale a dizer que assuas conclusões devem ser devidamente fundamentadas.
10º
Não se olvidando que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação.
11º
Esse juízo técnico, científico ou artístico não está isento de contraditório por parte dos sujeitos processuais, o que se traduzirá, inequivocamente, na identificação de eventuais erros, deficiências ou contradições
12º
Para que o contraditório possa ser exercido de forma cabal, as respostas e
conclusões do perito têm de ser devidamente fundamentadas, conforme disposto no art. 157º nº 1 do CPP.
13º
Se um relatório pericial, como é o caso, omite ou sintetiza, em demasia, a sua fundamentação restringe, de modo inaceitável, o exercício do contraditório e limita a igualdade de armas.
14º
Compulsado o teor dos documentos, essa conclusão resulta, exclusivamente, do “exame directo e indirecto realizado à examinanda”.
15º
No exame directo, o Perito não desenvolve qualquer tipo de reflexão ou avaliação, de natureza técnica e/ou científica, sobre o teor das mesmas ou a metodologia empregue na condução/realização da entrevista.
16º
Também no exame indirecto à Arguida, o Perito não apresenta qualquer tipo de reflexão, de natureza técnica e científica, que incida sobre o teor das informações constantes dos autos, nem identifica os elementos constantes desses relatórios que lhe permitiram extrair a conclusão apresentada.
17º
O que equivale a dizer que a metodologia adoptada pelo Perito no exercício da sua função conduziu a que o mesmo proferisse uma conclusão não fundamentada.
18º
Em .../.../2022, a Direcção da Secção de Subespecialidade de Psiquiatria Forense (SSPF) do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos elaborou um guia de boas prácticas para a realização de perícias de psiquiatria forense.
19º
É inequívoco que o Relatório Pericial e o respectivo Aditamento elaborados, não
respeitam as orientações do Guia de Boas Prácticas, nos aspectos que acabámos de destacar, especialmente nas alíneas e) e f) dos “Aspectos Gerais” do mesmo.
20º
Verificando-se, como é o caso, que o Perito ignorou, por completo, as recomendações desse Guia, não pode, salvo melhor opinião, atribuir-se ao relatório apresentado uma força probatória acrescida, nos termos do disposto no artigo 163º do CPP, precisamente porque o mesmo não implementou as boas prácticas definidas por quem de direito.
21º
Esta perícia e, bem assim, o esclarecimento adicional, não são suscetíveis de qualquer juízo crítico, de concordância ou divergência, contrariando o disposto no art. 163 nº 2 do CPP.
22º
O Perito nomeado não logrou elaborar um verdadeiro relatório pericial, que obedecesse às imposições legais.
23º
Tais insuficiências, atenta a complexidade da matéria e a moldura penal dos crimes de que Arguida é acusada, não eram suscetíveis de reparação, designadamente com recurso aos esclarecimentos complementares, ainda que orais, por parte do mesmo.
24º
Um esclarecimento visa clarificar ou desenvolver algo que já foi feito anteriormente, pronunciar-se, pela primeira vez, em julgamento, sobre questões eminentemente científicas, não consubstancia um relatório pericial, sendo certo que o perito tem de emitir uma opinião/parecer devidamente fundamentadas (art. 157 nº 1 do CPP).
25º
É paradoxal como o Tribunal a quo conclui pela inexistência “…de razão de ciência, ou conhecimento técnico, possível de fundamentar uma divergência…”, tendo conferindo completa força probatória a um relatório pericial feito nestas circunstâncias, com notórias insuficiências, contradições e falta de verdadeira fundamentação, que se exigia, até pela presença de elementos que apontam em sentido inverso ao concluído.
26º
O Tribunal a quo não devia ter conferido força probatória total ao mesmo, atentos os motivos já expostos, assim o Douto Acórdão violou o disposto no artigo 163º do CPP, por referência ao disposto no artigo 157º do CPP.
Em consequência,
27º
Na opiniãodadefesa, na sequência do supra exposto, oaresto recorridoenferma de erro de Direito, quando considera estarem reunidos factos integrantes dos tipos incriminadores previstos nos artigos 131º e 132º nº 1 do Código Penal, que assim violou, pois que não está provado o dolo, a especial censurabilidade ou perversidade do agente.
28º
Existem razões de ciência que permitiam ao Tribunal a quo divergir do relatório pericial apresentado, conforme artigo 163º nº 2 do CPP, considerando o diagnóstico de denegação pervasiva da gravidez feito por aquela profissional de saúde, que o Tribunal a quo reconhece ser detentora de conhecimentos científicos específicos sobre a matéria.
29º
Salvo melhor opinião, a referida perturbação – denegação pervasiva da gravidez - preenche os elementos do artigo 136º do CP que dispõe “A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos”, pelo que devia ter ocorrido uma alteração da qualificação jurídica.
30º
O elemento temporal “durante ou logo após o parto” não apresenta quaisquer dúvidas, este encontra-se preenchido, pois a conduta da mãe, adequada a causar a morte, ocorreu de imediato, sendo irrelevante, neste aspecto, o tempo de sobrevivência, o que importa é que, naquelas circunstâncias, nenhum bebé iria sobreviver.
31º
Seja qual for a designação dada ao estado mental sob o qual a parturiente agiu no momento da prática do facto típico, é preciso que se esteja perante uma anomalia psíquica, pois só dessa forma poderá preencher o conceito “sob a influência perturbadora do parto” exigido pelo artigo 136º.
32º
O estado dissociativo que acomete a parturiente no momento do parto é suficiente para preenchimento do conceito “influência perturbadora do parto”, pois é precisamente o parto, por se afigurar como um momento de pânico e que não pode ser pela mulher controlado que desencadeia o estado dissociativo, sobre o qual é levada ao homicídio do recém-nascido.
33º
A responsabilidade da Arguida não é plena pelo facto praticado, na medida que a capacidade de reflexão se encontrava diminuída.
34º
A negação não psicótica pervasiva da gravidez e o estado dissociativo não são doenças mentais que geram inimputabilidade, mas são estados transitórios com reflexos na consciência do sujeito, que justificam uma imputabilidade diminuída.
35º
Defendemos que a morte do recém-nascido foi resultado de um crime de infanticídio, p.e.p. pelo artigo 136º do CP, punido com pena de prisão de um a cinco anos, sendo certo que, de acordo com o disposto no artigo 50º do CP, estão reunidos os pressupostos de tal medida alternativa à prisão e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o tempo máximo de suspensão legalmente previsto, até tendo em consideração o disposto no Relatório Social elaborado e a ausência de antecedentes criminais de qualquer natureza.
36º
Ao não entender assim, o douto aresto violou o correcto entendimento do disposto nos artigos no artigo 163º do CPP e 136º do CP.
Sem prescindir,
37º
Finalmente, independentemente do destino das anteriores conclusões, quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.
38º
Efectivamente, a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
39º
Designadamente mostram-se violados os art. 71º nº 1 e 40º nº 2, ambos do CP.
40º
Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.
41º
Nomeadamenteonº2 do citado artigo40ºestabelece queemcaso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa o que é a repristinação do velho brocardo nulla poena sine culpa.
42º
Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade da agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pela patologia que a afligia – negação não psicótica pervasiva da gravidez.
43º
Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados,
44º
Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor.
45º
Sendo certo que a Arguida/recorrente, manifestou pungente arrependimento e não tem qualquer espécie de antecedentes criminais.
46º
Condicionalismo que sopesado por um prisma que atenda à prevenção especial, iluminada por uma ideia propedêutica de ressocialização, corroboram a necessidade de fixar a pena num valor numérico menor.
Termosemqueenos melhoresde direito se deve conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida, assim se fazendo a Costumada Justiça!»
4. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), sustentando, no essencial, a manutenção do decidido no acórdão recorrido, destacando-se os seguintes trechos:
«(…)
Tal como resulta da transcrição que atrás efectuámos, a argumentação da Defesa, no que respeita à sua pretensão de ver a arguida condenada pela prática dum crime de infanticídio, assenta em dois pressupostos:
a) o Tribunal da Relação não poderia ter conferido a força probatória legalmente determinada no n.º 1 do art.º 163.º do CPP ao relatório pericial, por o mesmo não ter obedecido às Guia de Boas Práticas, nem às exigências de fundamentação decorrentes do art.º 157.º do CPP.;
b) deveria o tribunal ter dado prevalência à prova decorrente das declarações prestadas pela Psicóloga apresentada pela Defesa, quando à verificação de uma situação de negação da gravidez não psicótica, de tipo pervasiva, não resultando curial que se haja dado como assente a matéria de facto que se relaciona, seja com o conhecimento/percepção da gravidez, seja com a decisão ponderada de ocultar aquela, bem como de matar o filho aquando do parto.
(…)
Pretende a Defesa pôr em causa a matéria de facto dada como assente, que se prende com o prévio conhecimento da gravidez, e a decisão ponderada de a ocultar, e mataro recém-nascido quando nascesse, invocando que a prova pericial na qual o tribunal formara a sua convicção não era merecedora do valor probatório conferido nos termos do art.º 163.º, n.º 1 do CPP.
Para tanto, refere o desfasamento temporal entre a realização daquela e a data dos factos, bem como pretensas insuficiências de fundamentação, seja no relatório, seja na “adenda”, tudo em violação de “Guia da Boas Práticas” e do disposto no art.º 157.º do CPP, o que contendera com as garantias de Defesa.
Ora, tal como se refere no acórdão recorrido, “(…) as falhas e/ou deficiências apontadas ao relatório pericial inicial (de ...-...-2024) e ao relatório posterior de esclarecimentos/aditamento (de ...-...-2024), por inobservância de recomendações na formulação dos relatórios de acordo com o Guia de Boas Práticas para a realização de Perícias de Psiquiatria Forense, não acarretam a desvalorização do conteúdo da prova e não afetam o respetivo valor probatório (…)”
Por outro lado, verifica-se que a Defesa teve oportunidade de colocar, e ver respondidas pelo Perito que elaborara o relatório pericial, as questões que entendeu pertinentes, pelo que bem se compreende que no acórdão recorrido se tenha entendido que não fora postergado o direito de defesa, bem como que a prova pericial realizada era merecedora do especial valor probatório que lhe foi atribuído, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 163.º do CPP.
Com efeito, e tal como se lê no acórdão recorrido, “Depois, a assinalada ausência de resposta aos quesitos formulados pelo tribunal, por parte do Sr. Perito Psiquiatra, Dr. BB, veio a ser superada mediante os esclarecimentos pelo mesmo prestados em audiência, no dia ...-...-2024, com sujeição a amplo exercício do contraditório pela defesa, sendo então suscitadas todas as questões suplementares consideradas pertinentes pelo tribunal e também pelo ilustre Defensor da arguida (cf. gravação desse dia ...-...-2024, entre as 10.13h e 10.50h, que se ouviu na íntegra). Acresce que, finda a audição, foi prolatado despacho, não impugnado, do qual decorre encontrarem-se ultrapassadas todas as dificuldades anteriormente assinaladas em face do relatório inicial e aditamento subsequente, julgando-se desnecessária qualquer diligência adicional, o que obteve a concordância dos sujeitos processuais que logo manifestaram não existir qualquer outra questão a suscitar.
Nesta sequência, também carece de sentido a alegação de insuficiência de fundamentação do relatório pericial (cf. artigo 157.º, n.º 1, do Código Processo Penal), face à referida tramitação observada, sendo ainda certo que a subsistência de tal falha não acarretaria a invalidade da perícia e/ou a perda do respetivo valor probatório”.
Mais nos acresce dizer que, mesmo que fosse entendido que o relatório pericial padecia de “vícios”, pelo que não lhe deveria ser atribuído o valor probatório acrescido decorrente do disposto n.º 1 do art.º 163.º do CPP, a verdade é que a matéria de facto dada como provada sempre seria de manter inalterada.
Assim, a qualificação jurídica mantida pelo acórdão recorrido, sempre se mostraria em consonância com a factualidade provada, ou seja, com o decidido relativamente à matéria de facto.
Com efeito, quer o Perito, quer a Psicóloga indicada pela Defesa, e ouvida na audiência de julgamento, semostramde acordo no facto dea arguida não padecerde qualquer doença mental.
(…)
Ora, sucede que a mencionada “denegação pervasiva da gravidez”, para além de se tratar de um conceito ainda controverso, é caracterizado por se tratar da forma mais extrema de negação não psicótica da gravidez, em que esta permanece afastada da consciência, podendo levar a que a mulher apenas descubra que está grávida na hora do parto.
Ora, se é certo que a Psicóloga que acompanhou a arguida teve “acesso” à mesma num período próximo do “evento” e em várias consultas, a verdade é que a mesma teve unicamente acesso à paciente, e não à restante prova reunida na investigação e audiência de julgamento.
Com efeito, basta atentar na fundamentação da matéria de facto quanto aos factos provados em causa na sentença da 1.ª instância, para se verificar que o relatório pericial foi absolutamente inócuo para que o Tribunal Colectivo houvesse dado como provados os factos que se prendem com o conhecimento da gravidez e decisões conscientes, subsequentes, da arguida.
(…)
Na verdade, foi a prova produzida em audiência e a reunida nos autos, que infirmou a verificação da invocada perturbação de “denegação pervasiva da gravidez”, e não o relatório pericial e a força probatória atribuída ao mesmo.»
Para além disso, foi rebatida a possibilidade de requalificação dos factos provados como crime de infanticídio, bem como a redução da pena aplicada, por fixada perto do limite mínimo (13 anos de prisão), atenta a qualificação jurídico-penal dos factos como crime de homicídio qualificado (punível com uma pena de 12 a 25 anos de prisão).
5. O processo foi remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, após despacho de recebimento do recurso, da Senhora Desembargadora relatora no TRP, de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...).
6. Uma vez neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-geral-adjunto aqui em funções emitiu circunstanciado parecer, em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), no qual invoca que a reedição da questão do valor probatório da perícia psiquiátrica – que foi já objeto de apreciação no acórdão recorrido, do ... –, não pode ser validamente ser apreciada, por contender com uma questão da decisão sobre matéria de facto, já estabilizada com a decisão da Relação, nos termos dos artigos 428.º e 434.º, do CPP, devendo, por isso, improceder.
Também no tocante à questão da qualificação jurídica dos factos – que a recorrente pretende sejam qualificados como crime de infanticídio, p.p. no art. 136.º do CP – por a mesma se achar diretamente associada à primeira questão, deve, também, improceder, uma vez que, face à factualidade provada, pode concluir-se por uma “(…) realidade que demonstra, sem a menor incerteza, que a decisão de matar o filho foi tomada e planeada antecipadamente e não decorreu de qualquer estado de perturbação psicológica provocada pelo parto, nomeadamente da (indemonstrada) «denegação pervasiva da gravidez»”.
No tocante à medida da pena – que deve circunscrever-se à medida da pena parcelar aplicada pelo crime de homicídio qualificado e à pena única, face ao regime de “dupla conforme” no tocante à pena aplicada ao crime de profanação de cadáver, por não ser superior a 8 anos de prisão – o Ministério Público defende que «(…) a questão do quantum da pena do crime de homicídio qualificado e da pena conjunta composta por aquela não foi colocada, ainda que a título subsidiário, no recurso para o Tribunal da Relação do Porto.», e, por essa razão, tal questão não poderia ser objeto de reanálise, por não ter sido conhecida pelo tribunal recorrido, no acórdão impugnado.
Em todo o caso, mesmo que não se entendesse assim, e atendendo a que as únicas circunstâncias atenuantes são a primariedade e a inserção familiar, profissional e social da arguida, as penas aplicadas, de «(…) 13 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado e 13 anos e 3 meses de prisão de pena única, ambas situadas perto do limiar mínimo da respetiva moldura abstrata, de modo algum podem ser classificadas como desnecessárias, desproporcionais ao desadequadas».
7. Notificada para se pronunciar sobre tal posição, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, a arguida nada veio dizer.
8. Não tendo sido requerida audiência, colhidos os vistos, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto (Factos provados e não provados)
9. Encontram-se provados, e não provados, pelas instâncias – uma vez que no TRP a matéria de facto, provada e não provada, não sofreu modificação –, os seguintes factos (transcrição):
«1. AA (doravante Arguida) manteve relações sexuais de cópula completa com CC pelo menos no dia ... de ... de 2021, tendo, em sequência, ficado grávida.
2. Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos, em ..., face à ausência de período menstrual, a Arguida descobriu que estava grávida.
3. A Arguida não desejava tal gravidez pelo que decidiu não contar a ninguém tal estado, passando a ocultá-lo.
4. Em momento que, em concreto não se logrou apurar, mas anterior ao dia ... de ... de 2022, a Arguida decidiu que mataria o filho assim que o mesmo nascesse.
5. Assim, e em consonância com o propósito que havia delineado, a Arguida, durante os meses de gravidez não se dirigiu ao médico para cuidar de saber da saúde do feto, não frequentou consultas de gravidez, nem consultou qualquer médico da especialidade de obstetrícia ou ginecologia.
6. Tal como nunca adquiriu quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez ou qualquer artigo de puericultura ou roupas para bebé.
7. Assim como durante os meses de gestação, no período compreendido entre ... de ... de 2021 e o dia ... de ... de 2022, a Arguida não revelou o seu estado de gravidez, nem no seu local de trabalho e esforçou-se por esconder a sua gravidez às colegas de trabalho, negando-lhes que estaria grávida, ao seu namorado e à sua família, envergando roupas largas por forma a esconder o crescimento da barriga que, natural e progressivamente, ia aumentando.
8. Quando foi confrontada pela sua colega DD e por outras pessoas, se estaria grávida, a Arguida sempre respondeu que não.
9. No dia ... de ... de 2022, pelas 13h39, a Arguida escreveu e publicou no seu perfil do Facebook, com o url https://facebook.com/ines.melo.963871 um post que dizia: “Pensei muito antes de escrever isto mas como a minha paciência ultimamente está nível 0 lá tem que ser: recado: Não não estou grávida e se estivesse só a mim e ao pai da criança dizia respeito. Eu não sou nenhuma irresponsável, ok? Cansada de gentinha que não tem mais nada que fazer se não falar na vida dos outros. gentinha que se fosse inteligente e tivesse 2dedos de testa podia pensar secalhar a rapariga está doente ou tem algum problema, mas não é logo estás grávida??? Ou pior ainda vão questionar as pessoas que me são chegadas se eu estou grávida…opah por amor de deus, ide trabalhar que se calhar é o que faz falta minha gente...eu não falo da vida d ninguém, mal me vêm na rua e sabem porquê???não tenho tempo e cada vez menos vontade…e porque graças a deus tenho um trabalho que tenho muito orgulho e me ocupa muito tempo e tenho 2filhos maravilhosos que dependem de mim…sim sempre disse que gostava de ter mais um filho, mas só se a vida melhorasse muito o que não é o caso muito plo contrário…e encerro o assunto por aqui…peço desculpa plo testamento alongado mas tinha mesmo que ser…obrigada”.
10. Em data não concretamente apurada, mas seguramente no dia ... de ... de 2022, a Arguida, que estava grávida com gestação a termo, superior a 37 semanas de gravidez, começou a sentir as dores próprias do início de parto, ou seja, contrações ritmadas e constantes que faziam anunciar o parto.
11. Assim, no dia ... de ... de 2022, sabendo iminente o momento do parto, a Arguida muniu-se de um saco de plástico de cor branca, com a inscrição LIDL, com alças, um saco de plástico de cor azul com alças, e de um saco de plástico preto, opaco e com fios, com capacidade de 50 litros e, por apresentar perdas de sangue, deitou-se na cama, no seu quarto, na sua habitação na ..., local onde guardou aqueles sacos.
12. Nesse dia dirigiu-se a casa da sua mãe, sita na Rua Dr. ..., onde deixou a almoçar o seu filho EE, nascido em ........2008.
13. Naquele dia ... de ... de 2022, antes das 13h00, e quando ali se encontrava, em casa da sua mãe, sentiu fortes contrações e sinais que estava em trabalho de parto, sabendo que o parto estava iminente, regressou, de imediato, para a sua casa na ... onde, cerca das 13h00 iniciou o trabalho de parto, com contrações ritmadas e intensas, tendo rebentado o saco amniótico e já na casa de banho expulsou do interior do seu útero, fazendo força por forma a expelir, como expeliu, o seu filho, um bebé, do sexo masculino, que posteriormente foi registado com o nome de FF, com 47,5 cm de comprimento e com 2,549 kg, compatível com uma idade gestacional superior a 37 semanas, que, naquele momento, nasceu com vida, e que de imediato respirou.
14. Imediatamente após o nascimento do bebé, que ocorreu por volta das 13h00, a Arguida, mediante uso de uma tesoura, que levara consigo, lacerou o cordão umbilical que a unia ao bebé recém-nascido.
15. A criança, filho da Arguida, recém-nascido, encontrava-se em termo de gestação, nasceu com vida, com ausência de malformações internas ou externas e respirou.
16. Após, conforme o plano que previamente traçara e que consistia em nunca revelar a sua gravidez e o nascimento de um bebé com vida, que pretendia e decidiu matar, a Arguida, ainda no interior da sua residência, limpou o sangue que por si escorria, e, apesar de ter constatado que o bebé tinha nascido com vida e estava vivo, embrulhou o seu filho (FF) que acabara de nascer, nu e com o cordão umbilical, e os tecidos que foram expelidos no momento do parto, numa fronha de almofada de tecido, de cor branca e com padrão floral nas cores rosa, cinzento, verde e vermelha.
17. De seguida a Arguida agarrou nos sacos de plástico que tinha levado consigo para esse efeito e colocou o recém nascido no interior do saco de plástico azul onde ainda colocou papel higiénico ensanguentado, saco que atou, com as alças, fazendo um nó, e de seguida meteu este saco onde estava o bebé, num outro saco de plástico de cor branca com a inscrição Lidl em letras azuis, que apresentava coágulos de sangue no exterior, onde ainda colocou papel higiénico ensanguentado e fechou este saco de plástico, atando as duas alças, fazendo um nó.
18. Após, colocou aqueles sacos onde se encontrava o bebé, juntamente com os restos hemáticos num saco preto opaco com capacidade para 50 litros, onde ainda colocou uma caixa de cereais vazia, papéis de casa de banho, cinco embalagens de leite vazias, um pacote de detergente vazio, embalagens de plástico e um pano e fechou o saco com os próprios fios do saco, impedindo a entrada de ar e sufocando o bebé, o que veio a provocar-lhe a morte.
19. De seguida, a Arguida limpou-se, tomou banho, trocou de roupa, e, em hora não concretamente apurada, mas depois das 13h30 e antes das 14h30 daquele dia ... de ... de 2022, pegou naquele saco preto onde havia colocado o bebé e dirigiu-se a um contentor do lixo verde, com rodas, existente na Av. ..., na ..., perto do ..., que dista cerca de 170 metros da sua residência, abriu o contentor do lixo, e ali despejou aquele saco preto, que continha no interior o seu filho, recém nascido, fechando, depois, aquele contentor.
20. Não revelando a ninguém o sucedido, nomeadamente o nascimento com vida da criança e que ocultara o corpo nos termos descritos.
21. De seguida, a Arguida prosseguiu a sua rotina diária e dirigiu-se ao Centro de Assistência Paroquial ..., na ..., local onde trabalhava e, pelas 16h30 daquele dia ... de ... de 2022, iniciou o seu turno que lhe estava escalado à data, entre as 16h30 e as 24h00.
22. Contudo, pelas 17h00 do dia ... de ... de 2022, a Arguida apresentou uma grande hemorragia e as suas colegas de trabalho, GG e DD, apercebendo-se que a Arguida não se encontrava bem por a terem visto a escorrer sangue pela vagina, chamaram os bombeiros, altura em que a Arguida, manifestou desagrado, e lhes disse que pretendia ir para casa e que estava, desde a manhã, com dores menstruais e com um fluxo muito abundante e que já não tinha período menstrual há muitos meses, sem lhes ter revelado o nascimento com vida do bebé e que ocultara o seu corpo nos termos descritos.
23. Após, a Arguida foi transportada pelo INEM ao ... – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e posteriormente para a ..., também em Coimbra, onde recebeu tratamento médico e hospitalar.
24. A Arguida, que apresentava hemorragia vaginal abundante, disse aos bombeiros que a socorreram, durante o transporte para o hospital que tinha sofrido uma perda sanguínea anómala em face do período menstrual que havia estado ausente, sem referir qualquer ocorrência do parto.
25. Chegada ao hospital e, quando foi observada pela médica ginecologista a Arguida apresentava perda hemática abundante, sangue vivo, com coágulos e laceração perineal e vaginal, pelo que foi de imediato conduzida ao bloco operatório onde se procedeu a uma dequitadura manual interna.
26. O bebé morreu, no dia ... de ... de 2022, quatro a seis horas depois do seu nascimento, por asfixia, sufocado no interior dos três sacos de plástico, por carência de ar respirável, em consequência direta e necessária da conduta da Arguida que colocou o bebé dentro de três sacos de plástico que fechou, cada um deles, com nós, impedindo a entrada de oxigénio, e que depois o colocou, dentro daqueles sacos, no interior do contentor do lixo.
27. O recém-nascido permaneceu naquele contentor do lixo verde, com vida, pelo menos por cerca de quatro horas, no interior daqueles sacos de plástico fechados, cada um, com nós, onde a Arguida o depositou, que não permitiram ao bebé a respiração, o que levou a que o mesmo assim viesse a morrer, naquele local, por asfixia, por carência de ar respirável, como consequência direta e necessária da conduta da Arguida, o que a Arguida previu, fez, quis e conseguiu.
28. De acordo com o relatório da autópsia médico-legal e dos exames macroscópicos e complementares realizados, o recém-nascido respirou após o parto e apresentou sinais de respiração pulmonar, compatível com nascido vivo, com um tempo de sobre-vida aproximado de 4-6 horas, sendo que a sua morte foi devida a asfixia mecânica por carência de ar respirável (sufocação por saco plástico) associada a pneumonia congénita.
29. O recém-nascido, filho da Arguida, veio a ser encontrado, sem vida, totalmente despido, coberto de sangue, em posição fetal, e com o cordão umbilical cortado de forma irregular, no dia ... de ... de 2022, pelas 18h30, dentro daqueles sacos de plástico que estavam fechados, cada um, com um nó, no interior do contentor do lixo verde na ..., na ..., perto do ..., por duas funcionárias daquela instituição que haviam sido alertadas pela PSP de Coimbra para a presença de um recém-nascido no interior daquele contentor do lixo.
30. O recém-nascido permaneceu no interior do caixote do lixo verde, apenas tendo sido encontrado cerca das 18h30 do dia ... de ... de 2022, depois de ali ter sido colocado pela Arguida entre as 13h30 e as 14h30 do mesmo dia ... de2022, tendo o óbito do bebé sido certificado pela VMER naquele dia ... de 2022 às 19h19.
31. Ao colocar o recém-nascido, que veio a ser registado com o nome FF, vivo, no interior daqueles sacos de plástico atados com nós, impedindo-o de respirar e assim o sufocando, por carência de ar respirável, a Arguida, bem sabendo que ele nascera com vida, igualmente sabia que desse modo lhe provocaria, como provocou a morte, o que previu, quis que sucedesse e conseguiu.
32. A Arguida quis, como previu e conseguiu, com as descritas condutas provocar a morte daquele bebé, seu filho, que nasceu com vida, o que viu e sabia, sufocando-o e asfixiando-o, por carência de ar respirável, no interior dos sacos plásticos, de que previamente se muniu, onde colocou o bebé, sacos de plástico que, com as respetivas alças, fechou com um nó cada um por forma a evitar a entrada de ar, sufocando-o, bem sabendo que não era possível ao bebé resistir por qualquer forma, provocando-lhe, como provocou, directa e necessariamente com a sua conduta, como quis e conseguiu, a morte.
33. A Arguida agiu com o propósito de após o nascimento completo e com vida daquele seu filho lhe tirar a vida, matando-o, como quis e conseguiu, na execução de um plano que delineou, ocultando a gravidez, as dores que sentiu e o nascimento com vida daquele, colocando-o no interior dos sacos plásticos nos moldes descritos, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe, como causou, a morte.
34. Ao actuar da forma descrita, ocultando toda a sua gravidez e ao longo de tal período, e decidindo ter o seu filho nas descritas circunstâncias, sem qualquer assistência hospitalar ou médica e sem dar conhecimento da sua gravidez a qualquer pessoa, e sempre de acordo com o plano por si estabelecido, o qual visava a morte do seu filho, tendo para tanto, e imediatamente após o seu nascimento com vida, colocado o seu filho, recém-nascido, sufocando-o dentro de sacos de plástico que fechou, cada um, com um nó, no interior de um contentor de lixo, fechado, longe dos sentidos de qualquer pessoa que por ali passasse, escondendo de todos o que tinha feito, a Arguida pretendia, como quis, previu e conseguiu causar-lhe, como causou, a morte.
35. A Arguida bem sabia que aquele recém-nascido era seu filho, que o mesmo, atendendo ao pouco tempo de vida que tinha estava especialmente vulnerável, necessitava de cuidados acrescidos e de proteção, agindo com intenção de o matar, como fez e conseguiu após o nascimento com vida do bebé.
36. A Arguida agiu de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente com o propósito de causar, como causou, a morte daquele bebé, seu filho, e de ocultar o seu corpo, bem sabendo que o mesmo nascera com vida e que ao depositá-lo num contentor do lixo, fechado dentro de três sacos de plástico, que atou e apertou, cada um deles com nós, iria impedi-lo de respirar, asfixiando-o e que dessa forma lhe tirava a vida, matando-o, o que a Arguida sabia, previu, quis e conseguiu.
37. A Arguida, sabendo que provocaria a morte do recém-nascido, agiu ainda com intenção de fazer desaparecer o corpo daquele recém-nascido, desfazendo-se dele, fazendo-o desparecer de modo a não mais ser encontrado, ocultando-o no interior daquele contentor do lixo, pois que assim que o lixo fosse recolhido e os contentores esvaziados o corpo do bebé seria esmagado pelos rolamentos que os camiões, em regra, contêm no seu interior.
38. A Arguida agiu sempre, em todas as descritas circunstâncias, de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as descritas condutas eram e são proibidas e punidas por lei penal e que incorria em responsabilidade criminal.
39. Do relatório Social
40. Do relatório social consta: “I - Condições pessoais e sociais
No período a que se reportam os factos que deram origem ao presente processo, AA residia com os dois filhos menores, HH e II, de quinze e onze anos de idade, respetivamente, ambos estudantes.
O agregado residia no primeiro andar de uma moradia, arrendado pelo valor de 195€ mensais, localizada na periferia da cidade da ..., numa zona calma, sem problemáticas sociais relevantes.
A subsistência da família era assegurada pelo salário da Arguida, no valor mensal de 850€, complementados por prestações sociais, no valor mensal de cerca de 330€ (incluindo majoração por monoparentalidade). Beneficiava, igualmente, do apoio da ...”, resposta social concelhia que disponibilizava regularmente cabaz alimentar, produtos de higiene, roupa e têxteis, e, ainda, do ..., com periocidade bimensal.
AA percecionava a sua situação económica como deficitária, alegando que o pai dos filhos nunca contribuiu para o sustento dos mesmos, situação que, segundo a mesma, a obrigava a recorrer aos apoios sociais, tendo também solicitado inscrição no Departamento de Habitação Social da ....
Em termos laborais, desempenhava funções de ajudante de ação direta, no CAPP - Centro de Assistência Paroquial ..., em regime de turnos rotativos, deslocando-se maioritariamente de comboio.
Sempre que tinha necessidade de trabalhar no período noturno, os filhos ficavam entregues aos cuidados da avó materna, que residia numa habitação localizada ao lado da sua. Era esta, quem confecionava as refeições e assegurava o tratamento de roupas, ficando também encarregue de acompanhar a filha II nas deslocações para a escola. Os menores passavam longos períodos desacompanhados, mantendo-se em casa a ver televisão ou nas redes sociais.
AA é fruto de uma relação extraconjugal do progenitor, então colega de trabalho da sua mãe, na altura divorciada. Tem uma irmã uterina, quinze anos mais velha, e uma irmã germana sensivelmente da mesma idade, com a qual nunca teve qualquer relação de proximidade. O facto de a Arguida ser fruto de um relacionamento da mãe com um homem casado, não foi bem visto no meio sócio residencial, de reduzidas dimensões, conservador e de caraterísticas rurais, onde todos se conhecem e onde factos similares são catalogados de forma depreciativa.
O seu processo educativo e de desenvolvimento decorreu na localidade de ..., aldeia do concelho da .... Cresceu no seio de um agregado familiar monoparental, economicamente desfavorecido e residente em bairro social, ocupado por famílias economicamente carenciadas, na sua maioria apoiadas pelos serviços de intervenção social.
A progenitora, à semelhança do progenitor, era trabalhadora indiferenciada na “...” e tinha a seu cargo exclusivo o sustento e educação da Arguida, pelo que o agregado foi sempre alvo de intervenção social pelo Centro Comunitário do ..., que acautelava pontualmente o pagamento de despesas básicas.
A Arguida referiu não ter estabelecido vinculação com o seu progenitor, pese embora o mesmo, nos primeiros meses da sua vida, tenha continuado a frequentar a casa da progenitora. Este manteve o casamento e nunca participou ativamente na sua educação, tendo a progenitora estabelecido várias relações inconsistentes com outros homens, as quais, segundo algumas fontes, constituiriam fonte de rendimentos para a progenitora da Arguida. A irmã mais velha ficou, desde o divórcio da progenitora, entregue aos cuidados dos avós paternos, sendo que a Arguida passava alguns períodos inserida nesta família, junto da irmã, que em determinada altura chegou a supervisionar e a promover as atividades em que a mesma participava (escuteiros, piscina). Esta relação ter-se-á degradado quando a Arguida precocemente, aos quinze anos, começou a namorar e iniciou uma relação conjugal com coabitação, com um individuo seis anos mais velho, na residência da progenitora. Presentemente, a irmã da Arguida não tem relação com a progenitora, considerando que a Arguida é o reflexo da “vida promíscua” daquela.
Ainda assim, JJ referiu ter apoiado a Arguida, quando esta relação terminou. Confortou-a, afirmando que, na altura, acreditou nas razões que aquela lhe reportou, nomeadamente que era agredida pelo então namorado. No meio onde viveu até à maioridade, era caraterizada, e principalmente a partir dos 15 anos, como sendo conflituosa, rebelde e mentirosa “igual à mãe” (sic).
AA iniciou a escolaridade em idade própria, tendo completado o 4.º ano na escola primária local. Prosseguiu a escolaridade na ..., onde concluiu o 9.º de escolaridade sem registo de reprovações e/ou problemas disciplinares. No ano letivo de ...0.../2007 concluiu o 12º ano, na ..., através da frequência de um curso animação sociocultural.
Nas férias escolares trabalhou em part-time, na secção de ... do ..., a que se seguiu uma experiência de empregada de mesa na restauração, durante cerca de 3 anos.
Em 2008, com 19 anos de idade, contraiu matrimónio com KK, pai dos seus dois filhos. Este casamento também não foi bem visto pela irmã, que na altura aconselhou a Arguida a não se envolver afetivamente, considerando a sua imaturidade. O casamento foi dissolvido por divórcio em 2016, segundo a Arguida por sucessivos episódios de violência doméstica que nunca teve coragem de denunciar. O pai dos filhos é oriundo de uma família economicamente carenciada, não tinha hábitos de trabalho regulares e apresentava-se frequentemente alcoolizado. Nunca participou ativamente na educação dos filhos, refugiando-se na Associação Humanitária dos Bombeiros, onde era voluntário. AA referiu que os episódios de violência doméstica ocorriam sempre que se intensificavam os consumos de álcool, tendo afirmado que a partir de certa altura deixou de ser possível dar continuidade a um projeto de vida comum, optando por ficar com os filhos a seu cargo e terminar a relação. A própria Arguida descreveu esta fase como sendo um período difícil da sua vida, todavia, afirma ter conseguido superá-lo, focando-se no trabalho e na educação dos filhos. O pai destes, demitiu-se totalmente do seu papel educativo e, mesmo na altura da constituição do presente processo, em que houve intervenção da ... junto dos menores, não foi sequer equacionada a possibilidade de, ainda que temporariamente, acolher os menores.
Após o divórcio, arrendou uma habitação sita na ..., onde passou a residir com os filhos, dando continuidade ao estágio profissional de ajudante de ação direta (na resposta social de Lar de Idosos) que nessa data já decorria no ..., findo o qual foi beneficiária de um Contrato de Emprego Inserção, a que se seguiram dois contratos a termo, até que em 2019, consolidou a sua situação contratual através da celebração de contrato sem termo.
Em termos laborais, é referenciada como uma colaboradora cumpridora, zelosa e proactiva, verbalizando regularmente, junto dos superiores hierárquicos, a sua disponibilidade e interesse em frequentar ações de formação e de atualização de procedimentos para melhorar o bem-estar dos idosos.
Na altura da pandemia por ..., e dos constrangimentos inerentes à intervenção/cuidados em Lares de Idosos, a Arguida permaneceu ininterruptamente na instituição (num dos períodos por 30 dias consecutivos), inteiramente dedicada ao trabalho. Nesses períodos, os filhos ficaram entregues aos cuidados da mãe da Arguida.
No período compreendido entre 2016 e finais 2019, AA não identifica nenhuma relação afetiva relevante. Refere que nesse período, priorizou o acompanhamento dos filhos e a sua situação profissional, à qual se refere, frequentemente, como sendo gratificante.
AA aparentou sempre junto dos serviços de intervenção social a quem recorria, uma atitude protetora e de preocupação com os filhos, porém, priorizava a dimensão laboral, deixando os menores junto da sua progenitora, com quem mantinha uma relação distante, e, pese embora o apoio que esta dedicava aos netos, não tinha autorização para entrar na casa da Arguida. Relativamente, ao seu atual companheiro, LL, a Arguida refere que o conheceu através do ex-marido, por serem colegas de trabalho. Dois anos depois de se ter divorciado, começaram a trocar mensagens e, mais tarde, em finais de 2019, iniciaram uma relação de namoro, que, segundo a Arguida se foi gradualmente fortalecendo, sem nunca ter existido coabitação. Ambos referem que tinham planos de, mais tarde, viverem juntos e construírem família, situação que se precipitou pela atual situação jurídico penal. LL afirma ter ficado inicialmente revoltado com a alegada conduta da Arguida, que considera incompreensível, todavia, refere sem aparente constrangimento, que pretende continuar a dar-lhe apoio.
Na altura dos factos que estão na origem dos presentes autos, os filhos da Arguida foram alvo de intervenção por parte da CPCJ- Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, de ... no âmbito de Acordo de Promoção e Proteção. Os menores estão, desde essa data (julho de 2022) confiados a terceiros. Inicialmente, aos padrinhos e atualmente à irmã mais velha da Arguida, sendo esta a responsável pela sua educação, mantendo os mesmos os contactos com a Arguida definidos pelo Juízo de Família e Menores, nomeadamente, por videochamadas semanais.
Em ...2022, devido ao mediatismo e impacto que os factos tiveram na comunidade e, sobretudo para proteger os menores, AA foi encaminhada pelo ... para uma estrutura de acolhimento residencial (Comunidade de Inserção para Mulheres em Risco – ..., em ...) de onde se ausentou em ...2022. Nesta estrutura de acolhimento, a Arguida adotou sempre uma postura caraterizada por “imaturidade/infantilidade” (sic), mantendo sempre contactos telefónicos com o então namorado, que na altura acreditava ser o pai do bebé. Quando saiu fixou residência na casa deste, onde atualmente cumpre a OPHVE.
Encontra-se sujeita à medida de coação de OPHVE desde ...2023, integrada no agregado familiar do companheiro, o qual é constituído pelo companheiro, pela mãe de 57 anos de idade, pela irmã de 19 anos e pela filha de oito anos de idade, de quem o companheiro tem a respetiva guarda e a qual mantém uma relação de grande proximidade afetiva com a Arguida. Os filhos da Arguida ficaram por sugestão da interlocutora do Ministério Público com Processo de Promoção e Proteção, sob supervisão da CPCJ da ..., concelho onde residem, entregues a familiares.
O atual agregado da Arguida reside em habitação própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, cuja prestação está inteiramente a cargo do companheiro. A habitação em causa dispõe de condições de habitabilidade e conforto adequadas e situa-se numa zona rural, periférica do concelho de ..., sem problemáticas associadas. No meio sócio residencial, de caraterísticas rurais, a família do companheiro é bem-vista, sendo a relação do mesmo com AA e o envolvimento desta nos presentes autos, conhecido e fortemente censurado.
A Arguida mantém um quotidiano centrado na execução das tarefas domésticas e na confeção das refeições familiares. Encontra-se de baixa médica desde ..., recebendo uma prestação de aproximadamente 600€ mensais, valor que lhe permite colaborar no pagamento das despesas correntes do agregado e também na educação dos filhos.
Frequenta consultas regulares no Serviço de Psicologia Clinica da ..., em ... desde .... Na articulação efetuada com aquele serviço, não se identificam constrangimentos relevantes desde o inicio do acompanhamento. A Arguida vem mantendo atitude colaborante, todavia, no último mês tem apresentado sintomatologia compatível com ansiedade e preocupação, aparentemente relacionados com o afastamento físico dos filhos, com a mediatização do caso e com a aproximação das audiências de julgamento.
Este é o primeiro contacto de AA com o sistema de justiça, cujo envolvimento nos factos constituiu uma surpresa, quer na esfera profissional, quer para os técnicos de ação social, a quem regularmente recorria. Tem causado grande sofrimento nos familiares mais próximos. A progenitora apresenta sentimentos de vergonha, não encontrando explicação nem motivo para tal, percecionando a situação como um “castigo divino”.
Por seu lado a irmã, refere que foi obrigada a reorganizar todo o seu quotidiano, assumindo a educação dos sobrinhos para evitar que os mesmos sejam institucionalizados, afirmando estar preocupada com o futuro dos mesmos, sobretudo pelo facto da sobrinha, à semelhança da Arguida, sua mãe, começar a evidenciar comportamentos de rebeldia, acedendo, pela internet, a conteúdos de cariz impróprio, obrigando-a a limitar-lhe o acesso. Também o filho mais velho da Arguida, depois de ter tido conhecimento, pela comunicação social, da acusação que recai sobre a mãe, passou a revelar revolta e evitamento do convívio/telefonemas com a Arguida, necessitando de apoio especializado, já em curso.
O companheiro de AA e a sua família revelam censurabilidade em relação aos factos constantes na acusação. Contudo, aparentam não ser conhecedores do teor e circunstâncias dos mesmos, deixando transparecer uma eventual versão da Arguida, afirmando estarem disponíveis para a continuar a apoiar, independentemente do desfecho da atual situação jurídico-penal.
No meio sócio residencial onde vivia antes de ser presa e no atual meio onde reside, atenta a tipologia de crime, registou-se um impacto muito negativo, com fortes sentimentos de reprovação e censurabilidade relativa à pessoa da Arguida.
No relacionamento interpessoal, a Arguida mostrou-se sempre colaborante e meticulosa, remetendo todos os documentos solicitados atempadamente, apenas omitindo, numa primeira fase da recolha de dados, a relação conjugal antes da maioridade, por segundo a própria “não ser importante” (sic).
De acordo com as fontes, a Arguida é descrita como sendo uma pessoa dedicada ao trabalho e, aparentemente, preocupada com a inserção dos filhos.
No que se refere às competências pessoais, a Arguida revelou capacidades de resolução de problemas de cariz prático/operacional. Centra o seu discurso na carreira profissional, tendo, inclusive, manifestado interesse em frequentar ações de formação online durante a execução da presente medida de coação.
Denota, contudo, ausência de ressonância afetiva e de juízo de censura, fazendo uma análise da realidade, baseada na concretização dos seus objetivos e de acordo com a desejabilidade social. Em reflexão orientada, sobre a atual situação judicial, AA mantém postura de proteção e reserva perante a atual situação processual, contudo, deixa transparecer preocupação pelo impacto que o desfecho do presente processo poderá ter no seu futuro e no seu relacionamento com os filhos.
II – Conclusão
De acordo com a informação recolhida, salienta-se do percurso de vida de AA um processo de desenvolvimento marcado pela ausência de figuras parentais disponíveis afetivamente e pouco estruturantes. AA também não beneficiou do estabelecimento de vínculos e de relações afetivas saudáveis, consistentes e gratificantes, privilegiando-se, no seu contexto familiar, a angariação de meios de subsistência e de recursos que permitissem manter uma adequada integração social, ainda que com a prática de comportamentos caracterizados como reprováveis pela restante comunidade, segundo consta.
É neste contexto sociofamiliar, propício à manutenção de uma imagem e funcionalidade, socialmente desejáveis e com algumas lacunas ao nível da transmissão dos valores morais e afetivos, que AA adquiriu competências escolares e profissionais, bem como, hábitos de trabalho que se têm traduzido num percurso laboral estável e caracterizado como positivo. Contudo, ao nível das relações de intimidade/afetividade precocemente estabelecidas, com vivência conjugal aos quinze anos de idade, familiarmente permitidas, e pautadas pela disfuncionalidade, com episódios de violência doméstica transversais aos vários relacionamentos, AA parece revelar alguma dificuldade de vinculação afetiva consistente e de ressonância afetiva, pela forma como gere e avalia o quotidiano ao nível das relações que estabelece.”
41. A Arguida não tem antecedentes criminais.
42. A Arguida é reconhecida por MM e NN como boa mãe, simpática e humilde.
43. A Arguida é reputada como boa funcionária, dedicada e profissional por GG.
* *
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
a) Na circunstância descrita em 2 dos factos provados a Arguida tenha sentido sensibilidade nos peitos e aumento da frequência em urinar;
b) Na circunstância referida em 12 dos factos provados a Arguida tenha deixado a sua filha II a almoçar em casa da sua mãe;
c) Que no circunstancialismo descrito em 13 dos factos provados o bebé tenha chorado;
d) No circunstancialismo descrito em 21 dos factos provados a Arguida tenha regressado à sua residência;
e) No circunstancialismo descrito em 33 a Arguida assim tenha agido desde que soube estar grávida;
f) No circunstancialismo descrito em 35 a Arguida tenha agido desde que soube que estava grávida e ao longo de toda a gravidez com frieza de ânimo e persistindo nessa intenção ao longo de toda a gravidez.»
II.2. Mérito do recurso
10. Estabelece o artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP:
«1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
(…).»
O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, que para o caso não releva.
Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».
Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redação dada pela Lei n.º 94/2021.
Da conjugação destas disposições resulta, numa formulação sintética, que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:
- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme; ou
- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.
Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico (cf., entre muitos arestos que estão disponíveis para consulta, os acórdãos do STJ: de 11-03-2021, Proc. 809/19.1...; de 02-12-2021, Proc. 923/09.1...; de 12-01-2022, Proc. 89/14.5...; de 20-10-2022, Proc. 1991/18.0...; de 30-11-2022, Proc. 1052/15.4..., todos disponíveis em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).
No caso em apreço, aprecia-se o recurso de uma decisão confirmatória da Relação do Porto, relativamente a uma pena inferior (pelo crime de profanação de cadáver) e outra pena superior a 8 anos de prisão (pelo crime de homicídio qualificado), ou seja, uma situação de “dupla conforme”. A recorrente não limitou o recurso a um segmento específico da decisão recorrida, apesar de, explicitamente, o mesmo não abranger a decisão condenatória pelo crime de profanação de cadáver; o regime de recursos em matéria penal sempre inviabilizaria uma tal pretensão, pelo que tal decisão é apenas recorrível para o STJ quanto à decisão de aplicação da pena pelo crime de homicídio qualificado e da pena única, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), a contrario, 403.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 3, e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP e, por isso, será o recurso apreciado, nos segmentos questionados (cfr., neste sentido, Ac. STJ de 30-09-2020, rel. Cons. Paulo F. Cunha).
De acordo com o supra transcrito artigo 434.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da Relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).
Tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito (art. 434.º, do CPP), o que no caso em apreço não se verifica.
11. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento consolidado que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas pela arguida AA, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, podemos inferir que a mesma questiona a decisão do acórdão recorrido quanto às seguintes questões:
i) Violação do disposto no artigo 163.º do CPP, por referência ao disposto no artigo 157.º do CPP, por indevida atribuição de relevância probatória ao relatório pericial de Psiquiatria Forense – Conclusões 1.ª a 28.ª
ii) Errada qualificação dos factos como crime de homicídio qualificado pelas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal – Conclusões 29.ª a 36.ª
iii) Excesso da medida das penas – parcelar e conjunta –, mesmo dentro da qualificação do crime de homicídio qualificado, pelo que deve ser reduzida para o seu limite mínimo – Conclusões 37.ª a 46.ª.
Apreciemos, assim, as questões suscitadas no recurso da arguida.
12.
i) Violação do disposto no artigo 163.º do CPP, por referência ao disposto no artigo 157.º do CPP, por indevida atribuição de relevância probatória ao relatório pericial de Psiquiatria Forense.
A questão em apreço dirige-se, no fundo, a tentar fazer rever as conclusões a que chegaram as instâncias no tocante à matéria de facto que se liga ao elemento subjetivo típico do crime de homicídio qualificado pelo qual a arguida foi condenada: a intenção de matar o filho recém-nascido.
Importa sublinhar que a recorrente parece ter-se conformado com a decisão sobre a matéria de facto relevante no tocante à demonstração da conduta objetiva por si empreendida, com exceção da que se relaciona como a factualidade inerente à intenção de tirar a vida do seu filho recém-nascido, invocando os elementos probatórios que em seu entender as instâncias deveriam ter feito, devendo concluir pela sua afetação de um síndrome de negação (não psicótica) pervasiva da gravidez aquando da prática dos factos, o que, a não acarretar a sua inimputabilidade temporária ou acidental, necessariamente implicaria a sua imputabilidade diminuída ou outro tipo de atenuante da sua conduta.
Conforme acima se deixou antecipado, nos termos do artigo 434.º, do CPP, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que o conhecimento das questões em matéria de facto se encontra esgotada pela apreciação a esse respeito realizada pelos tribunais de 1.ª Instância e da Relação do Porto, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).
A questão, renovadamente suscitada pela recorrente, sobre a validade, a regularidade ou a “autoridade” do relatório de Psiquiatria Forense realizada nos autos, com os aditamentos e esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito do INMLCF, I.P. na sessão da audiência de julgamento de ...-...-2024, não se podendo colocar enquanto problema de invalidade processual – circunscritas a diligências e atos processuais – poderia, quando muito, conceber-se como uma questão de inatendibilidade de tal meio de prova, ao menos de acordo com o estatuto epistemológico que lhe é legalmente reconhecido nos termos do art. 163.º do CPP, ou seja, desprovido do reforçado e específico valor de prova pericial.
Nessa medida, poderia a resposta a tal questão lançar-se no quadro da relevância probatória de tal perícia, podendo, por isso, contender indiretamente com a decisão em sede de matéria de facto, exercício que, neste momento e nesta instância recursiva se mostra intempestivo e, por isso, inviável a sua apreciação.
No acórdão recorrido – do TRP – foi, a tal respeito, considerado o seguinte:
«Ainda ante o aludido procedimento seguido pelo tribunal e a posição assumida pela defesa após a audição do Sr. Perito, revela-se totalmente injustificada, contraditória, e até incompreensível, a alegação recursória produzida no sentido de dever ser realizada nova perícia, além de manifestamente infundada, como também infundada se mostra a pretensão de não ser conferida força probatória ao relatório pericial.
Depois, no que respeita ao teor dos esclarecimentos complementares prestados na audiência pelo Sr. Perito, assinala-se que confirmaram ter a perícia levado em consideração todos os elementos disponíveis no processo, incluindo os dados clínicos de psicologia e psiquiatria (o que constava já o relatório de ...-...-2024), tendo sido, por isso, ponderada a informação resultante da psicologia (cfr. minutos 00:04-00:05; 00:10-00:11, do dia ...-...-2024). Acresce ainda que o Sr. Perito justificou os motivos que levaram a afastar a possibilidade de a arguida se encontrar, na data dos factos, afetada por perturbação psíquica com influência na perceção, discernimento e avaliação dos seus atos (cfr. minutos 00:18-00:19, do dia ...-...-2024), mais explicitou as razões, nomeadamente os indícios que decorrem da organização do parto, que justificam o afastamento da possibilidade de existência de quadro de negação não psicótica pervasiva da gravidez (cfr. minutos 00:36-00:38, do dia ...-...-2024), conforme também se mostra, ampla e criteriosamente, analisado na motivação de facto constante do acórdão recorrido.
Em face do exposto, conclui-se que a prova indicada no recurso e a argumentação aí aduzida não determinam a modificação de facto propugnada no recurso (cf. artigo 412.º, n.º 3, do Código Processo Penal).
Por conseguinte, carece de fundamento a impugnação, sob este prisma, da decisão sobre os factos provados 4 a 7, 16, 31 a 37.
Ainda em decorrência do que alegara sobre a prova pericial, no pressuposto de não ser conferida força probatória ao relatório pericial, a recorrente sustentou que o tribunal, face à falta de prova em sentido contrário e fazendo uso do princípio in dubio pro reo, teria de considerar que a arguida agiu sob a influência perturbadora do parto, determinando a sua condenação pela prática do crime de infanticídio.
Vejamos.
Como se sabe, o invocado princípio probatório, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, CRP), com aplicação em sede de fixação dos factos objectos de um processo penal, opera quando a livre apreciação da prova, com respeito pelo princípio da legalidade das provas, conduz à subsistência de dúvida razoável e insanável sobre os factos e impõe que, nesse caso, o tribunal decida a favor do arguido.
Portanto, somente a existência de dúvida razoável e insanável quanto à verificação de certa factualidade admite a aplicação do mesmo princípio, o que não ocorre no caso presente, posto que não se retira da motivação de facto a presença de qualquer dúvida que tenha surgido no espírito do julgador sobre a factualidade imputada à arguida, tampouco adveio da reapreciação da prova nesta sede.
Ademais, a alegação recursória não justifica a existência de dúvida quanto à matéria de facto relativa à componente subjetiva da atuação da arguida, antes se baseia em conjetura sobre o que sucederia se o tribunal tivesse proferido decisão sobre a prova pericial no sentido propugnado pela recorrente.
Neste conspecto, revela-se manifestamente inconsistente e infundada a invocação do princípio in dubio pro reo.»
Não podemos deixar de corroborar uma tal fundamentação, por parte do tribunal recorrido.
Por outro lado, conforme refere o Senhor Procurador-geral-adjunto junto deste STJ no seu parecer,
“(…) ao insistir em discutir o (acrescido) valor probatório do relatório de perícia psiquiátrica em questão [relatório de ........2024 do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, complementado pelo relatório de ........2024 e pelos esclarecimentos prestados pelo Sr. perito psiquiatra durante a sessão de julgamento de ........2024] e, nessa decorrência, as conclusões alcançadas quanto à matéria de facto assente, neste caso, como se assinala no acórdão recorrido, quanto «componente subjetiva das condutas imputadas à arguida, que o recurso visa afastar com base na existência de prova de a arguida padecer, na data dos factos, de uma perturbação de cariz psicológico designada como negação não psicótica pervasiva da gravidez, que a impedia de tomar a decisão de não revelar a gravidez, de percecionar o nascimento do bebé com vida e de tomar a decisão de lhe tirar a vida» (antepenúltimo parágrafo da pág. 43 do acórdão do Tribunal da Relação do Porto), a recorrente mais não faz do que manifestar a sua discordância quanto à apreciação da prova e ao julgamento da matéria de facto esquecendo-se que essas matérias extravasam os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.
Na verdade, de acordo com o art. 434.º do Código de Processo Penal [v. também o art. 46.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.08.2013)], com ressalva das hipóteses previstas nas als. a) [recurso de decisões das Relações proferidas em 1.ª instância] e c) [recurso direto de acórdãos finais do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos] do n.º 1 do art. 432.º do Código de Processo Penal, que aqui não se aplicam, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.”
Sem embargo de também se aderir a este entendimento, ainda assim cremos que se justificará adscrever algumas considerações que demonstrarão a insubsistência da pretensão da recorrente, nesta concreta questão. Por outro lado, ainda, sem pretender emitir um juízo definitivo no “contencioso” sobre tal meio de prova, pode, efetivamente, considerar-se que o relatório inicial da referida perícia não terá observado integralmente o preceituado no Guia de Boas Práticas para a realização de perícias de Psiquiatria Forense, emitido em ...-...-2022, pela Direção da Secção de Subespecialidade de Psiquiatria Forense (SSPF) do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, de que o tribunal de 1.ª Instância tomou conhecimento aquando do requerimento da arguida para realização de uma “2.ª Perícia”, a realizar por perito distinto.
Todavia, na audiência de julgamento, após a realização da Perícia de Psiquiatria Forense requerida e determinada, o relatório respetivo – sendo a primeira versão datada de ...-...-2024 – conheceu dois outros momentos, tendo o tribunal de 1.ª Instância solicitado esclarecimentos por escrito, relativamente à matéria dos Quesitos anteriormente colocados, por despacho do Senhor juiz Presidente na sessão de ...-...-2024; ainda perante a não cabal satisfação de tal solicitação, através do relatório adicional de ...-...-2024, foi o Senhor Perito, Dr. BB, ouvido em declarações na sessão de audiência de julgamento de ...-...-2024, de forma que consentiu ampla discussão e contraditoriedade por parte de todos os sujeitos processuais, mormente do Senhor Advogado da arguida. No termo de tais declarações, o tribunal de 1.ª Instância considerou-se satisfatoriamente esclarecido e indeferiu a segunda Perícia de Psiquiatria Forense requerida pela arguida.
Tal despacho não foi objeto de impugnação por qualquer dos sujeitos processuais, tendo, porém, a arguida voltado a suscitar a “invalidade” de tal meio de prova no âmbito do recurso da decisão final, interposto para o TRP.
Em suma, apesar de a perícia de Psiquiatria Forense ter sido elaborada e produzida em três “momentos” bem precisos (relatório inicial, relatório complementar e esclarecimentos adicionais do Senhor Perito) – materializando-se num processo dinâmico, sujeito a amplo contraditório e dialética (designadamente na sessão de audiência de discussão e julgamento de ...-...-2024) –, não pode dizer-se que, por tal facto e pela circunstância de não terem sido escrupulosamente observados as indicações da Recomendação para a realização de Perícias de Psiquiatria da Direção da Secção de Subespecialidade de Psiquiatria Forense (SSPF) do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, tal meio de prova não possa funcionar como perícia e com o inerente valor probatório. Note-se, a este propósito, que tal documento se trata de uma “Recomendação”.
Os défices de um conteúdo formular ou “canónico” do relatório pericial mostram-se supridos, quer pelo relatório complementar, quer pelos esclarecimentos do Senhor Perito.
Cumpre sublinhar que a perícia psiquiátrica realizada é especialmente disciplinada pelo disposto nos artigos 3.º e 24.º da Lei n.º 45/2004, de 19-08.
Impõe-se, igualmente, referir que a oportunidade da realização da perícia – dezoito meses após a prática dos factos – e o facto de o Perito no seu relatório não ter discutido e, como tal, afastado outras hipóteses clínico-psiquiátricas da afetação da arguida aquando da prática dos factos, não são circunstâncias idóneas para abalar o seu valor probatório: a perícia foi realizada quando foi entendido ser necessária pelo tribunal de 1.ª Instância – confirmando o seu resultado a anterior convicção do titular da ação penal sobre a não afetação do estado mental da arguida – e, por outro lado, o Senhor Perito médico não divisou hipóteses alternativas de diagnóstico – designadamente de denegação pervasiva (não psicótica) da gravidez, por disso não ter observado quaisquer indícios. Teria o Senhor Perito de discutir uma “não-alternativa”, perante a sua observação? Teria de equacionar, dessa forma, todas as “não-alternativas”?
O Senhor Perito logrou esclarecer o tribunal de 1.ª Instância de que não se detetou na atuação criminalmente relevante da arguida, qualquer indício de anomalia psíquica, estado psicótico ou dissociativo, ou de perturbação ou de desorganização de personalidade, que o levassem a concluir, em termos técnico-científicos, por um estado de alteração psíquica, ainda que transitório, que lhe retirasse a capacidade para avaliar o carácter proibido dos atos que praticou, ainda que de forma diminuída, ou para se determinar de acordo com essa avaliação (cfr. Quesitos 2.º e 3.º formulados pelo tribunal na sessão da audiência de julgamento de ...-...-2023).
É certo que a testemunha OO, ao prestar depoimento evidenciou o conhecimento de factos em momento mais próximo da ocorrência dos factos e, dada a circunstância de se tratar de Psicóloga, poderia refletir um testemunho credenciado sobre o estado mental ou psicológico da arguida, aquando de tal momento. Porém, não passa de um depoimento testemunhal, certamente qualificado, mas com o seu valor e significado próprios, podendo, de resto, ter concorrido para a decisão de esclarecer pericialmente as interrogações sobre eventual afetação do estado mental da arguida.
Contudo, não poderia, no nosso sistema probatório, o teor de um tal depoimento – por muito credenciado e isento que seja, o que não pomos em dúvida – invalidar as conclusões de um relatório pericial ou, sequer, provocar dúvidas sobre o mesmo, de modo a desconsiderar o seu valor probatório, por via do princípio in dubio pro reo (neste sentido, cfr. Ac. STJ de 16-10-2013; rel. Cons. Santos Cabral, disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2013:36.11.6PJOER.L1.S1.33?search=3KYsnvv-FAX-RHg38JU).
Em suma, a arguida pretende que o relatório pericial de Psiquiatria Forense e as respetivas conclusões, teriam se ser desatendidos, por não satisfazerem as recomendações do departamento competente da Ordem dos Médicos, por tal perícia ter sido realizada cerca de 18 meses após a prática dos factos e por colidir com a opinião de uma testemunha inquirida em sede de julgamento.
Como tentámos demonstrar, tais objeções, que foram já oportunamente objeto de apreciação pelo tribunal recorrido, no sentido negativo, mostram-se improcedentes.
A questão colocada pela recorrente poderia, abstratamente, assumir eventual relevância no quadro de uma virtual violação do princípio da livre apreciação da prova, âmbito também excluído dos poderes de cognição deste STJ, nos termos do art. 434.º do CPP, dado não se verificar qualquer vício do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
A relevância do conteúdo do depoimento da Senhora Dra. OO, não poderia ser valorado enquanto prestado na qualidade de Expert Witness, uma vez que está pressuposto que tais “testemunhas” fornecem o seu testemunho sem ter contactado previamente com os factos ou tido uma conexão direta e pessoal com os mesmos, o que não é o caso da referida testemunha (cfr., neste sentido, Teresa Cândido Oliveira, A Figura da Expert Witness no Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2023, p. 222). Não poderia, assim, o referido conteúdo do seu depoimento neutralizar o resultado e o valor da perícia e do conteúdo do respetivo relatório. Mas, ainda que tal sucedesse, não poderia assumir tal depoimento o mesmo valor probatório da perícia, antes se devendo avaliar criticamente no contexto probatório globalmente produzido em sede de audiência e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Importa lembrar, a este respeito, que a conceção básica do nosso sistema probatório é a de que não há qualquer modelo de “prova tarifada”, em que o legislador enumere as circunstâncias em que se deva dar como provado, ou não provado, um determinado facto.
Vigora, antes, como se presume ser um dado adquirido, um sistema norteado pelo princípio da livre apreciação da prova, plasmado nos artigos 125.º e 127.º do CPP, em que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Ora, o princípio da livre convicção é um trivial princípio metodológico negativo, que consiste em rejeitar as provas legais como suficientes para dar como provado certo(s) facto(s), assim se evitando que se tenham como provados certos factos e que não se tenham como provados outros, sem que tal corresponda à realidade, só porque se obedeceu a um comando do legislador.
Porém, uma conceção de livre convicção obtida na «intimidade da livre consciência» ou «libérrima», «decisional» compreende, hoje, uma leitura subjetivista inaceitável.
Aquelas normas consagram o critério de valoração da prova em processo penal, que ao invés de ser um critério de prova legal – em que é o legislador a predefinir a admissibilidade, a espécie e o valor das provas –, é um critério de “prova livre”: a apreciação da mesma é, em princípio, deferida ao critério do intérprete e aplicador, de acordo com as regras da experiência comum e da sã racionalidade e a convicção livremente fundamentada daquele.
A livre convicção não pode, pois, significar que seja um processo discricionário, arbitrário ou de puro subjetivismo, mas, sim, que o processo de valoração (e de convicção) do julgador tem de ser racionalmente fundamentado e motivado, sem que se atenda a um padrão epistemológico predeterminado pelo legislador, a não ser em casos particulares, como, p. ex., na prova pericial (art. 163.º, n.º 1, do CPP), cujo valor tem um regime específico, presumindo-se subtraído ao princípio da livre apreciação. Há de ser, todavia, uma convicção ancorada numa motivação racionalmente fundamentada, passível de poder ser escrutinada e objeto de recurso pelos sujeitos processuais afetados pela decisão. E à qual devem estar subjacentes raciocínios de tipo indutivo, que permitam medir o grau de probabilidade de confirmação do enunciado probatório a decidir, designadamente a partir da coincidência de indícios (ou de prova indireta dos factos), da sua corroboração e da não infirmação, da plausibilidade, da credibilidade da prova pessoal produzida, que formem um arco de probabilidade epistemológica conclusiva, de forma processualmente válida, e não uma certeza ontológica. Essa conceção encontra, obviamente, o óbice das proibições de prova (artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do CPP).
A formação da convicção implica o recurso à inteligência discursiva e à inteligência intuitiva e emocional, mas esta, que era bastante no sistema de íntima convicção, é apenas instrumental no sistema de livre apreciação da prova, constituindo parâmetro de filtragem crítica, no sentido da possibilidade de serem incompatíveis ou impossíveis de verificação os factos aparentemente provados. A fundamentação objetiva e o exame crítico das provas é que permitem basear a convicção sobre a prova dos factos para além da dúvida razoável, conferindo legitimidade e autoridade ao juízo sobre a realidade factual processual, produzida de acordo com as regras legais.
Ora, o tribunal a quo – ao confirmar o que no tribunal de 1.ª Instância se havia decidido – não recorreu a qualquer tipo de prova que não fosse permitida, nem a tal se refere a recorrente.
Na definição do art. 388.º do C. Civil, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. Por outro lado, segundo o art. 151.º do CPP, a prova pericial tem lugar quando a perceção ou apreciação dos factos exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. A perícia é, assim, a atividade de perceção ou apreciação dos factos probandos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
De acordo com José Alberto dos Reis, a função característica da testemunha é narrar o facto e a do perito é avaliar ou valorar o facto, emitir quanto a ele juízo de valor, utilizando a sua cultura e experiência (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra, Coimbra Ed., 1981, p. 161).
A regra geral, relativa ao valor probatório das perícias, de que se presume subtraído à livre convicção do magistrado o juízo técnico, científico e artístico inerente àquelas, com obrigação de fundamentação de eventual divergência, foi indicada na Lei n.º 43/86, de 26-09 (Lei de Autorização Legislativa, da qual emergiu o CPP de 1987) e veio a ser consagrada no art. 163.º do CPP.
Germano Marques da Silva entende que “Por sua vez, o artigo 163.º determina que «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador» (n.º 1) e «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência» (n.º 2).
Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para valoração da prova, seria incompreensível que admitisse depois que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza” (Direito Processual Penal Português – Teoria da Prova, tomo I - 2, Lisboa, UCP Editora, 2024, p. 129).
Não pode, assim, um depoimento testemunhal – ainda que prestado por uma testemunha credenciada e isenta – colocar em causa o teor do relatório e conclusões periciais, para mais não dominando integralmente o/a seu/sua autor/a a área técnico-científica da perícia realizada (Psiquiatria Forense).
Na verdade, a prova pericial não tem um valor de certeza absoluta ou ontológica, e menos ainda irreversível, mas a sua eventual invalidade ou colocação em causa, tem de ser baseada em prova de idêntica natureza, face a considerações de ter sido utilizada uma inadequada metodologia ou de as conclusões extraídas não se poderem ancorar nos pressupostos existentes (assim, Ac. do STJ de 01-10-2008, rel. Cons. Raúl Borges, disponível em: https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2008:08P2035.11?search=CF5WeYQRzkqMn0qoY4g).
A convicção – e subsequente decisão – do tribunal recorrido, ao confirmar o acórdão do tribunal de 1.ª Instância, no tocante à questão da in/imputabilidade, não podendo deixar de atender ao conjunto de critérios que norteiam o princípio da livre apreciação da prova, foi necessariamente também formada com apelo ao valor da prova pericial, i. e, ao relatório de perícia psiquiátrica, que não foi validamente posto em causa.
É esse mesmo entendimento que vem expresso no já citado Ac. do STJ de 16-10-2013; proc. n.º 36/11.6PJOER.L1.S1, rel. Cons. Santos Cabral (in https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2013:36.11.6PJOER.L1.S1.33?search=3KYsnvv-FAX-RHg38JU), em que se apreciou situação análoga à dos autos quanto ao relevo probatório de um depoimento testemunhal versus dois relatórios periciais, um de Psiquiatria Forense e outro de Personalidade:
«Fixa-se, assim, o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico apresentado pelo perito o qual obriga o julgador. Significa o exposto que a conclusão a que chegou o perito só pode ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (nº 2do art. 165º).
A prova pericial é valorada pelo julgador em três níveis distintos: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão. Quanto à validade formal deve apreciar se a prova foi produzida de acordo com a lei ou se não colide com proibições legais. Assim, é necessário verificar sobre a regularidade dos procedimentos como é o caso da notificação do despacho que ordenou a prova (nº 3 do art. 154º), ou, ainda, da prestação do devido compromisso (nº 1 do art. 156º).
No que concerne aos factos estamos em face de uma premissa em relação a qual o julgador, dentro da sua liberdade de apreciação pode divergir do facto, ou factos, de que arranca a perícia pois que, a seu respeito, tem entendimento diferente.
A presunção a que alude o nº 1 do art. 163º do Código de Processo Penal apenas se refere ao juízo técnico-científico e não, propriamente, aos factos em que o mesmo se apoia.
Assim, a necessidade de fundamentar-se a divergência só se dará quando esta incide sobre o juízo pericial. Aceitando-se o juízo científico quanto à perícia o Tribunal tem, todavia, o poder de livre apreciação quanto aos elementos de facto que o informa
No caso vertente, e face ao exposto, a argumentação do recorrente não tem continuidade em qualquer umadas suas vertentes. Na verdade, por um lado a decisão recorrida não encontrou razão para colocar em crise os factos de que emerge a conclusão pericial e, excluída, a possibilidade de um erro notório na apreciação de tais factos e susceptível de integrar o normativo do artigo 410 do CPP, não tem este Supremo Tribunal de Justiça que sindicar a correcção os mesmos factos.»
No caso dos autos, o tribunal de 1.ª Instância «(…) atentou na globalidade da prova produzida em audiência e discussão e julgamento, a qual teve na sua génese os seguintes elementos: as declarações prestadas pela arguida AA; as declarações prestadas pelas testemunhas que se apresentaram a depor (PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, ZZ, GG, DD, AAA, BBB, CC, CCC, OO, MM, NN, e DDD); pelas declarações de peritos (EEE e BB); a prova pericial realizada, esta com a força probatória que lhe é reconhecida pelo preceituado no artigo 163º, nº1, do Código de Processo Penal; no relatório social da Arguida, enquanto “informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o Juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos” no Código de Processo Penal – artigo 1º, al. g); todos os documentos coligidos nos autos e do certificado de registo criminal, relativamente à ausência de condenações anteriores.»
Atribuiu, no seu acórdão recorrido, relevância ao especial valor probatório inerente ao juízo pericial realizado. Nessa medida, desvalorizou relativamente o depoimento da testemunha OO, apesar de reconhecer o mesmo como isento e informado por especiais conhecimentos da área de Psicologia.
Fê-lo de uma forma objetiva e ponderada, de acordo com um juízo crítico na apreciação das provas produzidas, relativamente ao qual não nos é permitido exercer qualquer censura, por se conter dentro dos critérios e parâmetros de validade e legalidade de apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência e da sã racionalidade.
O suposto – mas não demonstrado – estado de afetação mental da arguida aquando da prática dos factos não teria como efeito, na sua própria construção, implicar a sua consideração como inimputável, antes se podendo, na sua perspetiva, subsumir à previsão do art. 136.º do CP, de «influência perturbadora» pós-parto, hipótese que em seguida se apreciará.
Por tudo quanto se expôs, improcede, neste segmento, o recurso da arguida AA.
13.
ii) Errada qualificação dos factos como crime de homicídio qualificado pelas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal – Conclusões 29.ª a 36.ª
A conduta da recorrente foi fortemente indiciada pela Senhora juíza de instrução – após o primeiro interrogatório judicial de arguida, em ...-...-2023 – e objeto de acusação pelo Ministério Público, na acusação deduzida, além do crime de profanação de cadáver, por um crime de homicídio qualificado p.p. nos termos dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) (vítima descendente do agente), c) (vítima “pessoa indefesa”) e j) (frieza de ânimo), do Código Penal.
Todavia, foi condenada, pelo tribunal coletivo de Aveiro, como autora material, além do crime de profanação de cadáver, por um crime de homicídio qualificado p.p. nos termos dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) (vítima descendente do agente) e c) (vítima “pessoa indefesa”) do CP.
A recorrente ensaia parte da sua argumentação pretendendo demonstrar que a sua conduta não integra a previsão das circunstâncias qualificativa das alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 132.º do CP, mas, antes, o tipo de crime de infanticídio, p. p. no art. 136.º do CP.
Faz apelo às seguintes considerações:
«(…) o aresto recorridoenferma de erro de Direito, quando considera estarem reunidos factos integrantes dos tipos incriminadores previstos nos artigos 131º e 132º nº 1 do Código Penal, que assim violou, pois que não está provado o dolo, a especial censurabilidade ou perversidade do agente.»
Em seguida, voltando a questionar o valor probatório da perícia realizada, alega que agiu debaixo de influência perturbadora pós-parto:
«Salvo melhor opinião, a referida perturbação – denegação pervasiva da gravidez - preenche os elementos do artigo 136º do CP que dispõe “A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos”, pelo que devia ter ocorrido uma alteração da qualificação jurídica.
(…)
A parturiente, apesar de não se encontrar na plena posse das suas faculdades mentais, sabe que o que fez foi errado. A Arguida não se trata de um agente inimputável, pois ainda há um controlo das suas acções.
A anomalia psíquica da qual a gestante padece no momento do homicídio do recém-nascido é o conjunto da negação da gravidez com o pânico do momento do parto.
O estado dissociativo que acomete a parturiente no momento do parto é suficiente para preenchimento do conceito “influência perturbadora do parto”, pois é precisamente o parto, por se afigurar como um momento de pânico e que não pode ser pela mulher controlado que desencadeia o estado dissociativo, sobre o qual é levada ao homicídio do recém-nascido.
A responsabilidade da Arguida não é plena pelo facto praticado, na medida que a capacidade de reflexão se encontrava diminuída.
A negação não psicótica pervasiva da gravidez e o estado dissociativo não são doenças mentais que geram inimputabilidade, mas são estados transitórios com reflexos na consciência do sujeito, que justificam uma imputabilidade diminuída.
É normal, nestes casos que a parturiente abandone o nascituro, confusa com o que aconteceu, retomando assim a actividade anterior e em consequência desse abandono vir o nascituro a falecer.
Defendemos que a morte do recém-nascido foi resultado de um crime de infanticídio, p.e.p. pelo artigo 136º do CP, punido com pena de prisão de um a cinco anos, sendo certo que, de acordo com o disposto no artigo 50º do CP, estão reunidos os pressupostos de tal medida alternativa à prisão e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o tempo máximo de suspensão legalmente previsto, até tendo em consideração o disposto no Relatório Social elaborado e a ausência de antecedentes criminais de qualquer natureza.»
Apesar de a recorrente aparentemente se ter conformado com a decisão sobre matéria de facto, no tocante à demonstração da conduta objetiva por si empreendida, critica a decisão recorrida de confirmar o acórdão de 1.ª Instância relativamente à decisão respeitante ao elemento subjetivo do crime: intenção – livre e deliberada – de tirar a vida do seu filho recém-nascido. Entende a recorrente que agiu no quadro de uma perturbação, acidental ou transitória, que lhe retirou o discernimento e capacidade de avaliação da ilicitude da conduta e de se determinar de acordo com a mesma.
A motivação e demonstração da convicção pelo tribunal de 1.ª Instância – sancionado pelo acórdão recorrido do TRP –, relativamente à matéria de facto, como já se pôde intuir, não só não merece censura em termos de ocorrência de nulidades ou de vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, como nos parece isenta de qualquer censura. Idêntico juízo se formula no sentido da motivação jurídica da qualificação do crime de homicídio, que se mostra feita criteriosamente, sem lapsos, nem incoerências ou insuficiências.
A esse respeito, ali se refere que:
«(…) como mãe experiente que é, sabendo do facto de ter mantido relações sexuais sem métodos anticoncepcionais, e com ausência de período menstrual desde então, teria de saber estar grávida. Tanto mais que terceiros levantaram tal possibilidade, levando a Arguida a colocar o post descrito em fls. 79. A propósito desta matéria atentou-se ainda no depoimento crível de DD, a qual questionou directamente a Arguida se estaria grávida, tendo a mesma respondido negativamente.
(…)
DD, após conhecimento do post acima referido, efectivamente questionou a Arguida se estaria grávida, tendo a mesma respondido que não. Assim, pelo menos a partir desse momento, a Arguida teria que suspeitar, ou saber como efectivamente sabia, do seu estado. Ainda assim, a Arguida negou sempre tal situação, incluindo ao bombeiro que a assistiu no fatídico dia, como claramente resulta da informação carreada para os autos em .../.../2023 pelo INEM Gabinete Jurídico – cfr. “descrição dos trabalhos desenvolvidos”.
(…)
No que respeita aos factos provados 31 a 38 atendeu-se aos factos objectivos praticados pela Arguida, em conjugação com as regras da experiência comum e com o resultado da perícia psiquiátrica realizada nos autos, em conjugação, no caso com valoração negativa, do depoimento de OO.
Assim, resultou inelutavelmente demonstrado que a Arguida é mãe de duas crianças. Ou seja, não é completamente neófita em termos de natalidade. Tem a plenitude da experiência da maternidade, leia-se gravidez, como a mesma se espoleta, quais os sintomas que inculca, e de forma mais preponderante o que sucede com o avizinhar do parto.
No caso sub iudice, nota-se que a gravidez e funesto destino que lhe adveio não se tratou de uma primeira gravidez, de uma mãe que não o sabia ser, completamente alheia às mudanças fisiológicas que ocorrem. Ao contrário, a Arguida passou por duas gravidezes, com todo o conhecimento e experiência que daí advêm.
Dito isto, cremos resultar com meridiana clareza que a Arguida conhecia e sabia estar grávida.
(…)
Questão fulcral e que motivou a perícia de .../.../2024 foi a de saber se a Arguida na data dos factos estaria na plenitude das suas capacidades psicológicas, se tinha capacidade para avaliar o carácter proibido dos actos, ainda que de forma diminuída, ou para se determinar de acordo com essa avaliação, em síntese se seria imputável, ou não.
Com efeito, OO, Psicóloga dos ..., e que acompanhou a Arguida, sustentou em audiência de discussão e julgamento que a Arguida, na data da prática dos factos, estaria num estado a que chamou de não consciência de gravidez. Num estado de negação não psicótica pervasiva da gravidez, por contraponto aos estados de negação afectiva da gravidez (em que a mulher sabe estar grávida, mas oculta) e negação persistente da gravidez (em que a percepção da gravidez já é muito tardia). Não obstante, no primeiro contacto com a Arguida (em .../.../2022) a Testemunha ter sustentado um “quadro de negação persistente da gravidez” – cfr. fls. 809.
(…)
Por forma a clarificar, ainda mais, as conclusões ali descritas, solicitaram-se esclarecimentos em sede de audiência de discussão e julgamento ao Exmo. Sr. BB, tendo o mesmo, de forma peremptória, referido que não existem indícios suficientes para obstar ao alcance dos actos; não haver indícios de perturbação da personalidade, na medida em que levou em consideração todos os dados de psiquiatria e psicologia; não existem indícios de diagnóstico que limitasse a capacidade da Examinanda.
Esclareceu, ainda, que para concluir por alguma perturbação teria que existir sintomatologia psicótica, a qual não verificou, face ao comportamento encetado antes e depois dos factos, pela organização do comportamento do, comportamento do período anterior, do estado de humor, da ansiedade, ou falta dela, da confusão, ou sua ausência, em síntese do comportamento globalmente coerente e organizado que a Arguida teve, factos que avaliou para concluir como concluiu.
Ademais, de acordo com os elementos que analisou e quando a Arguida foi vista, teria que existir um estado dissociativo que também não se verificou, tal como amnésia selectiva, razão pela qual concluiu nos termos sobreditos.
Por último, questionado, afirmou inexistir alteração de consciência, afastando a existência de negação pervasiva da gravidez, porquanto no parto sugere-se organização e planeamento contrário a esse estado.
(…)
Daí que DDD, médica do ... que assistiu a Arguida aquando a hemorragia vaginal derivada do parto, a tenha encontrado consciente e orientada, sem qualquer estado de confusão, pese embora o estado de nervosismo, choro e preocupação pelos seus (outros) filhos.
Perante este resultado pericial, ante o exposto no artigo 163º, nº1, do CPP, uma vez que o Tribunal não tem razão de ciência, ou conhecimento técnico, passível de fundamentar uma divergência, entendeu-se conferir completa força probatória à apontada perícia e seus esclarecimentos, para dessa forma considerar que a Arguida, na data da prática dos factos, estava plenamente dotada das suas capacidades de avaliação da sua conduta, de se autodeterminar de acordo com essa avaliação, e de agir de forma por que o fez, sabendo da punibilidade da sua conduta, na medida em que quer a proibição de matar, quer a proibição da profanação de cadáver, estão perfeitamente enraizadas na sociedade.
E nessa esteira, desconsiderar o depoimento de OO, ainda que se reconheça que tal testemunha é dotada de conhecimentos específicos sobre a matéria em causa, não obstante a sua razão de ciência tenha sido pericialmente afastada.
De facto, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, crê-se ser inelutável a intenção de matar, tal como imputado à Arguida.»
Essa conclusão viria a ser confirmada pelo acórdão recorrido, do TRP, que apreciou igualmente a questão, suscitada no recurso para aquele tribunal, da aplicação do art. 16.º, n.º 2, do CP.
«Conforme resulta do explanado supra, a matéria de facto julgada provada no acórdão recorrido manteve-se inalterada, ante o insucesso da impugnação de facto deduzida neste recurso, aliás, com tal impugnação pretendia a recorrente que os factos impugnados (factos provados 2 a 7, 11, 16, 31 a 37) fossem incluídos na matéria não provada, jamais tendo formulado pretensão de se julgar provada a ora invocada errónea representação da realidade derivada de alegada perturbação do seu estado mental.
Ora, perante a factualidade provada resulta nitidamente excluído o circunstancialismo alegado pela recorrente, que ali não alcança qualquer correspondência, ao invés a matéria de facto provada contraria totalmente a existência da invocada falsa representação da realidade pela arguida de que o seu filho nasceu morto, como, aliás, assim sucede quanto ao alegado estado mental da mesma.
Assim, carece, em absoluto, de fundamento a convocação, no caso, da norma do artigo do artigo 16.º, n.º 2, do Código Penal, sendo inequívoco que não se verificam os pressupostos para a sua aplicação.»
Dadas as circunstâncias objetivas em que decorreu a gravidez, não sendo a arguida primigesta, antes tendo tidos duas anteriores experiências de gestação e puerpério (teve outros dois filhos), não podia ignorar as alterações fisiológicas que ocorreram durante a gravidez do terceiro filho, como a falta de menstruação e outras modificações corporais, que procurou disfarçar com roupas largas (ponto 7.7. dos factos provados), não só não revelando tais sinais a ninguém como pretendendo desmentir tal estado, com a publicação no dia ... de ... de 2022, pelas 13h39, no seu perfil do Facebook (ponto 9.9. dos factos provados) e com a resposta dada à testemunha DD, em que negou estar grávida.
Essas circunstância, caso a arguida não se tivesse ainda apercebido do estado de gravidez (perto de 34 semanas), eram idóneas a fazê-la, então, interrogar-se sobre se estaria, ou não, grávida, dispondo de recursos e meios para se certificar. Lembre-se que, além das suas anteriores experiências de gravidez, a própria atividade profissional da arguida lhe permitia o acesso a conhecimentos e a cuidados médicos visando a completa dilucidação sobre a realidade do seu estado.
Não vemos, assim, razões que decisivamente nos levassem a distanciar-nos das conclusões a que nessa matéria chegaram as instâncias, reconhecendo-se um exercício de fundamentação de motivação da convicção enformado pelas regras da experiência e por critérios de sã racionalidade, reforçados no caso concreto pela relevância do especial valor probatório do relatório e conclusões periciais produzidos.
Em sede de fundamentação jurídica, quanto à qualificação jurídica dos factos, o tribunal recorrido discorre acerca das alternativas, plausíveis, sugeridas pela arguida, no sentido em que os factos poderiam integrar o crime de infanticídio, assentando em que:
«(…) perante a factualidade provada resulta nitidamente excluído o circunstancialismo alegado pela recorrente, que ali não alcança qualquer correspondência, ao invés a matéria de facto provada contraria totalmente a existência da invocada falsa representação da realidade pela arguida de que o seu filho nasceu morto, como, aliás, assim sucede quanto ao alegado estado mental da mesma.
Assim, carece, em absoluto, de fundamento a convocação, no caso, da norma do artigo do artigo 16.º, n.º 2, do Código Penal, sendo inequívoco que não se verificam os pressupostos para a sua aplicação».
(…)
5. Subsidariamente sustenta a recorrente que a conduta da arguida é subsumível no tipo de crime de infanticídio, previsto no artigo 136.º do Código Penal.
A alegação da recorrente baseia-se no pressuposto de que a arguida padecia da invocada negação não psicótica pervasiva da gravidez, manifestando, de novo, discordância relativamente à fundamentação de facto produzida no acórdão recorrido e defendendo a aplicação do princípio in úbio pro reo.
Vejamos.
O enquadramento jurídico dos factos opera quando se mostra definitivamente fixada a matéria de facto provada, por isso, carece de sentido e oportunidade a renovada discussão sobre a fundamentação de facto, como insistentemente pretende a recorrente, aliás, a aplicação do princípio in úbio pro reo foi já apreciada supra, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
Sucede que a alegação recursória baseia-se na existência de perturbação mental da arguida, na data dos factos, o que não encontra correspondência na matéria provada, por isso, toda a argumentação expendida no recurso mostra-se completamente desfasada da concreta factualidade apurada.
De resto, não merece censura o acórdão recorrido quanto à operada subsunção jurídica do comportamento da arguida que se descreve nos factos provados, ao tipo de crime de homicídio qualificado [p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal], o que a recorrente também não impugna.
Assim sendo, carece de fundamento o recurso quanto a este aspeto.
2.5- A recorrente, ainda no pressuposto de que deve ser condenada pela prática de um crime de infanticídio, p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal, pugna pela aplicação de pena de prisão não superior a cinco anos suspensa.
Vejamos.
Em face do decidido supra, mostra-se totalmente excluída a pretendida subsunção jurídica da apurada conduta da arguida no tipo de crime de infanticídio, p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal, donde também resulta totalmente prejudicada a alegação produzida e inviável a pretensão formulada quanto à medida da pena correspondente ao crime de homicídio qualificado [p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal], em que se enquadra tal conduta, dada a moldura penal aplicável a este ilícito (12 a 25 anos de prisão), e também quanto à suspensão da execução da pena [cf. Artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal].
Por conseguinte, o recurso é manifestamente improcedente, quanto a este aspeto.»
Afasta-se, assim, a suscetibilidade de os factos poderem consubstanciar a prática de outro crime, como pretendia e pretende a recorrente.
O caso vertente nos autos em nada se assimila, desde logo, em termos circunstanciais de facto, e de condição existencial do agente, à situação que foi objeto da decisão do Acórdão deste STJ de 14-07-2021 (rel. Cons. Paulo F. Cunha).
Dos elementos factuais demonstrados nos autos, ficamos habilitados a concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que a morte do recém-nascido decorreu do comportamento da arguida, a quem não pode deixar de ser imputado tal resultado.
Em tais circunstâncias, impõe-se indagar se a morte deve ser imputada a título de homicídio (simples, qualificado ou privilegiado) ou de infanticídio.
Conforme se refere no Ac. deste STJ de 19-04-2018 (proc. n.º 533/16.7PBSTR.E1.S1; rel. Cons. Helena Moniz), que documenta uma situação parcialmente semelhante à dos autos, «O simples facto de ocultar a gravidez ao longo de todo o tempo, de não ter procurado acompanhamento médico, o facto de negar a gravidez a quem sobre ela a questionava, o facto de ter realizado o parto sozinha, sem qualquer acompanhamento, não são suficientes para que se possa concluir que no momento logo após o parto tenha provocado a morte do recém-nascido livre de qualquer perturbação decorrente do parto, tanto mais que se encontrava só e sem qualquer apoio físico ou psicológico. É certo que esta solidão foi procurada pela arguida. É certo que o comportamento ao longo de toda a gravidez indicia alguma tentativa de afastamento psicológico da gravidez e uma tentativa de afastamento do estado de grávida, pese embora, inevitavelmente, o sentisse em si. Mas, se com isto podemos concluir que não pretendia assumir a gravidez, também nada nos impede de poder considerar que este afastamento auto-imposto não mais revela do que um sofrimento que atinge o seu ponto de exasperação logo após o parto quando se vê perante o recém-nascido.
(…)
Quantas gravidezes indesejadas ocorrerão sem que tenham culminado na morte dos recém-nascidos? E quantas gravidezes encobertas ocorrerão sem que exista qualquer decisão de matar o/a filho/a após o nascimento, mas pretendendo-se apenas evitar alguns contratempos sociais ou familiares que se adivinham, sem que mais tarde a vida faleça perante aqueles? Ou seja, não basta aprova de uma gravidez indesejada, negada e encoberta para que se possa concluir, sem mais, que existe um propósito ab initio e até ao limite de matar o recém-nascido.»
A ocultação da gravidez pode nem sempre conduzir à conclusão de que a gestante pretende matar o recém-nascido. Outras razões podem verificar-se, pelo que importa demonstrar se tal factualidade, seguida da provocação da morte do recém-nascido pela mãe no parto ou em momento subsequente, integra o crime de homicídio ou de infanticídio.
Para que se considere estar-se perante um crime de infanticídio, previsto no art. 136.º, do CP, é necessário que a mulher tenha atuado sob a influência perturbadora do parto e tenha praticado o infanticídio durante ou logo após o parto. Quer se analise esta determinação da conduta como um elemento da tipicidade da conduta, ou como um elemento relevante em sede de culpa do agente, o certo é que “o estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g., por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher), como exogenamente (pelo particular peso que para a mãe assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente – v.g. a supra aludida “desonra” – ou economicamente fundada)” (Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, art. 136.º/ § 4, p. 169).»
Para certos autores, como Figueiredo Dias e Nuno Brandão, o estado de perturbação constitui um elemento do ilícito típico, sendo determinante para conferir uma menor ilicitude ao facto, porque o seu entendimento como relevante ao “nível da culpa implicaria exigir um juízo autónomo de menor exigibilidade, que todavia, por não se encontrar legalmente previsto, violaria o princípio da legalidade” (ob. cit., art. 136.º/ § 5, pp. 169-170); para outros constitui um fundamento de uma culpa menor por ocorrência de uma menor exigibilidade (idem, e bibliografia aí citada).
Em qualquer dessas posições, a “conduta tem por isso de ter lugar durante o período que temporalmente se segue ao parto e durante o qual é razoável supor, segundo os pontos de vista objectivos dos conhecimentos da medicina, que a influência perturbadora deste pode ainda subsistir” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, art. 136.º/§ 11, pp. 171-172). Todavia, é necessário provar, igualmente, que a mãe atuou ainda sob a influência perturbadora do parto, valendo o princípio in dubio pro reo, o que significa que “verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada atipicidade do art. 136.º e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131.º ou 132.º” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, ob.cit., art. 136.º/ § 4, p. 172).
A arguida pretende, em suma, demonstrar que a sua alegação de ter sido afetada pela denegação (não psicótica) pervasiva da gravidez remeteria a sua conduta para a consideração de ter sido empreendida debaixo de uma influência perturbadora puerperal, o que integraria a circunstância típica do crime de infanticídio.
Sucede que tal conceito normativo não equivale a nenhum concreto conceito ou síndrome clínico-psiquiátrico, pelo que teria de ser integrado por recurso a outros elementos.
Assim sendo, para que se possa subsumir uma certa conduta ao crime de infanticídio torna-se necessário não só provar que a morte do recém-nascido, provocada pela mãe, terá ocorrido durante ou logo após o parto (o que decorre dos factos provados em 14), 16) e 17)), mas também que aquele comportamento foi determinado por uma influência perturbadora ligada ao parto.
Ora, o tribunal diligenciou pelo cabal esclarecimento de tal circunstância – ao determinar a realização da perícia psiquiátrica à arguida, que afastou tal eventualidade –, tendo excluído a sua verificação. O que determinou que de forma clara e inequívoca se tivessem dado como provados os factos 31. a 38. da fundamentação de facto do acórdão, nomeadamente a atuação deliberada da arguida (facto provado 38.), livre de condicionamentos internos ou externos.
O tribunal recorrido concluiu, assim, de forma que sancionamos, no sentido em que os factos provados integram o tipo de crime de homicídio qualificado pelo qual a recorrente foi condenada pelas instâncias.
O tipo de crime de homicídio qualificado do art. 132.º do Cód. Penal é um tipo de culpa agravada de homicídio em função da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada pelo recurso aos exemplos-padrão, tratando-se de um conjunto de circunstâncias de funcionamento não automático e não taxativo, o que emerge, desde logo, da formulação do n.º 1 do preceito: «É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…)» (negrito nosso).
Confrontado com a impossibilidade de se poderem prever todas as hipóteses e modalidades de circunstâncias das quais decorra especial censurabilidade ou perversidade na perpetração de crimes (de homicídio), o legislador penal defere para o critério do intérprete e aplicador a verificação de situações factuais suscetíveis de integrar aquela cláusula geral da «especial censurabilidade ou perversidade do agente» - art. 132.º, n.º 1 do Cód. Penal.
Tal construção permite, desde logo, a possibilidade de acolher uma motivação do agente que, não cabendo em nenhuma das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, ao abrigo da sua não taxatividade, se pode revelar de especial perversidade ou censurabilidade.
Ultrapassando aqui a decantada questão de saber se as circunstâncias dos exemplos-padrão configuram tipos especiais de ilícito ou tipos especiais de culpa, ou de natureza mista (cfr., por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5.ª ed. atualizada, Lisboa, UCP Editora, 2021, p. 553), o tribunal pode rejeitar a subsunção ao tipo “qualificado” de uma situação da vida formalmente subsumível a algumas das alíneas do n.º 2 do art. 132.º do CP, que não revele em si particular censurabilidade ou perversidade pressuposta pela qualificação. E, por outro lado, pode aceitar circunstâncias semelhantes às previstas, desde que reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade pressupostas pela qualificação.
O tribunal recorrido pronunciou-se concretamente sobre a natureza da especial censurabilidade da conduta, concluindo inequivocamente pela sua verificação.
Pensamos não se justificar qualquer crítica à conclusão a que se chegou.
Importaria não esquecer que a arguida, a pretexto de, alegadamente não se ter apercebido da gravidez, não preparou qualquer enxoval próprio para criança recém-nascida, não comunicou a ninguém a gravidez e negou-a, quando expressamente interpelada sobre essa hipótese, dessa forma denunciando uma inequívoca intenção de não assumir a maternidade (do terceiro filho), eventualmente, de se desfazer do filho após o seu nascimento e, aproximando-nos aos factos provados, de lhe tirar a vida, através de asfixia, bem como fazer desaparecer o seu corpo.
De igual forma, não podia deixar de prefigurar que qualquer criança sem cuidados pré-natais carece de especiais cuidados clínicos neonatais protocolares adequados.
Ou seja, a arguida estava ciente da circunstância de a vítima ser seu filho (descendente) e de se tratar de uma pessoa indefesa (ponto 35.35., da factualidade provada). O recém-nascido é sempre um ser humano indefeso e vulnerável – jurídico-processualmente, uma vítima especialmente vulnerável (artigos 131.º, 132.º, n.º 2, al. c), do CP e 1.º, alíneas j) e l) e 67.º, n.º s 1 e 3 do CPP –, a carecer de continuados cuidados mínimos de alimentação, conforto térmico e de higiene, quando não de natureza médica, sob pena de, não sendo fornecidos, incorrer em perigo de vida.
Impõe-se, por isso, concluir, como o fez o tribunal recorrido, pela formulação in casu, de um juízo de forte e acrescida censurabilidade da conduta provada da arguida.
No nosso ordenamento jurídico, o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio.
Para Teresa Serra, o homicídio qualificado é um caso especialmente grave de homicídio, pelo que é correto afirmar que este caso especialmente grave está totalmente referido ao tipo de homicídio simples previsto no artigo 131.º (Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Coimbra: Almedina, 2003, p. 81).
Figueiredo Dias, por seu turno, assume posição coincidente ao defender que o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131.º (Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, Coimbra: Coimbra Ed., 1999, p. 25), em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. A qualificação do homicídio assenta, pois, num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da ação, como de uma motivação especialmente reprovável. É este o entendimento da doutrina mais representativa entre (entre outros, Figueiredo Dias, ob. cit., I, p. 29, Teresa Serra, ob.cit., p. 40, Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal – Crimes contra a vida e a integridade física, Lisboa: AAFDL, 2009, pp. 16-17, e Eduardo Correia que no seio da Comissão Revisora do Código Penal – Actas das Sessões - Parte Especial, p. 25).
Como refere Figueiredo Dias, o pensamento da lei é o de imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (ob. cit., p. 29). Ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente (ob. cit., p. 64).
No n.º 2 do artigo 132.º do Cód. Penal, indicam-se circunstâncias suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio. Qualificação que, por outro lado, atenta a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias, o que claramente resulta da letra da lei, concretamente da expressão entre outras, pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal.
Tudo dependerá, como refere Figueiredo Dias, de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta (ob. cit., p. 26). Tipo de culpa que, perante a inexistência de qualquer uma das circunstâncias previstas no texto legal, só se deve ter por verificado perante circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais (reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente), que exprimam um nível de gravidade agravado e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplo-padrão enunciados no texto legal.
As circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência.
Circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objetivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Analisando os factos objeto do processo, os quais, como bem se concluiu na decisão recorrida, integram desde logo dois dos exemplos-padrão – os das alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal –, revelando, ao nível da execução, um comportamento especialmente censurável.
A arguida teve o tempo e possibilidade de reflexão para ter atuado de forma diversa – não cometendo o crime –, podendo ter equacionado uma das muitas soluções alternativas à assunção das responsabilidades parentais: entrega a pessoas da sua confiança, colocação em família de acolhimento, apadrinhamento civil, adoção, sendo certo que há respostas capacitadas de emergência infantil que podiam, de forma fácil e eficaz, prevenir e evitar qualquer risco (desnecessário) para a vida e integridade do seu filho recém-nascido.
Demonstrou, assim, desprezo e indiferença pelo valor da vida do filho recém-nascido, sendo a vida humana o valor fundacional mais relevante numa sociedade plural e que um Estado de direito tem por obrigação tutelar até ao limite, em homenagem à eminente dignidade da pessoa humana (artigos 1.º, 18.º, 24.º da Constituição).
No caso vertente, a opção do tribunal recorrido – confirmando essa qualificação jurídico-penal feita pelo tribunal de 1.ª Instância – pela qualificação do crime de homicídio, nos termos dos artigos 14.º, 26.º, 131.º e 132.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal, julga-se ter sido totalmente justificada.
Em conclusão, julga-se improcedente esta parte do recurso da arguida.
14.
iii) Excesso da medida das penas – parcelar e conjunta –, mesmo dentro da qualificação do crime de homicídio qualificado, pelo que deve ser reduzida para o seu limite mínimo – Conclusões 37.ª a 46.ª.
Subsidiariamente à pretensão da recorrente enunciada no ponto anterior, a arguida AA invoca que a pena aplicada ao crime de homicídio qualificado, pelo qual foi condenada, é excessiva, devendo conter-se em limite próximo do mínimo da pena aplicável, ou seja, na medida de 12 anos de prisão. A mesma foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), ambos do CP, na pena de treze (13) anos de prisão. E, em cúmulo jurídico, com a pena de nove meses de prisão aplicada pela prática do crime de profanação de cadáver, na pena única de treze anos e três meses de prisão.
Conforme pertinentemente salientam a Senhora Procuradora-geral-adjunta no TRP, em sede de resposta ao recurso, bem como o Senhor Procurador-geral-adjunto neste STJ, a questão aqui trazida em recurso não constituiu objeto de recurso da arguida para aquele TRP. Nessa medida, a questão da medida da pena, parcelar (aplicada pelo crime de homicídio qualificado) e da pena única, não foi objeto de apreciação por parte do TRP no seu acórdão recorrido.
Constitui, assim, uma “questão nova”, no quadro do presente recurso.
O objeto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objeto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso; no recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objeto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objeto da decisão recorrida (assim, Acórdãos do STJ de 20-12-2006 e de 25-03-2009, relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar)
Tem sido esse o entendimento do STJ, admitindo embora a cognoscibilidade de questões que devam ser oficiosamente conhecidas, como vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP e nulidades não sanadas (neste sentido, Ac. do STJ de 17-02-2022; rel. Cons. Maria Carmo Silva Dias).
O conhecimento de tal questão não pode, em rigor, constituir objeto da presente decisão.
No teor da motivação de recurso, a recorrente alega que:
«(…)
15.º (…) por mera cautela de patrocínio, referimos que a conduta da Arguida será subsumível no tipo previsto no art.º 136.º do Código Penal, que dispõe “A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
16.º Existem razões de ciência que permitem ao julgador divergir do juízo contido no relatório pericial elaborado pelo perito.
(…)
21.º Tal decisão teria, como consequência prática, atenta a falta de prova em sentido contrário, que o Tribunal tivesse de considerar aquela influência perturbadora, fazendo uso do princípio in dubio pro reo, nos termos indicados por Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 103), determinando-se a condenação da Arguida pela prática do crime de infanticídio, p. e p. pelo artigo 136.º do CP.
22.º Ao não entender assim, o douto aresto violou o correto entendimento do disposto nos artigos no artigo 163.º do CPP e 136.º do CP.
23.º Quanto à espécie e medida da pena, de acordo com o disposto no art.º 50.º do Código Penal, estão reunidos os pressupostos de tal medida alternativa à prisão e nada obsta à sua aplicação, ainda que impondo o tempo máximo de suspensão legalmente previsto, até tendo em consideração o disposto no Relatório Social elaborado e a ausência de antecedentes criminais de qualquer natureza.
24.º A sentença recorrida mostra-se extremamente desequilibrada, injusta e ofensiva da justiça, devendo ser revogada e substituída por outra que acolhendo a lei, absolva a Recorrente ou, caso assim não se entenda, conclua pela sua condenação pela prática de um crime de infanticídio, p. e p. no artigo 136.º do CP, e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, em pena não superior a cinco anos de prisão suspensa, assim se fazendo JUSTIÇA»
Conclui, ainda, a recorrente, nos termos seguintes:
«(…)
37º
Finalmente, independentemente do destino das anteriores conclusões, quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.
38º
Efectivamente, a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
(…)
42º
Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade da agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pela patologia que a afligia – negação não psicótica pervasiva da gravidez.
43º
Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados,
44º
Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor.
45º
Sendo certo que a Arguida/recorrente, manifestou pungente arrependimento e não tem qualquer espécie de antecedentes criminais.
46º
Condicionalismo que sopesado por um prisma que atenda à prevenção especial, iluminada por uma ideia propedêutica de ressocialização, corroboram a necessidade de fixar a pena num valor numérico menor.»
Embora a questão colocada não seja, nessa medida, objeto de uma concreta pronúncia, sempre se emitirão as seguintes considerações.
Na operação de escrutínio sobre o processo de apreciação da escolha e da determinação da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume, essencialmente, um carácter de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções, omissões ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis e mobilizadas, por parte da instância recorrida.
Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos a parâmetros hermenêutico-aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da pena aplicada.
Como se assinala no Ac do STJ de 11-02-2015: Proc. 591/12.3GBTMR.E1.S1:
«Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste STJ, Proc. n.º 2555/06- 3ª)».
O escrutínio da adequação ou correção da determinação da medida concreta da pena em sede de recurso impor-se-á apenas em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da sã racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica que uma intervenção corretiva do tribunal de recurso possa alterar a escolha e a determinação da medida concreta da pena.
Não é isso que se verifica no caso dos autos.
Na operação hermenêutico-aplicativa empreendida pelo tribunal de 1.ª Instância no tocante à determinação da medida da pena, conforme enunciada no seu acórdão, intercederam considerações de ponderação fáctico-normativa que se mostram isentas de censura.
Foram, assim, pertinente e adequadamente ponderadas as circunstâncias concretas da prática do crime de homicídio qualificado, que habilitaram o tribunal recorrido a uma correta determinação da escolha e da medida da pena, o grau de ilicitude e da culpa, as exigências de prevenção especial e geral, a personalidade da arguida, não se encontrando no acórdão recorrido défices ou incorreções passíveis de crítica e que permitissem a alteração da pena aplicada.
Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que densifica o programa orientador dos fins das penas adotado pelo legislador, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Estabelece, por seu turno, o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.
Como vem sendo consistentemente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (assim, J.J. Gomes Canotilho - Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra: Coimbra Ed., 2007, notas aos artigos 18.º e 27.º).
Para aferir da medida da gravidade da culpa importa, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do Código Penal, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).
Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.
Como se tem sublinhado, é, pois, na determinação da presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação empreendida pelo agente (o arguido) pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 26-06-2019: Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1; de 09-10-2019: Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1; de 03-11-2021: Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, e de 08-06-2022: Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1).
A prevenção geral, como prevenção positiva ou de integração, no respeito e confiança na reposição contrafáctica da vigência da norma violada, é bastante intensa nos crimes de homicídio, que se traduz na violação do bem jurídico fundacional na ordem axiológico-constitucional vigente. O homicídio é a infração que causa maior alarme social, contribuindo, claramente, para aumentar o sentimento geral de insegurança, como tem vindo a referir vasta e consolidada jurisprudência do STJ e dos tribunais superiores. Em tal crime manifesta-se uma personalidade do agente, disposta a contrariar o direito e a desprezar a vida e a dignidade humana da vítima.
Há que concluir que o crime em apreciação coenvolve a carência de tutela penal do bem jurídico violado (a vida humana de um recém-nascido) e a necessidade de pena.
Com algum peso atenuativo, haveria a considerar a ausência de antecedentes criminais e um passado normativo e com inserção familiar, profissional e social.
Assim sendo e ponderando:
- Que o grau de ilicitude é elevado e revela um desvalor da ação acentuado pelo bem jurídico em causa – vida humana – que traduz, como se disse já, o bem jurídico mais valioso na grelha valorativa axiológico-constitucional;
- Que é muito elevado o grau de intensidade do dolo, que in casu se trata da forma grave do elemento subjetivo da infração, o dolo direto que abarca a representação da condição de vítima descendente, recém-nascida e indefesa;
- Que a culpa da arguida (o desvalor da atitude interior) é acentuada, porquanto a mesma teve a possibilidade de não proceder como se provou, podendo recorrer às diversas respostas emergenciais, sociais e jurídicas no sentido do proteção e encaminhamento seguro do seu filho uma criança recém-nascida de parto domiciliário, sem qualquer acompanhamento na gravidez e sem assistência médica;
- As suas condições de vida (estava familiar, profissional e socialmente inserida), tendo algum apoio de familiares;
- Que a arguida revela alguma consciência do desvalor da sua conduta;
- Que contra a arguida opera o facto de serem prementes as necessidades de reafirmação da norma violada, porquanto não são infrequentes os episódios de abandono e atentado contra a vida humana de recém-nascidos, vítimas especialmente vulneráveis;
- Que, apesar da ausência de antecedentes criminais, tal circunstância não reveste particular relevo atenuante, por se tratar de circunstância que se exige ao comum dos cidadãos: não praticar factos ilícitos típicos.
Assim, a individualização da pena deve fazer-se, essencialmente, pelo que acima apontámos em função da culpa e da ilicitude, das exigências de prevenção geral e demais circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, impondo-se fixar uma pena justa e adequada à pessoa do arguido, relativamente ao tipo legal de crime posto em crise, pelos factos por este perpetrados e provados nestes autos, tendo presente que nos situamos no quadro normativo de um Direito Penal do Facto e não Direito Penal do Autor.
Tudo ponderado, e tendo presente o disposto nos arts. 40.º, 41.º, e 71.º, todos do Código Penal, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto perpetrado, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo (dolo direto e intenso), a condição pessoal do agente (a arguida AA nasceu em ... de ... de 1989, tendo atualmente 35 anos) a sua situação económica e profissional, a conduta anterior e posterior aos factos e tendo presente:
- Que são por todos reconhecidas as intensas e prementes necessidades de prevenção geral a satisfazer na punição dos crimes de homicídio, mormente de homicídio qualificado;
- Que a defesa social que o ordenamento jurídico incorpora, exige um combate ativo e proativo ao crime de homicídio, que se projeta no quadro da sua punição, sendo legalmente classificado como “criminalidade especialmente violenta”, nos termos do art. 1.º, alíneas j) e l) do CPP;
Ponderando o grau de culpa, as necessidades de reprovação, de prevenção geral e especial e de ressocialização e reintegração, situação económico-financeira da arguida e suas condições de vida, por tudo o que fica dito, entendemos, num raciocínio de coerência, no quadro de uma moldura legal da pena entre os doze (12) anos e vinte e cinco (25) anos, que a medida de treze (13) anos de prisão se mostra ajustada às demonstradas circunstâncias do facto e da culpa da arguida, não se afigurando desproporcionada nem injusta.
Não se mostrando, assim, que os critérios conformadores da fixação da pena parcelar pelo crime de homicídio qualificado, convocados no acórdão recorrido, se revelem desconformes aos princípios e parâmetros constitucionais e legais que devem nortear a determinação da medida pena, concretamente o disposto nos artigos 40.º, 41.º, 70.º e 71.º do Código Penal, não se justificaria dirigir-lhe qualquer censura. Uma pena inferior não daria satisfação às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, nem respeitaria o princípio da coerência e tendencial igualdade na aplicação das penas.
Em consequência, não podendo apreciar-se este segmento do recurso da arguida – o qual, ainda que fosse conhecido, sempre improcederia – implica que se mantenha, em consequência, também nesta parte, o acórdão recorrido.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes Conselheiros desta 5.ª Secção Criminal em:
- não tomar conhecimento da questão respeitante à medida da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado pelo qual a arguida AA foi condenada, e,
- negar provimento aos restantes segmentos do recurso por si interposto, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC – artigos 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, e Tabela III anexa.
Notifique, remetendo cópia ao tribunal de primeira instância.
*
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, data e assinaturas supra certificadas
Texto elaborado, informaticamente editado, e integralmente revisto pelo relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos
Os juízes Conselheiros
Jorge dos Reis Bravo (relator)
António Latas (1.º adjunto)
Celso Manata (2.º adjunto)