I – O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, dispensou, no restrito âmbito das entidades e operações nele previstas, o incidente de habilitação de cessionário, bastando juntar ao processo cópia do contrato de cessão.
II – Nos casos de cessão de créditos em massa, quando o cedente não é o exequente, por terem ocorrido sucessivos contratos de cessão, mostra-se necessário aferir da verificação dos pressupostos exigidos pelo DL n.º 42/2019 relativamente a todos esses contratos.
III – Não se verificando tais pressupostos, será necessário o recurso ao incidente de habilitação de cessionário para apreciar a validade das cessões de créditos anteriores.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Recorrentes: AA e BB
Recorrido: «A..., SA»
(…).
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório
Por requerimento datado de 24 de janeiro de 2024, junto aos autos de execução que «Banco 1..., Stc, SA» instaurou contra AA e BB, veio «A..., SA» “requerer ao abrigo do Regime Simplificado para a Cessão de Créditos em Massa (cfr. Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março), se digne ordenar a substituição da posição processual do Exequente Banco 1... S. A. pela ora Requerente SCALABIS STC, S.A, dispensando do incidente de habilitação processual da referida cessionária, considerando-a assim a mesma habilitada nos autos principais e respectivos apensos, nos termos do n.º 1 do artigo 3º do referido diploma legal”.
Alegou, para o efeito e em síntese, que, por deliberação de 20 de dezembro de 2015, o Governo e o Banco de Portugal tomaram a decisão de constituir a sociedade “B..., S.A.” (inicialmente “C...”), ao abrigo do artigo 145.º –C, 145.º-E, 145.º-P e 145.º-S do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
Por efeito da deliberação adotada, foram transferidos para aquela sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 145.º-S e al. c) do n.º 2 do artigo 145.º-T do RGICSF, conjugados com o artigo 17.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os direitos e obrigações correspondentes a ativos do «Banco 1..., S.A.», constantes do anexo 2 A à deliberação, sendo que a carteira de créditos objeto de cessão inclui as responsabilidades bancárias correspondentes ao contrato de mútuo que titula a livrança que serve de título à presente execução.
Por contrato de cessão de créditos celebrado a 25 de novembro de 2016, a «B..., S.A.» cedeu à sociedade «D..., S.A.R.L.» os créditos que detinha sobre os executados, nomeadamente o crédito exequendo, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes.
Posteriormente, por contrato de cessão de créditos celebrado a 12 de maio de 2022, a sociedade «D....» cedeu à sociedade «E...» essas mesmas responsabilidades bancárias.
Por fim, por contrato de cessão de créditos outorgado em 29 de junho de 2022, a «E..., S.A.R.L.» cedeu esses mesmos créditos à sociedade «A..., S.A.», que, por isso, é a atual titular do crédito exequendo, tendo-lhe sido transmitidas todas as garantias e acessórios do mesmo, incluindo indemnizações e outras obrigações e, designadamente, o direito de obter o cumprimento judicial ou extrajudicial das correspondentes obrigações.
Juntou ainda um acordo de alteração deste último contrato, nos termos do qual foi aditada ao mesmo a cláusula 3.5, com o seguinte teor: «As partes declaram expressamente pelo presente que o preço a pagar pela venda da carteira de empréstimos excede 50.000,00 EUR (cinquenta mil euros) e que a referida Carteira de Empréstimos é composta por mais de 50 (cinquenta) empréstimos diferentes»
Finalmente, por requerimento de 29 de fevereiro de 2024, juntou um extrato da listagem que integra o anexo 3 do contrato «E..., S.A.R.L», referente à carteira de empréstimos objeto do mesmo, do qual consta o nome do aqui executado, o respetivo número de contribuinte fiscal, o número do empréstimo (...40) e o seu valor (€21.006,08).
Requerimentos de 4-01-2024 e 29-02-2024 – Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, considera-se a Scalabis, Stc, S.A. habilitada em substituição do exequente Banco 1..., S.A., para prosseguir a causa nos seus ulteriores termos.
Notifique.
(…).
(…).
A questão a apreciar é somente a de saber se estão reunidos os pressupostos para a recorrida ser admitida a intervir nos autos, em substituição do exequente «Banco 1...», nos termos do disposto no art.º 3º, n.º 1 do o DL 42/2019, de 28/03.
Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.
É inequívoco que o requerimento apresentado pela sociedade «SCALABIS STC, SA», sobre o qual recaiu a decisão recorrida, configura um requerimento para a substituição processual do exequente, ao abrigo do que determina o DL 42/2019, de 28/03.
Do preâmbulo desse diploma legal decorre que “O presente decreto-lei corporiza uma das medidas aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/2017, de 8 de junho, no âmbito daquele Programa, com vista a melhorar os processos e procedimentos conexos com as operações de cessão de créditos em massa, com recurso aos meios tecnológicos apropriados. A agilização do mercado no que toca à transação de carteiras de crédito contribui significativamente para a melhoria das condições de financiamento das empresas e para a redução dos níveis de créditos não produtivos. Cria-se, assim, um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas.”
É, assim, fácil perceber que foi intenção do legislador criar um regime simplificado para cessão de créditos em massa, o que, de resto, é confirmado pelo artº 1º do mencionado DL, com epígrafe “Objecto”, que determina: “O presente decreto-lei estabelece um regime simplificado para a cessão de créditos em massa.”
Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de setembro de 2021[1], “O universo a que este regime simplificado é aplicável define-se pelo conceito de cessão de créditos em massa, que é assim caraterizado no art.º 2.º do diploma:
a) O cessionário é uma instituição de crédito, sociedade financeira ou uma sociedade de titularização de créditos;
b) O preço de alienação global dos créditos a ceder é, no mínimo, de € 50 000,00, e a carteira é composta por, pelo menos, 50 créditos distintos.
Quanto à forma da cessão de créditos em massa, o diploma estipula a celebração por documento particular (n.º 1 do art.º 4.º), o qual constituirá título bastante para efeitos do registo da transmissão dos créditos hipotecários, ou das respetivas garantias sujeitas a registo, quando contenha o reconhecimento presencial das assinaturas do cedente e do cessionário (n.º 2 do art.º 4.º).
Finalmente, no que diz respeito à forma da habilitação processual do cessionário, o art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 42/2019 tem a seguinte redação:
“Habilitação legal do cessionário
1 — O cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão.
2 — Para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil.
3 — O cedente deve informar o cessionário sobre quaisquer causas que sejam instauradas contra si respeitantes a certo crédito cedido nos termos do presente decreto-lei, no prazo máximo de cinco dias após a sua citação.”
Assim, na cessão de créditos em massa não é preciso deduzir incidente de habilitação de cessionário, nos termos do art.º 356º, nº 1 do Código de Processo Civil, para substituir processualmente o anterior credor/exequente, não havendo assim lugar à notificação do devedor para contestar, de acordo com a alínea a) daquele preceito.
Basta o cessionário juntar aos autos a cópia do contrato de cessão de créditos e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial.
O juiz, quando muito, determina que seja tida em conta a modificação subjetiva operada por força da lei e, não sendo posta em causa a habilitação pelo cedente ou pela parte contrária, considera-se habilitado o cessionário, sem necessidade de despacho judicial[2].
Como se diz no Acórdão desta Relação de 4 de junho de 2024[3], “Se a lei dispensou o incidente e se se basta com a junção da cópia da cessão, podemos tirar as seguintes ilações:
Embora notificada da junção do documento, a parte contrária não é notificada para deduzir oposição;
A qualquer momento, salvo caso de extinção do processo, o documento da cessão pode ser junto;
Não é discutida a validade da cessão, conferindo-se apenas se está em causa uma cessão de créditos em massa. Admitir-se-á, no limite, a constatação de ostensiva violação formal na contratação”.
De qualquer modo, como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.11.2022[4] , “o executado/devedor, se pretendesse impugnar a validade do ato de cessão de créditos ou invocar que a cessão ocorreu para tornar mais difícil a sua posição processual, sempre poderia fazê-lo através de incidente em que suscitasse esses fundamentos. De contrário, poderíamos estar perante a impossibilidade do exercício do contraditório, enquanto elemento estrutural do processo equitativo, é um princípio fundamental do direito adjectivo, consagrado na Constituição (art.º 20.º n.º s 1 e 4) e na lei ordinária (art.º 3.º do CPC)”.
No caso concreto, a recorrida é, como indica a própria designação social, uma sociedade de titularização de créditos (de resto, assim vem identificada no dito contrato).
Através do com supra referido requerimento, juntou aos autos o contato escrito de cessão de créditos, datado de 29 de junho de 2022, do qual consta ter adquirido à sociedade «E..., S.A.R.L» a carteira de empréstimos em que se inclui o crédito exequendo - identificado como empréstimo n.º ...40 (conforme extrato da lista dos créditos adquiridos, que também juntou) - resultando da cláusula 3.5 do mesmo contrato, aditada pelo acordo de alteração de 14 de julho de 2023, que o preço da venda de tal carteira de créditos excede os € 50.000 e diz respeito a mais de 50 créditos diferentes.
Sucede que na cessão de créditos em massa em questão a cedente não é a exequente, mas a sociedade «E..., S.A.R.L» a qual, por sua vez, havia comprado a mesma carteira de créditos à sociedade «D... S.A.R.L», que a tinha previamente adquirido à sociedade «B..., SA» [para quem foram transferidos os direitos e obrigações correspondentes a ativos do «Banco 1... SA», em execução de Deliberação do Banco de Portugal de 20 de dezembro de 2015, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 145º-S e na alínea c) do n.º 2 do artigo 145º-T, em articulação com o n.º1 do artigo 145º-L, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras].
Ciente dessa circunstância, a recorrente juntou aos autos os anteriores contratos de cessão de créditos com vista a estabelecer o “trato sucessivo” da cessão do crédito exequendo que pretende demonstrar.
A habilitação da recorrida como cessionária nos termos do mencionado regime pressupõe, por isso, que se mostrem verificados os requisitos previstos no art.º 3 do mesmo diploma legal relativamente aos contratos celebrados entre a sociedade «B..., SA» (antes designada «C...») e a sociedade «D... S.A.R.L» e o contrato celebrado entre esta sociedade e a sociedade ««E..., S.A.R.L» [5].
A análise do teor dos mencionados contratos, conjugada com a lista de créditos que integra o Anexo 2 A da Deliberação do Banco de Portugal de 20 de dezembro de 2015[6], permitirá concluir que os mesmos documentam transmissão sucessiva do crédito exequendo. Contudo, não permite aferir a verificação dos demais requisitos exigidos pelo DL n.º 42/2019, de 28 de março, mais concretamente que o preço de alienação global dos créditos cedidos é, pelo menos, igual a €50.000,00 (dado que, nos exemplares juntos aos autos, o valor os valores convencionados como preço da alienação estão “truncados”) e que a carteira de créditos alienados é composta pelo menos por cinquenta créditos distintos.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/03/2024[7], que versa sobre um caso de contornos semelhantes ao sub iudice, “(a) habilitação deduzida deveria, pois, ter seguido os termos não da habilitação legal prevista no DL 42/2019, mas sim da habilitação processual prevista no art.º 356º do Código de Processo Civil”[8].
A tal não obstaria o facto de o incidente de habilitação de cessionário ter sido já deduzido pela sociedade «D... S.A.R.L» (apensos A e B) e julgado improcedente, face ao disposto no art.º 352º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Nos termos do art.º 193º nº 1 do Código Civil, “o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei”.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, anulando a decisão recorrida e ordenando que seja organizado o apenso de habilitação de cessionário.
Custas do recurso pela recorrida.
Com assinatura digital:
Hugo Meireles
Anabela Marques Ferreira
Luís Manuel Carvalho Ricardo
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] Processo n.º 5584/12.8TBSXL-D.L1-2 (Relator Jorge Leal), in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/10/2021 (Relatora Maria do Céu Silva), in www.dgsi.pt; e ainda blog ippc, Jurisprudência 2021 (209) de 01/06/2022.
[3] Processo n.º 833/13.8TBACB-C-C1 (Relator Fernando Monteiro), in www.dgsi.pt.
[4] Processo n.º 13245/19.0 T8SNT-A.L2-6 (Relator Adeodato Brotas), in www.dgsi.pt.
[5] De notar que a anterior a titularidade do crédito exequendo pela «B..., SA» radica na medida de resolução adotada pelo Banco de Portugal em 19-12-2015, relativa ao Banco 1..., SA», na sequência da qual o Banco de Portugal, em reunião extraordinária do Conselho de Administração ocorrida em 20 de dezembro de 2015, deliberou, além do mais:
“a) Constituir a sociedade “C...,, S.A. (…)”;
b) Transferir para a C..., SA,, os direitos e obrigações correspondentes a ativos do Banco 1..., S.A., constantes do anexo 2 à deliberação, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 145º-S e na alínea c) do n.º 2 do artigo 145º-T, em articulação com o n.º1 do artigo 145º-L, todos do RGICSFs;
(…)”
[6] Junta pela sociedade «D... SARL» ao apenso B (de habilitação de cessionário), a 4 de outubro de 2022
[7] Processo n.º 2304/14.6YYLSB-E.L1-8, in www.dgsi.pt
[8] Este incidente será de admitir na ação executiva, em caso de transmissão do direito de crédito exequendo (art.º 551.º, n.º 1; Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 9.ª ed., p. 222, apud António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, 2020, Almedina, p. 433).