RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO OU SUBVENÇÃO
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
FRAUDE FISCAL
DUPLA CONFORME
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REVISTA EXCECIONAL
FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário


I. Apesar da autonomia do regime de recursos em matéria penal, e da irrecorribilidade da decisão em matéria penal em função do regime da “dupla conforme”, não é de considerar inadmissível o recurso de revista excecional, que vise sindicar exclusivamente a decisão sobre matéria civil, com base no disposto nos artigos 400.º, n.º 3, do CPP e 672.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC.
II. De acordo com o regime da dupla conforme em matéria civil, a título prévio, deve, assim, ser preliminarmente apreciada a admissibilidade da revista excecional pela formação deste STJ a que alude o art. 672.º, n.º 3, do CPC.

Texto Integral

Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão proferido em 08-01-2024 (Ref.ª Citius ...95) no Juízo Central Criminal de .../ Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi decidido julgar procedente a acusação contra o arguido e ora recorrente AA, melhor identificado nos autos, entre outros, e, em consequência:

«3. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:

d) um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo art. 36.º, n.º 1 al. c), 2 e 5 al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, (praticado até 31/10/2016), na pena de 3 (três) anos de prisão;

e) um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 1 al. k) e n.º 12 do Código Penal (praticado até ao final do ano de 2016), na pena de 2 (dois) anos de prisão;

f) um crime de fraude fiscal qualificada (IRS de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. b) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/03/2015), na pena de 2 (dois) anos de prisão;

g) um crime de fraude fiscal qualificada (IRC de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. a) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/05/2015), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas a) a c), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Mais se decide suspender na sua execução da pena de prisão pelo período de 5 (cinco) anos, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, bem como ao cumprimento, em alternativa, de uma das seguintes obrigações:

- proceder ao pagamento ao IFAP de quantia não inferior a € 12.000,00 [a descontar na obrigação de restituição que infra se estabelecerá, caso não seja cumprida antes disso], comprovando semestralmente nos autos o pagamento de € 1.200,00; ou

- prestar, com regularidade pelo menos quinzenal e com duração equivalente a pelo menos um período do dia, serviço de voluntariado a instituição de apoio a sem-abrigo ou pessoas carenciadas, comprovando-o trimestralmente nos autos.

4. Nos termos dos art.ºs 8.º, al. f) e 14.º, n. ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar os arguidos Q..., Lda., BB e AA, na pena acessória de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, pelo período de 3 (três) anos;

5. Nos termos do art. 39.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar, solidariamente, os arguidos Q..., Lda., BB e AA, a restituir ao IFAP a quantia de € 263.631,25 (duzentos e sessenta e três mil, seiscentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos).

***

6. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do Estado e, em consequência, condenar o arguido AA, a pagar ao demandante a quantia de € 250.122,43 (duzentos e cinquenta mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido ao arguido, até efectivo e integral pagamento.»

2. Inconformado com o acórdão proferido, o arguido e recorrente AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (doravante, também TRC), tendo este Tribunal proferido acórdão em 10-07-2024 (Ref.ª Citius ...25), pelo qual se decidiu julgar totalmente improcedente o recurso do arguido e confirmar na íntegra o acórdão recorrido.

3. Em face de tal decisão, interpôs o arguido recurso da mesma para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também STJ), em 11-09-2024 (Ref.ª Citius ...93), tendo concluído da forma seguinte (transcrição):

« A) O presente Recurso é interposto para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto no artigo 672º, nº1, al.a) e b), aplicável em sede de Processo penal por força do disposto no artigo do C. P. Penal, com o qual se pretende, por um lado, obter uma melhor clarificação e aplicação do direito às questões suscitadas, quer em sede de primeira instância, quer no Recurso apresentado para o Venerando Tribunal da Relação. E com especial relevância, quanto ao julgamento do pedido cível, dado que, quanto à parte cível, verifica-se a violação do principio constitucional do ne bis in idem e a violação quer do caso julgado, em sede cível, quer a verificação de litispendência em mesma sede.

B) Estas questões justificam a apreciação por este Mais Alto Tribunal, seja para melhor apreciação e aplicação do direito, seja pelo fato de, existindo jurisprudência divergente sobre tais questões, se justificar a respetiva pronúncia pelo Tribunal Superior.

C) Salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo não podia, com base nos mesmos fatos, por um lado, entender que existe fraude na obtenção de subsídios e, por outro lado, concluir que os mesmos valores obtidos através da fraude constituem rendimentos do ora recorrente e, como tal, tributados em sede de IRS.

D) O Acórdão recorrido, ao considerar, por um lado, que existiu fraude na obtenção de subsídio e, por outro lado, que o arguido AA fez “rolar” o valor do subsídio recebido, fazendo-o entrar na S..., preenchendo o tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio; e, por outro lado, que retirou, em proveito próprio, os mesmos valores da mencionada sociedade, devendo ser tributado por tais rendimentos em sede de IRS, labora em contradição lógica insanável.

E) Com efeito, ou o referido valor resultou de subsídio fraudulentamente obtido ou correspondente a rendimentos auferidos pelo arguido AA, o qual, por não os ter declarado em sede de IRS, preencheu o tipo legal de tipo de fraude tributária.

F) É factual, objetiva e logicamente impossível que o mesmo valor tenha sido utilizado para o preenchido dos dois tipos legais de crimes.

G) Perante tal impossibilidade objetiva, de duas, uma: ou o arguido é condenado na perda de vantagem pelo recebimento do subsídio indevido ou se entende que o arguido incorreu no crime de fraude tributária, devendo ser condenado no pagamento dos impostos devidos e os quais lhe foram exigidos em sede próprio, tal como resulta provados dos autos;

H) Como, reiteradamente, se deixou exposto nos autos, tal entendimento traduz um duplo julgamento e uma dupla condenação, com base nos mesmos fatos, em violação do princípio constitucional do ne bis in idem.

I) O Acórdão ora recorrido, tal como sucedera com a decisão de primeira instância, não se pronunciou, de forma clara e objetiva, no sentido de reconhecer que os factos em apreço eram (ou não) efetivamente os mesmos, o que, salvo melhor opinião, acarretará mesmo, a verificação do vicio de omissão de pronúncia, ferindo de nulidade a decisão, nos termos previstos nos artigos 615º, nº1, al.d) do C. P. Civil.

J) Impunha-se esta clarificação, dado que tais fatos devem ser tidos em conta como relevantes no preenchimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, mas não de burla tributária e, consequentemente, desta realidade de fato, impunha-se diferente julgamento do pedido de indemnização civil, em relação ao qual se deveria ter reconhecido a violação do caso julgado e a litispendência.

K) Deverá reconhecer-se que se verifica a violação do princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa. A consagração deste princípio constitucional tem como exigência a liberdade e a dignidade do individuo enquanto pessoa e cidadão, e visa impedir que os mesmos fatos sejam apreciados repetidamente, implicando a repetição uma perseguição penal sobre os mesmos factos, o que pode ocorre uma vez.

L) Existindo processo de execução fiscal pendente no Serviço de Finanças competente, não pode ser objeto de apreciação e decisão condenatória em sede de pedido cível no processo crime, sob pena de existir litispendência e violação de caso julgado;

M) O Tribunal a quo deveria ter reconhecido a exceção de caso julgado relativamente às liquidações tributárias e impostos em dívida perante a pendência de execução tributária, reconhecer a litispendência de procedimentos, nos termos do disposto nos artigos 576º e 577º, al. i) do C. P. Civil.

N) Se existe título executivo e processo de cobrança, não pode, tal valor, ser objeto de discussão, apreciação e decisão em processo declarativo cível enxertado em processo penal e, consequentemente, a decisão do pedido cível, poderia conhecer da diferença e do valor não incluído em processo executivo.

O) Citamos, a este propósito, a conclusão contante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Processo 312/17.4T8PTM.E1: “(…) Estamos assim perante causas de pedir idênticas e a absolvição do agora réu do pedido cível deduzido no processo penal, porque referida a fundamentos factuais e jurídicos iguais, forma caso julgado impeditivo do conhecimento desta ação cível. (…)”. E perante estes pressupostos, havendo um título executivo e um processo de cobrança relativamente a determinados valores, o Representante do Estado (MP) carece de legitimidade e interesse em agir em relação a tais valores.

P) O Acórdão recorrido incorre nos vícios constantes das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, viola as normas constantes dos artigos 576º e 577º, al.i) do C. P. Civil e viola o princípio, princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa.

Nestes termos e mais de direito, revogando o douto Acórdão, e substituindo-o por outro nos termos supra expostos, Vossas Excelências, como sempre, farão,

JUSTIÇA»

4. Por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRC, de 13-10-2024 (Ref.ª Citius ...88), o recurso do arguido não foi admitido «(…) quanto ao decidido no acórdão deste Tribunal da Relação atinente à parte criminal.», em razão do regime da “dupla conforme”, mas, relativamente à decisão respeitante ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos, foi decidido que «(…) entendemos ser o mesmo de admitir, ao abrigo do disposto no art. 672º do CPC, ex vi art 4º do CPP.».

Tal despacho não foi objeto de reclamação, pelo que o recurso apenas foi remetido a este STJ para apreciação da parte da decisão recorrida respeitante à confirmação da condenação do recorrente no pedido de indemnização civil.

5. Respondeu o Ministério Público junto do TRC, em 16-10-2024 (Ref.ª Citius ...76), pugnando pela improcedência do recurso.

6. Neste STJ, o Senhor Procurador-geral-adjunto aqui em funções emitiu parecer em 03-12-2024 (Ref.ª Citius ...04), no qual pugna pela improcedência do recurso, na parte passível de ser apreciado.

7. Notificado tal parecer ao arguido e aos assistentes e parte civil, para, querendo, se pronunciarem, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, os mesmos nada vieram requerer.

8. Não tendo sido requerida audiência, colhidos os vistos, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

9. Da admissibilidade do recurso (de revista excecional) relativamente à decisão em matéria civil.

Conforme referido em 4., o despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRC, de 13-10-2024, que não admitiu o recurso do arguido-demandado no tocante à decisão do acórdão confirmativo da decisão do tribunal de 1.ª instância em matéria penal, não foi objeto de oportuna reclamação, pelo que transitou em julgado, não havendo, assim, dúvidas de que a nossa pronúncia só se pode circunscrever ao segmento do recurso atinente à decisão do pedido de indemnização civil.

10. No que respeita à decisão do acórdão recorrido – do TRC – de confirmação da sua condenação civil, o recorrente-demandado funda a sua pretensão no regime do art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Cód. Processo Civil.

A este respeito, o arguido ensaia no seu recurso os fundamentos, já anteriormente suscitados no recurso para o TRC e por este considerados improcedentes, baseados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, com a finalidade de 1)obter uma melhor clarificação e aplicação do direito às questões suscitadas, quer em sede de primeira instância, quer no Recurso apresentado para o Venerando Tribunal da Relação” (Conclusão A)),

invocando, ainda, 2) a contradição com o decidido no «Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Processo 312/17.4T8PTM.E1: “(…) Estamos assim perante causas de pedir idênticas e a absolvição do agora réu do pedido cível deduzido no processo penal, porque referida a fundamentos factuais e jurídicos iguais, forma caso julgado impeditivo do conhecimento desta ação cível. (…)”. E perante estes pressupostos, havendo um título executivo e um processo de cobrança relativamente a determinados valores, o Representante do Estado (MP) carece de legitimidade e interesse em agir em relação a tais valores.» (Conclusão O)),

concluindo no sentido em que «E com especial relevância, quanto ao julgamento do pedido cível, dado que, quanto à parte cível, verifica-se a violação do principio constitucional do ne bis in idem e a violação quer do caso julgado, em sede cível, quer a verificação de litispendência em mesma sede.», violando a decisão recorrida «(…) as normas constantes dos artigos 576º e 577º, al.i) do C. P. Civil e viola o princípio, princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa.»

No caso em apreço nos autos, o TRC confirmou, com a mesma fundamentação, e sem qualquer voto de vencido/a, a decisão do tribunal de 1.ª Instância no que respeita ao pedido de indemnização civil, tendo sancionado a condenação do recorrente-demandado na quantia de € 250.122,43 (duzentos e cinquenta mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido ao arguido, até efetivo e integral pagamento, o que se reconduz a um regime de “dupla conforme” em sede de recursos em matéria civil – art. 671.º, n.º 3, do CPC.

Todavia, apesar da irrecorribilidade de princípio da decisão impugnada, decorrente do regime da “dupla conforme” em matéria civil (art. 671.º, n.º 3, do CPC), o recorrente invoca a verificação dos pressupostos do art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, ou seja, as razões por si indicadas na sua motivação de recurso, pelas quais a apreciação das questões que o mesmo suscita ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, e de o acórdão recorrido se encontrar em contradição com outro do Tribunal da Relação de Évora.

Tal apreciação prévia compete, porém, à formação de apreciação preliminar sumária deste STJ, a que alude o n.º 3 do art. 672.º do CPC.

Por ser assim, os autos serão remetidos, com tal finalidade, à aludida formação

III. Decisão

Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em remeter à formação a que alude o n.º 3 do art. 672.º do Código de Processo Civil, para apreciação preliminar sumária, o recurso de revista excecional do acórdão do TRC na parte da decisão em matéria cível, em que o recorrente visa a sua absolvição do pedido de indemnização civil (no qual foi condenado), nos termos supra descritos.

Sem tributação.

*

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, data e assinaturas supra certificadas

Texto elaborado e informaticamente editado, e integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

António Latas (1.º adjunto)

Vasques Osório (2.º adjunto)