I – A providência cautelar carateriza-se por revestir um carácter instrumental e provisório, porquanto limita-se a proteger o efeito útil da sentença a ser proferida na ação principal, evitando, durante a pendência desta, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.
II – Porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na ação principal, da qual depende.
III – Só pode solicitar-se uma providencia cautelar atípica, dando início a um procedimento cautelar comum, quando se pretende prevenir o risco de lesão excluído dos limites materiais de algum dos procedimentos cautelares típicos, designadamente os previstos nos arts. 377º e segs. do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Requeridos/Recorrentes: AA e marido BB;
Requerente/recorrido: CC,
I. Relatório
CC instaurou procedimento cautelar comum contra AA e marido BB, pedindo que, com dispensa de citação prévia, sejam os requeridos condenados a:
a) a verem declarado e a reconhecerem a posse e o direito de propriedade do requerente relativamente ao prédio descrito no artigo 2.º, e a respeitar esse mesmo direito;
b) a verem declarado e a reconhecerem, a favor do requerente, que o seu prédio, o inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...12 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...60 da freguesia ..., está onerado com uma servidão legal de presa a favor do prédio do requerente na alínea a) desde pedido, cujo conteúdo consiste no direito de represar e derivar, para o prédio do autor, a água existente no prédio serviente, por meio de um poço e canalização que colhe e conduz as águas em causa;
c) a reporem de imediato no dito poço os mecanismos, com todos os seus componentes, que regulam a circulação e distribuição da água, designadamente a tubagem e chupador artesianos, bem como a canalização de condução da água até ao prédio do requerente;
d) a absterem-se de estorvar, desviar, cortar, tamponar e/ou impedir, seja de que modo e para que fim for, a circulação da água para e/ou a favor do prédio do requerente;
e) a pagarem ao requerente por todo o tempo que estiver e continuar privado da água a quantia diária de € 200,00;
f) a indemnizarem o requerente pelos demais prejuízos, cujas consequências ainda não estão determinadas, a liquidar por sentença.
Subsidiariamente, e para o caso de se vir a entender não ser esta a providência a requerer com vista a satisfazer a situação que se pretende acautelar, requerem a V. Exª que se ordene aos requeridos:
g) a restituição e reposição do “status quo ante” de acordo com a providência que ao caso for julgada adequada, restabelecendo e/ou desobstruindo, além do mais, todos os impedimentos/obstáculos à circulação, utilização e fruição da água, ao acesso e visita ao poço e respetiva canalização, incluindo a entrega de chave do portão de acesso ao prédio serviente.
Mais requer a condenação dos Requeridos a pagarem, em qualquer das situações, a título de sanção pecuniária compulsória, destinada em partes iguais ao Estado e ao Requerente, por cada vez que violem ou se recusem a acatar a decisão que vier a ser proferida, mormente voltem a cortar, dificultar, desviar e/ou impedir, por qualquer modo, a circulação da água e ao acesso ao poço e respetiva canalização, sanção essa que deverá ser fixada em montante não inferior a € 5.000,00.
Este último foi “destacado” do identificado prédio de que o requerente é comproprietário, por operação urbanística levada a cabo no ano de 2018, tendo posteriormente sido doado à requerida mulher pelo requerente e pela comproprietária do dito imóvel.
No prédio destacado, hoje pertencente à requerida, encontrava-se implantado um poço que garante o abastecimento de água ao no prédio do requerente, quer para o uso doméstico, na ali existente quer para usos agrícolas.
O imóvel do requerente não é servido pela rede de águas municipais, pelo que a única forma de abastecer água ao mesmo é através do mencionado poço.
De resto, há mais de 20 anos que a água desse poço é conduzida, com o auxílio de uma bomba elétrica, para o prédio do requerente, tanto para uso doméstico, como para uso agrícola.
Sucede que, após terem sido citados para a ação principal, os requeridos passaram a atuar, reiterada e persistentemente, de forma a impedir o fornecimento de água para uso doméstico e agrícola do prédio do requerente, designadamente, retirando o tubo de condução de águas e o chupador artesiano que existe no mencionado poço e se destina a conduzir as águas para aquele prédio; cortando e retirando, na saída do poço, a canalização subterrânea e fixando com cimento a tampa de acesso ao mesmo.
A situação descrita impede o abastecimento de água à habitação ali existente, onde residem o requerente, uma filha, o companheiro desta e as duas filhas menores de ambos, situação que lhes causa graves prejuízos.
Concluem pela verificação de todos os pressupostos legais de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.
“Julgo parcialmente procedente o presente procedimento cautelar e, em consequência:
1. Declaro que o requerente é proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ... em ..., inscrito na matriz predial no artigo ...02, da respetiva freguesia e, descrito sob o número ...55 da Conservatória do Registo Predial ..., da respetiva freguesia, e condeno os requeridos a reconhecerem tal facto.
2. Declaro que a favor do prédio urbano identificado em 1. e a onerar o prédio urbano, composto por terreno para construção, sito na Rua ..., Estrada ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...12 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...60 da respetiva freguesia, se mostra constituída, por destinação do pai de família e por usucapião, uma servidão de águas, com a configuração referida em 9. a 11. e 14 dos factos provados, pelo que, condeno os requeridos a reconhecerem tal facto.
3. Condeno os requeridos a procederem, no prazo máximo de 24horas após o conhecimento da presente decisão, à reposição do mecanismo de captação da água do poço tendo em vista o abastecimento do prédio do requerente.
4. Condeno os requeridos a pagarem ao requerente e ao Estado, em partes iguais, uma sanção pecuniária compulsória no valor diário de € 200,00 (duzentos euros) por cada dia de atraso na reposição do mecanismo de captação de água do poço para abastecimento do prédio do requerente; e a suportar o pagamento da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), por cada infração cometida pelos requeridos que impeça, obste ou dificulte a captação da água pelo requerente, contado a partir do conhecimento da presente decisão.
5. Julgo improcedente o pedido de indemnização deduzido contra os requeridos, absolvendo-os do mesmo.
6. Condeno o requerente nas custas do procedimento cautelar caso não venha a ser deduzida oposição, mas a atender na ação respetiva.
(…).
A decisão recorrida considerou indiciariamente provados os seguintes factos:
1. O prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ... em ..., inscrito na matriz predial no artigo ...02, da respetiva freguesia e, descrito sob o número ...55 da Conservatória do Registo Predial ..., da respetiva freguesia, encontra-se titulado a favor de CC e de DD, desde 15.11.1999.
2. O prédio, melhor descrito em 1., é utilizado pelo requerente e DD, sua ex-mulher, há mais de 40 anos, tendo lá residido com as filhas EE e AA, enquanto solteiras, de forma pública, pacífica, contínua, dele retirando todas as utilidades possíveis, nele habitando, fazendo refeições, descansando, criando suas filhas, recebendo familiares e amigos, ocupando os períodos de descanso e tempos livres, aproveitando o quintal para cultivar e manter géneros hortícolas e criação de aves de capoeira, limpando, melhorando quer a parte urbana, quer o quintal, pagando as respetivas contribuições e providenciando o fornecimento de energia elétrica e água potável.
3. A utilização do prédio, melhor descrita em 1., pelo requerente e sua ex-mulher, é feita aos olhos de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e convencidos de sobre ele exercem um direito próprio como seus únicos donos.
4. A habitação implantada no prédio melhor descrito em 1. não está ligada à rede pública de esgotos, nem tem ligação à água da companhia, sendo abastecida por água de um poço artesiano, aberto pelo requerente há mais de 20 anos, com o auxílio de uma bomba elétrica e aparelhagem que segue canalizada para a habitação e para o quintal.
5. Em 26.07.2018 o requerente e a sua ex-mulher iniciaram junto da Câmara Municipal ... um processo de destaque, a que foi atribuído o n.º 60/2018/220/2, destinado a dividir o prédio, melhor descrito em 1, em dois prédios distintos.
6. Em resultado do destaque, melhor descrito em 5., o prédio melhor descrito em 1. (prédio mãe), manteve a sua natureza de prédio urbano destinado a habitação, com uma área total de 1049,5m2, e o prédio desanexado destinando-se a lote de terreno para construção, ficou com uma área total de 1320m2, que foi inscrito na matriz sob o artigo ...12 da freguesia ... e descrito sob o n.º ...60 na Conservatória do Registo Predial ..., da respetiva freguesia.
7. Em 21.05.2020 DD e o requerente declararam doar a AA, aqui requerida, por conta da sua quota disponível, além do mais, o prédio urbano, composto por terreno para construção, sito na Rua ..., Estrada ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...12 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...60 da respetiva freguesia.
8. O prédio urbano, composto por terreno para construção, melhor descrito em 7., encontra-se titulado a favor de AA, aqui requerida, desde 19.06.2020.
9. Em consequência do descrito em 5., na extrema norte do prédio urbano, melhor descrito em 7., encontra-se implantado o poço artesiano melhor identificado em 4., e a bomba elétrica e respetiva aparelhagem, que permitem a extração da água, encontram-se alojados numa pequena cabine situado no prédio mãe, sendo a energia elétrica necessária para o seu funcionamento fornecida pelo mesmo.
10. A extração da água do aludido poço é feita pela bomba elétrica, referida em 9., numa extensão de cerca de oito metros, por uma canalização subterrânea, que transporta a água do poço e a distribui quer [para] a habitação, quer para o quintal do prédio mãe, quer para a derivação provida de torneira que se encontra no prédio melhor descrito em 7.
11. Desde há mais de 20 anos que o prédio mãe é abastecido, quer para fins domésticos, como para fins agrícolas, pela água que nasce e se acumula no poço referido em 4., encontrando-se nele instalado um tubo de captação e recolha de água com ligação à bomba elétrica instalada no prédio mãe.
12. Desde há mais de 20 anos que o requerente tem vindo a fazer obras de manutenção e conservação ao aludido poço, assegurando o funcionamento da respetiva bomba elétrica de captação da água, limpando regulamente o poço, substituindo a tubagem.
13. O requerente sempre retirou e aproveitou a água do aludido poço com a convicção de ser sua, sem oposição de quem quer que fosse, à vista de toda a gente, durante cerca de mais de 20 anos, de forma pública e pacífica.
14. A água captada, provinda do poço, é elevada pela bomba elétrica e distribuída pelo sistema de canalização, há mais de 20 anos, para o uso doméstico, para todos os pisos da casa de habitação, destinando-se ao consumo dos habitantes, preparação de refeições, higiene pessoal, limpeza e asseio de todas as divisões da casa, e para uso agrícola, como a rega do quintal e dessedentarão da criação avícola.
15. Atualmente na casa de habitação implantada no prédio mãe, provida de dois andares com utilização independente, sendo que no primeiro andar reside a filha do requerente, EE, seu companheiro e duas filhas menores de idade, e no rés-do-chão reside o requerente e a sua ex-cônjuge.
16. Quer o prédio mãe, como o prédio destacado, melhor descrito em 7. encontram-se localizados numa zona que não está provida de águas municipais, pois a rede de abastecimento público e saneamento não está disponível para aqueles prédios nem para outros limítrofes.
17. Em 22.08.2024 a filha do requerente, EE, que naquela data estava de férias e ausente da habitação, recebeu um telefonema do vizinho FF a informar que não havia saída de água no quintal para proceder à dessedentação dos animais e que o motor da bomba elétrica se encontrava em funcionamento contínuo, e pensando tratar-se de avaria, desligou o mesmo.
18. Em 23.08.2024, pelas 22h00, depois de regressar de férias, EE e seu companheiro verificaram que não existia qualquer fornecimento de água no prédio mãe, sendo informados pelo requerente de que já não havia água há dois dias. Em ato contínuo, o requerente e o companheiro da filha, GG, dirigiram-se ao poço e ao levantar a tampa de cimento que o cobre constataram que os requeridos retiraram quer o tubo de condução da água, quer o chupador artesiano que existia no seu interior.
19. Em 24.08.2024, de manhã, todos os habitantes do prédio mãe – o requerente, a filha EE, o companheiro e as filhas desta – não tinham acesso a qualquer água, ficaram impedidos de cozinhar, de se lavar, de tomar banho, ou sequer de utilizar a casa de banho. O requerente, acompanhado de GG, foram adquirir nova tubagem e acessórios para proceder ao restabelecimento do fornecimento da água.
20. Por não ser possível residir naquelas circunstâncias, descritas em 19., o requerente permaneceu na habitação utilizando baldes de água já que as refeições eram fornecidas por uma empresa de apoio domiciliário, e a filha do requerente, companheiro e filhas, foram para ..., ..., para casa dos pais do companheiro.
21. Em 25.08.2024, cerca das 18h30, o requerente acompanhado por GG, deslocaram-se ao poço para proceder à substituição do tubo de condução da água, verificando que, não só os requeridos haviam retirado o tubo e o chupador artesiano, como haviam cortado e retirado a canalização subterrânea destinada a transportar a água até ao prédio mãe, fixando a tampa do poço com cimento.
22. Em ato contínuo, o requerente, a filha EE e o companheiro GG, utilizaram uma picareta para proceder à remoção do cimento que fixava a tampa do poço; no seu interior procederam à instalação de novo chupador artesiano ao qual acoplaram novo tubo para a elevação e captação da água, fizeram nova abertura de vala, com 8 a 10 metros de extensão, com nova canalização subterrânea destinada a transportar a água para o prédio mãe, retomando assim o seu abastecimento.
23. Em 26.08.2024, entre as 07h30 e as 08h00, os requeridos deslocaram-se ao poço e cortaram a ligação e passagem da água, retirando o tubo e o chupador artesiano colocado, interrompendo o fornecimento da água para o prédio mãe, e levando-os consigo.
24. Em ato contínuo, a requerida AA solicitou a presença da PSP por alegada invasão da sua propriedade para identificação da sua irmã EE, permanecendo no prédio descrito em 7. em permanente vigilância para garantir a não aproximação do requerente ao aludido poço.
25. Os requeridos procederam, em data não concretamente apurada, à substituição do canhão da fechadura do portão de acesso ao prédio melhor descrito em 7., impedindo o acesso do requerente, que sempre teve chave daquele portão, pelo menos há mais de 10 anos, para aceder ao poço e respetiva canalização, para ali proceder à sua limpeza e manutenção.
26. O requerente, a filha EE, companheiro e filhas desta, desde o dia 26.08.2024 que se encontram impedidos de qualquer utilização de água na habitação, mas também do funcionamento da bomba de calor destinada a proporcionar água quente, privando, em especial o requerente, que conta com 77 anos de idade e doente, do conforto e bem-estar, bem como estão impedidos de proceder à rega do quintal e a dessedentação da sua criação avícola.
27. Desde o dia 26.08.2024 que o requerente, a filha EE, companheiro e filhas desta, fazem uso de água fornecida pelo vizinho HH, através de mangueira, tendo adquirido um depósito para armazenar água, que se ausentou para o estrangeiro, deixando de lhes fornecer água desde o dia 15.09.2024.
28. Para assegurar a sua higiene pessoal e conforto, em consequência da ausência de abastecimento de água, o requerente passa os dias em casa de uma irmã regressando ao final do dia. A filha EE, companheiro e filhas desta, alojaram-se no parque de campismo de ..., tendo regressado em 31.08.2024 para a habitação sita no prédio mãe.
29. Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pelos requeridos, o requerente sente angústia, desespero, revolta, tristeza, nervosismo e ansiedade, temendo pela sua saúde, das suas netas, da sua filha EE e companheiro desta.
Os recorridos, concluem as suas alegações afirmando a nulidade da sentença.
Fazem-no, contudo, de uma forma genérica, sem concretizar o fundamento jurídico da nulidade que imputam à sentença.
É sabido que “as nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes do erro da actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, á estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da própria decisão e que se mostram obstativos a qualquer pronunciamento de mérito”[1].
As nulidades da sentença não se confundem assim com o erro material da decisão ou com o erro de julgamento, constituindo vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e encontram-se previstas no art.º 615º, n.º 1 do Código de Processo Civil, resultante da violação da lei processual civil pelo juiz aquando d prolação da decisão.
No caso, não vislumbramos, face aos fundamentos de recurso invocados, que a sentença esteja afetada alguma dessas nulidades.
Poder-se-á equacionar se os recorrentes, ao apodarem a sentença de nula, pretendiam antes invocar a nulidade processual decorrente de erro na forma do processo que afetaria a tramitação posterior à petição inicial e consequentemente a própria sentença.
Não deixaremos de enfrentar tal questão, mais adiante, quando apreciarmos os dois distintos fundamentos de recurso, acima identificados.
Quanto ao primeiro desses fundamentos, não temos dúvidas em afirmar que assiste razão aos recorrentes quando afirmam que a sentença não poderia ter conhecido dos pedidos mencionados nas alíneas a) e b) do requerimento inicial, julgando-os procedentes.
De facto, é entendimento pacífico que o requerente não pode obter na ação cautelar a proteção que constitui a ação definitiva, ainda que tenha requerido a inversão do contencioso (o que não sucedeu no caso em apreço, em que a providência foi instaurada após a instauração da ação principal onde o requerente, ali autor, formula exatamente os pedidos acima mencionados).
Referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[2], “em qualquer situação, a tutela cautelar encontra limites naturais, já que apenas pode evitar ou antecipar o que seja necessário para assegurar a efetividade do direito em causa e, além disso, pressupõe uma situação de perigo relativamente à ocorrência de lesões grave irreparáveis ou de difícil reparação /cfr. Abrantes Geraldes, ob. Cit., pp.89-99). Não se substituiu à ação principal, sem embargo dos casos em que se admita e seja decretada a inversão do contencioso”. Esta inversão do contencioso - que, como se disse, nem sequer foi requerida no caso em apreço - não significa que não haverá ação principal, mas tão só que se o tribunal entender, entre outros requisitos que têm de estar verificados, que “a natureza da providência decretada é adequada a realizar a composição definitiva do litígio”, pode dispensar o requerente da propositura da ação principal, cabendo o ónus da sua propositura ao requerido.
A providência cautelar adequada a realizar a composição definitiva do litígio não poderá, assim, ser a tutela definitiva visada com a ação principal.
Como nos diz Marco Carvalho Gonçalves[3], “(..) a tutela cautelar carateriza-se por revestir um carácter instrumental e provisório, porquanto limita-se a proteger o efeito útil da sentença a ser proferida na ação principal. Significa isto que, ressalvada a possibilidade de inversão do contencioso, não é possível obter, pela via cautelar (sem a confirmação de uma sentença proferida na ação principal), a tutela definitiva de um direito”. Assim, diz o referido autor, citando Miguel Teixeira de Sousa (“As providências cautelares e a inversão do contencioso”, pág. 8), que “a tutela cautelar não pode ser considerada uma forma de tutela urgente. Não há, no ordenamento jurídico português, nenhuma tutela cautelar que seja igualmente uma tutela urgente, nem nenhuma tutela urgente que seja obtida através da tutela cautelar”, entendendo-se por tutela urgente aquela que apresenta uma natureza definitiva, mas é obtida num procedimento simples e célere, como é o caso do processo especial de tutela da personalidade previsto nos artigos 878º a 880º do Código Processo Civil, regime jurídico que encerra a vantagem de dispensar o requerente da demonstração do preenchimento dos requisitos necessários para o decretamento de uma providência cautelar.
Podemos dizer, por isso, como sustenta o mesmo Autor que “…as providências cautelares estão sujeitas a dois limites de fundo: por um lado, o requerente não pode obter por essa via mais do que aquilo que poderia alcançar através da sentença definitiva; por outro lado, o tribunal não pode decretar uma providência cautelar cujos efeitos sejam irreversíveis ao ponto de esvaziarem de conteúdo a ação principal”[4].
Também a jurisprudência tem sido unânime na afirmação de que não pode ser requerida, por via de um procedimento cautelar, a pretensão que visa realizar a composição definitiva do litígio.
São disso exemplo, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 27 de junho de 2024[5] e de 8 de julho de 2020[6], o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/09/2019[7], e do Tribunal da Relação do Porto de 29/06/2017[8].
Refere-se no último dos mencionados arestos que «(…) a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.»
Transpondo para o caso concreto, há que notar que a decisão que ora se sindica, além do mais, declarou que:
- O requerente é proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ... em ..., inscrito na matriz predial no artigo ...02, da respetiva freguesia e, descrito sob o número ...55 da Conservatória do Registo Predial ..., da respetiva freguesia, e condeno os requeridos a reconhecerem tal facto.
- A favor do prédio urbano identificado em 1. e a onerar o prédio urbano, composto por terreno para construção, sito na Rua ..., Estrada ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...12 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...60 da respetiva freguesia, se mostra constituída, por destinação do pai de família e por usucapião, uma servidão de águas, com a configuração referida em 9. a 11. e 14 dos factos provados, pelo que, condeno os requeridos a reconhecerem tal facto.
Mesmo que se admitisse não ter sido essa a intenção do requerente ao formular tais pretensões em sede cautelar – sobretudo quando se considere que o procedimento cautelar foi por ele interposto por apenso à precedente ação declarativa que moveu conta os requeridos, onde formulava exatamente tais pedidos – a verdade é que a decisão recorrida, na parte em que lhes deu provimento, não pode deixar se ser interpretada como uma decisão que antecipa, em definitivo, aqueles pretensos direitos do ora recorrido. Nessa medida, traduz-se num insustentável pré-juízo de um direito que carece de ser demonstrado na ação própria para o efeito, a qual, como se disse, havia já instaurado contra os recorrentes quando interpôs este procedimento cautelar.
Impunha-se assim ao tribunal a quo não conhecer de tais pedidos, de acordo, aliás, com o critério que seguiu quanto às pretensões indemnizatórias formuladas nas als. e) e f) do pedido formulado no requerimento inicial da providência, precisamente com o fundamento de que as mesmo extravasavam o âmbito da providência requerida.
Assim, nesta parte, a decisão recorrida não poderá subsistir, impondo-se a sua revogação.
Porém, não será a circunstância de o recorrido ter deduzido pretensões que manifestamente se enquadram na tutela definitiva do direito por ele invocado que torna, de todo, inadmissível o recurso ao procedimento cautelar, designadamente, por erro insanável na forma de processo, como parece pretender a recorrente.
Tudo passa por saber se o recorrido, ao instaurar tal procedimento cautelar comum visou a tutela cautelar do direito que invoca (e se alegou e provou factos que a justifiquem).
Como se diz o acórdão desta Relação de 13 de dezembro de 2022[9] “A resposta à questão de saber se o requerentes alegaram factos que justificassem a tutela cautelar passa, por um lado, por se definir o que é que se deve entender por tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do Código de Processo Civil e, por outro, pela interpretação do requerimento inicial.
A questão da tutela cautelar ao abrigo do n.º 1 do artigo 362.º do CPC, é a de saber se a demora - inevitável - na definição dos direitos dos requerentes comporta perigo para esses direitos e, em caso de resposta afirmativa, saber se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar como lesão grave e de difícil reparação”.
A razão de ser dos procedimentos cautelares é a de “acautelar o efeito útil da acção”, como se diz na parte final do n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo Civil, ou “assegurar a efectividade do direito ameaçado”, como se diz na parte final do n.º 1 do artigo 362.º do Código de Processo Civil.
Assim, de acordo com Marco Carvalho Gonçalves[10], “… o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deva beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua tutela jurídica”.
Ora, analisando o requerimento inicial, parece-nos evidente que o requerente pretende que o Tribunal, com carater de urgência (solicitando até que os requeridos não fossem previamente ouvidos), profira uma decisão que faça cessar a situação que reputa de violadora do seu direito. E inicia a alegação do que entende ser o periculum in mora, ou seja, a necessidade de tutela antecipatória à decisão que venha a ser proferida na ação que já instaurou e, por isso, de tutela urgente, logo a partir do artigo 42º do seu requerimento inicial (ou seja concretizando um conjunto de prejuízos decorrentes da atuação, que imputa aos apelantes recorrentes, violadora do direito de servidão de aguas que, naquela ação pretende ver reconhecido).
Decorre do exposto que a via processual utilizada pelo recorrente – se entendêssemos como tal o procedimento cautelar comum – é a adequada (e única) para fazer valer esta sua pretensão, não podendo falar-se, por isso, qualquer nulidade por erro na forma de processo que afete ou inquine a sentença recorrida.
Mas, para fundamentar o seu recurso, os apelantes afirmam ainda que o procedimento cautelar comum não é o adequado à concreta pretensão cautelar do recorrido, defendendo ser o procedimento especificado de restituição provisória da posse o meio processual próprio para o efeito.
Como é sabido, à semelhança do erro na forma do processo, também pode ocorrer erro na forma de procedimento cautelar[11], erro esse suscetível de ser corrigido oficiosamente, se tal correção for possível (ordenando-se o prosseguimento de acordo com a tramitação procedimental idónea, em conformidade com o disposto).
Trata-se de questão estritamente relacionada com o designado princípio da legalidade das formais procedimentais. A este propósito diz Abrantes Geraldes[12]:“(a) legalidade das formas que, no tocante aos processos com carácter definitivo, está consagrada no art.º 460º, n.º 2, encontra a sua manifestação no art.º 381º, n.º 3 [atual n.º 3 do art.º 362º do Código de Processo Civil, nos termos do qual não são aplicáveis a providencias referidas no n.º 1 quando se pretende tutelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma as providências tipificadas no capítulo seguinte]. Tal princípio determina que só pode solicitar-se uma providencia cautelar atípica e, naturalmente, dar-se início a um procedimento cautelar comum, quando se pretende prevenir o risco de lesão excluído dos limites materiais de algum dos procedimentos cautelares típicos regulados na secção seguinte, conforme já decorria do anterior art.º 399º. (…).
Deve notar-se, porém, que a subsidiariedade não se reporta tanto ao direito ameaçado, antes ao risco de lesão prevenido por cada uma das providências específicas.
Para além de identificar o direito, torna-se necessário invocar uma situação de perigo desse direito que não se insira no âmbito de aplicação de uma medida cautelar específica. Cada direito pode ser servido por diversas providências e, portanto, mais do que associar uma providência específica a um determinado direito, o que importa averiguar são os pressupostos que estiveram na mente do legislador ao consagrar uma determinada tutela cautelar”.
No caso, o requerente indicou expressamente no requerimento inicial que requeria procedimento cautelar comum contra os requeridos e daí que, salvo na hipótese de as providências que requereu serem próprias de algum dos procedimentos cautelares especificados, cabia ao tribunal a quo mandar seguir os termos do procedimento cautelar comum e apreciar a pretensão da requerente à luz do regime de tal procedimento, o que fez.
E parece-nos que bem, na medida em que os termos daquele requerimento inicial não consentiam a interpretação, defendida pelos recorrentes, de que a providência requerida era a própria do procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
Na verdade, a providência própria deste último procedimento cautelar especificado é a restituição provisória, ao requerente, da posse da coisa de que foi esbulhado com violência, ao passo que a providência requerida no âmbito do presente procedimento destina-se a assegurar a efetividade de um direito, concretamente o direito de servidão de águas sobre o prédio dos requeridos, ora recorrentes, que beneficia o prédio do requerente.
Daí que que, por aplicação conjugada dos artigos 362.º, n.º 1, e 368.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, os requisitos necessários ao decretamento da providência concretamente requerida sejam os seguintes: 1) a probabilidade séria da existência do direito invocado; 2) o fundado receio da sua lesão grave e dificilmente reparável; 3) o prejuízo resultante das providências para os requeridos não exceder consideravelmente o dano que com elas o requerente pretendia evitar[13];
Analisando o requerimento inicial, revela-se-nos patente ter o recorrido alegado factualidade que permite a demonstração do invocado direito de servidão (de águas), sobre o prédio dos requeridos em proveito do prédio do requerente, o que permite concluir pela alegação do pressuposto da probabilidade séria da existência do direito do requerente.
Do mesmo requerimento inicial resulta a alegação de factos reveladores de um comportamento persistente e reiterado, por banda dos requeridos (a extração do mecanismo de captação da água do poço que abastece o prédio do requerente e o corte da tubagem que permite tal abastecimento), violador daquele direito de servidão e causador de um relevante prejuízo ao recorrido (por não dispor aquele seu prédio, onde habita, de qualquer outro meio de abastecimento de água), o que corresponde ao requisito do periculum in mora.
Finalmente, dir-se-á que a factualidade alegada é suficiente para permitir concluir que o prejuízo que do decretamento da providência requerida possa advir para os requeridos – ao impor-se-lhes que reponham a situação no estado em que se encontrava o sistema de captação de água e a reposição do abastecimento de água do prédio mãe – é certamente inferior àquele que o requerente pretende de evitar com a providência requerida.
Toda esta factualidade, de resto, foi considerada suficientemente indiciada na decisão recorrida (não tendo sido objeto de impugnação neste recurso), tendo a Mmª Juiz a quo, com base nela, decretado a providência cautelar requeridas pelo recorrido.
Em conclusão, não vemos como se pode afirmar que a decisão recorrida, na parte que decretou a providência cautelar requerida peticionada violou, o disposto nos artºs. 362º, nºs 1 e 3, 368º e 377º do Código de Processo Civil, pelo que, nessa medida, improcede a apelação.
Deve assim manter-se a decisão recorrida, com exceção dos pontos 1º e 2º do seu dispositivo.
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil:
(…).
[1] Ac. do STJ de 3-03-2021, processo n.º 3157/17.8VFX.L1.S1
[2] in Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, pág. 458,
[3] “Providências Cautelares”, Almedina, 2016, 2ª Ed. pag. 105.
[4] Op. cit. pag. 123.
[5] Processo n.º 7222/23.4T8GMR.G1 (Relatora Paula Ribas), in www.dgsi.pt
[6] Processo n.º 3155/19.7T8VCT.G1 (relatora da Margarida Sousa), in www.dgsi.pt:
[7] Processo n.º 2844/19.0T8LSB.L1.2 (Relator Sousa Pinto), in www.dgsi.pt
[8] Processo n.º 25601/16.1T8PRT.P1 (Relator Paulo Dias da Silva), in www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 3179/22.7T8VIS.C1 (Relator Emídio Francisco Santos), in www.dgsi.pt
[10] Op. cit. pag. 214 e 215.
[11] V. Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do Processo civil”, Vol. III, pág. pág. 279 assinala que “à semelhança do erro na forma do processo, também o erro na forma de procedimento cautelar deve ser remediado, se possível…”.
[12] Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, pag,. 57.
[13] Acerca dos requisitos da concessão da tutela cautelar comum, cf., ainda, a elencagem definida por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 419.