É de indeferir, por carece de fundamento bastante, o pedido de habeas corpus formulado por arguido que viu ser confirmada, em recurso para o tribunal da relação, a pena única de sete anos e seis meses aplicada pelo tribunal de 1.ª Instância, uma vez que o limite da prisão preventiva não é o estabelecido nos números 1.º, al. d) e 2, mas sim o que resulta da sua conjugação com o n.º 6 do art. 215.º do CPP.
Acordam em audiência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
I.1. Em requerimento apresentado pelo seu advogado, vem o arguido AA, melhor identificado nos autos, em ...-...-2025 (Ref.ª Citius ...), apresentar exposição/petição de Habeas Corpus, nos termos seguintes (transcrição):
«1.º O arguido foi sujeito à Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido, tendo sido determinada a aplicação da medida de coação mais gravosa, de prisão preventiva, por Decisão Judicial proferida no dia .../.../2022, que considerou existirem fortes indícios da prática de crimes.
2.º O arguido invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental do cidadão e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais. |
3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantido a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal.
4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos resguarda especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, que só poderia ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legalmente estabelecidos.
5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade.
6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal.
7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, a ser decidida no prazo de 08 (oito) dias.
8.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP.
9.º Nesse sentido, o arguido reivindica através deste remédio excepcional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privado da sua liberdade física.
10.º Sucede que até a presente data, já transcorreram mais de 02 (dois) anos de duração da Prisão Preventiva, mas ainda não foi proferida a condenação com trânsito em julgado, situação que viola o artigo 215º, n.º 2 do CPP.
11.º Lembrando ainda que nos presentes autos, não foi atribuída a excepcional complexidade.
12.º Portanto, já transcorreu o prazo máximo de 02 anos e considerando que ainda a Decisão condenatória ainda não transitou em julgado, entendemos que a prisão preventiva extingue-se, por estar configurada notória ilegalidade, em virtude do excesso de prazo.
13.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído, de 02 anos, o arguido apresenta o presente Habeas Corpus e requer seja determinada a sua libertação imediata.
14.º O artigo 215º do CPP determina que:
"1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido;
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos."
15.º Assim, o prazo da prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração, pois extrapolou o limite de 02 (anos) meses, desde que a sua determinação, sem que exista decisão transitada em julgado.
16.º Nos presentes autos, jamais foi atribuída excepcional complexidade, razão pela qual as Autoridades não beneficiam de qualquer dilação ou ampliação dos prazos para encerrar o inquérito.
17.º Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, situação que determina a conclusão de que a referida medida de coacção mais severa tornou-se ilegal, por excesso de prazo.
18.º Mesmo que a condenação venha posteriormente a transitar em julgado, o facto é que revestirá de evidente ilegalidade, isso porque será extemporâneo, situação que determina, na mesma, a ilegalidade da manutenção da medida de prisão preventiva.
19.º O arguido declara que não se opõe à entregar-se voluntariamente, mas, apenas após o trânsito em julgado da condenação imposta.
20.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 22º do CPP, que determina que:
“l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a. Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b. Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c. Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”
21.º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva restou ultrapassado, concluímos que a manutenção da reclusão do Arguido no Estabelecimento Prisional de ..., representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, é ilegal e inconstitucional, na forma do Artigo 22º nº 2 alínea c) do CPP
22.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2º, 20º nº 4, 27º nº 2, 28º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que o Arguido não pode ser privado da sua liberdade quando tenham esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que vigora a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação definitiva.
CONCLUSÃO:
Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do Arguido, razão pela qual requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação do Arguido, isso porque o prazo legalmente previsto para a prisão preventiva encontra-se ultrapassado, diante do excesso de prazo de 02 anos, sem que tenha ocorrido o efetivo trânsito em julgado da condenação, que ainda não representa uma decisão definitiva.»
I.2. A Senhora juíza de Direito titular do processo, no ..., exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, com data de ...-...-2025 (Ref.ª Citius ... ), nos termos seguintes (transcrição):
«Nos termos e para os efeitos do artigo 223º, nº 1, do Código de Processo Penal, informa-se V. Exa. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do seguinte:
- Os arguidos BB, CC, AA, encontram-se presos preventivos à ordem dos presentes autos, por decisão proferida em ... de ... de 2022, proferida em sede de primeiro interrogatório judicial, auto de interrogatório, referência:8178802.
- Tal estatuto coactivo foi mantido sucessivamente por decisões proferidas nos autos, tendo a última decisão de revisão, sido proferida por este Juízo em ........2024, conforme referência: ..., e encontrando-se já os autos principais no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação dos vários recursos interpostos.
- Foi proferido Acórdão condenatório no dia ... de ... de 2024, em que foram aplicadas penas de prisão efectivas aos arguidos DD (sete anos de prisão), EE (sete anos de prisão), FF (sete anos e seis meses).
- Foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em ... de ... de 2024, no qual se decidiu “negar provimento aos recursos, e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida, sem prejuízo da oportuna ponderação, pelo tribunal de 1.ª instância, do perdão de pena e da restituição da caução”.
***
Nos termos do art. 222.º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência, deve resultar da circunstância de a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ter sido motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial – als. a), b) e c) do art. 222.º do CPP e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso.
***
No caso concreto dos presentes autos, tendo sido o arguido AA sujeito a prisão preventiva no dia ... 2022, o prazo máximo da prisão preventiva sem que tivesse havido condenação com transito em julgado, foi atingido no dia ... 2024 (cfr. artigo 215.º n.º 1, alínea d) e n.º 2 do C.P.Penal.
Sucede, no entanto, que, conforme prevê o n.º 6 do art. 215º do C.P.Penal, “no caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”.
Ora, precisamente, o arguido AA, condenado na primeira instância em pena de prisão efectiva de sete anos e seis meses, viu ser-lhe confirmada tal pena de prisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que terá de cumprir uma pena de sete anos e seis meses. Assim sendo, e verificando-se o condicionalismo previsto no n.º 6 do art. 215º do C.P.Penal, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para três anos e nove meses, isto é metade da pena concreta que lhe foi aplicada. E o prazo de três anos e nove meses apenas se atingirá no dia ... de ... de 2026, data ainda não ultrapassada.
Concluindo, não se verifica no presente caso a ilegalidade da prisão, sendo a prisão preventiva em que o arguido se encontra de manter, por via do art. 215º, n.º 6 do C.P.Penal.
*
Mais acresce:
- Os presentes autos foram sido distribuídos no Juízo Central Criminal ..., como sendo de especial complexidade com arguidos presos, considerando os seguintes índices de complexidade: o despacho de acusação contém mais de 200 artigos/parágrafos, foram acusados e pronunciados mais de dez arguidos, e os autos são constituídos por mais de trinta volumes.
- No despacho que recebeu a decisão instrutória, data de ........2023, referência: ..., em virtude da verificação dos critérios supra expostos, foi proferido o seguinte despacho: “autue como processo comum, anotando a distribuição como de especial complexidade, com intervenção de Tribunal Colectivo”.
- Nessa sequência, após a prolacção do acórdão neste J17 do Juízo Central Criminal de..., na respectiva acta de leitura, datada do dia ... de ... de 2024, referência: ..., fez-se consignar que atenta a declarada especial complexidade dos autos, o prazo de recurso é o correspondente à declarada complexidade nos termos do art.º 107º, n.º 6 do C. P. Penal (30 dias + 30 dias).
- Ora, tais despachos em que se declarou a especial complexidade e se considerou a mesma como já declarada, não foram impugnados pela defesa dos arguidos, que inclusivamente beneficiaram de tal prazo alargado para interposição de recurso, pelo que ao contrário do alegado pela defesa do arguido, tem de entender-se que, ainda que de forma sintéctica, foi declarada a excepcional complexidade dos autos, tendo os arguidos, e concretamente o arguido, beneficiado de tal prorrogativa.
- Assim, também por aqui, e por via do art. 215º, n.º 3 do C.P.Penal, se verifica a elevação do prazo máximo de prisão preventiva para três anos e quatro meses, que, por maioria de razão, também não se encontra ultrapassada, o que apenas sucederá em ... de ... de 2026.
Concluindo, não se verifica no presente caso a ilegalidade da prisão, sendo a prisão preventiva em que o arguido AA se encontra de manter, por via do art. 215º, n.º 3 do C.P.Penal.
Todavia, V. Exa., Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirá!
Pelo exposto, determino que a presente providência de habeas corpus seja comunicada via digital ao Eximo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e que o original da mesma seja remetido, de imediato, por via postal, na modalidade de correio azul, instruído com certidão dos despachos ora referidos.»
I.3. Os autos foram instruídos, entre outros, com cópias certificadas (formato digital) dos elementos referidos na aludida informação da Senhora juíza de Direito titular, os quais, conjugados com a consulta dos termos eletrónicos do processo, se mostram suficientes para a decisão da presente providência.
***
Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência – no decurso da qual o Ministério Público pugnou pela improcedência da providência enquanto o Senhor Defensor do arguido remeteu para o teor do requerimento e para que se fizesse justiça –, após o que a Secção reuniu para deliberação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
II.1. Dos elementos documentais juntos e da informação prestada, bem como dos termos eletrónicos do processo principal da plataforma Citius, a que se acedeu, resultam demonstrados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir nestes autos:
1. O arguido AA foi sujeito, no âmbito do processo 59/21.7..., à medida de coação de prisão preventiva em ...-...-2022, após 1.º interrogatório judicial (Ref.ª Citius ...);
2. Por acórdão de ...-...-2024, proferido pelo Juízo Central Criminal de Lisboa, ... – que corre classificado como de “especial complexidade”, por despacho de ...-...-2023 (Ref.ª Citius ...) –, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, aquele arguido foi, conjuntamente com outros, condenado, em concurso efetivo, na pena única de sete anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico dos seguintes crimes e penas parcelares:
a) Um crime de associação criminosa, previsto e punidos pelo artigo 299.º, n.º 1, do Código Penal (em concurso aparente com um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo n.º 2 do mesmo artigo), em coautoria com os arguidos DD, EE e GG, na pena de dois anos de prisão;
b) Um crime de recetação, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 231.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, em coautoria com os arguidos DD, EE e GG, na pena de quatro anos de prisão;
c) Um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º 2, do Código Penal, com referência ao n.º 1 e à alínea d) e j) do n.º 1 do mesmo artigo, em coautoria com os arguidos DD, EE e GG, tendo como precedentes os crimes de recetação, na forma agravada, e de fraude fiscal, na pena de quatro anos de prisão;
d) Um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias, em coautoria com os arguidos DD, EE e GG, na pena de um ano e seis meses de prisão e,
e) Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico das Armas e Munições como autor material, na pena de dois anos de prisão;
3. Irresignado com tal decisão, o arguido interpôs recurso de tal acórdão condenatório em ...-...-2024, para o Tribunal da Relação de Lisboa (doravante também TRL) que, por acórdão proferido em ...-...-2024, no que aqui releva, julgou improcedente o recurso interposto e confirmando a decisão recorrida, sem prejuízo da oportuna ponderação, pelo tribunal de 1.ª instância, do perdão de pena e da restituição da caução;
4. O arguido apresentou outra petição de Habeas Corpus junto deste Supremo Tribunal de Justiça, com fundamentos diversos, nestes mesmos autos, o qual foi indeferido por acórdão de ...-...-2025 (Ref.ª Citius 12933418).
II.2. Mérito da providência
A providência de habeas corpus constitui uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:
1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
O texto do n.º 1 foi alterado e revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (DR I-A Série, n.º 218/97, de 20 de setembro de 1997) e que, pelo artigo 14.º, alterou a redação do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares. Mas, como assinala Faria Costa, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma («Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade», BFDUC, volume 75, Coimbra: Coimbra Ed., 1999, p. 549).
Como referem, por outro lado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, o n.º 2 do artigo 31.º da CRP reconhece uma espécie de ação popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º, n.º 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer à providência em favor do detido ou preso. Além de materializar o objetivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa ação popular sublinha o valor constitucional objetivo do direito à liberdade (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra: Coimbra Ed., 4.ª edição revista, 2007, p. 509).
A providência em causa é, assim, uma garantia fundamental privilegiada, no sentido em que se trata de um direito subjetivo, «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal (neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa: Verbo Ed., 2011, p. 296).
O instituto processual penal de habeas corpus traduz, pois, uma das mais emblemáticas concretizações do chamado direito constitucional aplicado.
O instituto de habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo-saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional norte-americano.
A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Dec.-Lei n.º 35.043, de 20 de outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de maio de 1976.
A Lei n.º 43/86, de 26-09 – lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, ao abrigo da qual foi elaborado o Código de Processo Penal vigente – estabeleceu no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39, a «(…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias».
Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus traduz a relevância constitucional do direito à liberdade.
Recortando-se o direito à liberdade como um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento de reação e garantia dirigido ao abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, utilizando a expressão de Faria Costa, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder» (apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2001, in CJSTJ 2001, t. 3, p. 202).
Corresponde, assim, a uma característica essencial do instituto de habeas corpus que tal providência assume natureza de remédio excecional e urgente para proteger a liberdade individual, com a finalidade de pôr termo a situações de injustificada privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: um primeiro núcleo previsto nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.º do CPP e um segundo elenco nos casos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito, descritos nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP (cfr. Acs. STJ de de18-10-2007 e de 13-02-2008), entendimento consolidadamente reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.
Sendo a prisão efetiva e atual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de ação autónoma com fim cautelar há de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão prevista no elenco exclusivo das suas três alíneas – 1) incompetência, 2) facto que não permite a prisão e 3) excesso de prazos legais ou judiciais (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, Lisboa, Verbo Ed., p. 297) –, encontrando-se a competência para a respetiva apreciação atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 31.º da CRP, 55.º, al. d) da Lei n.º 62/2013 e 11.º, n.º 3, al. c) do CPP), em virtude de:
a. Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b. Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c. Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Não obstante o seu lugar sistemático no Código de Processo Penal, a providência de habeas corpus não constitui um verdadeiro modo de impugnação, visto que o seu objeto se prende com a situação de objetiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa (cfr., neste sentido, ac. STJ de 07-03-2019 - proc. 72/15.3GAAVZ-K.S1 – 5.ª Sec.; Maia Costa, «Habeas Corpus, passado, presente e futuro», Julgar, N.º 29, 2016, p. 240).
A providência em causa não se destina, porém, a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g., o ac. STJ de 04-01-2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).
Como não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos de indiscutível ilegalidade, que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade e com os pressupostos legalmente definidos. O habeas corpus não é pois, meio adequado para sindicar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que deverão de ser oportuna e tempestivamente impugnadas através dos meios próprios (cfr. ac. STJ de 16-03-2015).
O habeas corpus não colide, apesar disso, com o direito ao recurso, pois que «(…) visa, reagir, de modo imediato e urgente – com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual “grave, grosseiro e rapidamente verificável” integrando uma das hipóteses enunciadas no n.º 2 do art. 222.º do Código de Processo Penal» (cfr., entre outros, ac. STJ de 12-12-2007).
A providência de habeas corpus não se destina, assim, a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede e momento apropriados. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável na previsão de alguma das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP. Esta é a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objeto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o exercício da garantia em causa (ac. STJ de 09-11-2011).
Relativamente a outras vicissitudes terá de se recorrer a distintas formas de reação designadamente de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso, sendo a providência de habeas corpus um instituto de natureza extraordinária (assim, Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA. VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 547, § 13, 14 e 16).
A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios, ou sua insuficiência, para aplicar ou manter, por exemplo, uma medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário …, cit., § 26; também assim, ac. STJ de 09-06-2020: rel. Cons. Helena Moniz), bem assim como não será de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova ou outras - cfr. acs. STJ de 31-01-2018: rel. Cons. M. Matos, e de 03-01-2018: rel. Cons. Raúl Borges).
Assim, enquanto o Dec.-Lei n.º 35.043, de 20-10-1945, concebia o habeas corpus como «(…) um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao art. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (cfr. ac. STJ de 19-11-2020: rel. Cons. A. Gama), não existindo relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no n.º 1 do preceito e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos. Além do mais, os fundamentos do habeas corpus são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (cfr. Ac. STJ de 19-05-2010, CJ - ACSTJ, 2010, t. 2, p.196).
Sendo este, em traços esquemáticos, o enquadramento jurídico-normativo do instituto de habeas corpus, cumpre aplicá-lo ao caso vertente.
Impõe-se, preambularmente, esclarecer que a circunstância de ter sido proferido por este Supremo e Secção, acórdão no dia 09-01-2025, sobre outro pedido de habeas corpus formulado pelo peticionário, a mesma não preenche os pressupostos de caso julgado, uma vez que não são os mesmos os fundamentos que constituem o objeto do presente pedido.
A petição da presente providência encerra uma argumentação que, na essência, e de acordo com a fundamentação do seu pedido, integraria a causa de habeas corpus cuja previsão é consignada na alínea c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP: manter-se [o peticionário] para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
A Senhora juíza de Direito titular presta informação categórica no sentido da não ilegalidade da situação prisional do requerente, uma vez que a pena aplicada foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, além de o processo ter sido expressamente classificado como de “especial complexidade”.
Importa, pois apreciar se tal situação prisional do arguido-peticionário se encontra afetada por ilegalidade decorrente da circunstância de o mesmo se encontrar em situação de prisão preventiva para além do prazo fixado por lei, que, na sua perspetiva, seria o prazo de dois anos, ao abrigo do disposto no art. 215.º, n.º 2, do CPP.
No incidente de habeas corpus, indaga-se se se verifica algum dos motivos consagrados nas alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP, ou seja, se há ilegalidade na situação de privação de liberdade do requerentes, por ter sido a) efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) se mantém para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
A única previsão com plausível aplicação ao caso vertente, é, como se antecipou, a da alínea c), a qual é, de resto, expressamente invocada pelo peticionário, apesar de o mesmo, por lapso, se lhe referir como «art. 22.º».
Pugna pelo reconhecimento da ilegalidade da sua situação prisional, que se verifica para além de dois anos contados desde a data do início da prisão preventiva (16-12-2022), invocando para o efeito o regime combinado dos artigos 215.º, n.ºs 1, al. d) e 2 e 222.º, n.º 2, al. c) do CPP.
Ocorre que, conforme é referenciado pela Senhora juíza de Direito titular na informação prestada ao abrigo do art. 223.º, do CPP, o peticionário foi condenado na pena de sete anos e seis meses de prisão, à ordem dos autos.
Tal pena foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-12-2024.
O número 6 do art. 215.º do CPP, dispõe:
«6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.»
Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-05-2017, proferido no processo n.º 1183/15.0JAPRT-C.S1 - 3.ª Secção, o prolongamento da prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, funda-se num adensar do grau de certeza sobre a prática do crime, da sua autoria e da existência de culpa, baseado, essencialmente, num duplo juízo condenatório (cfr., também neste sentido, Ac do STJ de 10-08-2018; rel. Cons. Manuel Matos).
A norma do artigo 215.º, n.º 6, do CPP consagrou uma prorrogação do prazo máximo da prisão preventiva para o caso em que a sentença condenatória de primeira instância tenha sido «confirmada em sede de recurso ordinário» e definiu a proporção do aumento do prazo, indexando-o em função da «pena que tiver sido fixada».
A elevação do prazo máximo de prisão preventiva, nessa circunstância, assenta, também, em dois fatores distintos: a confirmação do juízo condenatório por parte do tribunal superior implica de per si a prorrogação do prazo de prisão preventiva; a medida da pena influencia o limite temporal dessa prorrogação, visto que o prazo é ampliado para metade da pena que tiver sido fixada.
Há, por isso, lugar à ampliação do prazo da prisão preventiva quando tenha havido confirmação, pela Relação, da sentença condenatória de primeira instância, e corresponde ao sentido literal da lei (ou, pelo menos, a um dos sentidos literais possíveis) que o prazo máximo se eleve para metade da pena que tiver sido aplicada no tribunal de recurso (assim, ac. do TC n.º 603/2009, numa situação em que estava em causa uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida em providência de habeas corpus, que considerou que há confirmação da sentença, para os efeitos previstos no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, quando o tribunal de recurso aplica uma pena igual ou mesmo superior à da sentença de primeira instância, com base na distinção entre “confirmação da condenação em 1.ª instância” – para efeitos de prisão preventiva – e “dupla conforme”, para efeitos de admissibilidade de recurso).
Por outro lado, a elevação do prazo máximo de prisão preventiva prevista no preceito, pressupondo a condenação na 1.ª instância, em pena de prisão, e a confirmação desta decisão no recurso interposto, não depende, como é evidente, do trânsito em julgado do acórdão que decidiu o recurso. Com efeito, a elevação do prazo verifica-se com a prolação do acórdão proferido em recurso, confirmatório da sentença condenatória da 1.ª instância (assim, Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. III, AA. VV., Coimbra, Almedina, 2021, p. 488).
Cremos, assim, não haver razões para dissentir do sentido da informação prestada pela Senhora juíza de Direito titular do processo, e, como tal, não vemos que qualquer ilegalidade possa afetar a atual situação prisional do peticionário.
Em conclusão, dos dados emergentes dos autos resulta que o requerente se encontra numa situação de (eventual) prisão preventiva (caso ainda não haja efetivamente transitado em julgado o acórdão do TRL de 13-12-2024), dentro dos limites temporais legais, que correspondem a metade da pena aplicada ao peticionário, de sete anos e seis meses de prisão, ou seja, de três anos e nove meses de prisão, que em princípio se atingirá no dia 16 de setembro de 2026.
Não se verifica, pois, qualquer fundamento que diretamente decorra da factualidade alegada, que pudesse justificar o deferimento do presente pedido de habeas corpus, pelo que o mesmo, por se mostrar manifestamente infundado, é indeferido.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir, por manifestamente infundada, a providência de habeas corpus requerida por AA.
Fixa-se a taxa de justiça em três (3) UC, a cargo do requerente, nos termos do art. 8.º, n.º 9 e da Tabela III do RCP.
Nos termos do art. 223.º, n.º 6 do CPP, dada a manifesta falta de fundamento da providência e a relativa simplicidade da decisão, vai condenado, ainda, na soma de dez (10) UC a acrescer àquela.
Lisboa, STJ, data e assinaturas supra certificadas
[Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção]
Os juízes Conselheiros
Jorge dos Reis Bravo (relator)
António Latas (1.º adjunto)
Jorge Gonçalves (2.º adjunto)
Helena Moniz (Presidente)