I – A incompletude do auto de inspeção judicial consubstancia uma nulidade do processo e não uma nulidade do julgamento, sendo uma nulidade secundária prevista no 195º, nº 1, a arguir nos termos do disposto no artº 199º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil.
II – Se o Recorrente não arguiu em tempo tal nulidade nem impugnou a decisão da matéria de facto quanto aos factos fundamentados em tal inspeção, ficando-se pela questão prévia de incapacidade de entender o raciocínio do julgador, sem elaborar o seu próprio raciocínio de análise de prova, já não pode o Tribunal da Relação apreciar das consequências de tal omissão.
III – Com o emparcelamento, pretendeu o legislador impedir o fracionamento dos terrenos agrícolas, dificultando o minifúndio, que não é economicamente produtivo, de forma a elevar a qualidade e competitividade das explorações agrícolas nacionais.
IV – Mas deixou em aberto duas exceções, a de o prédio estar afeto a uma exploração agrícola de tipo familiar e a de o prédio estar afeto a uso urbano.
V – Existe exploração agrícola de tipo familiar quando um imóvel ou conjunto de imóveis são utilizados para a prática de agriculta de subsistência do agregado familiar de quem os explore, salientando-se aqui a função social da agricultura – intimamente ligada à segurança alimentar e dignidade de quem a exerce - em detrimento da sua função económica enquanto exploração agrícola rentável.
VI – Para efeitos do disposto no artº 1381º, al. a), do Código Civil, o prédio será rústico ou urbano atendendo à definição ínsita no artº 204º, nº 2, do Código Civil, o que não coincide necessariamente com a realidade registral, sendo matéria de facto a apurar casuisticamente, atendendo-se à efetiva utilização do imóvel.
VII – Fazendo os prédios alienados parte de uma unidade de facto, que abrange prédios rústicos e urbanos, e tendo a alienação tido em vista a continuidade dessa utilização, o seu desmembramento não é resultado que possa decorrer da proteção legal às unidades de cultura, antes se desvirtuando os objetivos do direito de preferência.
VIII – Ainda que prevalecesse o elemento rústico, respeitando-se essa unidade, o direito de preferência sempre haveria de ser exercido sobre o todo, prédios rústicos e prédios urbanos, e não apenas sobre os primeiros.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Nos autos de ação de processo comum, que correram termos Juízo de Competência Genérica de Figueiró dos Vinhos, em que são Autores AA e BB e em que são 1ºs Réus (vendedores) CC e DD, EE, FF, GG, HH e II, JJ e KK e 2ºs Réus (compradores), LL e mulher MM, foi proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente.
Os Recorrentes AA e BB interpuseram recurso dessa decisão, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
Os Recorridos 1ºs Réus (vendedores) CC e DD, EE, FF, GG, HH e II, JJ e KK responderam ao recurso, concluindo, nas suas contra-alegações, que:
(…).
(…).
Os Autores apresentaram então alegações complementares, concluindo:
(…).
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal). Assim:
Questões a decidir:
1. Da nulidade da sentença e eliminação da al. x) dos factos provados
2. Da ampliação da matéria de facto
3. Do direito de preferência
4. Do recurso subordinado - a alteração da decisão relativa à matéria de facto
Do historial dos presentes autos:
1) Os Autor(a)(es)(as) pediram o reconhecimento do seu direito de preferência relativamente à alienação de dois imóveis que os primeiros Ré(u)(s) venderam aos segundos Ré(u)(s).
2) Para tanto, alegaram, em síntese, serem proprietários do prédio descrito no artº 4º da Petição Inicial, confinante com os prédios alienados, descritos nos artºs 9º e 10º da Petição Inicial, tendo os três juntos cerca 2.592 m2, e sendo todos eles prédios rústicos aptos para cultura e sem mecanismos ou instalações de rega.
3) O lhes confere direito de preferência, nos termos do disposto no artº 1380º, nº 1, do Código Civil.
4) Mais alegam que os segundos réus não eram proprietários de qualquer prédio confinante, mas, mesmo que o fossem, o seu direito prevaleceria, nos termos no disposto no nº 2, al. a), do mesmo preceito legal, uma vez que o seu prédio está onerado com uma servidão de passagem em benefício do prédio descrito no artº 9º.
5) Os 1ºs Ré(u)(s) contestaram alegando, em síntese, que os segundos RR. também compraram, em 6 de Junho de 2022, aos primeiros, o prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão, primeiro andar e logradouro, inscrito n respectiva matriz predial sob o artigo ...44 da união de freguesias ... e ..., aliás tendo sido uma das condições impostas para a concretização do negócio, a venda do prédio urbano e dos prédios rústicos como uma unidade.
6) E que, apesar de inscritos com artigo próprio na respectiva matriz predial, na realidade não têm autonomia económica, caracterizando-se como logradouro e espaço complementar do prédio urbano agora pertença dos segundos réus.
7) Assim, invocando a inexistência de direito de preferência, nos termos do disposto no artº 1391º, al. a), do Código Civil.
8) Mais alegaram não existir qualquer servidão de passagem.
9) Os 2ºs Ré(u)(s) contestaram nos mesmo moldes, mais defendendo a existência de um prédio misto, composto pela parte urbana também alienada, e sendo a parte rústica, a identificada pelos artigos referidos no artº 9º e 10º, as quais são dependentes e complementares uma da outra.
10) Constituindo uma verdadeira unidade, estando identificados e murados em quase toda a volta, sendo o acesso do prédio urbano para os prédios rústicos feito, desde sempre e há mais de trinta anos, por uma escada interior, ali existente, assim invocando também a exceção a que alude a al. b), do mesmo artº 1391º.
11) Alegando ainda serem arrendatários, desde 1 de Julho de 1996, dos prédios que vieram a adquirir, o que também lhes confere um direito de preferência, que prevalece sobre os dos Autores.
12) Foi proferido despacho saneador, realizada audiência de julgamento e proferida sentença.
13) Factos dados como provados na sentença recorrida:
a) NN faleceu no dia 18/07/2001, no estado de casado com AA, tendo deixado como herdeiros a referida esposa e o filho de ambos, BB.
b) Da herança de NN faz parte o prédio rústico composto por
terreno de cultura com 15 oliveiras, castanheiro, 12 videiras e mato, sito no Quintal, com a área de 0,106400 hectares, a confrontar do Norte com OO, também conhecido por OO, do Sul com PP, do Nascente com QQ, e do Poente com estrada, inscrito na matriz predial rústica da união de freguesias ... e ... sob o artigo n.º ...30, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...15 da Freguesia de
....
c) O prédio referido em b) encontra-se registado a favor dos Autores AA e BB através da apresentação n.º2221 de 2020/09/15, em comum e sem determinação de parte ou direito.
d) Os Autores AA e BB,
por si e pelos seus antepossuidores, em representação da herança aberta por óbito de NN, têm usado, fruído e disposto do prédio rústico referido em b), há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição de ninguém, com a convicção e ânimo de serem os seus donos e legítimos possuidores.
e) Por documento particular autenticado datado de 06/06/2022, os 1.ºs Réus, enquanto sucessores de OO, declararam vender aos 2.ºs Réus LL e MM, que declararam comprar, os seguintes prédios:
1. prédio rústico correspondente a terreno de cultura com oliveiras, com a área de 0,1022 hectares, sito em ..., inscrito na matriz predial rústica da união de freguesias ... e ..., sob o artigo n.º ...28, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...29;
2. prédio rústico correspondente a terreno de cultura com oliveiras, com a área de 0,0506 hectares, sito em ..., inscrito na matriz predial rústica da união de freguesias ... e ..., sob o artigo n.º ...29, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...29, pelo preço global de 2.000,00€ (dois mil euros) sendo, respectivamente, o preço de 1250,00€ para o primeiro e de 750,00€ para o segundo.
f) Os 2.ºs Réus LL e MM registaram as aquisições referidas em e) a seu favor através da apresentação n.º2547 de 2022/07/01.
g) Os 1.ºs e 2.ºs Réus não deram conhecimento aos Autores do negócio referido em e), tendo estes apenas vindo a ter conhecimento da existência do negócio já em Setembro de 2022, e dos seus termos concretos, apenas posteriormente, com
acesso a informação predial não certificada.
h) O prédio dos Autores referido em b) é um terreno agrícola apto a cultivo de
sequeiro e tem a área de 1064 metros quadrados.
i) Os prédios referidos em e) são terrenos agrícolas aptos a cultivo de sequeiro e
têm, respectivamente as áreas de 1022 e 506 metros quadrados.
j) Os prédios identificados em e) e o prédio dos Autores identificado em b), confrontam todos entre si, sendo que os prédios descritos em e) confinam pelo seu lado sul com o lado norte do prédio dos Autores, referido em b), existindo uma separação contínua através de pés de videira apoiados em pilares de cimento, que se estendem de poente para nascente, vindo tal parreira a terminar antes da estrema que separa os prédios identificados em e).
k) Os 2.ºs Réus LL e MM não eram, à data de celebração do negócio referido em e), proprietários de prédio rústico confinante com os prédios objecto do negócio, identificados em e).
l) Os Autores intentaram a presente acção em 06/12/2022.
m) Os Autores procederam ao depósito de quantia equivalente ao preço de despesas suportadas pelos 2.ºs Réus com o negócio referido em e) em 15/12/2022.
n) Por documento particular autenticado datado de 06/06/2022, os 1.ºs Réus, enquanto sucessores de OO, declararam vender aos 2.ºs Réus LL e MM, que declararam comprar, o prédio urbano correspondente a casa de habitação de ..., primeiro andar e logradouro, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...32, freguesia ..., inscrito na respectiva matriz predial urbano sob o artigo ...44 da união de freguesias ... e ..., pelo preço de 40.000,00€.
o) Por documento particular autenticado datado de 04/10/2022, os 1.ºs Réus, enquanto sucessores de OO, declararam vender aos 2.ºs Réus LL e MM, que declararam comprar, o prédio urbano composto de casa de arrecadação e arrumos de ... e primeiro andar, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...33, freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...88, da união de freguesias ... e ..., pelo preço de 1.000,00€.
p) Pelo menos desde 01/07/96, 2.ºs Réus LL e MM tomaram de arrendamento o prédio urbano identificado em n), o que se manteve até à
aquisição referida em e).
q) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos há 20 anos, os 2.ºs Réus vinham utilizando, com autorização dos proprietários OO e esposa RR, e posteriormente pelos seus sucessores, os prédios rústicos identificados em e), cultivando-os, com produtos hortícolas e cultura de Oliveira, lavrando-os e limpando-os.
r) O negócio celebrado entre 1.ºs e 2.ºs Réus teve como objecto a globalidade dos prédios titulados pelos 1.ºs Réus (pertencentes à herança de OO) situados na zona do ..., identificados em e), n) e o), apenas tendo os 2.ºs Réus interesse em adquirir o conjunto dos prédios, o que era condição acordada para o negócio.
s) Os 1[1].º Réus, por si e pelos seus antepossuidores e transmitentes, têm usado,
fruído e disposto dos prédios identificados em e), há mais de 60 anos, à vista de
toda a gente, de boa fé, ininterruptamente e sem oposição de ninguém, com a convicção e ânimo de serem os seus donos e legítimos possuidores;
t) Os prédios referidos em e), desde a construção da casa que constitui o prédio
urbano identificado em n), há cerca de 70 anos, sempre foram usados para o cultivo de oliveiras e hortícolas para uso doméstico dos seus proprietários, OO e RR e posteriormente dos seus sucessores e pelos 2.ºs Réus, assim como de seus familiares, lavrando e cuidando da terra e
colhendo posteriormente os seus frutos.
u) Durante a vida dos proprietários originários OO e RR, o único acesso aos prédios rústicos referidos em e) era feito através
de umas escadas existentes no exterior do prédio urbano referido em n).
v) As primitivas casas de banho do prédio urbano referido em n) foram implantadas no prédio rústico identificado e) 1., e as infraestruturas de fornecimento de água e luz encontram-se instaladas no muro comum dos referidos prédios, existente a poente junto à estrada pública.
w) Os prédios rústicos referidos em e) e o urbano referido em n) estão murados em quase toda a volta, na parte confinante com a estrada.
x) O prédio urbano referido em n) e os prédios rústicos referidos em e) desde há pelo menos 70 anos que têm vindo a ser utilizados como uma realidade física única, constituindo os prédios referidos em e) um espaço complementar do prédio urbano, e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários.
y) Os 2.ºs Réus LL e MM manifestaram junto da Autora AA o interesse em comprar o prédio referido em b), o que esta aceitou, tendo nesse âmbito entregue àquela a quantia de 1500,00€ em 20/03/2005.
z) Desde data não concretamente apurada, a Autora AA autorizou os 2.ºs Réus LL e MM a cultivar o prédio identificado em b), assim como a passar no mesmo, a estacionar o seu tractor e demais alfaias
agrícolas, e a utilizarem a rampa nele existente, com início na estrada, junto a um portão que com a mesma confina, para acederem a tal prédio.
aa) Através de notificação judicial avulsa, o Autor BB, solicitou
que o Réu LL procedesse à entrega do prédio rústico identificado em b),
até 1 de Novembro de 2021, não se tendo concretizado o negócio referido em y).
bb) O Réu LL procedeu à entrega da chave do portão e à retirada de todos os seus bens, em data não concretamente apurada, mas ocorrida em Novembro de 2021, altura em que os 2.ºs Réus deixaram também de passar na rampa referida em z), passando esta a ser utilizada unicamente pelos Autores;
14) Após produção das alegações e contra-alegações descritas no relatório, o Mmo. Juiz que proferiu a sentença recorrida pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença.
1. Da nulidade da sentença e eliminação da al. x) dos factos provados
Os Recorrentes alegaram que.
1ª.) – A sentença recorrida é nula. Tomou ela como fundamento para a tomada de decisão de factos percepcionados pelo Senhor Juiz recorrido. Na fundamentação da decisão de facto, o Senhor Juiz, remetendo para as percepções que pessoalmente adquiriu em inspecção ao local, não as objectiva em enunciação de factos que possam ser contraditados pelas partes.
Para além de ter infringido o disposto no art. 493º. do Cód. Proc. Civil, incorreu na nulidade prevista no primeiro segmento da alínea b) do nº. 1 do Cód. Proc. Civil. Com tal comportamento, para além de violar o dever legal de fundamentação, a douta sentença recorrida ofende a garantia do contraditório, pois que impediu totalmente os Recorrentes de se pronunciarem sobre a validade de tais percepções. Esta omissão tem reflexo sobre a pronúcia constante das alegações de recurso. Pois que os Recorrentes ficam impedidos de analisar criticamente tal meio probatório, resultante das percepções directas do Ex.mo Julgador extraídas da inspecção. Esta circunstância constitui nulidade processual, que se argui.
Caso não se considerando nulidade processual, deve ser anulado o julgamento, determinando-se a baixa do processo à Primeira Instância, para que a sentença recorrida faça exarar os factos resultantes da inspecção judicial. Abrindo-se um prazo suplementar para pronúncia das partes.
2ª.) - Deve ser eliminado o ponto x) da decisão de facto. as três expressões aí vertidas realidade física única, espaço complementar e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários mais não são do que adjectivações , conceitos genéricos , juízos de valor do Ex.mo Julgador. Encerram não propriamente a enunciação de factos. Mas uma valoração jurídica de factos, segundo a perspectiva do Tribunal que julgou a causa. as três expressões aí vertidas realidade física única, espaço complementar e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários mais não são do que adjectivações , conceitos genéricos , juízos de valor do Ex.mo Julgador. Encerram não propriamente a enunciação de factos. Mas uma valoração jurídica de factos, segundo a perspectiva do Tribunal que julgou a causa. Constituem, também, também, matéria conclusiva . Não pode ser considerada a matéria nela vertida, que é de direito, para a decisão da causa. Mantendo-se em vigor o princípio geral enunciado no art. 646º., nº. 4, primeira parte do Cód. Processo Civil de 1961, a dita rubrica “x “ do segmento de facto da decisão recorrida deve ser eliminada. E não pode de modo algum ser considerada para a decisão jurídica da causa.
3ª.) – A sentença recorrida não exarou na acta da inspecção ao local os factos percepcionados pelo Senhor Juiz recorrido. Na fundamentação da decisão de facto , o Senhor Juiz , remetendo para as percepções que pessoalmente adquiriu em inspecção ao local , não as objectiva em enunciação de factos que possam ser contraditados pelas partes . Infringiu, assim, o disposto no art. 493º. do Cód. Proc. Civil. Com tal comportamento, para além de violar o dever legal de fundamentação, ofende a garantia do contraditório. Esta circunstância constitui nulidade processual, reportada à sentença – uma vez que ela mobilizou os elementos da inspecção ao local para atomada de decisão de facto . Nulidade que, imputada à decisão de facto recorrida , ora se argui. Caso não se considerando nulidade processual, deve ser anulado o julgamento, determinando-se a baixa do processo à Primeira Instância, para que a sentença recorrida faça exarar os factos resultantes da inspecção judicial, repetindo a diligência de inspecção judicial , e objectivando-se tais factos em acta, para pronúncia das partes.
Assim, misturam-se aqui três questões diferentes: a violação do disposto no artº 493º, do Código de Processo Civil; a violação do disposto no artº 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil; e a consignação de expressões que não encerram factos, mas antes valorações jurídicas, e matéria conclusiva, devendo ser eliminadas.
No que toca ao artº 493º, do Código de Processo Civil, dispõe o mesmo que:
Auto de inspeção |
Da diligência é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo. |
Em comentário ao supratranscrito preceito legal, diz-nos António Santos Abrantes Geraldes, “Código de Processo Civil anotado”, volume I, 2ª edição, Almedina, págs. 570 e 571:
1. As diligências efetuadas e os resultados das averiguações realizadas no âmbito da inspeção judicial devem ser reduzidos a auto, no qual devem ficar a constar os elementos percecionados pelo juiz, designadamente aqueles que respeitam a litígios sobre prédios rústicos, servidões prediais ou ações de demarcação. A omissão
de tal auto ou a sua incompletude constituem nulidade secundária que deve ser arguida pela parte, sob pena de sanação (arts. 1952, nº 1 e 199º, nº 1; RP 18-2-19, 25/16
e RC 11-9-18, 5547/16). Sanada a nulidade, aquilo que o juiz declara ter observado
in locu, na fundamentação da decisão de facto, valerá enquanto resultado da própria
inspeção judicial (RP 2-12-08, 0826753).
2. Pode acontecer que o auto não documente os factos observados pelo juiz que
procedeu à inspeção ou os resultados a que a inspeção o conduziu e, apesar disso,
a inspeção seja erigida a prova decisiva em sede de fundamentação da decisão de
facto. Uma vez que "a fonte de convicção da Relação é, neste caso, o auto da inspeção, a falta de documentação dos factos observados ou dos resultados a que a inspeção conduziu o juiz que a realizou, impede, naturalmente, a Relação de controlar o eventual erro daquele magistrado na apreciação ou valoração daquela prova". No circunstancialismo apontado, "dada a inadmissibilidade de renovação dessa prova, uma proposta de solução possível é a Relação ordenar se proceda a verificação
não judicial qualificada (arts. 494°, nº 1 e 662°, nº 2, al. b)). Outra, é anular a decisão da matéria de facto, por nesse caso não dispor de todos os elementos que
permitem alterar a decisão da matéria de facto, objeto da impugnação (art. 662º,
n° 2, al. c))" (cf. Henrique Antunes, "Recurso de Apelação e Controle da Decisão
da Questão de Facto", em https://docentes.fd.unl.pt). (sublinhado nosso)
Ou, como nos diz o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de setembro de 2018, proferido no processo nº 5547/16.4T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt:
I – O artº 493º do NCPC (que corresponde ao art.º 615º do pretérito CPC), determina que, procedendo-se a inspecção judicial, da diligência seja “lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
II - Este registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
III - A omissão do auto inspecção a que se reporta o art.º 493º do NCPC, ou dos elementos que esta disposição legal estabelece que nele fiquem registados, não tendo sanção especificamente expressa, integra a falta de observância de uma formalidade que a lei prescreve, consubstanciando, se tiver influência na decisão da causa, nulidade secundária submetida à regra geral do art. 195º do CPC.
IV - Sob pena da respectiva sanação, a nulidade prevista no art.º 195º, n.º 1, do CPC, deve ser arguida pelo interessado, na ocasião em que seja cometida, caso este esteja presente (por si, ou pelo seu mandatário), ou no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (artºs 195º, nº 1, 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do NCPC).
V - O entendimento acima expresso quanto à sanação da nulidade decorrente da falta de auto da inspecção judicial, que é, afinal, aquilo a que se reconduz a omissão, em auto, ou acta, do registo dos elementos a que se reporta o artº 493º, não significa que a ausência desse auto seja inconsequente, já que a inacção das partes ao deixarem de reclamar a referida nulidade perante o Tribunal onde esta foi cometida - para que aí fosse possível suprir a omissão -, conduz a que, posteriormente, a Relação se veja impedida de proceder à cabal reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
VI - O mais que a Relação pode fazer, não tendo a omissão sido arguida e sanada em devido tempo, é anular, nos termos do artigo 662.º, nº 2, alínea c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória. (sublinhado nosso)
No caso em apreço, o espaço foi fotografado, constando as fotografias de CD junto aos autos, agora, a 31 de Outubro passado, juntas igualmente ao processo eletrónico, onde são visíveis.
Igualmente foi lavrado auto datado de 13 de Setembro de 2023, no qual ficaram consignadas a versões dos Autor(a)(es)(as) e dos dois grupos de Ré(u)(s) sobre a existência e utilização das rampa, portão sinais de passagem e aberturas que aí visionaram.
Porém, as fotografias não têm qualquer legenda, não é feita correspondência entre as declarações das partes e o que foi fotografado, nem tão pouco aí foi feita qualquer menção ao que foi percecionado pelo Mmo. Juiz que presidiu à diligência, o que seria o ponto fulcral e mais importante deste auto.
Consequentemente, o registo da diligência é manifestamente incompleto e não permite o controlo por este Tribunal, de eventual erro de perceção por parte do Tribunal a quo.
Vejamos qual a relevância desta omisão para a apreciação do presente recurso.
Na sentença recorrida, foi considerado existir direito de preferência a favor dos Autor(a)(es)(as), afastando-o, porém, pelos factos de existir uma exploração agrícola familiar e de os prédios rústicos alienados fazerem parte integrante de um prédio misto.
Para tais conclusões, contribuem os factos descritos, respetivamente, nas als. s) a x) e p) a x), dos factos julgados provados, onde se consignou que:
p) Pelo menos desde 01/07/96, 2.ºs Réus LL e MM tomaram de arrendamento o prédio urbano identificado em n), o que se manteve até à aquisição referida em e).
q) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos há 20 anos, os 2.ºs Réus vinham utilizando, com autorização dos proprietários OO e esposa RR, e posteriormente pelos seus sucessores, os prédios rústicos identificados em e), cultivando-os, com produtos hortícolas e cultura de Oliveira, lavrando-os e limpando-os.
r) O negócio celebrado entre 1.ºs e 2.ºs Réus teve como objecto a globalidade dos prédios titulados pelos 1.ºs Réus (pertencentes à herança de OO) situados na zona do ..., identificados em e), n) e o), apenas tendo os 2.ºs Réus interesse em adquirir o conjunto dos prédios, o que era condição acordada para o negócio.
s) Os 2.º Réus, por si e pelos seus antepossuidores e transmitentes, têm usado, fruído e disposto dos prédios identificados em e), há mais de 60 anos, à vista de toda a gente, de boa fé, ininterruptamente e sem oposição de ninguém, com a convicção e ânimo de serem os seus donos e legítimos possuidores;
t) Os prédios referidos em e), desde a construção da casa que constitui o prédio urbano identificado em n), há cerca de 70 anos, sempre foram usados para o cultivo de oliveiras e hortícolas para uso doméstico dos seus proprietários, OO e RR e posteriormente dos seus sucessores e pelos 2.ºs Réus, assim como de seus familiares, lavrando e cuidando da terra e colhendo posteriormente os seus frutos.
u) Durante a vida dos proprietários originários OO e RR, o único acesso aos prédios rústicos referidos em e) era feito através de umas escadas existentes no exterior do prédio urbano referido em n).
v) As primitivas casas de banho do prédio urbano referido em n) foram implantadas no prédio rústico identificado e) 1., e as infraestruturas de fornecimento de água e luz encontram-se instaladas no muro comum dos referidos prédios, existente a
poente junto à estrada pública.
w) Os prédios rústicos referidos em e) e o urbano referido em n) estão murados em quase toda a volta, na parte confinante com a estrada.
x) O prédio urbano referido em n) e os prédios rústicos referidos em e) desde há pelo menos 70 anos que têm vindo a ser utilizados como uma realidade física única, constituindo os prédios referidos em e) um espaço complementar do prédio urbano, e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários.
O Mmo. Juiz que proferiu a decisão recorrida baseou-se, para a fundamentação da matéria de facto, no que percecionou aquando a inspeção judicial, para fundamentar, de entre as supras transcritas, as als. r) a x), dando-lhe, para além do mais, grande importância para assegurar a credibilidade das declarações prestadas pelos Réus CC, LL e MM: Ora, tais declarações foram reputadas como credíveis pelo Tribunal, apesar da proximidade e interesse dos declarantes na presente acção, pois que, da análise da realidade física dos referidos prédios, conjugada com as regras da experiência, tal acordo e condição resultam perfeitamente verosímeis. (sublinhado nosso)
Assim, não sendo possível o controlo da motivação do julgador quanto a matéria relevante para a decisão do recurso, cumpria providenciar pela sanação de tal vício, ainda que tal implicasse a anulação parcial da decisão de facto proferida na 1ª instância, quanto à fundamentação dos factos descritos sob as als. r) a x), supratranscritos.
Contudo, como vimos, por outro lado, a incompletude do auto de inspeção judicial consubstancia uma nulidade secundária prevista no 195º, nº 1, a arguir nos termos do disposto no artº 199º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, o que a parte não fez.
Por outro lado, o Recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto quanto aos factos descritos sob as als. r) a x), nos termos do disposto no artº 640º, do Código de Processo Civil, não tendo cumprido minimamente os requisitos desse preceito legal; pelo contrário, ficou-se pela questão prévia de incapacidade de entender o raciocínio do julgador na sua plenitude, sem elaborar o seu próprio raciocínio de análise de prova, requerendo a alteração dos factos em conformidade.
Deste modo, este Tribunal não pode conhecer da nulidade do auto de inspeção judicial porque se encontra já precludido o prazo para o efeito, nem pode anular a decisão de facto porque mesma não foi impugnada nos termos legais.
No que concerne à violação do disposto no artº 615º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil, dispõe o mesmo que:
1 - É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
Contudo, este preceito legal não é aplicável ao caso em apreço, uma vez que a incompletude do auto de inspeção judicial é uma nulidade do processo, já sanada, como vimos, e não uma nulidade do julgamento.
O Tribunal a quo fundamentou a sentença, recorrendo em parte ao que percecionou na inspeção ao local, estando cumprido o seu dever de fundamentação, que tem de se reputar por suficiente, na medida em que a parte não arguiu a nulidade em tempo, não o podendo fazer agora por esta via.
Como nos diz António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 762:
1. Importa que se estabeleça uma separação entre nulidades de processo (art.
1959) e nulidades de julgamento (art. 615°), sendo que o regime do preceito apenas
a estas se aplica; as demais deverão ser arguidas pelas partes ou suscitadas oficiosa-
mente pelo juiz, nos termos previstos noutros normativos. (sublinhado nosso)
Finalmente, no que diz respeito à consignação de expressões que não encerram factos mas antes valorações jurídicas e matéria conclusiva, devendo ser eliminadas, concluímos também pela improcedência do recurso.
Tais expressões são realidade física única, espaço complementar e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários.
Efetivamente, trata-se de expressões aparentemente conclusivas ou pouco descritivas quando analisadas isoladamente, mas que encerram um conteúdo fáctico descritivo no contexto de onde foram retiradas – na sequência lógica do descrito nas als. r) a v) dos factos provados -, sendo objetivamente percetível a factualidade que o julgador pretendia transmitir, devendo ser mantidas.
2. Da ampliação da matéria de facto
Mais pretendem os Recorrentes que seja ampliada a decisão de facto, mediante a adição de pontos suplementares, que entendem ser relevantes para a decisão da causa, à luz das regras de repartição do ónus de prova e dos temas probatórios, extraídos dos depoimentos gravados, e que elencam, descritos de cc) a ll):
cc) O prédio da alínea n) dos factos provados foi dada de arrendamento por OO a SS para habitação deste, o qual, por via desse arrendamento nele morou durante cerca de onze anos.
dd) Enquanto a RR foi viva, era ela e o Marido, OO quem sempre amanhava os dois terrenos da alínea e) dos factos provados.
ee) - RR faleceu em ../../2003.
ff ) - Após a morte da RR, o Réu LL passou a amanhar os terrenos da alínea b) dos factos provados .
gg) – Anteriormente às compras feitas por OO dos terrenos, o prédio do nº. 1 da alínea b) era de TT, conhecida por UU;
hh) Anteriormente às compras dos terrenos, feitas por OO, o prédio do nº. 2 da alínea b) era de VV;
ii) - Os Autores ficaram desgostosos e desagradados por não lhes ter sido dado conhecimento da intenção do negócio para o efeito do exercício da preferência.
jj) Pelo facto de os prédios terem sido vendidos sem que os Réus lhes comunicassem o projecto de venda, os Autores sentiram-se tristes e desrespeitados, e ficaram desanimados.
ll) O co-Autor BB vai ao ... muitas vezes, e tem muito gosto pelo seu prédio, nele cuidando das árvores já existentes e plantando novas árvores.
Dispõe o artº 5º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, que:
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Entendem os recorrentes que os factos supra descritos são complementares, resultaram da instrução da causa e deveriam ter sido consignados na sentença recorrida.
Em anotação a este preceito, diz-nos António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 31:
Os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se
baseiam as exceções (isto é, todos os factos de que depende o reconhecimento das
pretensões deduzidas) devem ser vertidos nos articulados das partes, a isso respeitando o ónus de alegação imposto pelo nº 1. No entanto, a eventual incompletude
no cumprimento desse ónus relativamente a factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados não tem efeitos preclusivos, já que os factos
omitidos podem ainda ser introduzidos nos autos, seja através de um articulado de
aperfeiçoamento (art. 590°, n° 4), seja em face do que resulte da instrução (art. 5º,
nº 2, al. b)).
Verificamos que os factos supra descritos não foram alegados pelos recorrentes ab initio, nem por via de articulado superveniente, e tão pouco foram objeto de despacho do julgador no sentido que iriam ser tidos em conta na sentença (respeitando a obrigatoriedade de contraditório imposta na al. b)), pelo que os Recorrentes não poderiam contar com eles na sentença.
E ainda que se entenda não ser necessária tal formalidade para que o contraditório se tenha por cumprido[2], a natureza oficiosa da consideração dos factos complementares tem como limite o seu interesse para a decisão da causa[3], obviamente - não tendo a parte requerido a sua apreciação em tempo - apenas na perspetiva do julgador que entendeu consigná-los.
Ora, no caso sub judice, os factos ora descritos pelo recorrente em não mudariam em nada a solução de Direito alcançada, o que os torna irrelevantes, pelo que, também nesta parte, improcede o recurso.
3. Do direito de preferência
O Tribunal a quo julgou a ação improcedente, entendendo que direito de preferência de que os Recorrente(s) beneficiariam, em virtude de serem proprietários de prédio rústico confiante com os que foram alienadas pelos 1ºs aos 2ºs Ré(u)(s), foi afastado em virtude de os mesmos pertencerem a uma unidade agrícola familiar e estarem integrados num prédio urbano.
Dispõe o artº 1381º, do Código Civil:
Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;
b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar.
Apurou-se que:
p) Pelo menos desde 01/07/96, 2.ºs Réus LL e MM tomaram de arrendamento o prédio urbano identificado em n), o que se manteve até à aquisição referida em e).
q) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos há 20 anos, os 2.ºs Réus vinham utilizando, com autorização dos proprietários OO e esposa RR, e posteriormente pelos seus sucessores, os prédios rústicos identificados em e), cultivando-os, com produtos hortícolas e cultura de Oliveira, lavrando-os e limpando-os.
r) O negócio celebrado entre 1.ºs e 2.ºs Réus teve como objecto a globalidade dos prédios titulados pelos 1.ºs Réus (pertencentes à herança de OO) situados na zona do ..., identificados em e), n) e o), apenas tendo os 2.ºs Réus interesse em adquirir o conjunto dos prédios, o que era condição acordada para o negócio.
s) Os 1.º Réus, por si e pelos seus antepossuidores e transmitentes, têm usado, fruído e disposto dos prédios identificados em e), há mais de 60 anos, à vista de toda a gente, de boa fé, ininterruptamente e sem oposição de ninguém, com a convicção e ânimo de serem os seus donos e legítimos possuidores;
t) Os prédios referidos em e), desde a construção da casa que constitui o prédio urbano identificado em n), há cerca de 70 anos, sempre foram usados para o cultivo de oliveiras e hortícolas para uso doméstico dos seus proprietários, OO e RR e posteriormente dos seus sucessores e pelos 2.ºs Réus, assim como de seus familiares, lavrando e cuidando da terra e colhendo posteriormente os seus frutos.
u) Durante a vida dos proprietários originários OO e RR, o único acesso aos prédios rústicos referidos em e) era feito através de umas escadas existentes no exterior do prédio urbano referido em n).
v) As primitivas casas de banho do prédio urbano referido em n) foram implantadas no prédio rústico identificado e) 1., e as infraestruturas de fornecimento de água e luz encontram-se instaladas no muro comum dos referidos prédios, existente a
poente junto à estrada pública.
w) Os prédios rústicos referidos em e) e o urbano referido em n) estão murados em quase toda a volta, na parte confinante com a estrada.
x) O prédio urbano referido em n) e os prédios rústicos referidos em e) desde há pelo menos 70 anos que têm vindo a ser utilizados como uma realidade física única, constituindo os prédios referidos em e) um espaço complementar do prédio urbano, e afectos à vida habitacional, doméstica e económica dos proprietários.
O referido artº 1381º deve conjugar-se com o disposto no artº 1377º, nº 1, al. a), ainda do Código Civil, o qual dispõe que A proibição do fraccionamento não é aplicável: a) A terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura.
Mais deve ser articulado com os sucessivos regimes jurídicos do emparcelamento, hoje regime jurídico da estruturação fundiária, aprovado pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto, alterado pela Lei nº 89/2019, de 3 de Setembro, que consagra o direito de preferência no seu artº 21º, nº 1: Os proprietários de parcelas e prédios rústicos abrangidos pelo projeto de emparcelamento gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de transmissão a título oneroso de qualquer das parcelas ou prédios rústicos aí inscritos, inclusive nas transmissões decorrentes de venda forçada.
Pretendeu o legislador impedir o fracionamento dos terrenos agrícolas, dificultando o minifúndio, que não é economicamente produtivo, de forma a elevar a qualidade e competitividade das explorações agrícolas nacionais[4].
Mas deixou em aberto duas exceções: a de o prédio estar afeto a uma exploração agrícola tipo familiar, em que assento tónico não deve ser colocado na produtividade da exploração, mas sim na satisfação da autossubsistência dos seus proprietários ou de terceiro que explore o prédio, e seu agregado familiar; e a de o prédio estar afeto a uso urbano, caso em que também não importa evitar o emparcelamento, uma vez que o prédio não será objeto de exploração agrícola.
Vejamos o que se entende por exploração agrícola de tipo familiar.
Como já ensinavam Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, páginas 276 e 277:
4. Um dos objectivos da lei, ao limitar o parcelamento da propriedade rústica, é o de conseguir, tanto quanto possível, que se formem explorações agrícolas de tipo familiar, isto é, como se diz no parecer da Câmara Corporativa, de 21 de Abril de 1960, explorações agrícolas capazes de assegurar à família que as explora em conformidade com as regras de uma boa técnica agrária um nível de vida satisfatório. Não
faria, pois, nenhum sentido que, constituída qualquer unidade desse tipo, embora com prédios dispersos, ela pudesse ser afectada com uma preferência de terceiro em relação a uma das suas parcelas. (…)
Esta exploração de tipo familiar pode não corresponder à exploração ideal a que aludem os economistas agrários. O que interessa, para o efeito do disposto na alínea b), é saber se, de facto, a empresa agrícola reúne os caracteres de uma exploração familiar, embora o agricultor e sua família vivam em situação económica precária ou se vejam obrigados a procurar noutras actividades os réditos que lhes permitam um nível de vida satisfatório. (sublinhado nosso)
Assim, exploração agrícola de tipo familiar existe quando um imóvel ou conjunto de imóveis são utilizados para a prática de agriculta de subsistência do agregado familiar de quem os explore, salientando-se aqui a função social da agricultura – intimamente ligada à segurança alimentar e dignidade de quem a exerce - em detrimento da sua função económica enquanto exploração agrícola rentável.
Deste modo, tendo em conta a matéria de facto apurada, não restam dúvidas de que, caso não estivéssemos perante um prédio misto - sendo de salientar a componente urbana também afeta aos imóveis alienados, como veremos infra -, sempre estaríamos perante uma exploração agrícola de tipo familiar.
Como bem se diz na sentença recorrida:
Ora, como resulta dos pontos s) a x) da matéria de facto dada os 1.ºs Réus venderam os dois prédios ali descritos, constituídos por terrenos de cultura, efectivamente cultivados com oliveiras e hortícolas, o que vem acontecendo desde pelo menos há 70 anos, desde que OO edificou a casa de habitação referida em n) dos Factos provados, actividade que se manteve de forma ininterrupta até hoje, continuada pelos 2.ºs Réus, enquanto arrendatário do prédio urbano e utilizadores dos prédios rústicos, estes desde pelo menos há 20 anos.
Por outro lado, como resulta da mesma matéria de facto, os dois prédios em causa eram utilizados de forma comum, com o único acesso efectuado através das escadas do prédio urbano referido em n), ali existindo casas de banho e outras infraestruturas afectas à actividade agrícola, como o barracão descrito em o) dos Factos Provados.
Constituem assim, os referidos prédios rústicos, uma única unidade agrícola. (…)
Ou seja, dos factos provados, resulta que este conjunto predial forma uma unidade agrícola, explorada, directa e habitualmente, pelos seus anteriores proprietários e respectivo agregado familiar, situação que se mantinha à data da venda, em moldes que permitem concluir tratar-se de uma exploração agrícola de tipo familiar, o que não é minimamente afastado pelo facto de os 2.ºs Réus LL e MM exercerem eventualmente outras actividades a título profissional. (sublinhado nosso)
No que concerne ao facto de os imóveis serem parte de prédio urbano, verificamos que os Recorrente(s) salientam o facto de os mesmos estarem descritos, para efeitos registrais, como prédios rústicos.
Porém, não pode ser este o critério para atender no caso em apreço.
Estamos a falar de exceções ao disposto no artº 1380º, do Código Civil, portanto, de “terrenos confinantes”, pelo que necessariamente estaremos a falar, na maioria dos casos, de terrenos rústicos para efeitos de registo e, ainda assim, a exceção poderá operar.
O que importa é saber se o prédio é rústico ou urbano segundo a definição a que alude o artº 204º, nº 2, do Código Civil, o que não coincide necessariamente com a realidade registral, sendo matéria de facto a apurar casuisticamente, apurando-se da efetiva utilização do imóvel, não resultando da simples análise de uma descrição predial.
Como se diz no já referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021, proferido no processo nº 892/18.7T8BJA.E1.S1:
IV. A nossa lei civil não só não reconhece a categoria de prédio misto como um tertium genus nem aceita o critério de predominância da parte rústica ou urbana, como também não atende ao tipo de inscrição matricial nem ao tipo de descrição predial, pelo que, para qualificar um prédio como sendo rústico ou urbano, há que recorrer à definição dada pelo artigo 204º, nº 2, do Código Civil.
V. Segundo orientação consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a distinção entre prédio rústico e urbano deve assentar, numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base de destinação ou afetação económica. (sublinhado nosso)[5]
Assim, dispõe o artº 204º, nº 2, do Código Civil, que 2. Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
Diz-se na sentença recorrida que Como resulta da factualidade provada em p) a x), os prédios rústicos descritos em e), além de serem alvo de uma exploração agrícola do tipo familiar, integram também uma unidade económica, conjuntamente com o prédio urbano descrito em n) dos Factos provados, pois que ao mesmo estão ligados em relação de complementaridade, sendo o seu acesso efectuado unicamente através de escadas diretamente existentes do prédio urbano, de ali se encontrarem infraestruturas (como os contadores de água) atinentes ao gozo do prédio urbano e em quem nele habita, bem assim pelo facto de os prédios se encontrarem murados de forma unitária e indistinta.
Também aqui, à semelhança do decidido pelo Tribunal a quo, entendemos que a factualidade descrita é suficiente para qualificar os prédios como mistos e afetos a uma componente urbana, sendo ainda de vital importância ter em conta que se apurou que O negócio celebrado entre 1.ºs e 2.ºs Réus teve como objecto a globalidade dos prédios titulados pelos 1.ºs Réus (pertencentes à herança de OO) situados na zona do ..., identificados em e), n) e o), apenas tendo os 2.ºs Réus interesse em adquirir o conjunto dos prédios, o que era condição acordada para o negócio.
Assim, verificamos que os prédios alienados fazem parte de uma unidade de facto, que abrange prédios rústicos e urbanos, tendo a alienação em vista a continuidade dessa utilização, cujo desmembramento não cabe na proteção legal das unidades de cultura, desvirtuando os objetivos do direito de preferência.
E ainda que prevalecesse o elemento rústico, o que não é o caso, respeitando-se essa unidade, o direito de preferência sempre haveria de ser exercido sobre o todo, prédios rústicos e prédios urbanos, e não sobre os primeiros, o que também não aconteceu no caso em apreço.
Entendemos estar perante uma situação semelhante à julgada neste Tribunal da Relação de Coimbra a 15 de Março de 2011, proferida no processo nº 22/08.3TBFND.C1, disponível em www.trc.pt, onde se diz:
1. A funcionalidade do conceito de “quinta”, enquanto realidade qualificada como “prédio misto”, envolvendo a existência de uma casa (parte urbana) e de uma parcela de terreno, mais ou menos ampla, dotada de aptidão para o cultivo (parte rústica), traduz, alternativamente, a preponderância, na afectação desse espaço pelo seu dono, do elemento urbano ou do elemento rústico.
2. No primeiro caso (preponderância do elemento urbano) sobressai a finalidade de habitar um espaço (a casa) que associa, através do uso dos terrenos circundantes, alguns elementos rurais.
3. No segundo caso (preponderância do elemento rústico referido aos terrenos aptos ao cultivo) sobressai a ideia de uma exploração agrícola associada a uma casa.
4. Existindo separação registal da casa (correspondente a um artigo matricial urbano) relativamente ao terreno circundante (correspondente este a um artigo matricial rústico), o exercício do direito de preferência, por um vizinho proprietário de um prédio confinante visando o emparcelamento fundiário, previsto nos artigos 1380º, nº 1 do CC e 18º do Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro, não pode prescindir da consideração unitária da realidade que corresponde à associação, no prédio objecto da preferência, dos dois elementos (prédio rústico/prédio urbano), sendo esta ligação que dá expressão autónoma ao conceito de “quinta”.
5. Assim, quando prevalece, na afectação conferida àquele espaço (integrado na matriz por um prédio urbano e por um prédio rústico) o elemento urbano, designadamente através da afectação do prédio a um fim habitacional, o exercício desse direito de preferência está excluído, nos termos da alínea a) do artigo 1381º do CC, pois a parte formalmente qualificada de rústica passa a assumir a natureza de parte componente de um prédio urbano (poderá mesmo ser vista como um logradouro deste, por referência ao segundo trecho do nº 2 do artigo 204º do CC) e o prédio, em si mesmo (parte rústica e urbana), deve ser considerado como afecto a um fim que não é a cultura (aqui significando actividade agrícola).
6. Se, pelo contrário, na afectação de todo o prédio, prevalecer o elemento traduzido na exploração da parte rústica, o exercício do direito de preferência com essa base (a preferência real prevista no artigo 1380º, nº 1 do CC) deve incidir sobre todo o prédio (sobre toda a “quinta”).
7. O exercício de um direito de preferência que, incidindo exclusivamente sobre a parte rústica de um prédio misto, determine a diminuição do valor da parte urbana desse prédio, induz uma situação de desequilíbrio no exercício desse direito de preferência, implicando a actuação deste com lesão intolerável de outra pessoa (o sujeito passivo da preferência).
8. O desvirtuar, através do exercício dessa mesma preferência, da realidade unitária que caracteriza e fornece identidade à “quinta”, despojando-a do elemento correspondente ao “prédio rústico”, sempre traduziria o exercício desse direito de preferência sem consideração por uma situação especial merecedora de tutela.
9. Qualquer uma destas consequências (as enunciadas em VII e VIII deste sumário) bloquearia, por razões de justiça e de compatibilização de direitos, o exercício de um direito de preferência visando o emparcelamento fundiário. (sublinhado nosso)
Deste modo, cumpre julgar o recurso improcedente.
4. Do recurso subordinado - a alteração da decisão relativa à matéria de facto
A questão está prejudicada perante o decidido supra no ponto 3.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 14 de Janeiro de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Cristina Neves
António Domingos Pires Robalo
[1] Na sentença ficou consignado “2ºs Réus”, o que resulta de manifesto lapso - o que desde logo se desde logo se constata pela simples leitura das contestações, bem como da fundamentação da decisão de facto -, pelo que ora se procede a esta correção.
[2] Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, upud António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 31.
[3] Ver acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Julho de 2022, proferido no processo nº 1836/12.5TBMCN-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz: III. Sendo a factualidade que a parte pretende ver incluída na decisão, a coberto da alínea b) do nº 2 do art. 5º do CPC, relevante à decisão da causa, a não observância de tal necessário pressuposto para a sua aquisição oficiosa imporá a anulação da decisão, nos termos do art. 662º, nº 2, c) do CPC – pressupondo tal anulação que a factualidade em causa haja emergido da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo (ou seja, que a discussão da causa os tenha tornado patentes). (sublinhado nosso)
[4] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021, proferido no processo nº 892/18.7T8BJA.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz: VI. A razão de ser do direito de preferência atribuído aos proprietários de prédios rústicos confinantes, nos termos do artigo 1380º, nº 1, do Código Civil, radica no propósito do legislador de propiciar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente. (sublinhado nosso)
[5] Também, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, disponíveis em www.dgsi.pt, de 21 de Janeiro de 2016, proferido no processo nº 2563/07.0TBVCD.P1.S1, onde se diz: I - Confrontados com um “prédio misto”, o prédio será rústico ou urbano, conforme a sua essencial finalidade seja a exploração agrícola ou se circunscreva tendencialmente à habitação familiar.
E de 25 de Junho de 1996, proferido no processo nº 1914/95, onde se diz: 1 - O objecto visado pelo comprador do prédio rústico (v.g., edificação de prédio urbano) é relevante para efeitos de preclusão do reconhecimento do direito de preferência do proprietário de terreno confinante (quintal ou terreno de logradouro).