SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
ÓNUS DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

I – A constituição de uma servidão legal de passagem constitui um pedido de simples apreciação positiva, incumbindo ao autor o ónus de a provar, demonstrando a verificação cumulativa da (a) existência de dois prédios, pertencentes a proprietários diferentes; (b) de que um desses prédios não tem comunicação com a via pública; e, (c) que o outro prédio é rústico e tem condições para lhe proporcionar o acesso à via pública.
II – Não basta qualquer divergência de apreciação e valoração da prova para se concluir pela ocorrência de erro de julgamento, tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação, pelo que face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1.ª Instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

A..., Unipessoal, Lda., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, contra AA, BB[2] e CC, pedindo a condenação dos réus a: (i) reconhecerem que a autora é dona e legítima possuidora do imóvel identificado no art. 1.º da petição inicial; (ii) reconhecerem que o seu prédio está  onerado com uma servidão de passagem, a pé e de carro, a favor daquele prédio da autora, com cerca de 4 metros de largura, que vai desde o portão colocado no acesso ao caminho público até aos portões de acesso aos prédios da autora, sitos a Norte e Noroeste; (iii) entregarem à autora uma chave do portão e a manterem limpo o traçado da passagem, por forma a permitir o seu livre acesso àquele prédio.


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Para tanto sustenta que é dona e legítima possuidora do prédio urbano destinado a armazém e actividade comercial, sito em Trinta, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, e que os réus AA e CC, são donos e legítimos possuidores do prédio descrito naquela Conservatória sob o n.º ...26, da mesma freguesia, alegando factualidade que preenche os pressupostos da constituição da servidão de passagem por usucapião, designadamente que os prédios em apreço pertenceram, outrora, ao mesmo proprietário, sendo que a parte inferior do prédio da autora não possui acesso directo à via pública e desde sempre que existe no prédio dos réus, a favor daquela parcela do prédio da autora, uma passagem perfeitamente destacada que permite o acesso, quer a pé, quer de carro, ao seu prédio.

            Contestaram os réus, por excepção e por impugnação, sustentando que a autora não é titular do direito de servidão de passagem, de pé e carro, ou sequer de pé, através de qualquer prédio seu, nem o prédio da autora se encontra encravado, concluindo pela improcedência da acção.

Realizada audiência final foi proferida sentença, em 17-05-2024, com o seguinte teor na parte relevante:

“Nestes termos, atentos os fundamentos expendidos, o Tribunal decide julgar parcialmente procedente presente ação e, em consequência:

a) Declarar que a autora é dona e legítima proprietária do prédio identificado nos pontos 1) e 2) da factualidade provada.

b) Declarar que sobre prédio identificado no artigo 5) da factualidade provada se encontra constituída uma servidão de passagem a pé e de veículo automóvel, por usucapião, a favor da “cave” situada no prédio da autora identificado artigo 1) da factualidade provada;

c) Declarar que a referida passagem com cerca de três a quatro metros de largura, inicia-se no caminho público, sito na Rua ..., seguindo para Norte em linha reta, durante cerca de 30 a 40 metros, ali iniciando uma curva ligeira, em direção a Sudoeste, em sentido descendente, dando ao portão da parte do armazém que se situa na cave do prédio da autora;

d) Condenar os réus a abster-se da prática de quaisquer atos, por qualquer modo ou meio, suscetíveis de perturbar ou impedir o gozo e fruição pela autora da servidão de passagem supra aludida, designadamente entregarem uma chave do portão à autora e a manterem limpo o traçado do caminho por forma a permitir a livre passagem da autora à cave existente no seu prédio” (sic).


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            Inconformados com a decisão, vieram recorrer os réus, tendo a apelação sido admitida por despacho de 13-09-2024, no modo e efeito devidos.

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Nas alegações de recurso, os réus deduziram as seguintes conclusões:

(…).


*

A autora contra-alegou nos seguintes termos:

(…).


*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo as seguintes as questões a apreciar:

(I) Impugnação da matéria de facto – se os factos não provados sob as alíneas d), e) e f), devem passar para a matéria assente e integrar o elenco dos factos provados (conclusões 5.ª a 10.ª).

(II) Matéria de Direito – se a sentença recorrida violou os arts. 1547.º, 1251.º, 1253.º al. a), 1256.º, 1287.º, 1290.º, e, fundamentalmente, o n.º 2 do artigo 1252.º, bem como os arts. 363.º n.º 2 e 376.º n.º 1, todos do Código Civil, e ainda o n.º 4 do art. 607.º do Código Processo Civil (conclusões 11.ª a 17.ª).


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A. Fundamentação de facto.

O tribunal a quo fixou a seguinte factualidade provada e não provada:

“Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O prédio urbano destinado a armazém e atividade comercial, sito em Trinta, está inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... com o artigo ...63.º, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19.

2. A aquisição de tal prédio encontra-se registada a favor da autora, pela Ap ...98 de 2022/06/22.

3. Tal prédio veio à posse, por compra, em processo de insolvência – Proc. nº 983/18...., que correu termos no Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Guarda, Juiz ....

4. Com o título de aquisição foram entregues ao legal representante da autora as chaves das diversas portas do imóvel, cujas fechaduras trocou por outras, não tendo entregue as chaves correspondentes a ninguém.

5. O prédio mencionado no artigo 1) confronta a sul com caminho público, a Norte e Nascente com o prédio rústico, inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... com o art. ...13º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...03 da referida freguesia, e ali descrito atualmente a favor da ré AA e do réu CC, na proporção de ½ para cada um, respetivamente pela Ap. ...1 de 1983/07/26 e pela Ap. ...37 de 2018/03/17 e ...86 de 2022/09/19.

6. Confrontando de poente com o referido prédio do réu CC e outro.

7. O prédio dos réus pertenceu, outrora, a DD e, mulher, EE.

8. O identificado em 1) é composto por rés do chão e cave, situados duas partes que se localizam em quotas de terreno a níveis distintos.

9. Ao nível do caminho público, situa-se parte do armazém, localizada no rés do chão, o qual é composto exclusivamente por área coberta, possuindo um portão de entrada, com acesso diretamente para a via pública, Rua ....

10. A cave encontra-se a um nível inferior, situada a Noroeste, não possuindo acesso interno ao rés do chão, nem acesso direto à via pública.

11. Na parte do referido armazém situada a Noroeste, o prédio apresenta também um portão de acesso que abre diretamente para o prédio dos réus, por onde se fazia o acesso à referida parte Noroeste, a qual estava separada por uma parede em blocos da zona sita mais a sul do referido armazém.

12. A parte do prédio da autora que se situa a um nível inferior, possui também, como único acesso, um portão que abre diretamente para o prédio dos réus.

13. Quando a autora adquiriu o imóvel, e desde que há memória, o acesso ao mesmo fazia-se, na parte que confina com o caminho público, através do portão que a ele dá acesso direto.

14. O acesso à parte inferior (cave) do prédio identificado no artigo 1) da factualidade provada, sempre se fez através de um caminho com cerca de 3/4 metros de largura, o qual tem inicio no caminho público, seguindo para Norte em linha reta, durante cerca de 30/40 metros, ali iniciando uma curva ligeira, em direção a Sudoeste, em sentido descendente, dando acesso ao portão do armazém sito a Noroeste e também ao portão da parte do armazém que se situa a um nível inferior (cave).

15. O traçado da referida passagem é constituído por uma rodeira, bem visível e aparente, e marcado no solo.

16. À data em que a autora adquiriu o prédio, e desde sempre, a referida passagem de acesso encontrava-se livre e desimpedida, sem qualquer vedação ou portão de acesso colocados.

17. A parte do prédio da autora situada na quota inferior, não tem outro acesso à via pública que não seja o caminho identificado em 14).

18. Em data não concretamente apurada do ano de 2022, os réus através de pilares e da colocação de um portão em ferro, dotado de um cadeado/ fechadura, vedaram o acesso ao caminho identificado em 14), tapando o acesso ao prédio da autora.

19. Os réus recusam-se entregar à autora uma chave do referido portão, assim como se recusam limpar a rodeira, onde começaram a crescer ervas e silvas.

20. O supra descrito comportamento dos réus impede a autora de aceder à referida cave do prédio de que é proprietária, impedindo o seu uso para atividade profissional a que a autora pretende destinar o imóvel por si adquirido.

21. Pelo menos, desde o ano de 1983, que a autora e seus antecessores acedem à referida cave pela rodeira mencionada em 14) e 15), quer a pé, quer de carro.

22. A autora mandou colocar na cave do prédio identificado em 1) diversos bens da sua atividade, carregando e descarregando, designadamente motores e outros componentes de veículos automóveis, através da mencionada rodeira.

23. O que fez de dia, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercer um direito próprio.

24. O prédio identificado em 1) destinava-se à atividade da indústria de lanifícios exercida pela sociedade DD, Lda., sendo composto por um pavilhão, com área total, e coberta, de 1400 m².

25. Laborando em conjunto, e com o qual estava fisicamente ligado, com o prédio urbana, inscrito na matriz urbana da freguesia dos Trinta, com a superfície coberta de 1600 m² e total de 1950 m², também destinado a armazém e à mesma atividade industrial.

26. Em meados de 2019 cessou definitivamente a atividade industrial que era desenvolvida em ambos os edifícios por parte da pessoa coletiva DD Lda.

27. Desde tal data que não existem a quaisquer máquinas afetas à referida indústria, nem aí laboram quaisquer trabalhadores.

28. Porém, tais prédios são atualmente autónomos e independentes entre si, constituindo unidades prediais autónomas.

29. A ré AA e BB e a sociedade “DD, Lda”, celebraram o acordo denominado “contrato de comodato parcial”, datado de 10.02.1993, junto nos autos a fls. 50 a 51, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

30. Por volta de 1992/1993, o pavilhão identificado em 1) da factualidade provada, foi dividido em duas partes, no interior, separadas por uma parede em blocos, ficando uma parte com cerca de 800 m² virada para Sul e a outra com cerca de 600 m² virada para Norte.

31. Tendo sido cedido a FF, a título gratuito, a parte mais virada a Norte, na qual este, durante cerca de dois anos, guardava e reparava algumas máquinas industriais.

***

Factos Não Provados:

Com relevo para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente não que provou que:

a) O prédio da autora, outrora, pertenceu a DD e mulher, EE.

b) O portão mencionado em 9) dos factos provados, mede pelo menos 3,5 metros de largura por 3,5 metros de altura.

c) O portão mencionado em 11) e 12) da factualidade provada serviu apenas para possibilitar, por um lado, a introdução temporária de algumas máquinas de grande porte no seu lado Norte.

d) Nas circunstâncias mencionadas em 31) da factualidade provada, quando a anterior proprietária, ou o usuário do armazém hoje propriedade da autora, por aí pretendiam aceder, faziam-no com a consciência de que não lhes assistia qualquer direito próprio para tal ocupação circulação e acesso.

e) Tendo a consciência que o faziam apenas por autorização e tolerância dos réus.

f) Bem sabendo, tanto a anterior proprietária do armazém, a sociedade “DD Lda”, como FF, que só com a anuência dos réus podiam passar pelo seu prédio para aí aceder.

g) O acesso a tal espaço, correspondente a parte mais a Norte do armazém da propriedade da autora, apenas ocorreu durante cerca de dois anos e apenas enquanto GG o utilizou.

h) Atualmente, existe uma abertura na parede de blocos sita no seu interior que permite a passagem, mesmo de veículos, para a totalidade do interior do prédio da autora a partir da entrada que dá para a via pública sita a Sul.

i) Abertura feita sensivelmente a meio da aludida parede de blocos que durante cerca de 2 anos dividiu os dois espaços em referência.

j) Os réus têm um grande efetivo pecuário que pastoreia no interior da sua propriedade, nomeadamente gado vacum.


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B. Fundamentação de Direito.

Passemos, então, a apreciar as questões recursivas.

(I)  Da impugnação da matéria de facto [se os factos não provados sob as alíneas d), e) e f), devem passar para a matéria assente e integrar o elenco dos factos provados (conclusões 5.ª a 10.ª)].

A interposição de um recurso jurisdicional exerce-se através de requerimento que contenha a fundamentação e o pedido, de modo a delimitar o objecto da impugnação, estabelecendo o n.º 2 do art. 637.º do Código de Processo Civil (CPC) que “o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade” e impondo o n.º 1 do art. 639.º, ao recorrente, o dever de “apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão”.

Sendo impugnada a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, o recorrente além de ter necessariamente de cumprir os ónus de alegação, de especificação e de conclusão, previstos naqueles preceitos legais, deve obrigatoriamente especificar, no seu requerimento recursivo, sob pena de rejeição: (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios para proferir nova decisão, (iii) e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida, de harmonia com as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. [3]

Esses requisitos implicam a rejeição dos denominados recursos genéricos, porquanto, para que se altere a decisão da matéria de facto da 1ª Instância, não basta divergir da leitura que esta fez da factualidade em litígio – ao considerar determinados factos provados e outros não provados –, impondo-se demonstrar que ocorreu erro no julgamento que contrarie, de forma clara e evidente, as regras da ciência da lógica e da experiência, apontando, de modo inequívoco, para o julgamento do facto num sentido diverso.

In casu, os réus/recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto, no que tange aos factos não provados correspondentes às alíneas d), e) e f), que entendem deveriam transitar para a matéria de facto assente, estribando-se, por um lado, no teor do documento particular intitulado “Contrato de Comodato Parcial”, datado de 10-02-1993, e, por outro lado, no teor das declarações de parte da ré AA.

Os factos impugnados, que pretendem ver provados, são os seguintes:

d) Nas circunstâncias mencionadas em 31) da factualidade provada, quando a anterior proprietária, ou o usuário do armazém hoje propriedade da autora, por aí pretendiam aceder, faziam-no com a consciência de que não lhes assistia qualquer direito próprio para tal ocupação circulação e acesso.

e) Tendo a consciência que o faziam apenas por autorização e tolerância dos réus.

f) Bem sabendo, tanto a anterior proprietária do armazém, a sociedade “DD Lda”, como FF, que só com a anuência dos réus podiam passar pelo seu prédio para aí aceder.

Posto isto e não obstante se pudesse entender, numa leitura mais literal, estrita e rigorista, que não foram observados, em termos mínimos, os requisitos para a impugnação da matéria de facto, previstos, em especial, no art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, mormente, a obrigatoriedade de especificação dos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, uma vez que os recorrentes não impugnam nenhuma da factualidade dada como provada, cingindo-se a referenciar os pontos de facto transcritos que pretendem sejam considerados provados – sem pôr em causa, repete-se, o que o tribunal a quo deu por assente –, proceder-se-á (sem prejuízo dessa pecha) à avaliação da decisão quanto àquela factualidade, seguindo a directriz do art. 662.º, n.º 1, do CPC: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Nas palavras de Antunes Varela, “[a] prova tem (…) atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade (especialmente dos factos pretéritos e dos factos do foro interno de cada pessoa), de contentar-se com certo grau de probabilidade de facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas da espécie, para convencer o julgador (que conhece as realidade do Mundo e as regras da experiência que nele se colhem) da verificação ou realidade do facto” – Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116.º, p. 339.

 Enfatiza Rita Lynce Faria que “a demonstração da realidade dos factos que se pretende com a prova traduz-se na convicção subjectiva, criada no espírito do julgador, de que aquele facto ocorreu. Não se trata de uma certeza absoluta acerca da realidade dos factos, que nunca seria alcançável, mas de um grau de convicção suficiente para as exigências da vida” – Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2014, p. 810.

No actual figurino do recurso de apelação, admitido o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, a Relação pode, por um lado, controlar a convicção do julgador de 1.ª instância – quando esta se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, sindicando aquela convicção –, e deve, por outro lado, apreciar os meios de prova de que pode lançar mão para procurar e formar a sua própria convicção – analisando criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação (ou outras), de modo a criar a sua convicção autónoma e a fundamentá-la.[4]

O reforço dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação, na apreciação da decisão sobre a matéria de facto, no actual Processo Civil, tem a virtualidade de colocar os juízes desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível – pese embora a falta de imediação –, é equivalente ao do juiz da 1.ª instância, tendo acesso ao teor dos depoimentos pelas gravações, podendo aperceber-se das hesitações, dúvidas e latência das respostas das testemunhas, em termos similares ao tribunal a quo.

Daqui se infere que a mitigação da imediação da 2.ª instância não impede a formulação de uma apreciação sobre a lógica do raciocínio empregue pelo juiz da 1.ª instância na valoração da prova – Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2.ª edição, 2020, pp. 427 e 437/438.

As provas, conforme ensina(va) Manuel de Andrade – Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, pp. 47/48 –, são os meios a utilizar para o apuramento dos factos deduzidos pelas partes, podendo as normas relativas a esta matéria constituir (i) direito probatório material, que regula, principalmente, a admissibilidade das provas que poderão ser utilizadas, determinando quais os meios de prova que poderão ser utilizados e o seu valor, ou (ii) direito probatório formal, que regula o modo da produção das provas em juízo, determinando quais os actos a praticar para a utilização dos diversos meios de prova.

Na mesma linha, Anselmo de Castro – Direito Processual Civil Declaratório, Volume I, 1981, pp. 64/70 –, ensina que as provas são os meios de que o juiz se serve para proceder à averiguação da exactidão das afirmações que as partes perante ele formularam, consistindo a instrução da causa no apuramento dos factos deduzidos pelas partes, através desses meios. Os meios probatórios são objecto de determinado sector de normas – o direito probatório –, em parte relativas à admissibilidade das provas (direito probatório material), indicando os meios de prova que poderão ser utilizados e o seu valor; e noutra parte respeitantes ao modo da sua produção em juízo (direito probatório formal), determinando os actos a praticar em juízo para a utilização dos diversos meios probatórios.

O art. 607.º, n.º 5, do CPC, distingue, claramente, a prova de livre apreciação e a prova legal.

(i) Estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova: a prova testemunhal, a prova por inspecção e a prova pericial – cf. arts. 396.º, 391.º e 389.º do Código Civil (CC) –, bem como as declarações de parte não confessórias e as verificações não judiciais qualificadas feitas por entidades privadas – cf. arts. 466.º, n.º 3, e 494.º, n.º 2, do CPC.

(ii) Têm o valor probatório fixado na lei (prova legal): os documentos escritos, autênticos, autenticados e particulares – cf. arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do CC –, a confissão escrita ou reduzida a escrito, seja feita em juízo, seja em documento autêntico ou particular, mas neste caso só quando dirigida à parte contrária ou a quem a represente – cf. arts. 358.º, n.ºs 1 e 2, do CC e 463.º do CPC [nos restantes casos, a confissão fica sujeita à regra da livre apreciação – art. 361.º do CC], as presunções legais stricto sensu – cf. art. 350.º do CC – e a admissão por acordo – cf., v.g., arts. 567.º, n.º 1, 574.º, n.º 2, 587.º, n.º 1, do CPC.

Tratando-se de meios de prova sujeitos à livre apreciação, em sede de reapreciação da prova, o que importa é que a Relação forme a sua própria convicção com base nos meios de prova indicados pelas partes ou oficiosamente investigados – art. 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. b), do CPC –, devendo fundamentar a decisão tomada – art. 607.º, nºs 4 e 5 e 663.º, nº 2, do CPC.[5]

Isto dito e começando pelo documento correspondente ao intitulado “Contrato de Comodato Parcial”, datado de 10-02-1993, salvo o devido respeito, não se extrai do mesmo, de forma simplista, as conclusões que os recorrentes daí pretendem extrair.

Vejamos porquê.

Emerge do disposto no art. 363.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC, que são documentos particulares “todos os documentos que não são autênticos”.

Ou seja, são documentos particulares os “que provêm de simples particulares ou, se preferirmos, de pessoas que não exercem actividade pública ou, se a exercerem, não foi no uso dessa faculdade que elaboraram os documentos” – cf. Gonçalves Sampaio, A Prova Por Documentos Particulares, na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência, 2.ª edição, 2004, p. 81.

A assinatura – art. 373.º, n.º 1, do CC – é o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, com que confere ao documento a sua autoridade e que justifica a força probatória do mesmo, constituindo “requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular” – cf. Vaz Serra, Provas (Direito probatório material), BMJ n.º 111, Dezembro de 1961, p. 155.

É de todo inegável que o documento que aqui se debate constitui um documento particular que, por não ter sido impugnado pelas partes, goza de força probatória plena, nos termos constantes do art. 376.º do CC.

A força probatória plena, estabelecida no n.º 2 do art. 376.º, do CC, apenas se reporta inter-partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros, e limita-se à existência dessas declarações, não abrangendo a sua exactidão – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-10-2019, Proc. n.º 1012/15.5T8VRL-AU.G1.S2, e de 20-09-2020, Proc. n.º 2453/11.2TBEVR-C.E.1.S1.

Gonçalves Sampaio – op. cit, p. 110 –, debruçando-se sobre a interpretação da declaração concretizada em documento escrito, escreve: “Em sede de interpretação regulam os artigos 236.º a 238.º. Do normativo do n.º 2 do artigo 238.º, parece poder concluir-se que a declaração negocial reduzida a escrito situar-se-á no campo interpretativo quando as expressões da declaração inseridas no texto do documento não tenham um sentido claro e inequívoco, ou, ainda que objectivamente o tenham, possa, no entanto, ser outro o significado que lhes foi atribuído pela vontade concordante das partes, desde que não se oponham à respectiva validade, as razões determinantes da forma do negócio. Em qualquer dos casos, porém, compete às partes alegar e provar os factos indispensáveis ao esclarecimento do sentido que quiseram dar às respectivas declarações negociais, podendo até, para o efeito, recorrer à prova testemunhal como expressamente o permite o artigo 393.º, n.º 3 [do CC]”.

Em concordância com a doutrina da impressão do destinatário, consagrada no art. 236.º do CC, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (n.º 1), acrescentando o respectivo n.º 2 que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Para tal, o declaratário, devendo proceder de boa fé, é obrigado a investigar, tendo em consideração todas as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe – cf. Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, 104.º, p. 63.

A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante – cf. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, p. 223.

Revertendo ao documento em apreço dele extrai-se, textualmente, que o mesmo visou formalizar um contrato de comodato. Este negócio jurídico constitui “um contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” – cf. art. 1129.º do CC.

 Desse contrato emergiu:

(i) Que a ré AA e a sua irmã cederam à DD, Lda., “gratuitamente o uso do armazém destinado a arrumos, conhecido como “antiga vacaria”, bem como espaço de terreno compreendido entre este e a rua da fábrica, (lateral direita e traseira da fábrica) a fim de que esta se sirva deles na prossecução da sua atividade industrial”.

(ii) Que o comodato foi “efetuado por prazo indeterminado e enquanto se mantiver a atividade industrial da segunda contraente”.

(iii) E, por fim, que “durante a vigência do presente contrato, a segunda contraente tem a obrigação de guardar, conservar e manter limpos a parte do prédio por onde está autorizada a circular, e o armazém, aqui emprestados, não fazendo deles uso imprudente, devendo restituí-los logo que as primeiras contraentes assim o exijam ou aquela termine a sua atividade industrial no local”.

Porém, não se pode extrair da interpretação desse documento, contrariamente ao que pugnam os recorrentes, que “do conteúdo de tal documento resulta inequívoco que foram os então proprietários do prédio (…) que em 10/02/1993 emprestaram e autorizaram a pessoa coletiva DD Ldª, anterior proprietária do prédio hoje propriedade da A., (…) a circular pelo espaço por onde se descreve a servidão aqui em apreço, utilização por isso necessariamente precária e que apenas ocorreria enquanto se mantivesse a atividade industrial da sobredita DD Ldª e a autorização para tal das proprietárias do prédio onde a mesma se descreve”; quea anterior proprietária do imóvel adquirido pela A., a referida pessoa coletiva DD Ldª, nunca utilizou e passou por tal local com a convicção que o fazia no exercício de um direito próprio; e, por fim, que  “os seus trabalhadores que por aí circulavam, dado que o faziam ao serviço e no interesse da sobredita sociedade, e não no exercício de um direito próprio, deles trabalhadores, - até porque desde logo, não eram os proprietários ou possuidores em nome próprio das instalações onde trabalhavam - faziam-no igualmente nesse pressuposto de mera tolerância, por depender da autorização das então proprietárias, compreendida a aqui Ré, para aí passarem” (conclusões 5ª a 7ª).[6]

Além da leitura do documento (particular) em causa não autorizar que se extraiam essas conclusões apriorísticas, importa frisar que o escopo primário do mesmo foi contratualizar o comodato de um imóvel e não a passagem sobre o terreno dos ora réus, não sendo totalmente inequívoco e claro, por outro lado, que a “vacaria” corresponda ao prédio urbano que a autora adquiriu. Não se olvide, ademais, que foi a própria ré AA, na qualidade de declarante de parte, quem reconheceu que a unidade industrial era composta por 3 armazéns principais. Em todo o caso, seja como for, tal documento é totalmente insuficiente para, por si só, conduzir às conclusões acima indicadas, nada autorizando que dele se extraia essa leitura.

Avançando para a apreciação das declarações de parte da ré AA, relembra-se que a mesma foi inquirida no decurso da sessão da audiência final de 05-03-2024, entre as 10:19 e as 10:57 horas.

A esse propósito, na fundamentação da sentença, escreveu o tribunal a quo:

“(…) Foram tomadas declarações de parte à ré AA, a qual começou por explicar a atividade comercial da sociedade comercial “DD, Lda”, detida pelos seus pais, e as circunstâncias em que tal sociedade exercia a sua atividade comercial no pavilhão adquirido pela aqui autora.

Acrescentou que, no local, existem três pavilhões que são autónomos, sendo que, à data da laboração da sociedade comercial “DD, Lda” estavam afetos ao exercício da atividade comercial de tal sociedade e comunicavam entre si.

Sucede que o novo adquirente de um outro pavilhão, de nome HH, edificou uma parede com blocos de cimento e impediu a comunicação entre os mencionados pavilhões.

Aludiu ao documento junto nos autos a fls. 50 a 51, referindo que “a família” procedeu à delimitação da zona da quinta, afirmando que a partir de determinada altura o portão existente na cave do prédio da autora foi fechada, não tendo utilização.

Instada esclareceu que o piso do rés do chão e da cave do prédio da autora não têm comunicação e/ou acesso entre si, precisando que o acesso à cave era feito através do pavilhão atualmente detido pelo Sr. II, a pé, não havendo necessidade de ser acedido com veículos automóveis.

Ora, tal versão dos factos não mereceu a credibilidade do Tribunal. Desde logo, porque as suas declarações foram frontalmente contrariadas pela demais prova produzida, máxime a prova testemunhal arrolada pela autora, que demostrou conhecimento direto, em virtude das funções desempenhadas, e se revelou lógica, coerente, consistente e, por isso, credível, explicando as circunstancias em que, desde há mais de 20 anos, os trabalhares e/ou fornecedores da sociedade “DD, Lda” acediam, a pé e de veículo automóvel, à cave do prédio atualmente detido pela autora, nos termos que resultaram provados” (sic).

Procedendo, nesta sede recursiva, à audição integral das declarações de parte prestada pela ré AA, delas assomaram, em síntese, as seguintes notas fundamentais, quando interrogada pelo ilustre mandatário judicial dos réus:

– Referiu-se ao pavilhão/armazém adquirido pela autora, no decurso do processo de insolvência, identificando-se como filha de DD, gerente da empresa insolvente DD, Lda.;

– Especificou que a empresa insolvente dedicava-se à actividade têxtil, concretamente de fiação e fabricação de cobertores, indicando que os pavilhões da insolvente, de grande dimensão, eram em número de 3, e que a autora adquiriu em leilão, em segunda arrematação, um dos pavilhões, com a superfície de 1400 metros quadrados, o qual confina com a propriedade dos réus;

– Confrontada com o doc. n.º 2 da contestação, junto a fls. 40 verso, em especial a p. 4, reconheceu que aí se identifica o pavilhão adquirido pela autora;

– Mencionou que os vários pavilhões eram uma unidade e que havia comunicação entre eles para facilitar o transporte de mercadorias e a circulação de trabalhadores;

- Afirmou que o principal armazém foi vendido ao Sr. II, que veio a fechar, com blocos de cimento, as comunicações que havia para o pavilhão adquirido pela autora, constituindo actualmente 2 edifícios independentes;

– Disse que a circulação interior, que se fazia para a cave do edifício da autora, era através do edifício do Sr. II e que nesse patamar inferior estavam situadas as casas de banho do pessoal, o refeitório e a sala para os trabalhadores, tendo sido vedada a porta de circulação e colocado um grande painel na parte de cima do pavilhão da autora;

– Asseverou que prédio da autora tem ligação à via pública através de um portão grande, com mais de três metros, e que tem uma porta pequena para passar pessoal, concretizando que a propriedade/quinta tem 12 hectares, possuindo uma casa rústica e mais um pavilhão;

– Afirmou que para se entrar no pavilhão adquirido pela autora os trabalhadores não precisavam de passar pelo prédio dos réus mas sim pelas ligações que foram encerradas, declarando que só em caso de necessidade (por exemplo, para fazer descarregamentos de material) passavam pelo seu prédio, por mera tolerância;

– Disse que veio de Lisboa, onde estudou gestão, e que o seu pai dedicava-se, também, à actividade pecuária e que apercebendo-se de “muita confusão” na utilização da propriedade/quinta, a sua irmã sugeriu que se elaborasse um documento para clarificar a situação, detalhando que o documento/contrato foi feito pela própria e pela sua irmã com a empresa do pai (declarada insolvente) para aclarar que a circulação por fora do pavilhão era por mera tolerância e que podia cessar esse consentimento a qualquer momento.

Isto dito, anota-se, outrossim, que, na sequência do pedido de esclarecimentos por parte da il. mandatária da autora, foi notória, na audição da prova gravada, uma alteração do tom de voz da declarante, revelando mesmo algum incómodo com as perguntas que lhe foram dirigidas, e percepível na auscultação dessa gravação, tentando sempre enfatizar o carácter precário da passagem, mormente que “o acesso com viaturas não era necessário para a parte adquirida pela autora”; que “só lá vi uma máquina trituradora”; que “a rodeira era usada pouco frequentemente para passagem de viaturas” e “só” com a sua autorização; e que “o acesso era esporádico e residual”.

Salvo o devido respeito, além das declarações da ré, acima sintetizadas, não terem sido claras e inequívocas, não se podem delas extrair as conclusões que os recorrentes pretendem, designadamente que “a mesma esclareceu por referência ao sobredito documento que embora a DD Ldª passasse pelo local onde se descreve a pretendida servidão, nomeadamente serviço, tal pessoa coletiva, enquanto titular então do prédio hoje propriedade da A., fazia-o sem a convicção de estar a exercer um direito próprio e absoluto, em termos de servidão predial de passagem”, “antes tendo plena consciência que o fazia sob autorização dos então proprietários do prédio hoje dos R.R. e apenas enquanto durasse a sua atividade industrial. por intermédio dos trabalhadores ao seu (conclusões 8ª e 9ª).

Aliás, como é ostensivo, não se pode escamotear toda a restante factualidade que a 1ª Instância deu como provada e que os recorrentes não impugnaram em sede de recurso – designadamente os factos correspondentes aos n.ºs 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23 –, sendo inequívoco que o deviam ter feito, como se mencionou supra.

Como desenvolve Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas”, Volume I, p. 591:“O Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância”. A mesma autora salienta – op. cit., p. 609 – que, em caso de dúvida, “face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.

Não basta, pois, qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, impondo-se, como já assinalado, a ocorrência de erro de julgamento, tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação.

Assim, para que a decisão da 1ª instância fosse alterada haveria que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-ia que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua correspondência com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.

Isto dito, desde já se adianta que se concorda, na íntegra, com os considerandos da 1.ª Instância a respeito da avaliação da matéria de facto, resultante da inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.

Na verdade, procedendo-se à audição da prova produzida em audiência final, anotam-se, nos segmentos que aqui relevam, as seguintes observações, constantes da fundamentação do tribunal a quo, e que a autora/recorrente não põe em causa no seu recurso, sendo certo que nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se indica no art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida, conforme vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-09-2017, Proc. n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1.

Escreveu-se na fundamentação do tribunal a quo:

“(…) De seguida, foi tido em consideração o depoimento da testemunha JJ, casado, reformado, residente em ..., que aos costumes referiu nada. Com conhecimento direto dos factos em apreciação em virtude das funções de encarregado que exerceu para a sociedade comercial “DD, Lda” até ao seu encerramento e durante cerca de 20 anos, explicou a atividade da sociedade da qual era encarregado e o modo de utilização do pavilhão entretanto adquirido pela aqui autora, asseverando que o mesmo é constituído por dois pisos, situados em quotas distintas, um dos quais tem acesso direto à via pública e o outro, situado na cave, está dotado de um portão que dá acesso ao prédio dos réus.

Acrescentou que, na referida cave, para além de estarem guardadas máquinas, como sejam a esfarrapadeira e a guilhotina, aí estavam também instalados o refeitório e os sanitários da unidade fabril, razão pela qual “toda a gente acedia àquele andar”, conforme observou, quer a pé, quer com o empilhador, quer de veículo automóvel.

 Ademais asseverou que não existe caminho alternativo para aceder à cave existente no prédio da autora, nem existe comunicação interna entre os dois pisos que compõem o prédio da autora, asseverando que nunca pediram autorização a quem quer que fosse para percorreram tal caminho.

Instado o depoente acrescentou que excecionando uma ocasião em que, na referida cave, foi guardada palha, até ao encerramento da sociedade “DD”, no ano 2019, tal caminho não era regulamente utilizado para apoio à atividade agrícola dos réus, o reboque passava aí muito ocasionalmente.

As suas declarações revelaram-se lógicas, isentas e imparciais e, por isso, credíveis.

Ainda acerca da factualidade atinente à configuração e modo de acesso ao prédio da autora, foi considerando o depoimento da testemunha KK, casada, auxiliar de lar de idosos, que aos costumes disse nada. À semelhança da testemunha anterior, também a depoente tem conhecimento direto dos factos em apreciação nos autos, em virtude das funções de urdideira, que exerceu sociedade “DD, Lda”, desde o 1995 a 2019. Tal testemunha corroborou o depoimento JJ e descreveu detalhadamente o modo de acesso à cave do prédio da autora, nos termos em que resultaram provados.

As suas declarações revelaram-se lógicas, isentas e imparciais e, por isso, credíveis.

De igual modo foi considerando o depoimento das testemunhas LL, casada, doméstica, que aos costumes disse nada. Explicou a composição do prédio da autora e, bem assim, a configuração do caminho que dá acesso à cave existente em tal prédio e, no essencial, em termos coincidentes com o depoimento prestado pelas testemunhas acabadas de referir.

As suas declarações revelaram-se lógicas, isentas e imparciais e, por isso, credíveis.

De seguida, foi considerado o depoimento da testemunha MM, casado, afinador de máquinas têxteis reformado, que aos costumes disse nada. Também com conhecimento direto dos factos em apreciação neste processo, em virtude das funções que exerceu na sociedade “DD, Lda”, descreveu a configuração e confrontações do prédio da autora em termos coincidentes com a demais prova produzida, e explicou o modo como se acedia a tal prédio, nos termos em que resultaram provados, corroborando as declarações prestadas pelas testemunhas acima aludidas.

As suas declarações revelaram-se lógicas, isentas e imparciais e, por isso, credíveis.

A testemunha NN, divorciado, engenheiro civil, residente na Guarda, que aos costumes disse não ter relações familiares com as partes, nada de relevante acrescentou à matéria em discussão nos autos, limitando-se a explicar o atendimento que efetuou ao legal representante da autora no departamento da Câmara Municipal, por ocasião da compra do prédio.

A testemunha II, casado, construtor civil, residente em ..., que aos costumes disse nada, explicou que, tendo adquirido o pavilhão contiguo ao prédio adquirido pela autora e o modo de comunicação entre os dois prédios, tapou tal acesso, impossibilitando assim a passagem entre os dois pavilhões.

O depoimento da testemunha OO, casado, afinador de máquinas, residente em ..., que aos costumes disse nada, tendo exercido funções que exerceu na sociedade “DD, Lda”, não se revelaram inteiramente credíveis, lógicas e coerentes com a demais prova produzida. Com efeito, tal testemunha afirmou que o acesso à cave do prédio atualmente detido pela autora, - local onde a testemunha também reconheceu que se encontravam guardadas máquinas, onde funcionava o refeitório e os sanitários da fábrica -, era exclusivamente feito pelo prédio atualmente detido pela testemunha II, sendo que tal acesso deixou de existir, uma vez o novo proprietário fechou a comunicação entre os dois prédios.

 Sucede que, não obstante o Tribunal não duvide da existência de tal passagem comunicante entre os dois prédios, o certo é que tal passagem não permitia o acesso através de veículos automóveis, os quais tinham de aceder à cave a que vimos de aludir através do caminho mencionado nos artigos 14) e 15) da factualidade provada.

Tais declarações foram, por isso, desvalorizadas. 

Por fim, foram tomadas em consideração as declarações de parte do réu PP, que não assumiram especial relevância probatória, tendo-se limitado a explicar a composição e o acesso aos prédios, aludindo à cedência temporária do prédio, a QQ, pelo período de dois anos.

Ora, com base na prova assim produzida o Tribunal não pode dar como provada, com a necessária segurança, materialidade para além da que nessa qualidade se descreveu.

A resposta negativa dada à factualidade não provada ficou, pois, a dever-se quer à ausência quer à prova produzida em sentido contrário nos termos em que acima demos conta. Na verdade, não foi feita qualquer prova no sentido da sua positividade sendo que se atentarmos o teor dos documentos juntos nos autos por si só não permite dar resposta positiva a tais factos.

A factualidade provada nos termos que fora respondida resulta pois da conjugação da prova produzida, em conjugação com as regras do ónus da prova decorrentes do disposto no artigo 342º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.

O valor da prova, a sua relevância, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade, e tal como ensina Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, Almedina, 2003, pág. 199, na apreciação dos meios de prova, tal como na formação da convicção, não pode o Tribunal deixar de colher da experiência judiciária os ensinamentos que permitam acautelar devidamente os interesses carecidos de proteção, princípio que não foi descurado no âmbito dos presentes autos” (sic).

Reitera-se, os recorrentes não “atacaram”, minimamente, esta apreciação da prova realizada pelo tribunal a quo, sendo de concluir que foi feita uma correcta avaliação das provas, inexistindo nos autos elementos probatórios que permitam alterar a avaliação probatória da 1.ª Instância a fim de dar como assente a factualidade elencada nas alíneas d), e) e f), dos factos não provados.

Improcede, por conseguinte, a impugnação da matéria de facto, sendo de manter, na íntegra, quer a factualidade provada, quer a factualidade não provada.


*

(II) Matéria de Direito [se a sentença recorrida violou os arts. 1547.º, 1251.º, 1253.º al. a), 1256.º, 1287.º, 1290.º, e, fundamentalmente, o n.º 2 do artigo 1252.º, bem como os arts. 363.º n.º 2 e 376.º n.º 1, todos do Código Civil, e ainda o n.º 4 do art. 607.º do Código Processo Civil (conclusões 11.ª a 17.ª)].

Cristalizada que está a matéria de facto a atender, é inequívoco, desde logo, que a autora beneficia da presunção de titularidade decorrente da inscrição registral a seu favor, nos termos do art. 7.º do Código de Registo Predial, a qual não foi ilidida, impondo-se confirmar que a autora é a dona e legítima proprietária do prédio identificado nos pontos 1) e 2) da factualidade provada.

Resta, tão só, analisar a questão atinente à constituição da servidão de passagem a favor do prédio da autora, que, como bem salienta a sentença sob recurso, constitui um pedido de simples apreciação positiva, pelo que incumbia à autora o ónus de a provar, nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CC.

De acordo com a noção vertida no art. 1543.º do CC, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.

A utilidade da servidão de passagem traduz-se, em relação ao prédio dominante, no “passar” pelo prédio serviente e em relação a este prédio “no deixar passar” para o prédio dominante.

Por conseguinte, a servidão predial constitui uma restrição ao gozo efectivo do prédio pelo dono do prédio onerado com tal encargo, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão.

As servidões prediais podem constituir-se, nos termos do disposto no art. 1547.º do CC, por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

Os arts. 1550.º a 1556.º do CC reportam-se às servidões legais de passagem.

Segundo o estatuído no art. 1550.º do CC para a constituição duma servidão de passagem é necessária a demonstração cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) existência de dois prédios, pertencentes a proprietários diferentes;

b) que um desses prédios não tenha comunicação com a via pública;

c) que o outro prédio seja rústico e tenha condições para lhe proporcionar o acesso à via pública.

Tais requisitos estão categoricamente demonstrados no caso concreto: o prédio da autora não tem acesso à via pública e o prédio dos réus reúne as condições para lhe proporcionar esse acesso, apenas havendo que dirimir, perante a factualidade assente, se os autores exerceram ou não a posse do direito de passagem.

Os factos provados relevantes para analisar esta questão são, fundamentalmente, os seguintes:

–  A aquisição do prédio urbano, destinado a armazém e actividade comercial, sito em Trinta, inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... com o art. ...63.º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, encontra-se registada a favor da autora, pela Ap ...98 de 2022/06/22 ) (factos provados n.ºs 1 e 2).

– Esse prédio veio à posse da autora, por compra, em processo de insolvência – Proc. nº 983/18...., que correu termos no Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Guarda, Juiz ..., tendo-lhe sido entregues, com o título de aquisição, as chaves das diversas portas do imóvel, cujas fechaduras a autora trocou por outras, não tendo entregue as chaves correspondentes a ninguém (factos provados n.ºs 3 e 4).

– O prédio da autora confronta a sul com caminho público, a Norte e Nascente com o prédio rústico, inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... com o art. ...13º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...03 da referida freguesia, inscrito a favor da ré AA e do réu CC, na proporção de ½ para cada um, respetivamente pela Ap. ...1 de 1983/07/26 e pela Ap. ...37 de 2018/03/17 e ...86 de 2022/09/19, e a poente com o prédio do réu CC e outro (factos provados n.ºs 5 e 6).

– O prédio da autora é composto por rés-do-chão e cave, situados em quotas de terreno a níveis distintos: (1) ao nível do caminho público, situa-se parte do armazém, localizada no rés-do-chão, o qual é composto exclusivamente por área coberta, possuindo um portão de entrada, com acesso directamente para a via pública, Rua ..., ...) a cave encontra-se a um nível inferior, situada a Noroeste, não possuindo acesso interno ao rés-do-chão, nem acesso directo à via pública (factos provados n.ºs 8, 9 e 10).

– Na parte do armazém situada a Noroeste, o prédio apresenta também um portão de acesso que abre directamente para o prédio dos réus, por onde se fazia o acesso à referida parte Noroeste, a qual estava separada por uma parede em blocos da zona sita mais a sul do referido armazém e a parte do prédio da autora que se situa a um nível inferior, possui também, como único acesso, um portão que abre directamente para o prédio dos réus (factos provados n.ºs 11 e 12).

– Quando a autora adquiriu o imóvel, e desde que há memória, o acesso ao mesmo fazia-se, na parte que confina com o caminho público, através do portão que a ele dá acesso direto (facto provado n.º 13).

– O acesso à parte inferior (cave) daquele prédio, sempre se fez através de um caminho com cerca de 3/4 metros de largura, o qual tem início no caminho público, seguindo para Norte em linha reta, durante cerca de 30/40 metros, ali iniciando uma curva ligeira, em direcção a Sudoeste, em sentido descendente, dando acesso ao portão do armazém sito a Noroeste e também ao portão da parte do armazém que se situa a um nível inferior (cave) e o traçado da referida passagem é constituído por uma rodeira, bem visível e aparente, e marcado no solo (factos provados n.ºs 14 e 15).

– À data em que a autora adquiriu o prédio, e desde sempre, a passagem de acesso encontrava-se livre e desimpedida, sem qualquer vedação ou portão de acesso colocados e a parte do prédio da autora situada na quota inferior, não tem outro acesso à via pública que não seja aquele caminho (factos provados n.ºs 16 e 17).

– Em data não concretamente apurada do ano de 2022, os réus através de pilares e da colocação de um portão em ferro, dotado de um cadeado/ fechadura, vedaram o acesso àquele caminho, tapando o acesso ao prédio da autora, recusando-se entregar-lhe uma chave do referido portão, assim como se recusam limpar a rodeira, onde começaram a crescer ervas e silvas, o que impede a autora de aceder à cave do prédio de que é proprietária, impedindo o seu uso para actividade profissional a que a autora pretende destinar o imóvel por si adquirido (factos provados n.ºs 18, 19 e 20).

– Pelo menos, desde o ano de 1983, que a autora e seus antecessores acedem à referida cave pela rodeira mencionada, quer a pé, quer de carro (facto provado n.º 21).

– A autora mandou colocar na cave do prédio diversos bens da sua actividade, carregando e descarregando, designadamente motores e outros componentes de veículos automóveis, através da mencionada rodeira, o que fez de dia, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercer um direito próprio (factos provados n.ºs 22 e 23).

Por ser totalmente correcta a avaliação da 1.ª Instância a respeito da constituição da servidão legal de passagem no caso em apreço, reproduzimos, nessa parte, a sentença recorrida:

“(…) [R]esultou provado que tal posse foi exercida à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, exceto dos réus a partir dos últimos meses do ano 2022.

Como refere Henrique Mesquita, “os restantes carateres que a posse pode revestir (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita no registo) influem apenas no prazo necessário à usucapião. Este prazo é mais curto ou mais longo conforme exista boa ou má fé e conforme os restantes caracteres permitam inferir uma maior ou menor probabilidade da existência do direito na titularidade do possuidor e uma maior ou menor publicidade da relação de facto … O prazo de usucapião varia conforme incida sobre coisas móveis ou imóveis… tratando-se de imóveis, o prazo de usucapião é menor se o possuidor estiver de boa fé e se houver registo quer do título, quer da mera posse (artigos 1294º a 1296º do Código Civil)” (Lições de Direitos Reais, 1966/1967, Coimbra, p. 112/113).

Ora nos termos dos artigos 1294.º a 1296.º a usucapião tem lugar:

Havendo registo da aquisição: se a posse for de boa fé, no prazo de 10 anos, desde a data do registo; se a posse for de má fé no prazo de 15 anos contados desde a data do registo.

 Não havendo registo de aquisição, mas registo de mera posse: se a posse for de boa fé, no prazo de 5 anos continuados, contados desde a data do registo; se a posse for de má fé, no prazo de 10 anos continuados, contados desde a data do registo.

 Não havendo registo de título de aquisição, nem de mera posse: se a posse for de boa fé, no prazo de 15 anos, se a posse for de má fé no prazo de 20 anos.

No caso em apreço, resultou provado que o prédio dos réus identificado no artigo 5) da factualidade provada confina a poente com o prédio da autora identificado no artigo 1) da factualidade provada.

A zona da cave do prédio da autora, a qual não tem acesso pelo interior do armazém situado no rés do chão, não confina com a via pública, pelo que a autora e seus antecessores têm acedido a tal parcela do prédio através de uma passagem, que se inicia no caminho público, segue para Norte em linha reta, durante cerca de 30 a 40 metros, atravessando o prédio dos réus, dá acesso ao portão da parte do armazém que se situa a um nível inferior.

Tal acesso é constituído por um trilho em terra batida, bem demarcado no solo, com cerca de três a quatro metros de largura e trinta a quarenta metros de comprimento.

Tal caminho tem sido utilizado para a passagem de pessoas, a pé e de carro, em benefício do prédio da autora através da qual procede ao transporte de motores e componentes de veículos automóveis.

A autora e seus ante possuidores vêm transitando por sobre a referida passagem há mais de vinte anos para acederem, a pé e de carro, à cave da sua propriedade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, exceto dos réus a partir de finais do ano de 2022, ininterruptamente, ignorando lesar direitos de outrem, na convicção de exercer em exclusivo um direito próprio de passagem.

Acresce que, perante a factualidade acima enunciada, é nossa convicção que estamos perante uma verdadeira servidão predial aparente, constituída por usucapião.

Ora, é manifesto que está provada a existência de sinais visíveis e perceptíveis de que os réus têm conhecimento, reveladores da existência da servidão de passagem em apreço para o seu prédio.

Não obstante em finais do ano 2022 terem colocado um portão a impedir a passagem, o certo é que até àquela data tal caminho apresentava sinais visíveis e permanentes, tornando a servidão patente a todos os interessados, designadamente aos réus, circunstâncias que permitem reconhecer a constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus e em benefício da cave situada no prédio da autora.

Em suma, resultou provado quer a posse (corpus e animus), quer o decurso do prazo para a aquisição por usucapião, quer ainda que tal exercício é revelado por sinais visíveis e permanentes, pelo que, permite a aquisição da servidão de passagem por usucapião.

Quanto ao modo de exercício de tal direito resultou provado que o mesmo é feito a pé e de veículos automóveis.

Assim, diremos que estão verificados todos os pressupostos de reconhecimento de uma servidão de passagem a pé e de veículos automóveis sobre o prédio dos réus e a favor da cave situada no prédio da autora, por usucapião, procedendo assim parcialmente o peticionado em b).

A autora peticiona ainda que a condenação dos réus a absterem-se de impedir o seu direito de passagem.

Estabelece o artigo 1305º do Código Civil que, “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

Significa isto que o proprietário tem o direito a não ser perturbado no uso dos seus poderes de uso fruição e disposição, podendo exigir dos outros comportamentos de abstenção de perturbação desses seus poderes.

Da factualidade que resultou provada, ressuma que, em data não concretamente apurada do ano de 2022, os réus através de pilares e da colocação de um portão em ferro, dotado de um cadeado/ fechadura, vedaram o acesso ao caminho identificado em 14) da factualidade provada, tapando o acesso ao prédio da autora.

Os réus recusam-se entregar à autora uma chave do referido portão, assim como se recusam limpar a rodeira, onde começaram a crescer ervas e silvas.

Com tal comportamento os réus impedem a autora de aceder à referida cave do prédio de que é proprietária, impedindo o seu uso para atividade profissional a que a autora pretende destinar o imóvel por si adquirido.

Assim, tendo os réus praticado atos perturbadores da posse e direito de passagem da autora, devem os mesmos ser condenados a abster-se da prática de atos lesivos desses direitos, sendo tal pedido julgado procedente”.

Sem necessidade de maiores tergiversações, e concordando com o vertido na sentença recorrida, é de concluir que foi realizada, na 1.ª Instância, uma aplicação correcta dos preceitos legais convocáveis para o caso, não enfermando aquela decisão de qualquer erro de direito, nem se mostrando violados os “arts. 1547.º, 1251.º, 1253.º al. a), 1256.º, 1287.º, 1290.º, e, fundamentalmente, o n.º 2 do artigo 1252.º, bem como os arts. 363.º n.º 2 e 376.º n.º 1, todos do Código Civil, e ainda o n.º 4 do art. 607.º do Código Processo Civil” (sic), que os recorrentes mencionam.

De harmonia com o exposto, improcedem, na íntegra, as conclusões recursivas, sendo de manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Sendo parte vencida, cabe aos réus/recorrentes o pagamento das custas processuais ex vi dos arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.


*

            Sumariando:

            (…).

Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e, em consequência, confirmar integralmente a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes, nos termos do artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do CPC.


Coimbra, 14 de Janeiro de 2025

Luís Miguel Caldas

Sílvia Pires

Luís Manuel Carvalho Ricardo



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dra. Sílvia Pires e Dr. Luís Manuel Carvalho Ricardo.
[2] Na audiência prévia, de 13-07-2023, foi proferida sentença homologatória de desistência do pedido relativamente à ré BB.
[3] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2024, Proc. n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, o qual está acessível para consulta integral em http://www.dgsi.pt, tal como os restantes acórdãos que se mencionarem nesta decisão).

[4] Como vertido na “exposição dos motivos” da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil: “[C]uidou-se de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios…, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material.”.
[5] Neste sentido, vejam-se, designadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-09-2019, Proc. n.º 1555/17.6T8LSB.L1.S1, e de 17-12-2019, Proc. n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1.
[6] Sublinhados nossos.