HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PENA DE PRISÃO
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
CONDENAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. A elevação do prazo máximo de prisão preventiva prevista no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, pressupondo a condenação em 1ª instância, em pena de prisão, e a confirmação desta decisão no recurso interposto, não depende do trânsito em julgado do acórdão que decidiu o recurso, verificando-se a elevação do prazo referido com a mera prolação do acórdão proferido em recurso.

II. Tendo o requerente suportado a pretensão deduzida na ultrapassagem do prazo máximo de dois anos de prisão preventiva, previsto no nº 2 do art. 215º do C. Processo Penal, ignorando o disposto no nº 6 do mesmo artigo, quando não podia desconhecer os crimes pelos quais foi condenado no acórdão proferido pela 1ª instância, as penas parcelares e única aí impostas, e a sua integral confirmação pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em recurso, também, por si interposto, é manifestamente infundada a petição de habeas corpus, pelo que, deve ser condenado no pagamento da soma prevista no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal, que se fixa em 10 UC.

Texto Integral


Processo nº 59/21.7SULSB-G.S1

Habeas Corpus

*

Acordam, em audiência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA, detido à ordem do processo nº 59/21.7SULSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, através de Ilustre Mandatário, requerer ao Exmo. Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, por prisão ilegal, nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

“(…).

1.º O arguido foi sujeito à Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido, tendo sido determinada a aplicação da medida de coação mais gravosa, de prisão preventiva, por Decisão Judicial proferida no dia .../.../2022, que considerou existirem fortes indícios da prática de crimes.

2.º O arguido invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental do cidadão e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais.

3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantido a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal.

4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos resguarda especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, que só poderia ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legalmente estabelecidos.

5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade.

6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal.

7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, a ser decidida no prazo de 08 (oito) dias.

8.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP.

9.º Nesse sentido, o arguido reivindica através deste remédio excepcional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privado da sua liberdade física.

10.º Sucede que até a presente data, já transcorreram mais de 02 (dois) anos de duração da Prisão Preventiva, mas ainda não foi proferida a condenação com trânsito em julgado, situação que viola o artigo 215º, n.º 2 do CPP.

11.º Lembrando ainda que nos presentes autos, não foi atribuída a excepcional complexidade.

12.º Portanto, já transcorreu o prazo máximo de 02 anos e considerando que ainda a Decisão condenatória ainda não transitou em julgado, entendemos que a prisão preventiva extingue-se, por estar configurada notória ilegalidade, em virtude do excesso de prazo.

13.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído, de 02 anos, o arguido apresenta o presente Habeas Corpus e requer seja determinada a sua libertação imediata.

14.º O artigo 215º do CPP determina que:

"1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido;

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos."

15º Assim, o prazo da prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração, pois extrapolou o limite de 02 (anos) meses, desde que a sua determinação, sem que exista decisão transitada em julgado.

16.º Nos presentes autos, jamais foi atribuída excepcional complexidade, razão pela qual as Autoridades não beneficiam de qualquer dilação ou ampliação dos prazos para encerrar o inquérito.

17.º Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, situação que determina a conclusão de que a referida medida de coacção mais severa tornou-se ilegal, por excesso de prazo.

18.º Mesmo que a condenação venha posteriormente a transitar em julgado, o facto é que revestirá de evidente ilegalidade, isso porque será extemporâneo, situação que determina, na mesma, a ilegalidade da manutenção da medida de prisão preventiva.

19.º O arguido declara que não se opõe à entregar-se voluntariamente, mas, apenas após o trânsito em julgado da condenação imposta.

20.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 22º do CPP, que determina que:

“l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”

21.º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva restou ultrapassado, concluímos que a manutenção da reclusão do Arguido no Estabelecimento Prisional de ..., representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, é ilegal e inconstitucional, na forma do Artigo 22º nº 2 alínea c) do CPP.

22.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2o, 20º nº 4, 27º nº 2, 28º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que o Arguido não pode ser privado da sua liberdade quando tenham esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que vigora a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação definitiva.

CONCLUSÃO:

Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do Arguido, razão pela qual requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação do Arguido, isso porque o prazo legalmente previsto para a prisão preventiva encontra-se ultrapassado, diante do excesso de prazo de 02 anos, sem que tenha ocorrido o efetivo trânsito em julgado da condenação, que ainda não representa uma decisão definitiva.

(…).

*

2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos termos que, seguidamente, se transcrevem:

“(…).

Nos termos e para os efeitos do artigo 223º, nº 1, do Código de Processo Penal, informa-se V. Exa. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do seguinte:

- Os arguidos BB, CC, DD, encontram-se presos preventivos à ordem dos presentes autos, por decisão proferida em ... de ... de 2022, proferida em sede de primeiro interrogatório judicial, auto de interrogatório, referência:8178802.

- Tal estatuto coactivo foi mantido sucessivamente por decisões proferidas nos autos, tendo a última decisão de revisão, sido proferida por este Juízo em ........2024, conforme referência: ..., e encontrando-se já os autos principais no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa para apreciação dos vários recursos interpostos.

- Foi proferido Acórdão condenatório no dia ... de ... de 2024, em que foram aplicadas penas de prisão efectivas aos arguidos AA (sete anos de prisão), EE (sete anos de prisão), DD (sete anos e seis meses).

- Foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em ... de ... de 2024, no qual se decidiu “negar provimento aos recursos, e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida, sem prejuízo da oportuna ponderação, pelo tribunal de 1.ª instância, do perdão de pena e da restituição da caução”.

***

Nos termos do art. 222.º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência, deve resultar da circunstância de a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ter sido motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial – als. a), b) e c) do art. 222.º do CPP e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso.

***

No caso concreto dos presentes autos, tendo sido o arguido AA sujeito a prisão preventiva no dia ... 2022, o prazo máximo da prisão preventiva sem que tivesse havido condenação com transito em julgado, foi atingido no dia ... de ... de 2024 (cfr. artigo 215.º n.º 1, alínea d) e n.º 2 do C.P.Penal.

Sucede, no entanto, que, conforme prevê o n.º 6 do art. 215º do C.P.Penal, “no caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”.

Ora, precisamente, o arguido AA, condenado na primeira instância em pena de prisão efectiva de sete anos, tendo-lhe sido aplicado o perdão de um ano conforme despacho datado de ........2024, referência: ..., viu ser-lhe confirmada tal pena de prisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que terá de cumprir uma pena de seis anos. Assim sendo, e verificando-se o condicionalismo previsto no n.º 6 do art. 215º do C.P.Penal, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para três anos, isto é metade da pena concreta que lhe foi aplicada. E o prazo de três anos apenas se atingirá no dia ... de ... de 2025, data ainda não ultrapassada.

Concluindo, não se verifica no presente caso a ilegalidade da prisão, sendo a prisão preventiva em que o arguido se encontra de manter, por via do art. 215º, n.º 6 do C.P.Penal.

*

Mais acresce:

- Os presentes autos foram sido distribuídos no Juízo Central Criminal de Lisboa, como sendo de especial complexidade com arguidos presos, considerando os seguintes índices de complexidade: o despacho de acusação contém mais de 200 artigos/parágrafos, foram acusados e pronunciados mais de dez arguidos, e os autos são constituídos por mais de trinta volumes.

- No despacho que recebeu a decisão instrutória, data de ........2023, referência: ..., em virtude da verificação dos critérios supra expostos, foi proferido o seguinte despacho: “autue como processo comum, anotando a distribuição como de especial complexidade, com intervenção de Tribunal Colectivo”.

- Nessa sequência, após a prolação do acórdão neste J17 do Juízo Central Criminal de Lisboa, na respectiva acta de leitura, datada do dia ... de ... de 2024, referência: ..., fez-se consignar que atenta a declarada especial complexidade dos autos, o prazo de recurso é o correspondente à declarada complexidade nos termos do art.º 107º, n.º 6 do C. P. Penal (30 dias + 30 dias).

- Ora, tais despachos em que se declarou a especial complexidade e se considerou a mesma como já declarada, não foram impugnados pela defesa dos arguidos, que inclusivamente beneficiaram de tal prazo alargado para interposição de recurso, pelo que ao contrário do alegado pela defesa do arguido, tem de entender-se que, ainda que de forma sintética, foi declarada a excepcional complexidade dos autos, tendo os arguidos, e concretamente o arguido AA, beneficiado de tal prorrogativa.

- Assim, também por aqui, e por via do art. 215º, n.º 3 do C.P.Penal, se verifica a elevação do prazo máximo de prisão preventiva para três anos e quatro meses, que por maioria de razão, também não se encontra ultrapassada, o que apenas sucederá em ... de ... de 2027.

Concluindo, não se verifica no presente caso a ilegalidade da prisão, sendo a prisão preventiva em que o arguido AA se encontra de manter, por via do art. 215º, n.º 3 do C.P.Penal.

(…)”.

*

O processo mostra-se instruído com todas as peças necessárias.

*

Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Ilustre Defensor do requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem.

*

*

*

II. Fundamentação

A. Dos factos

Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo extraem-se os seguintes factos:

1. O arguido AA encontra-se detido preventivamente à ordem do processo comum nº 59/21.7... desde ... de ... de 2022, por despacho proferido nesta mesma data em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

2. A prisão preventiva foi sucessivamente mantida, tendo a última decisão de revisão da medida de coacção sido proferida em ... de ... de 2024.

3. Por acórdão de ... de ... de 2024 proferido nos autos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 17, foi o arguido AA condenado, em concurso efectivo, pela prática, de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299º, nº 1, do C. Penal, na pena de 2 anos de prisão, de um crime de receptação agravado, p. e p. pelo art. 231º, nºs 1 e 4 do C. Penal, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo 368º-A, nº 2, do C. Penal, com referência ao nº 1 e alíneas d) e j) do n.º 1 do mesmo artigo, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º, nºs 1, b), 2 e 3 do RGIT, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos de prisão.

4. Inconformado – o mesmo sucedendo com outros co-arguidos – com a decisão, o arguido AA recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de ... de ... de 2024, negou provimento ao recurso, confirmando, quanto ao arguido, o acórdão recorrido.

5. Em ... de ... de 2025 deu entrada no Supremo Tribunal de Justiça a presente providência de habeas corpus.

*

*

B. A questão objecto do habeas corpus

Cumpre apreciar se o requerente do habeas corpus se encontra em situação de prisão ilegal, subsumível, à alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, por se mostrar excedido o prazo máximo de prisão preventiva de dois anos, previsto no nº 2, por referência ao nº 1, d), do art. 215º do C. Processo Penal.

C. Do direito

1. A providência de habeas corpus encontra-se prevista na Constituição da República Portuguesa, como garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade, no seu art. 31º, que dispõe:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

O habeas corpus, como garantia, tutela o direito fundamental liberdade, quando gravemente afectado por situações de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal, pode ser requerido pelo interessado ou por qualquer cidadão – deste modo se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), e deve ser decidido pelo juiz competente no prazo de oito dias.

Trata-se de uma providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, portanto, de uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por razões penais ou outras. Aliás, como única garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, sublinha a especial importância do referido direito (aut., e op. cit., pág. 508).

A nível infraconstitucional o habeas corpus mostra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando esteja em causa uma detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando esteja em causa uma prisão ilegal.

No primeiro caso incluem-se as privações da liberdade ainda não validadas pela autoridade judiciária portanto, quando o cidadão se encontra detido à ordem de uma autoridade administrativa ou militar. O segundo caso abrange as privações de liberdade já validadas pela autoridade judiciária portanto, as situações em que o cidadão já se encontra detido à ordem desta autoridade.

No requerimento apresentado, o requerente diz encontrar-se numa situação de prisão ilegal, por a sua privação da liberdade ser motivada por excesso de prisão preventiva, sendo, pois, inquestionável haver lugar à convocação do regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal.

2. Estabelece o art. 222º do C. Processo Penal:

1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos de pedido de habeas corpus são os taxativamente previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.

Como dissemos, a petição tem por fundamento a alínea c) transcrita, cuja previsão pode ser preenchida em diversas situações, devendo a sua verificação resultar da matéria de facto processualmente adquirida, conjugada com a legislação aplicável ao caso concreto.

O que é, no entanto, sempre imprescindível, é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909).

Com efeito, o habeas corpus é um remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt).

D. O caso concreto

1. O requerente sustenta a providência de habeas corpus, em síntese, na seguinte argumentação:

- Foi submetido à medida de coacção de prisão preventiva por despacho de ... de ... de 2022, que considerou existirem fortes indícios da prática de crimes;

- Estão decorridos já mais de dois anos sobre o início desta medida de coacção, e a decisão condenatória proferida nos autos ainda não transitou em julgado;

- Estando excedido o prazo máximo de prisão preventiva previsto no nº 2 do art. 215º do C. Processo Penal, sem que exista condenação transitada em julgado, e não tendo sido conferida ao processo à ordem do qual se encontra detido a sua excepcional complexidade, deve considerar-se extinta a medida de coacção, e determinada a sua imediata libertação.

Vejamos.

2. É fundamento da ilegalidade da prisão para efeitos do presente de pedido de habeas corpus, a manutenção da decretada prisão preventiva para além do prazo máximo fixado na lei (art. 222º, nº 2, c) do C. Processo Penal).

O requerente do habeas corpus foi condenado em 1ª instância, além do mais, pela prática de crime de associação criminosa e de um crime de branqueamento, ilícitos típicos que integram o conceito de criminalidade altamente organizada (art. 1º, m) do C. Processo Penal).

Assim, nos termos do disposto no nº 2 do art. 215º do C. Processo Penal, com referência à alínea d) do nº 1 do mesmo artigo, o prazo máximo de prisão preventiva, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado, é o de dois anos a contar do início da medida de coacção.

É precisamente nesta disposição legal – para além da Constituição da República Portuguesa e de vários instrumentos de direito internacional que cita – que o requerente suporta a ilegalidade da prisão preventiva a que está sujeito e a consequente pretensão da sua imediata libertação.

Sem razão, porém, como se passa a demonstrar.

O requerente foi condenado em 1ª instância pela prática dos crimes e nas penas parcelares que constam do ponto 3. dos factos relevados, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão.

O requerente recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão ... de ... de 2024, negando provimento ao recurso, confirmou, quanto a si, o acórdão recorrido.

Dispõe o nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal que, [n]o caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.

A elevação do prazo máximo de prisão preventiva prevista no preceito, pressupondo a condenação na 1ª instância, em pena de prisão, e a confirmação desta decisão no recurso interposto, não depende, como é evidente, do trânsito em julgado do acórdão que decidiu o recurso. Com efeito, a elevação do prazo verifica-se com a prolação do acórdão proferido em recurso, confirmatório da sentença condenatória da 1ª instância (Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, obra colectiva, 2021, Almedina, pág. 488).

Estão, pois, verificados os pressupostos de que depende, in casu, a aplicação do disposto no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, pelo que o prazo máximo de prisão preventiva passou a ser o de 3 anos e 6 meses.

Tendo tido início em ... de ... de 2022 a prisão preventiva a que o requerente está sujeito, face à elevação do prazo máximo para 3 anos e 6 meses, não se extinguirá antes de ... de ... de 2026.

3. Em conclusão, inverificado o invocado excesso do prazo de prisão preventiva, não se mostra preenchido o fundamento de habeas corpus previsto na alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, como, aliás, também se não verificam os fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do mesmo número e artigo.

Tendo o requerente suportado a pretensão deduzida na ultrapassagem do prazo máximo de dois anos de prisão preventiva, previsto no nº 2 do art. 215º do C. Processo Penal, ignorando o disposto no nº 6 do mesmo artigo, quando não podia desconhecer os crimes pelos quais foi condenado no acórdão proferido pela 1ª instância, as penas parcelares e única aí impostas, e a sua integral confirmação pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em recurso, também, por si interposto, é manifestamente infundada a petição de habeas corpus, pelo que, deve ser condenado no pagamento da soma prevista no nº 6 do art. 223º do C. Processo Penal, que se fixa em 10 UC.

*

*

*

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Indeferir o pedido de habeas corpus efectuado pelo requerente AA.

B) Condenar o requerente nas custas do processo, fixando em 3 UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa), e ainda na soma de 10 UC (art. 223º, nº 6 do C. Processo Penal).

*

(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).

*

*

Lisboa, 15 de Janeiro de 2025

Vasques Osório (Relator)

António Latas (1º Adjunto)

Jorge Reis Bravo (2º Adjunto)

Helena Moniz (Presidente da secção)