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AÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário
A declaração de inutilidade superveniente da lide de ação de condenação baseada em responsabilidade civil extracontratual contra réu que vem a ser declarado insolvente encontra acolhimento no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2014, nos termos do qual, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado.
Texto Integral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório: AA, melhor identificada nos autos veio intentar, a 9 de março de 2023, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, melhor identificado nos autos, pedindo a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de € 4.248,39 (quatro mil duzentos e quarenta e oito euros e trinta e nove cêntimos), bem como os juros vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento; a condenação do Réu a pagar à Autora o montante de € 500,00 (quinhentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel, desde o dia 7 de maço de 2022 até efetiva entrega, o que perfaz a quantia de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), acrescido dos juros de mora que se vencerem relativamente a cada mês em dívida, em sede de indemnização do dano da privação de uso; a condenação do Réu a pagar ainda a título de danos não patrimoniais a quantia de 3.000,00€.
Alegou para o efeito e em resumo que ter sido casada com o réu, sob o regime de comunhão de adquiridos, desde ../../1979, casamento dissolvido por divórcio em ../../2018.
No âmbito do processo de inventário que correu os seus termos por apenso ao processo de divórcio com o nº ......, Juízo de Família e Menores de Fafe, a aqui Autora licitou as verbas 62 e 63 que lhe ficaram adjudicadas e que constituem dois prédios urbanos e as verbas nºs 1 a 4, 6 a 27 e 29 e 30 correspondentes aos bens móveis que se encontram na verba 62, sendo certo que, proferida sentença, transitada em julgado, homologatória da partilha constante do mapa de partilha, adjudicando a cada um dos interessados os bens que por ali lhes ficam a caber para preenchimento dos respetivos quinhões, tendo a autora procedido ao depósito das tornas devidas e ao registo dos prédios a seu favor, o Réu não procedeu, como lhe competia, à entrega dos bens que lhe foram adjudicados, não deixando livre os imóveis, onde reside como o novo agregado familiar, vendo-se, a Autora na obrigação de ter de liquidar os valores referentes à prestação mensal do crédito hipotecário, nem procedeu à entrega dos bens móveis deles fazendo pleno uso e fruição como se fossem seus.
Face a tal atitude, a Autora teve de deitar mão ao processo executivo para entrega de coisa certa, que corre termos por apenso ao processo com o nº 424/20...., Juízo de Família e Menores de Fafe, ainda sem qualquer resultado prático, facto que lhe acarreta mais prejuízos ao ter de despender recursos financeiros com o pagamento de honorários de advogado e outros encargos com o processo.
Acresce que o Réu, desde a realização da Conferência de Interessados, em ../../2022, também deixou de pagar mensalmente as prestações do crédito hipotecário a que estava obrigado, pois, em sede de divórcio ficou estipulado que a obrigação pelo pagamento do crédito bancário seria da responsabilidade do Interessado, pelo facto de a casa morada de família lhe ter ficado atribuída até ao momento da partilha, sendo que com vista a evitar a execução da hipoteca por parte do banco credor, a Autora, com sério esforço, assumiu esse encargo que não era da sua responsabilidade, pagando prestações que já ascendem na presente data a 1.848,39€ (mil oitocentos e quarenta e oito euros e trinta e nove cêntimos), valores que não entraram no mapa de partilha como crédito da Autora sobre o Réu.
A Autora viu-se na incumbência de ter de arrendar uma casa para poder viver pela qual paga a renda mensal de 200,00€.
Tal situação, por efeito do incumprimento do Réu quanto à entrega dos bens e no pagamento de valores que não lhe são devidos, lhe tem causado - e continua a causar -, prejuízos de natureza não patrimonial, sofrendo, e continuando a sofrer, a autora grande desgosto ao sentir que a sua postura de correção ao longo do processo de inventário foi beliscada de forma irreversível, de nada valendo os seus reiterados apelos, para que tal não sucedesse, passando a Autora a sofrer de insónias, tendo ainda provocado ansiedade, tristeza e dificuldades financeiras para gerir a sua vida, sentindo-se profundamente desrespeitada e humilhada com o comportamento do Réu, danos não patrimoniais passiveis de ressarcimento.
Citado, veio o réu apresentar contestação arguindo a incompetência absoluta em razão da matéria, a litispendência e impugnando ainda os factos alegados.
Porquanto foram os autos informados de que o Réu teria sido declarado insolvente pelo processo 4180/23...., que corre termos no Juízo de Comércio de Guimarães - J..., foi oficiado àquele processo de insolvência o envio de certidão de sentença aí proferida, com nota de trânsito em julgado e, em aditamento a tal despacho, solicitou-se ainda ao referido processo a indicação da identificação do Sr. Administrador de insolvência ali nomeado, bem como informação sobre o atual estado dos autos.
Junta que foi a informação solicitada foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem, no prazo de dez dias, a propósito da eventual extinção da presente instância, por inutilidade superveniente da lide.
Pronunciou-se a autora no sentido de que, não se encontram ainda reunidos os pressupostos para a eventual extinção da presente instância, por inutilidade superveniente da lide, assentando esse entendimento no facto de correrem por apenso os Embargos à Insolvência – Proc. nº 4180/23.... e, sobre esses Embargos não ter recaído qualquer decisão.
Acrescenta ainda a autora que continua a ter interesse, por utilidade, no prosseguimento da presente ação declarativa.
Solicitou-se ao processo de insolvência 4180/23...., a correr termos no Juízo de Comércio de Guimarães - J..., a remessa a estes autos certidão da sentença aí proferida, com nota de trânsito em julgado e, caso não tenha ainda transitado em julgado a sentença, informação sobre o atual estado daqueles autos.
Solicitou-se ainda ao processo de insolvência se a autora reclamou algum crédito bem como se foi admitido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante.
Dos autos consta que, a sentença que declarou a insolvência do réu, ora recorrido, proferida a 22 de agosto de 2023, transitou em julgado a 12 de setembro do mesmo ano.
O despacho que declarou encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente transitou em julgado a 8 de fevereiro de 2024.
Dos autos resulta ainda não ter sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência em sede de sentença, e decorrido que foi o prazo previsto no artº 188º do CIRE sem que haja sido alegado o que quer que seja quanto ao mesmo incidente, em face da decisão que antecede e ao abrigo do disposto no art. 233º nº 6 do CIRE, declarou-se o carácter fortuito da presente insolvência.
Obtidas as informações solicitadas foi então proferida sentença nos seguintes termos: Sobre as s ações compreendidas no artigo 85º do CIRE, a grande dúvida é o destino das ações declarativas que não se integram em nenhuma das hipóteses prevista na norma. Podem elas prosseguir os seus termos, ou devem extinguir-se por inutilidade superveniente a partir de certo momento? Ficam de fora, ou seja, sem destino aparente, as ações de impugnação pauliana e as ações declarativas de condenação do insolvente, sociedade comercial, no pagamento de um crédito. Faz sentido equacionar, em especial, a extinção das últimas ações por inutilidade: é que as sociedades se consideram extintas pro força do registo de encerramento do processo de insolvência após o rateio final (artigo 234º/3). Quanto à questão colocada, o Supremo Tribunal de Justiça veio uniformizar a jurisprudência no seguinte sentido: “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal, a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º/e, CPC”. Adotou-se, basicamente, a corrente que se baseia na ideia de que os credores só são pagos se o seu crédito for reconhecido no processo de insolvência, pelo que tais ações são inúteis, devendo ser declaradas extintas por inutilidade superveniente da lide após o trânsito e julgado da sentença de declaração de insolvência. Ainda assim, é possível que persistam dúvidas. Ora, conclui-se que somente em caso de inutilidade patente e absoluta deve ser declarada a extinção da instância. A verdade é que, pelos motivos já referidos, a decisão a proferir na ação extravagante não perde necessariamente o seu efeito útil por forçada declaração de insolvência. conserva-o plenamente nos casos de encerramento do processo de insolvência sem a realização do rateio final. A admitir-se o prosseguimento da acção contra o Réu insolvente, estar-se-ia a violar o princípio par conditio creditorum (princípio da igualdade entre credores), pois estar-se-ia a possibilitar que os Autores, ao poderem vir a obter através dela uma sentença condenatória contra a Ré, ficassem numa situação privilegiada face àqueles que se limitassem (em cumprimento da lei) a reclamar os seus créditos no processo de insolvência, já que estes ficam em tal âmbito sujeitos à impugnação dos demais credores (art. 130º nº1 do CIRE) e tal não acontece na acção. Face a al circunstancialismo, interpretado em conformidade com o disposto nos já referidos arts. 90º e 128º nº5 do CIRE, decorre a ausência de qualquer efeito útil no prosseguimento contra o Réu da acção declarativa e, por decorrência, a inutilidade superveniente da respectiva lide, com a consequente extinção da instância (art. 277º e) do CPC). Custas pelo R. Registe e Notifique”.
Inconformada com a decisão veio, da mesma recorrer a autora, formulando as seguintes conclusões:
(…)
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Objeto do recurso:
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim considerando o teor das conclusões apresentadas pela recorrente e atrás supra transcritas, importa ao recurso aferir se se encontram preenchidos os requisitos da inutilidade superveniente da lide, atendendo à declaração de insolvência do réu e, assim sendo, se é de aplicar ao caso o Acordão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, 1/2014, segundo o qual “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C”.
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III.Fundamentação de facto:
Com relevância para o presente recurso há a considerar a factualidade resultante do relatório supra.
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IV. Do direito:
Resulta dos autos que a ora recorrente instaurou, a 9 de março de 2023, contra o seu ex cônjuge ação destinada a obter o pagamento da quantia de € 4.248,39 (quatro mil duzentos e quarenta e oito euros e trinta e nove cêntimos), bem como os juros vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento; a condenação do mesmo a pagar-lhe o montante de € 500,00 (quinhentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel, desde o dia ../../2022 até efetiva entrega, o que perfaz a quantia de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), acrescido dos juros de mora que se vencerem relativamente a cada mês em dívida, em sede de indemnização do dano da privação de uso; e ainda a condenação daquele a pagar-lhe a título de danos não patrimoniais a quantia de 3.000,00€.
Alegou ter sido casada com o réu, ora recorrido, sob o regime de comunhão de adquiridos, desde ../../1979, casamento dissolvido por divórcio em ../../2018.
Acrescenta que no âmbito do processo de inventário que correu os seus termos por apenso ao processo de divórcio com o nº ......, Juízo de Família e Menores de Fafe, a recorrente licitou as verbas 62 e 63 que lhe foram adjudicadas e que constituem dois prédios urbanos e as verbas nºs 1 a 4, 6 a 27 e 29 e 30 correspondentes aos bens móveis que se encontravam na verba 62, sendo certo que, proferida sentença, transitada em julgado, homologatória da partilha constante do mapa de partilha, adjudicando a cada um dos interessados os bens que por ali lhes ficam a caber para preenchimento dos respetivos quinhões, e tendo a ora recorrente procedido ao depósito das tornas devidas e ao registo dos prédios a seu favor, o ora recorrido não procedeu, como lhe competia, à entrega dos bens que lhe foram adjudicados, não deixando livre os imóveis, onde reside como o novo agregado familiar, vendo-se, a recorrente na obrigação de liquidar os valores referentes à prestação mensal do crédito hipotecário, nem procedeu à entrega dos bens móveis deles fazendo pleno uso e fruição como se fossem seus.
Face a tal atitude, a ora recorrente teve de deitar mão ao processo executivo para entrega de coisa certa, que corre termos por apenso ao processo com o nº 424/20...., Juízo de Família e Menores de Fafe, ainda sem qualquer resultado prático, facto que lhe acarreta mais prejuízos ao ter de despender recursos financeiros com o pagamento de honorários de advogado e outros encargos com o processo.
Acresce que o recorrido, desde a realização da Conferência de Interessados, em ../../2022, também deixou de pagar mensalmente as prestações do crédito hipotecário a que estava obrigado, pois, em sede de divórcio ficou estipulado que a obrigação pelo pagamento do crédito bancário seria da responsabilidade do Interessado, pelo facto de a casa morada de família lhe ter ficado atribuída até ao momento da partilha, sendo que com vista a evitar a execução da hipoteca por parte do banco credor, a ora recorrente, com sério esforço, assumiu esse encargo que não era da sua responsabilidade, pagando prestações que já ascendem na presente data a 1.848,39€ (mil oitocentos e quarenta e oito euros e trinta e nove cêntimos), valores que não entraram no mapa de partilha como crédito daquela sobre o recorrido.
A ora recorrente viu-se na incumbência de ter de arrendar uma casa para poder viver pela qual paga a renda mensal de € 200,00.
Tal situação, por efeito do incumprimento do recorrido quanto à entrega dos bens e no pagamento de valores que não lhe são devidos, lhe tem causado - e continua a causar -, prejuízos de natureza não patrimonial, sofrendo, e continuando a sofrer, a autora grande desgosto ao sentir que a sua postura de correção ao longo do processo de inventário foi beliscada de forma irreversível, de nada valendo os seus reiterados apelos, para que tal não sucedesse, passando a ora recorrente a sofrer de insónias, tendo ainda provocado ansiedade, tristeza e dificuldades financeiras para gerir a sua vida, sentindo-se profundamente desrespeitada e humilhada com o comportamento do recorrido, danos não patrimoniais passiveis de ressarcimento.
Resulta pois, do acima referido, que a ora recorrente instaurou contra o recorrido, a 9 de março de 2023, uma ação de condenação na qual, invocando uma conduta ilícita daquele, ao não entregar à recorrente os bens que à mesma lhe foram adjudicados em sede de inventário e ao não pagar as prestações relativas a crédito bancário que sobre o mesmo impendiam, pede o pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, resultantes de tais condutas.
Daqui resulta que os danos que pretende ver indemnizados são anteriores à data em que instaurou a mesma ação, a saber, 9 de março de 2023.
Acontece que, por sentença decretada a 22 de agosto de 2023 e transitada em julgado a 12 de setembro do mesmo ano, veio o réu, ora recorrido a ser declarado insolvente, entendendo a decisão recorrida que a tal situação é aplicável o Acordão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2014.
Em sede de recurso vem a recorrente opor-se a tal decisão arguindo que, tendo invocado como causa de pedir em sede da presente ação, a responsabilidade civil extracontratual, ou seja, por factos ilícitos, tal torna inaplicável o Acordão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Jurisprudência nº 1/2014, segundo o qual “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C”.
Da leitura das conclusões acima expostas, a saber, VII, VIII, X, XII, resulta que tal Acordão visa apenas as ações destinadas a reconhecer créditos derivados de relações pré-existentes e não ao pagamento de uma indemnização a título de responsabilidade civil por factos ilícitos, concluindo-se ainda, sob IX, que está em causa saber se os créditos com origem em responsabilidade civil podem ser reconhecidos em processo autónomo, créditos a pagar de acordo com o regime do artº 181º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Importa pois apurar se os créditos, como os do caso em apreço, que resultem de responsabilidade civil se encontram, face a uma declaração de insolvência do devedor, ao abrigo do Acordão em causa, como entende a decisão em causa, e se os mesmos podem ser reconhecidos em processo autónomo, créditos esses que seriam pago de acordo com o regime do nº 1 do artº 181º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Vejamos, pois, o que a propósito estabelece o Código da Insolvência e Recuperação de Empresa, doravante CIRE.
Estabelece nº 1 do artº 1º do C.I.R.E. que “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
Ou seja, o processo de insolvência é um processo de execução universal que visa a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
Por seu lado, estabelece o nº 1 do artº 47º do referido diploma legal que “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”, sendo que, conforme resulta do nº 2 do citado preceito “Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência”.
Conforme resulta do nº 4 do citado preceito, os créditos sobre a insolvência incluem os créditos privilegiados e que beneficiem de garantias reais, os subordinados e os comuns, os demais créditos.
Ora, de acordo com o nº 1 do artº 128º do referido diploma legal, dentro do prazo fixado para o efeito na sentença que declara da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público, na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, indicando, a sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros; as condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; a existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; a taxa de juros moratórios aplicável e o número de identificação bancária ou outro equivalente, sendo tal requerimento, nos termos dos nºs 2 e 3, endereçado ao administrador da insolvência e apresentado por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no nº 2 do artº 17º e sempre que os credores da insolvência não estejam patrocinados, apresentado no domicílio profissional do administrador da insolvência ou para aí remetido por correio eletrónico ou por via postal registada, devendo o administrador, respetivamente, assinar no ato de entrega, ou enviar ao credor no prazo de três dias da receção, comprovativo do recebimento, sendo o envio efetuado pela forma utilizada na reclamação.
Nos termos do seu nº 5, tal verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, sendo que, mesmo o credor que tenha o seu crédito já reconhecido por decisão definitiva não se encontra dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.
Relevante se mostra ainda o disposto no artº 90º do até aqui citado diploma legal, segundo o qual “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
Como refere o Acordão da Relação do Porto de 25 de setembro de 2023, relatado pela Srª Desembargadora Teresa Fonseca, in www.dgsi.pt onde se aprecia questão similar à dos presentes autos, “A questão essencial que determina a solução do pleito reside, afinal, em que os efeitos da insolvência têm subjacente o princípio par conditio creditorum. Este visa impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores. O princípio da igualdade entre credores é um princípio geral de direito segundo o qual os credores de um devedor devem ser tratados de forma igual, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas”.
Ora, é nesse sentido que, conforme resulta do nº 1 do artº 85º do CIRE, sob a epígrafe “Efeitos sobre as ações pendentes” “declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo” e nos termos do nº 2 do artº 89º do mesmo diploma, sob a epígrafe “ações relativas a dívidas da massa insolvente” resulta que “As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária”.
Conduz-nos a leitura destes preceitos a concluir que a reclamação de créditos em processo de insolvência não depende da existência de um título executivo, não sendo necessário que a garantia real representada pelo direito de retenção se mostre reconhecida por sentença.
Resulta ainda que a intervenção, na insolvência, dos credores do insolvente, se encontra aberta a todos os credores, seja qual for a natureza ou fundamento do seu crédito, sendo que o reconhecimento do crédito e da garantia pode ocorrer no contexto da ação de insolvência, no processo de verificação e graduação de créditos.
Destes preceitos resulta ainda a obrigatoriedade de os credores do insolvente exercerem os seus direitos, na pendência do processo de insolvência, nos termos determinados no C.I.R.E., ou seja, segundo os meios processuais regulados neste Código.
Relevante se mostra ainda o artº 173º do C.I.R.E. que, sob a epígrafe “Inicio do pagamento dos créditos sobre a insolvência”, determina que “o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado”.
Ou seja, e como decorre do Acordão da Relação do Porto atrás citado “Por força dos normativos legais supra enunciados, haja ou não decisão judicial a reconhecer o crédito na instância declarativa, nem por isso o credor está a salvo de ter de o reclamar no processo de insolvência. O processo de insolvência visa a colocação de todos os credores em posição de igualdade jurídica perante o património da insolvente, mediante o chamado concurso universal de credores. O reconhecimento de direitos de crédito sobre o insolvente através de ações declarativas de condenação em que apenas um de entre vários credores é parte abriria a porta a eventuais situações de conluio e favorecimento - basta lembrar expedientes como a não contestação de ações, omissão de apresentação de prova, confissão dos factos ou do pedido. Declarada a insolvência, os titulares dos créditos referidos deixam de ser credores do devedor insolvente, passando a ser credores da insolvência. Impende sobre os credores o ónus de exercerem os seus direitos segundo os meios processuais determinados no C.I.R.E.. Forçosamente, terão de lançar mão da reclamação dos créditos de que sejam titulares. Todo e qualquer credor da insolvência deve reclamar o seu crédito no processo de insolvência, de forma a aí poder ser ressarcido dele. Consigna Artur Dionísio Oliveira (Estudo publicado na revista Julgar n.º 9, Setembro/Dezembro 2009, p. 183) que do disposto no art.º 128.º/3 “resulta que o reconhecimento judicial do crédito no âmbito de uma ação intentada pelo respetivo titular contra o devedor/insolvente não tem força executiva no processo de insolvência. Só a sentença que, neste processo, julgar verificado esse crédito terá essa força. E isto é assim porque (…) o legislador quis conferir a todos os credores a possibilidade de discutir o passivo do insolvente, na medida em que a verificação desta acaba por interferir com o grau de satisfação de cada um dos créditos”. Atente-se em que é hoje consensual - por ser esse claramente o escopo do regime legal da insolvência - que o propósito da insolvência não reside tanto na recuperação do insolvente, como na proteção dos credores. É neste sentido que se vem entendendo que, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a ação que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a insolvente, deve, em qualquer caso, ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, de harmonia com o disposto no art.º 287.º/e do C.P.C”.
Diga-se que o Acordão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2014 reflete precisamente esta posição, fixando-se que “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C”, sendo certo que, conforme decorre do nº 1 do artº 173º do CIRE “Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efetuando-se a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação”.
Resulta pois deste Acordão que durante a pendência do processo de insolvência pretendendo os credores reclamar os seus créditos terão de o fazer nesse processo, de acordo com os meios processuais determinados no CIRE, deixando pois, o prosseguimento de ações declarativas tendentes ao reconhecimento de créditos, de ter utilidade.
E será, como pretende a recorrente que, ao caso sub judice, se aplique o Acordão de Fixação de Jurisprudência 5/2018, do Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que tendo o seu crédito origem em responsabilidade extra-contratual, não seria de aplicar o AFJ 1/2014, devendo, em consequência revogar-se a sentença proferida que absolveu o ora recorrido da instância?
Vejamos.
De acordo com o Acordão 5/2018, é fixada a seguinte jurisprudência “A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização cível deduzido em processo penal”.
Resulta deste mesmo Acórdão que: “4. De tudo o exposto concluímos que: Por força do princípio de adesão, o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, apenas no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71.º a 84.º, do CPP). Só após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar. E somente quando não ocorra o cumprimento desta obrigação e após o vencimento da dívida[33] assiste ao credor o direito intervir no processo de insolvência para obter o pagamento da dívida pelo produto da liquidação dos bens do devedor. Deverá, então, ser reclamado o crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. arts. 1.º, 3.º, 47.º, 90.º, 128.º, 146.º, n.º 1, e 230.º, do CIRE). A declaração de insolvência do responsável civil não tem por efeito a apensação do processo penal ao processo de insolvência, a qual se limita às ações mencionadas nos arts. 85.º e 86.º, do CIRE, para julgamento pelo tribunal da insolvência, cuja competência nunca se estende ao processo penal. O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, cujo conhecimento é da competência do tribunal penal, não se confunde com uma ação declarativa para reconhecimento de crédito, a que se refere o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014. Na falta de composição extrajudicial do litígio, sendo o processo penal o único meio de o lesado ver reconhecido o seu direito a indemnização, a declaração de insolvência do demandado não constitui motivo gerador de inutilidade superveniente da ação civil “enxertada” naquele processo”.
Ora, salvo o devido respeito por contrária opinião, entendemos que este Aresto, não tem aplicação ao caso em apreço e isto porque, como refere o Acordão da Relação do Porto atrás referido e que aqui serve inteiramente, “Não há similitude ou identidade de razões entre crédito com origem extra-contratual e indemnização cível com origem na prática de crime”.
Efetivamente, no caso sub judice, não nos encontramos perante um pedido de indemnização cível enxertado no processo penal, sendo certo que este último não é, por efeito da leitura dos artºs 85º e 86º do CIRE, e face à declaração de insolvência do responsável civil, de apensar ao processo de insolvência.
Resulta ainda que competência do tribunal da insolvência não se estende ao processo penal e consequentemente ao pedido de indemnização cível ali deduzido.
Diga-se ainda que não fossem os motivos atrás aduzidos que levam a afastar o AFJ 5/2018, entendemos ainda que nada nos autos nos leva a alterar a jurisprudência firmada pelo AFJ 1/2014, apenas porque o crédito peticionado tem como causa a responsabilidade extra contratual e isto porque, conforme já atrás ficou exposto, resulta do nº 5, do artº 128º do CIRE que “a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.
Efetivamente, como refere a este propósito o Acordão da Relação do Porto atrás citado “Assim, independentemente de a origem da obrigação do devedor insolvente ser contratual ou extracontratual o crivo reclamatório é precisamente o mesmo”, tendo-se aqui, “(…)por isso, inteira aplicação o brocardo latinoubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”.
Vem ainda a recorrente pretender o afastamento do AFJ 1/2014, arguindo o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019.
Resulta deste Aresto que “I.Estando em curso, à data da declaração de insolvência do devedor, uma acção em que o credor pede a declaração de nulidade de certos negócios em que interveio o devedor, o trânsito em julgado da sentença declaratória de falência não determina a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide. II. As acções deste tipo (i.e., para declaração de nulidade de negócios) não se integram na categoria das “acções em que se apreciam questões relativas a bens compreendidos na massa” e por isso podem prosseguir autonomamente ao processo de falência”.
Resulta da leitura deste Aresto que em causa estão os efeitos do trânsito em julgado da sentença de declaração de falência sobre a acção proposta pelo autor, no que respeita ao pedido de declaração de nulidade de certos negócios em que intervieram o falido e terceiros antes da declaração de falência
Efetivamente, como do mesmo resulta “Trata-se, em síntese, de saber se o trânsito em julgado da sentença de declaração de falência impede / impossibilita o prosseguimento deste tipo de acções”.
(…) Se não veja-se o que se dispõe no regime dos efeitos da falência em relação ao falido (cfr. artigos 147.º e s. do CPEREF) e, mais precisamente, no regime dos efeitos em relação aos negócios jurídicos do falido (cfr. artigos 151.º e s. do CPEREF). Encontra-se aí uma norma – a norma do artigo 154.º do CPEREF –, com a epígrafe “[a]pensação de acções e outros efeitos”, que regula os efeitos da declaração de insolvência sobre as acções – os efeitos da declaração de insolvência ditos “processuais”.
Aportando restrições aos poderes processuais dos credores, a norma concretiza o princípio par conditio creditorum[7]. Preceitua ela o seguinte: “1 - Declarada a falência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, são apensadas ao processo de falência, desde que a apensação seja requerida pelo liquidatário judicial, com fundamento na conveniência para a liquidação. 2 - O disposto no número anterior não é aplicável às acções sobre o estado e a capacidade das pessoas. 3 - A declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”. Não sendo, visivelmente, caso para aplicar o preceituado nos n.ºs 2 e 3 da norma, só poderia ser relevante o disposto no n.º 1. Sucede que, não obstante a acção correspondente ao pedido em causa nos autos ser uma acção de tipo declarativo, como as que são reguladas na norma, ela não é uma acção em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida mas sim uma acção em que se apreciam questões relativas à validade de certos negócios envolvendo o falido e terceiros. A norma e, logo, a medida nela prevista (curso da acção por apenso) não é, pois, aplicável a esta acção[8], cabendo descortinar o seu destino: prossegue ela depois da e apesar da declaração de falência (curso em paralelo e com autonomia relativamente ao processo de falência) ou, pelo contrário, deve extinguir-se? Não existindo no CPEREF nenhuma norma que determine, em especial, a sua extinção na sequência da declaração de insolvência ou sequer na sequência do trânsito em julgado desta sentença, não resta senão crer que ela prossegue os seus termos excepto se e quando se demonstre que ocorreu alguma das causas gerais legalmente previstas para a sua extinção. As causas gerais da extinção da instância estão elencadas no artigo 277.º do CPC. São elas, por um lado, o julgamento – a causa que José Alberto dos Reis classifica como “única causa normal de extinção da instância” – e, por outro lado, o compromisso arbitral, a deserção, a desistência, a confissão e transacção e, por fim, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide – as causas que a causa que José Alberto dos Reis classifica como “causas anormais ou excepcionais de extinção da instância”[9]. Verifica-se a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide [cfr. artigo 277.º, al. e), do CPC] quando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, for patente que a decisão a proferir pelo julgador deixou de ter interesse, seja porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo (casos de impossibilidade), seja porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (casos de inutilidade)[10]. Nestes casos – mas apenas nestes casos – deve ser declarada a extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade superveniente. Verificar-se-á no caso dos autos alguma destas situações? Será, designadamente, o trânsito em julgado da sentença declarativa de falência, ocorrido em 13.02.2017 (portanto durante a pendência da acção), um facto susceptível de originar a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide, no que respeita ao 2.º pedido? A resposta deve ser negativa. (…) Acontece que, como se viu atrás, a acção para declaração de nulidade não faz parte das acções sobre as quais a lei prevê que recaiam aqueles efeitos: não se integra no grupo das acções legalmente sujeitas à apensação, por força do artigo 154.º, n.º 1, do CPEREF; não se integra na categoria das acções executivas que estão legalmente sujeitas à impossibilidade de instauração e à suspensão, por força do artigo 154.º, n.º 3, do CPEREF. Em obediência do disposto no artigo 9.º, n.º 3, do CC, deve presumir-se que esta delimitação foi deliberada, reflectindo o entendimento do legislador de que os efeitos se justificam apenas nos casos expressamente abrangidos e não, como afirmam os recorrentes, que o prosseguimento da acção só seria possível se houvesse alguma norma que, expressamente contemplasse tal situação (cfr. conclusão 37.ª) A solidez da presunção legal é reforçada, in casu, quando se confrontam a finalidade da acção, no que respeita ao 2.º pedido, e a(s) finalidade(s) do processo de falência. Sendo a finalidade da acção, no que respeita ao 2.º pedido, a declaração de nulidade de certos negócios em que intervieram o devedor e terceiros e a finalidade principal do processo de falência o pagamento aos credores, diria alguém que aquela acção é impossível ou sequer inútil? Dizem-no, apesar de tudo, os recorrentes. Entendem eles que a acção, nesta parte, é impossível porque, tendo o crédito do autor sido reclamado e verificado no processo de falência, ele já não detém qualquer crédito na presente acção (cfr., especialmente, conclusões 10.ª, 34.ª e 38.ª das alegações). Como se disse acima, a finalidade da acção, no que respeita ao 2.º pedido, é a declaração de nulidade de certos negócios. Sendo o autor um credor do falido é natural que se pense de imediato no disposto no artigo 605.º do CC, como fazem os recorrentes. Segundo esta norma, os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, independentemente de estes serem anteriores ou posteriores à constituição do crédito e de os actos serem susceptíveis de produzir ou agravar a insolvência do devedor, posto que tenham interesse na declaração de nulidade. Em comentário ao artigo 605.º do CC, dizem Pires de Lima e Antunes Varela que ““[e]m rigor, a doutrina deste artigo parece ser desnecessária em face do que está disposto, genericamente, no artigo 286.º. Tem legitimidade nos termos deste último artigo, para a acção de nulidade (…), qualquer interessado, e os credores são interessados nas respectivas declarações”[11][12]. Concluem os autores que o artigo não é, afinal, completamente inútil, vindo esclarecer certas dúvidas – mas só certas dúvidas –, designadamente, quanto à legitimidade do credor ser independente da susceptibilidade de os actos provocarem ou agravarem a insolvência do devedor. Quer dizer: se alguma coisa aporta à disciplina geral da nulidade (da qual resulta – recorde-se – que “[a] nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”), o artigo 605.º do CC confirma ou reforça a ideia de que, como qualquer outro sujeito, também o credor tem legitimidade para a acção. A qualidade de credor não é, pois, necessária, sendo o único requisito, comum a todos os sujeitos, a titularidade de um interesse na declaração de nulidade. Ora, é indiscutível que o autor tem um interesse na declaração de nulidade. Isto porque, ao contrário do que parecem pensar os recorrentes, é indiscutível que o autor é credor do falido. Tendo o crédito sido reclamado e reconhecido no processo de falência, mais do que credor, ele é um credor reconhecido, o que significa que o credor concursual se transformou em credor concorrente[13], ou seja, adquiriu o direito de ser pago proporcionalmente pelo produto da venda da massa falida (cfr. artigo 604.º, n.º 1, do CC). Como credor (credor reconhecido), ele tem um interesse concreto na declaração de nulidade, porquanto, por efeito desta, o bem poderá regressar ao património do falido (cfr. artigo 289.º, n.º 1, do CC) e isso torna mais provável a satisfação do seu crédito. Não deixa de se notar – com o intuito de esclarecimento – que os recorrentes parecem, por vezes, identificar os dois pedidos formulados na acção (cfr., por exemplo, conclusão 30.ª das alegações). Ora, aquilo que está em discussão no 2.º pedido não é o crédito detido pelo autor, mas sim a nulidade de certos negócios em que intervierem o devedor e terceiros e aquilo que o autor pretende, através do 2.º pedido, não é o reconhecimento do seu crédito mas sim a declaração de nulidade dos negócios. Na primeira hipótese é equacionável, a partir de certa altura, a inutilidade superveniente da lide[14], mas não na segunda. Outras vezes, estabelecem os recorrentes um nexo de dependência entre os dois pedidos: sendo inútil o primeiro pedido (não sendo o crédito reconhecido na acção), o segundo tornar-se-ia impossível (cfr., por exemplo, conclusão 51.ª das alegações). Ora, como já se viu, a legitimidade para o pedido de declaração de nulidade não pressupõe a qualidade de credor; pressupõe apenas o interesse do sujeito na declaração. Seja como for, e como também já se viu, tendo o crédito sido reconhecido no processo de insolvência, não falta ao autor a qualidade de credor e, sobretudo, não lhe falta o interesse em agir, que é a única condição para a sua legitimidade processual. Repete-se: o reconhecimento do crédito no processo de insolvência torna inútil, a certa altura, o 1.º pedido, mas, no que respeita ao 2.º pedido, aquele reconhecimento, se alguma coisa, só facilita. Sustentam ainda os recorrentes que o tipo de acções em causa é reconduzível aos instrumentos legalmente dispostos contra os actos prejudiciais à massa. No recurso a estes instrumentos, o liquidatário judicial tem uma legitimidade processual activa “preferencial”, uma vez que é ele quem actua no interesse de todos os credores, não sendo possível, tão-pouco por esta razão, aquela acção prosseguir (cfr., em particular, conclusões 39.ª, 40.ª, 44.ª e 46.ª das alegações). É verdade que a lei da falência prevê dois instrumentos especiais para reagir contra os negócios prejudiciais à massa praticados pelo devedor antes da declaração de falência (no “período suspeito”): resolução em beneficio da massa (cfr. artigos 156.º, 159.º e 160.º do CPEREF) e a impugnação pauliana (“pauliana colectiva”, na versão do CPEREF[15]) (cfr. artigos 157.º a 160.º do CPEREF). E é verdade que a acção para declaração de nulidade proposta por credores é regulada em especial entre os meios de conservação da garantia patrimonial (cfr. artigo 605.º do CC), a par da impugnação pauliana (cfr. artigos 610.º e s. do CC), sendo quase irresistível, por causa disso, aproximá-las. Mas, primeiro, a acção para declaração de nulidade não é um instrumento exclusivo dos credores[16], sendo, como se viu, o artigo 605.º do CC uma mera explicitação da regra do artigo 286.º do CC. Depois, os pressupostos e as finalidades dos instrumentos não coincidem[17]. Concentrando a atenção, em exclusivo, nas finalidades, de imediato se vê que, tanto a resolução em benefício da massa como a impugnação pauliana visam resultados diferentes da acção para declaração de nulidade, não sendo admissível dizer que o recurso a umas preclude o recurso à outra ou que o interesse que justifica o recurso a umas se esvazia com o recurso à outra e vice-versa. A resolução em benefício da massa e a impugnação pauliana determinam que certos actos praticados pelo falido não produzam os seus efeitos relativamente à massa, deixando incólume a sua validade. Ora, o que se pretende com a acção para declaração de nulidade é, justamente, que certos negócios – negócios em que não interveio apenas ou isoladamente o falido – sejam declarados inválidos (nulos). Isto basta para demonstrar que existe uma diversidade funcional e de alcance entre os dois tipos de instrumentos, para demonstrar que um eventual recurso, por parte do liquidatário judicial ou dos credores[18], à resolução em benefício da massa ou à impugnação pauliana não só nunca tornaria impossível ou ilógico o prosseguimento daquela acção como nunca lhe retiraria a utilidade[19]. Diga-se, a terminar, que o prosseguimento da acção no que toca ao pedido de declaração de nulidade em nada belisca o carácter universal do processo de falência, consignando-se no n.º 2 do artigo 605.º do CC que “[a] nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais”. Quer dizer: se a acção for julgada procedente, os benefícios aproveitam a todos os credores do falido – o que é mais uma razão, agora no plano estritamente prático, favorável ao seu prosseguimento. Em conclusão, a decisão do Tribunal da Relação do Porto, em sentido favorável ao prosseguimento da acção relativamente ao 2.º pedido formulado, não merece censura e, ao contrário do que foi alegado (cfr. conclusão 52.ª das alegações), muito menos comporta violação das normas dos artigos 156.º, 157.º. 159.º e 160.º do CPEREF e do artigo 277.º, al. e), do CPC”.
Ora, salvo o devido respeito por contrária opinião, entendemos que este Aresto, não tem aplicação ao caso em apreço e isto porque, atentas as causas de pedir, diversas, numa a responsabilidade civil emergente de factos ilícitos e a outra a nulidade de negócios celebrados, não há qualquer similitude ou identidade entre ambas.
Não existindo motivos para afastar a aplicação do AFJ 1/2014, necessariamente improcede o recurso.
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V. Decisão:
Considerando quanto vem exposto acordam os Juízes desta Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida