I – Numa acção de reivindicação, provada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido, na totalidade ou em parte, por terceiro, a sua entrega ao proprietário só pode ser contrariada com base em situação jurídica, obrigacional ou real, que legitime a recusa de restituição, mediante a alegação e prova pelo demandado de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem, admitindo-se a invocação da usucapião, quer por via de excepção peremptória, quer por via de pedido reconvencional.
II – Provando-se que ao realizar a construção de um “terraço” em terreno alheio os recorrentes sabiam ou, pelo menos, não podiam desconhecer que aquele terreno não lhes pertencia é de concluir que, quando procederam a essa construção, os réus não agiram de boa fé, para efeitos de aquisição originária do direito de propriedade através da acessão imobiliária – cf. art. 1340.º, n.ºs 1 e 4 do Código Civil.
III – A exigência legal, constante do art. 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al a), do CPC, de o recorrente especificar “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação”, indicando “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”, implica a obrigatoriedade/necessidade de serem assinaladas concretamente quais as passagens relevantes do(s) depoimento(s), não se satisfazendo com o mero consignar do início e do termo de cada depoimento considerado relevante para a alteração da matéria de facto impugnada.
IV – A autonomia decisória do Tribunal da Relação, no julgamento da matéria de facto, mediante a reapreciação dos meios de prova constantes do processo – sem prejuízo dos temas de conhecimento oficioso – está confinada, no que toca à identificação da matéria objecto de discordância, à observância do princípio do dispositivo, acrescendo que essa sindicância (da decisão de facto) não tem como objectivo efectuar um segundo julgamento da causa mas sim proceder à reapreciação dos juízos de facto impugnados.
V – Não estão conformes aos ditames legais aplicáveis, as conclusões de um recurso que nada referem quanto às passagens da gravação em que se funda o recurso, na sua vertente da impugnação de facto, não discriminando, de forma coerente e articulada, as provas específicas, por reporte aos depoimentos testemunhais colhidos em audiência final, que impunham decisão diversa, cingindo-se a usar expressões genéricas, abstractas e desarticuladas, tais como, a “prova testemunhal apresentada pelos recorrentes e (…) declarações de parte da recorrente”, a “prova produzida nos presentes autos”, “as regras da experiência e do normal suceder”, e a “postura adotada pelos recorridos”.
VI – O controle da Relação sobre a convicção alcançada pela 1ª Instância, exigindo uma avaliação da prova e a sindicância do raciocínio lógico daquele Tribunal, mesmo que não se restrinja aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão tomada, não pode escamotear que a prova testemunhal e por declarações de parte é, manifestamente, mais falível do que qualquer outra, estando o Tribunal a quo, forçosamente, em melhor posição que a 2.ª Instância para poder surpreender, de modo dificilmente sindicável em sede de recurso, o comportamento não verbal dos depoentes, as suas hesitações, os seus olhares, os movimentos do corpo, os gestos das mãos, tudo elementos fundamentais na valoração da prova oral.
VII – Se ao ouvir a gravação da prova o Tribunal da Relação concordar integralmente com a avaliação probatória da 1.ª instância, nada obsta a que seja secundada ou corroborada, em sede de recurso, a fundamentação de facto dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida e convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do recorrente, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que impunham decisão de facto diversa da recorrida.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]
AA e BB instauraram acção de declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, contra CC e DD.
Alegaram, em síntese, que por sucessão hereditária dos pais do autor marido este adquiriu um prédio rústico situado em ..., ..., composto por terra de cultura e oliveiras, que aqueles haviam adquirido por negócio de compra e venda verbal, sendo que todos estes e seus antecessores, têm vindo a cultivar o terreno aí existente, a cortar e plantar árvores, apanhando ou colhendo todos os seus frutos e produtos, tudo há mais de 5, 10, 15, 20 e até 25 anos, à vista da generalidade das pessoas, sem oposição, na convicção de que exerciam um direito próprio e de que não lesavam interesses de outrem, tendo adquirido tal imóvel por usucapião.
Invocaram, também, que os réus construíram uma estrutura, tipo terraço, dentro da linha delimitadora do seu prédio, mormente junto à sua estrema norte, tendo-se apropriado de cerca de 50 m2, que os autores estão impedidos de usar.
Pedem, consequentemente, a condenação dos réus no reconhecimento de que aquele prédio, em que se inclui o espaço onde está implantada uma estrutura tipo terraço, entretanto construída pelos réus, faz parte integrante do prédio rústico dos autores, bem como a restituição do mesmo livre e devoluto, condenando-se os réus a retirar / a demolir o terraço por eles construído e a pagarem a quantia de € 1000,00 a título de indemnização por danos morais.
Pedem, concomitantemente, a condenação dos autores-reconvindos a reconhecer este seu direito de propriedade, assim como a absterem-se da prática de actos que possam perturbar o seu exercício e posse; ou, subsidiariamente, a reconhecerem a aquisição de tal parcela de terreno por acessão imobiliária.
4.1. Condenar os réus/reconvintes a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio rústico situado em ..., freguesia ..., composto por terra de cultura e oliveiras, com a área de 985,68 m2, a confrontar do norte com caminho, do sul com ribeiro, do nascente com EE e do poente com FF, inscrito na matriz sob o artigo ...85.º e, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...09 da freguesia ..., melhor identificado sob os n.ºs 2.1.1. a 2.1.17. e 2.1.19. dos factos provados decisão (onde se encontra também implantada a estrutura tipo terraço referida nos pontos 2.1.13. a 2.1.17.).
4.2. Condenar os réus/reconvintes a absterem-se da prática de actos que possam perturbar o exercício do direito de propriedade e da posse dos autores.
4.3. Condenar os réus/reconvintes a retirarem ou demolirem a expensas suas todas as construções que edificaram no sobredito prédio rústico, incluindo a estrutura tipo terraço, muro e as plantas e flores que aí plantaram e referidas, nomeadamente, nos artigos 2.1.13. a 2.1.17. dos factos dados como provados, deixando ou colocando o referido prédio dos autores na situação em que se encontrava anteriormente, ou seja, completamente livre das referidas construções e plantas, tudo no prazo de 90 (noventa) dias após o trânsito em julgado da presente sentença.
4.4. Absolver os réus/reconvintes do pedido de condenação como litigantes de má-fé formulado pelos autores.
4.5. Absolver os Réus/Reconvintes CC DD do pedido de indemnização formulado pelos Autores.
4.6. Absolver os autores/reconvindos de todos pedidos contra eles formulados pelos réus/reconvintes.
Custas da ação pelos Réus/Reconvintes CC e DD e pelos Autores/Reconvindos AA e BB, na proporção do decaimento, que se fixa em 86% pelos primeiros e 14% pelos segundos. [2]
(…).
(…).
I. Impugnação da matéria de facto (em especial, conclusões III a XXXIII):
(i) impugnação dos factos provados 2.1.6, 2.1.7, 2.1.8, 2.1.9, 2.1.10, 2.1.11, 2.1.12 2.1.13, 2.1.18 e 2.1.20 (que devem ser considerados não provados);
(ii) impugnação dos factos não provados 2.2.3, 2.2.4, 2.2.5, 2.2.6, 2.2.7, 2.2.8, 2.2.9, 2.2.10 e 2.2.11(que devem ser considerados provados).
II. Verificação dos requisitos da usucapião ou, subsidiariamente, da acessão imobiliária, relativamente à parcela de terreno, com cerca de 15 m2, onde se encontra implantada a estrutura tipo terraço (em especial, conclusões XXXIV a XLI).
III. Nulidade por omissão de pronúncia (em especial, conclusões XLII a XLVI).
IV. Responsabilidade pelas custas – violação do disposto no aludido art. 527.º, n.º 2 do CPC (em especial, conclusões XLVII a LII).
Na sentença sob recurso consideraram-se os seguintes factos provados e não provados (assinalando-se, a sublinhado, a matéria de facto impugnada pelos recorrentes):
“2.1. Factos Provados
Com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1 Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...09 um prédio rústico situado em ..., freguesia ..., composto por terra de cultura e oliveiras, com a área de 985,68 m2, a confrontar do norte com caminho, do sul com ribeiro, do nascente com EE e do poente com FF, estando inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo n.º ...85.
2.1.2 A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor de AA, casado com BB sob o regime da comunhão de adquiridos, mediante a respetiva apresentação n.º 2161 de 2021/02/09, por «sucessão hereditária» por óbito de GG e HH.
2.1.3 No interior do prédio rústico referido em 2.1.1. e junto ao seu limite norte, esteve implantado um galinheiro, uma cabana com um forno, a qual servia também para destilação de aguardente, e ainda um fontanário.
2.1.4 O caminho publico situado a norte do referido prédio foi alargado.
2.1.5 Por motivos não concretamente apurados, e em data não concretamente apurada, as construções referidas em 2.1.3. desmoronaram.
2.1.6 Em data não concretamente apurada, mas pelo menos há 25 anos, EE alienou verbalmente a GG e HH o prédio rústico acima identificado.
2.1.7 Desde data não concretamente apurada, mas anterior à data da celebração do negócio mencionado no ponto antecedente (pelo menos há mais de 25 anos), e por reporte ao terreno referente ao prédio rústico aludido em 2.1.1., incluindo a parcela de terreno onde se encontravam implantadas, além do mais, as construções referidas em 2.1.3., EE procedeu à limpeza do terreno, roçando o mato, cultivou o terreno e recolheu os respetivos produtos e frutos, procedeu à poda e limpeza das árvores ali existente, designadamente ginjeira, oliveira, figueira e videira, colhendo os respetivos frutos.
2.1.8 Após o acordo descrito em 2.1.6., de forma sucessiva e sem interrupções, os pais do primeiro Autor, GG e HH, e por reporte ao terreno referente ao prédio rústico aludido em 2.1.1., incluindo a parcela de terreno em que se encontravam implantadas, além do mais, as construções referidas em 2.1.3., procederam à limpeza do terreno, roçando o mato, cultivaram o terreno e recolheram os respetivos produtos e frutos, procedendo à poda e limpeza das árvores ali existente, designadamente oliveira, figueira e videira, colhendo os respetivos frutos, pelos mesmos ou por pessoa por si mandatada para o efeito.
2.1.9 Após o decesso de GG e HH, AA e esposa BB (autores), passaram a ocupar o prédio melhor descrito sob o ponto 2.1.1., com a composição, área e confrontações presentes em 2.1.1., incluindo a parcela de terreno em que se encontravam implantadas, além do mais, as construções referidas em 2.1.3., limpando-o, roçando o mato, cortando árvores, e apanhando anualmente a azeitona das oliveiras aí existentes, pelo mesmo ou por pessoa por si mandatada para o efeito.
2.1.10 Os atos descritos em 2.1.7. a 2.1.9. foram praticados sobre o prédio descrito em 2.1.1., com a composição, área e confrontações aí referidas, de forma sucessiva, por EE, pelos pais do 1.º Autor, GG e HH, e pelos Autores AA e BB, nos exatos termos aí descritos, ao longo de mais de 5, 10, 15, 20 e até 25 anos consecutivos.
2.1.11 Tudo e sempre, dia após dia, e à luz do dia, sem interrupção temporal, sem intromissão ou oposição de quem quer que fosse e sem violência de qualquer espécie.
2.1.12 Certos de que com essa prática não lesavam direitos ou interesses legítimos de outrem e no firme e determinado propósito de agirem como únicos donos de tal prédio.
2.1.13 Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre os anos de 2019 e 2021, os Réus CC e DD invadiram o supra identificado prédio, tendo procedido, na sua estrema norte, junto ao caminho ali existente, à edificação de uma construção, tipo terraço, com área não concretamente apurada, em tijolo, cimento e betão, com 4 paredes, uma frontal, uma traseira e duas laterais e com a forma constante da imagem constante de fls. 9-verso a 12 e 25.
2.1.14 Tendo a parede (de tal estrutura) situada mais a norte, junto ao caminho, cerca de cinco metros de comprimento, contendo uma abertura de cerca de 90 centímetros, para entrada direta do dito caminho nessa construção, cujo chão se encontra revestido com cimento.
2.1.15 A parede traseira tem sensivelmente o mesmo comprimento da parede frontal e as paredes laterais têm (uma) 2,60 e (outra) 4,20 metros de comprimento.
2.1.16 Todas as paredes da mencionada edificação tipo terraço têm uma altura de cerca de 90 centímetros.
2.1.17 Também na estrema norte do prédio referido em 2.1.1., no limite do caminho publico, ao longo da parede frontal da dita construção tipo terraço (v. ponto 2.1.13.), os Réus construíram ainda um pequeno muro em blocos e revestido a cimento, com um comprimento de cerca de 2,25 metros, altura de cerca de 50 centímetros e uma largura de cerca de 55 centímetros, onde colocaram diversas plantas e flores.
2.1.18 Em data anterior à edificação da estrutura referida nos pontos 2.1.13. a 2.1.17., a Ré CC contactou o Autor AA por chamada telefónica e pediu-lhe autorização para cortar os ramos da figueira ali também existente.
2.1.19 As construções referidas nos pontos 2.1.13. a 2.1.17. estão totalmente implantadas no interior do prédio referido em 2.1.1., na sua estrema norte, junto ao caminho, sensivelmente no local onde se encontravam implantadas a construção destinada a galinheiro, a cabana destinada a casa de forno e a destilar aguardente e o fontanário, referidas em 2.1.3..
2.1.20 A edificação das construções suprarreferidas em 2.1.13. a 2.1.17. foi feita sem conhecimento, autorização e contra a vontade dos Autores.
2.1.21 Durante tempo não concretamente apurado, em vida do mesmo, o pai da primeira Ré, II, guardava uma carroça de bois da sua pertença na cabana identificada em 2.1.3., local onde também fazia água ardente, até a mesma desmoronar.
Com relevância para os presentes autos, ficaram por demonstrar os seguintes factos:
2.2.1 Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre os anos de 2019 e 2021, os Réus CC e DD procederam, na sua estrema norte, junto ao caminho ali existente, à demolição total do que sobrava das referidas construções antigas referidas em 2.1.3..
2.2.2 Tendo ficado naquele espaço apenas um acumulado de pedras, de terra e de silvas.
2.2.3 Há mais de 50 anos, mas pelo menos desde 1972, os Réus, por si e seus antecessores, sucessivamente, procederam à vigilância e à limpeza da parcela de terreno existente no local onde estiveram implantadas as construções referidas em 2.1.3., cortando e arrancando as «silvas» que ali cresciam e amanhando a terra.
2.2.4 Os atos referidos no ponto anterior foram praticados continuamente e sem interrupção,
2.2.5 À vista da generalidade das pessoas (incluindo os Autores),
2.2.6 Sem oposição de quem quer que fosse,
2.2.7 Desconhecendo lesar interesses de outrem,
2.2.8 Praticando tais atos na convicção de serem donos de tal parcela de terreno.
2.2.9 Os atos referidos em 2.1.21. (colocação da carroça dos bois na cabana) foram exercidos pelo pai da primeira Ré, II, nos termos referidos em 2.2.4. a 2.2.8..
2.2.10 Os atos referidos em 2.1.13. a 2.1.17. (construção de uma estrutura tipo terraço) foram exercidos pelos Réus nos termos referidos em 2.2.4. a 2.2.8..
2.2.11 Aquando do contacto referido em 2.1.18., a primeira Ré informou o primeiro Autor de que tinha mandado edificar um «terraço» (com cerca de 15 m2) na parcela de terreno onde outrora esteve implantada a cabana referida em 2.1.3., não tendo qualquer dos Autores manifestado qualquer oposição à dita construção.
2.2.12 Em consequência dos atos praticados pelos Réus, a que se referem os pontos 2.1.13. a 2.1.17., 2.1.19., 2.1.20. e 2.2.1., os Autores ficaram perturbados, ansiosos, inquietos e tristes por verem o seu prédio invadido com construções que não autorizaram, tendo inclusive receio que os Réus continuem a invadir o seu prédio com outras construções.
I. Impugnação da matéria de facto (conclusões III a XXXIII).
(…).
A acção de reivindicação, prevista no art. 1311.º do Código Civil, é uma acção petitória e constitui a manifestação mais exuberante do direito de sequela, pretendendo firmar o direito de propriedade e pôr fim à situação ou actos que o violem, tendo como primeiro desiderato a declaração de existência do direito e, subsequentemente, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: (i) o de reconhecimento do direito de propriedade e (ii) o de restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela – cf. Martins da Fonseca, Acção de Reivindicação – Causa de Pedir, Revista do Ministério Público, ano 7.º, Julho/Setembro de 1986, n.º 27, pp. 35-51, e Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III, p. 112.
As acções reais, como é o caso da de reivindicação, por norma, não se podem fundar, exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada, v.g., um contrato de compra e venda, testamento ou doação: as formas de aquisição derivada não geram só por si o direito de propriedade, sendo apenas translativas dele, operando simplesmente a sua modificação subjectiva – cf., v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-1983, anotado por Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120.º, pp. 208 e ss.; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-04-1992, anotado por Henrique Mesquita, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125.º, pp. 86 e ss..
Provada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica, obrigacional ou real, que legitime a recusa de restituição, tal como decorre do n.º 2 do art. 1311.º do Código Civil –, i.e., mediante a alegação e prova pelo demandado – por via de excepção – de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem – cf. art. 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Tem sido admitida a defesa sustentada na usucapião, tanto por via de reconvenção, como por via de excepção peremptória – cf., v.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-12-2018, Proc. n.º 8250/15.9T8VNF.G1.S1, e de 18-04-2024, Proc. n.º 864/15.3T8ABF.E1.S1.
A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade baseada na posse, numa posse em nome próprio, de uma intenção de domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade – cf. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 122, p. 67.
De acordo com o estatuído no art. 1251.º do Código Civil a “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, estabelecendo o art. 1287.º daquele Código que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
Para que se verifique a aquisição do direito de propriedade com base na usucapião é indispensável se reúnam os seguintes requisitos: a) a posse do bem; b) o decurso de certo período de tempo, e c) a invocação triunfante desta forma de aquisição.
Na definição legal de posse [traduzindo o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real] insere-se o elemento do corpus – o domínio de facto sobre a coisa – e o elemento do animus – a intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio. E uma relação entre corpus, enquanto exercício de poderes de facto que encerre uma vontade de domínio, e animus, enquanto intenção jurídica ou vontade de agir como titular de um direito real – cf. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, pp. 126 e ss..
A posse susceptível de conduzir à usucapião, tem de revestir sempre duas características: ser pública e ser pacífica – arts. 1293.º, alínea a), 1297.º e 1300.º, n.º 1, todos do Código Civil.
As restantes características que a posse eventualmente revista, como ser de boa ou de má-fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita no registo, influenciam no prazo necessário à consolidação da usucapião, sendo esse lapso de tempo variável consoante a natureza móvel ou imóvel dos bens sobre que a posse incida e conforme os caracteres que esta revista.
Esse tempo é mais curto ou mais longo conforme exista boa ou má-fé e segundo os restantes caracteres permitam inferir uma maior ou menor probabilidade da existência do direito na titularidade do possuidor e uma maior ou menor publicidade da relação de facto.
O prazo da usucapião varia, ainda, conforme a posse incida sobre coisas móveis ou imóveis: é mais curto em relação às primeiras por se entender que, tratando-se de bens negociados amiúde e cuja exacta situação jurídica é, em regra, mais difícil de averiguar do que a dos imóveis, deve ser decidido em prazo não muito dilatado o conflito entre o titular do direito e aquele que exerce um poder de facto sobre a coisa como se, em relação a ela, dispusesse de um direito real definitivo – cf. Henrique Mesquita, Direitos Reais, pp. 97 e ss. e Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª edição, pp. 232 e ss..
Assim, tratando-se de imóveis, o prazo de usucapião é menor se o possuidor estiver de boa-fé e se houver registo, quer do título, quer da mera posse – arts. 1294.º a 1296.° –; tratando-se de móveis sujeitos a registo, aquele prazo é mais curto se houver boa-fé do possuidor e título de aquisição registado – art. 1298.° – ; tratando-se, finalmente, de outras coisas móveis, o prazo da usucapião é mais breve no caso de haver boa-fé e título de aquisição – art. 1299.º, todos do Código Civil.
Refira-se, a concluir, que a usucapião, uma vez verificados todos os seus pressupostos, não opera ipso jure, nem pode ser conhecida ex officio pelo Tribunal, devendo ser invocada por aquele a quem aproveita, pelo seu representante (ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público) – cf. art. 303.º aplicável por força do disposto no art. 1292.º do Código Civil.
Por fim, invocada triunfantemente a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse – art. 1288.º do Código Civil.
Na situação vertente, os réus pretendiam, em reconvenção, que o Tribunal reconhecesse o seu direito de propriedade sobre a parcela onde se encontra um “terraço” com cerca de 15 m2.
Todavia, vista a factualidade provada e assente – bem como, especialmente, os factos não provados –, e repousando o pedido reconvencional, primacialmente, na alegação de que os réus adquiriram a parcela de terreno em causa por usucapião, o certo é que não provaram minimamente os requisitos dessa forma originária de aquisição do direito de propriedade, designadamente:
– Que há mais de 50 anos, pelo menos desde 1972, por si e seus antecessores, sucessivamente, os réus procederam à vigilância e à limpeza da parcela de terreno existente no local onde estiveram implantados “um galinheiro” e “uma cabana com um forno”, cortando e arrancando as “silvas” que ali cresciam e amanhando a terra (facto não provado 2.2.3);
– Que tais actos foram praticados continuamente e sem interrupção (facto não provado 2.2.4);
– À vista da generalidade das pessoas, incluindo os autores (facto não provado 2.2.5);
– Sem oposição de quem quer que fosse (facto não provado 2.2.6);
– Desconhecendo lesar interesses de outrem (facto não provado 2.2.7);
– Que tais actos eram praticados na convicção de serem donos de tal parcela de terreno (facto não provado 2.2.8);
– Que quando o pai da ré CC, II, colocava uma carroça dos bois na cabana, local onde também fazia aguardente, até a mesma se desmoronar, o fazia continuamente, sem interrupção, à vista de toda a gente e na convicção de ser dono desse espaço (facto não provado 2.2.9);
– Que a construção da estrutura tipo terraço foi executada pelos réus continuamente, sem interrupção, à vista de toda a gente e na convicção de serem donos desse espaço (facto não provado 2.2.10);
– Que aquando do contacto da ré CC esta informou o autor AA de que tinha mandado edificar um “terraço”, com cerca de 15 m2, na parcela de terreno onde outrora esteve implantada a cabana, não tendo qualquer dos autores manifestado qualquer oposição àquela construção (facto não provado 2.2.11).
Pelo exposto, bem andou o Tribunal a quo, quando consignou na sentença sob recurso o seguinte: “(…) [S]em necessidade de outros considerandos, cumpre desde logo salientar que não lograram os Réus-reconvintes alegar e demonstrar qualquer facto relativo aos modos de aquisição do direito de propriedade, para efeitos do disposto no artigo 1316.º do Código Civil, como lhes competia (cfr. artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil), também não tendo provado quaisquer factos ilustrativos do exercício de poderes de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o referido imóvel/parcela de terreno, muito menos com as características (áreas, configuração, composição e confrontações) invocadas, nem a cadeia das sucessivas aquisições até à aquisição originária [factos não provados sob os pontos 2.2.3. a 2.2.10.], sendo claramente insuficiente, para o efeito, o facto elencado no ponto 2.1.21., nos termos do qual «Durante tempo não concretamente apurado, em vida do mesmo, o pai da primeira Ré, II, guardava uma carroça de bois da sua pertença na cabana identificada em 2.1.3., local onde também fazia água ardente, até a mesma desmoronar.» (mormente pela falta do respetivo animus).
Logo se vê, pelas considerações acima tecidas, que a factualidade dada como provada é insuscetível de conduzir aos efeitos jurídicos pretendidos pelos Réus-reconvintes.
Soçobram, por isso, os pedidos de reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de terreno a que se referem os pontos 2.1.3., 2.1.13. a 2.1.17., 2.1.19. e 2.1.20. e subsequentes pedidos de abstenção da prática de quaisquer atos que impeçam, limitem ou prejudiquem o pleno e normal exercício do direito de propriedade dos réus sobre a parcela em causa [pedidos formulados na reconvenção sob os pontos A) a C)].
Independentemente de tudo isso, provaram a prática dos sobreditos atos sobre tal parcela de terreno, ainda que parcos.
Ora, de acordo com o artigo 1253.º do Código Civil, «são havidos como detentores ou possuidores precários: (…) b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito», tendo ficado demonstrado que a estrutura tipo terraço foi construída pelos Réus na parcela de terreno em causa e que o pai da primeira Ré colocava uma carroça de bois em tal parcela de terreno [factos provados nas alíneas 2.1.13. a 2.1.17. e 2.1.19. a 2.1.21.].
Como consequência, «os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título» (cfr. artigo 1290.º do Código Civil).
Só que os Réus-reconvintes não alegaram sequer, muito menos provaram, como lhes competia (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), qualquer inversão do título da posse, não podendo adquirir por usucapião o direito de propriedade sobre as referidas construções e/ou sobre o espaço onde se encontram implantadas” (sic).
Por conseguinte, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, naufraga a tese dos réus/reconvintes atinente à invocada aquisição da parcela em litígio por usucapião.
Subsidiariamente, vieram os réus/reconvintes peticionar a aquisição da parcela de terreno em causa por acessão imobiliária, que constitui, outrossim, causa de aquisição originária do direito de propriedade ex vi do art. 1316.º do Código Civil.
A este propósito aduzem (cf. conclusões XXXV a XLI) que o Tribunal a quo errou ao considerar que “não ficou demonstrado que os recorrentes agiram de boa-fé e, por essa via, concluiu que a falta desse requisito tornaria improcedente o pedido de aquisição originária da parcela de terreno através da figura da acessão imobiliária”, invocando que “não existe nada nos autos que demonstre que os recorrentes não agiram de boa-fé, antes pelo contrário, pois o facto da recorrente CC ter conversado com o recorrido AA a pedir autorização para cortar os ramos da figueira que cobriam a parcela de terreno em questão é demonstrativo de que a recorrente acreditava (e acredita com sério fundamento) de que era e é proprietária da dita parcela onde edificou o terraço”. Referem, ainda, que “em conformidade com os demais factos constantes dos autos (designadamente, o facto de construir um terraço num terreno que era composto maioritariamente por silvas e pedras, acrescentando uma valorização económica no mesmo, sendo que os demais pressupostos estão preenchidos de forma notória) estão preenchidos todos os pressupostos legais para que seja atribuída a aquisição originária da dita parcela de terreno aos recorrentes através do instituto da acessão imobiliária” (sic).
Vejamos.
Nos termos do art. 1325.º do Código Civil a acessão industrial imobiliária ocorre quando com um prédio que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que não lhe pertence, daí advindo uma ligação material, definitiva e permanente entre a coisa acrescida e o prédio e a impossibilidade de separação das duas coisas sem alteração substancial do todo obtido através dessa união.
Os pressupostos substantivos da acessão industrial imobiliária, estabelecidos no art. 1340.º do Código Civil, são os seguintes : a) a incorporação, consistente no acto voluntário de realização da obra, sementeira ou plantação; b) a natureza alheia do terreno sobre o qual é erguida a construção, lançada a sementeira ou efectuada a plantação; c) a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação; d) a formação de um todo único entre o terreno e a obra; e) o maior valor da obra relativamente ao terreno; e f) a boa fé do autor da incorporação.
No que concerne à boa fé, o n.º 4 do art. 1340.º do Código Civil clarifica: “Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”.
Tal como explicam desenvolvidamente Antunes Varela e Pires de Lima, no Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, 1987, p. 164: “No n.º 4 diz-se que está de boa fé o autor da obra, sementeira ou plantação, que desconhecia que o terreno era alheio, bem como aquele que foi autorizado a fazer a incorporação. Confrontada esta disposição com a que define a boa fé em matéria possessória (art. 1260.º, n.º 1) logo se conclui que a lei não pretendeu afastar-se deste último conceito, e que só para evitar dúvidas, no caso especial da acessão imobiliária, determinou taxativamente os casos em que se deve considerar de boa fé o autor da acessão./A boa fé deve existir no momento da construção, sementeira ou plantação, como resulta claramente do texto./Quanto à autorização para praticar os actos materiais em que a cessão se traduz, tanto pode ser atribuída através de uma declaração de vontade expressa, feita pelo proprietário da coisa, como resultar, por exemplo, de um contrato translativo nulo por falta de forma (…) ou de um contrato-promessa em que se convencione a imediata entrega da coisa ao promissário, para que dela se sirca como se já lhe pertencesse (…)”.
Os recorrentes, como se mencionou, entendem que o Tribunal a quo avaliou erradamente o requisito da boa fé, tendo-se exarado na sentença recorrida que os “Réus-reconvintes não demonstraram que tivessem, desde logo, agido de boa-fé (desconhecimento de se estar a lesar um direito alheio) – cfr. facto por provar sob os pontos 2.2.4. a 2.2.10./ Não estando sequer preenchido aquele requisito, além de não ter sido alegada e provada qualquer matéria a respeito dos valores da parcela de terreno e da obra, sobrevém a improcedência do pedido reconvencional subsidiariamente formulado” (sic).
Concorda-se com a conclusão do Tribunal a quo.
Na verdade, decorre da factualidade provada que, ao realizar a construção do “terraço”, os ora recorrentes sabiam ou, pelo menos, não podiam desconhecer que aquele terreno não lhes pertencia, tendo-se provado, além do mais:
“2.1.13 Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre os anos de 2019 e 2021, os Réus CC e DD invadiram o supra identificado prédio, tendo procedido, na sua estrema norte, junto ao caminho ali existente, à edificação de uma construção, tipo terraço, com área não concretamente apurada, em tijolo, cimento e betão, com 4 paredes, uma frontal, uma traseira e duas laterais e com a forma constante da imagem constante de fls. 9-verso a 12 e 25.
2.1.14 Tendo a parede (de tal estrutura) situada mais a norte, junto ao caminho, cerca de cinco metros de comprimento, contendo uma abertura de cerca de 90 centímetros, para entrada direta do dito caminho nessa construção, cujo chão se encontra revestido com cimento.
2.1.15 A parede traseira tem sensivelmente o mesmo comprimento da parede frontal e as paredes laterais têm (uma) 2,60 e (outra) 4,20 metros de comprimento.
2.1.16 Todas as paredes da mencionada edificação tipo terraço têm uma altura de cerca de 90 centímetros.
2.1.17 Também na estrema norte do prédio referido em 2.1.1., no limite do caminho publico, ao longo da parede frontal da dita construção tipo terraço (v. ponto 2.1.13.), os Réus construíram ainda um pequeno muro em blocos e revestido a cimento, com um comprimento de cerca de 2,25 metros, altura de cerca de 50 centímetros e uma largura de cerca de 55 centímetros, onde colocaram diversas plantas e flores.
2.1.18 Em data anterior à edificação da estrutura referida nos pontos 2.1.13. a 2.1.17., a Ré CC contactou o Autor AA por chamada telefónica e pediu-lhe autorização para cortar os ramos da figueira ali também existente.
2.1.19 As construções referidas nos pontos 2.1.13. a 2.1.17. estão totalmente implantadas no interior do prédio referido em 2.1.1., na sua estrema norte, junto ao caminho, sensivelmente no local onde se encontravam implantadas a construção destinada a galinheiro, a cabana destinada a casa de forno e a destilar aguardente e o fontanário, referidas em 2.1.3..
2.1.20 A edificação das construções suprarreferidas em 2.1.13. a 2.1.17. foi feita sem conhecimento, autorização e contra a vontade dos Autores”.
Por seu turno, não se provou a posição sustentada pelos réus/reconvintes, correspondente à seguinte factualidade (toda não provada):
“2.2.4 Os atos referidos no ponto anterior foram praticados continuamente e sem interrupção;
2.2.5 À vista da generalidade das pessoas (incluindo os Autores);
2.2.6 Sem oposição de quem quer que fosse;
2.2.7 Desconhecendo lesar interesses de outrem;
2.2.8 Praticando tais atos na convicção de serem donos de tal parcela de terreno;
2.2.9 Os atos referidos em 2.1.21. (colocação da carroça dos bois na cabana) foram exercidos pelo pai da primeira Ré, II, nos termos referidos em 2.2.4. a 2.2.8;
2.2.10 Os atos referidos em 2.1.13. a 2.1.17. (construção de uma estrutura tipo terraço) foram exercidos pelos Réus nos termos referidos em 2.2.4. a 2.2.8.”.
Destarte, conclui-se, quando procederam à construção do “terraço” em causa, os réus não agiram, nos termos e para os efeitos do art. 1340.º, n.ºs 1 e 4 do Código Civil, de boa fé.
Adicionalmente, além de os réus/reconvintes não terem agido de boa fé, não lograram invocar e provar todos os requisitos ou pressupostos legais elencados no art. 1340.º do Código Civil, não tendo sequer invocado qualquer matéria a respeito dos valores da parcela de terreno e da obra em causa.
De harmonia, é ostensivo que os réus/reconvintes, aqui apelantes, não demonstraram qualquer facto relativo aos modos de aquisição do direito de propriedade, correspondentes quer à usucapião, quer à acessão imobiliária, pelo que bem andou a sentença recorrida ao absolver os autores/reconvindos de todos pedidos contra eles formulados pelos réus/reconvintes.
Nos presentes autos foi peticionada, para o que aqui interessa, a condenação dos réus a pagarem aos AA., a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que lhe causaram uma quantia não inferior a € 1000,00, tendo esta questão sido incluída no objecto do litígio a dirimir e tendo, a final, sido considerada não provada a matéria relativa a tais danos (ao fazer constar como não provado (cf. ponto n.º 2.2.12): “Em consequência dos atos praticados pelos Réus, a que se referem os pontos 2.1.13. a 2.1.17., 2.1.19., 2.1.20. e 2.2.1., os Autores ficaram perturbados, ansiosos, inquietos e tristes por verem o seu prédio invadido com construções que não autorizaram, tendo inclusive receio que os Réus continuem a invadir o seu prédio com outras construções”.
Por sua vez, na Fundamentação de Direito da sentença, fez-se constar como questão a resolver (p. 16) “para além de saber se lhes [aos AA.] é devida alguma quantia indemnizatória pela arrogada violação dos seus direitos de personalidade”, tendo-se concluído, na análise efetuada a essa questão (p. 21) que “Assim se conclui que não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, improcedendo, consequentemente, o pedido de indemnização formulado pelos Autores.”
Na parte dispositiva da sentença, de facto, nada consta, no que toca a este pedido, pese embora, se tenha decido: “julga-se a presente ação totalmente procedente”.
Posto isto, importa indagar se esta situação é susceptível de consubstanciar a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, que comina com a nulidade da sentença a situação em que o “juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Este preceito legal deve ser concatenado com o estatuído no art. 607.º, n.º 3 do CPC, que impõe na sentença se discriminem os factos que o juiz considera provados e se indique, interprete e aplique as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Tal como anotam António Santos Abrantes Geraldes, Luís Filipe Pires de Sousa e Paulo Pimenta, Código de Processo Civil Anotado - Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, 2.ª edição, p. 749, “deve ser destacado o segmento decisório, não só porque a lei o determina, como ainda pelo facto de o mesmo evidenciar com mais clareza o resultado da lide e os limites do caso julgado”, impondo-se que “(…) o juiz aprecie todas as questões que foram suscitadas (com a exceção das que se encontrarem prejudicadas) e aquelas que forem de conhecimento oficioso, sob pena de omissão de pronúncia (arts. 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d)). Também deve atentar na necessidade de respeitar a amplitude do objeto do processo, respeitando os factos essenciais que foram alegados e o efeito prático-jurídico associado ao pedido que foi formulado”.
No despacho de 25-10-24, o Tribunal a quo considerou, ao analisar a nulidade arguida (art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC): “[S]alvo devido respeito por entendimento diverso, não sucede no caso, pois, da análise da sentença recorrida, é possível concluir-se que a questão foi apreciada, tendo-se concluído pela improcedência de tal pedido (p.21). Simplesmente, na parte dispositiva da sentença, não se fez consignar expressamente a decisão que emerge da sua fundamentação.
Destarte, perante a argumentação da sentença em crise, é ostensivo que a decisão a dar à questão é a improcedência, tal como ficou expressamente explanado (no ponto III – Fundamentação de Direito), pelo que não se entende que tenha existido qualquer omissão de pronúncia relativamente ao pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais deduzido pelos AA. (sem prejuízo de entendermos poder tratar-se de um lapso manifesto).
Certo que, tal como já supra se evidenciou, o dispositivo da sentença é o cerne do julgado.
Mas não podemos deixar de mencionar que a(s) decisão(ões) que se toma(m) (apreciação para efeitos do artigo 615º, nº 1, al. d), resulta(m), não apenas desse segmento da sentença, mas ainda da sua motivação – neste sentido «a análise dos motivos pode conduzir ou a uma restrição do dispositivo, por se reconhecer que, não obstante o carácter geral da decisão, certas questões não foram resolvidas, nem explícita nem implicitamente, ou a uma ampliação da parte dispositiva, por se verificar que se consideraram e resolveram questões não compreendidas na decisão» (Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra 1984, pág. 46).
Com efeito, atenta toda a fundamentação supra, temos de concluir que não padece a sentença em crise da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC.
Decidindo.
Por tudo o exposto, e ao abrigo do artigo 617º do CPC, indefiro o incidente de nulidade da sentença proferida a 02.05.2024” (sic).
Por consideramos correcto o assim decidido, nada mais se oferece referir nesta sede recursiva, julgando-se improcedente a nulidade suscitada.
A terminar, após considerar que a sentença não padecia da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), o Tribunal a quo rectificou, no citado despacho de 25-10-1024, a sentença, ao abrigo do estatuído no art. 614.º do CPC, nos seguintes moldes:
“[E]ntendo que a sentença proferida contém um lapso manifesto – na medida em que se entende que a vontade declarada não corresponde à vontade real, sendo ostensiva tal divergência (resulta do próprio texto da sentença) –, no seu segmento decisório que, ao abrigo do disposto no artigo 614º, nº 1 e 2 do CPC, agora se corrige por própria iniciativa, antes de determinar a subida dos autos, nos seguintes termos: onde se diz «julga-se a presente ação totalmente procedente (…)» deve ler-se «julga-se a presente ação parcialmente procedente»; acrescentar-se o seguinte ponto «4.5. Absolver os Réus/Reconvintes CC DD do pedido de indemnização formulado pelos Autores»; e o ponto sob o nº “4.5.” passar a ter a numeração de “4.6.”
Em conformidade, deve, ainda, nos termos do artigo 614º, nº 1 do CPC, ser corrigido o erro de cálculo devido ao lapso manifesto, no que concerne à condenação em custas, nos seguintes termos: onde, no ponto III – Fundamentação de Direito (p. 26) se diz «Pelo exposto, atendendo à procedência total da presente ação, os Réus/Reconvintes serão responsáveis pelo pagamento das custas processuais da ação principal», deve ler-se «Pelo exposto, atendendo à procedência parcial da presente ação, as custas serão suportadas por ambas as partes, na proporção do decaimento, que se fixa em 86% pelos Réus/Reconvintes e 14% pelos Autores/Reconvindos»; e no ponto IV – Dispositivo, onde se escreve «Custas da ação pelos Réus/Reconvintes CC e DD», deve ler-se «Custas da ação pelos Réus/Reconvintes CC e DD e pelos Autores/Reconvindos AA e BB, na proporção do decaimento, que se fixa em 86% pelos primeiros e 14% pelos segundos».
Notifique a retificação da sentença e a sentença agora retificada, nos termos e para os efeitos do artigo 614º, nº 2 do CPC, concedendo às partes o prazo de 10 dias para o efeito.” (sic).
Devidamente notificadas deste despacho, nos termos do n.º 2 do art. 614.º do CPC, as partes nada vieram alegar, sendo manifesto, por um lado, que não ocorreu qualquer nulidade por omissão de pronúncia, e, por outro lado, que foi devidamente fixada a responsabilidade tributária das partes.
Sendo parte vencida, cabe aos réus/recorrentes o pagamento das custas processuais ex vi arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.
(…).
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e, em consequência, confirmar integralmente a sentença recorrida.
Custas pelos réus/recorrentes, nos termos do artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do CPC.
Luís Miguel Caldas
Francisco Costeira da Rocha
Anabela Marques Ferreira