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DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
DESTINO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
FALTA DE ACORDO DOS CÔNJUGES
ATRIBUIÇÃO DO ARRENDAMENTO PELO TRIBUNAL
PEDIDO PELO CÔNJUGE INTERESSADO
Sumário
I – Prevalecendo nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do inquisitório, o poder de conhecimento dos factos está dependente da sua alegação pelas partes ou de que os mesmos cheguem ao seu conhecimento no decurso da instrução do processo, ainda que por indagação oficiosa. II – Havendo acordo dos cônjuges (e no caso de divórcio por mútuo consentimento, as partes têm necessariamente de chegar a um acordo sobre o destino da casa de morada de família), a casa de morada de família pode ser atribuída a um deles, a título gratuito ou mediante alguma compensação, envolvendo qualquer outro tipo de negócio, dentro do princípio da liberdade contratual das partes. III – Não existindo acordo entre os ex-cônjuges, o tribunal “pode” dar de arrendamento a um dos cônjuges, a casa de morada de família, mas terá de existir um pedido nesse sentido por parte do cônjuge que a queira tomar de arrendamento. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Arlindo Oliveira
2º Adjunto: José Avelino Gonçalves
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
AA instaurou o presente Processo Especial de Atribuição de Casa de Morada de Família, contra BB,
Alegando, em síntese:
no âmbito da ação de divórcio, autor e ré acordaram em que “a casa de morada de família fica atribuída à autora até partilha, assumindo esta o pagamento do IMI, prescindindo da compensação dos valores por si pagos desta natureza em sede de partilhas”;
tal acordo foi alcançado na perspetiva de que a situação se resolveria com brevidade;
tal casa respeita a um prédio urbano que o casal construiu num prédio rústico que havia sido doado pela sua mãe ao requerente;
o valor de mercado do imóvel corresponde a cerca de 225.000 €;
o casal tem quatro filhos, dois dos quais ainda se encontram a residir com a requerida;
o requerente não dispõe de outro imóvel para onde possa ir residir;
o requerente paga a quantia de 450€ mensais a título de pensão de alimentos aos seus filhos;
o requerente auferiu no ano de 2022 a quantia de 14.988,00 €, o que totaliza a quantia mensal de 1.249,00 €, auferindo a requerida a quantia anual de 7.800 €;
sendo a situação económica da requerida mais favorável do que a do requerente, deve ser atribuída a casa de morada de família à requerida mediante a fixação de uma renda que não deve ser inferior a 700 €/mês.
Conclui:
pedindo que a casa de morada de família seja dada de arrendamento à requerida mediante pagamento de uma renda cujo valor não deverá inferior a 700,00 €/mês, desde 06/12/2018 (data da propositura da ação de divórcio) até à partilha
ou, alternativamente,
deverá a requerida liquidar ao requerente o pagamento da renda cujo valor não será inferior a 700€/mês desde 06/12/2018 até à presente data, procedendo à entrega da casa de morada de família ao requerente.
A Requerida deduz Oposição, alegando, em síntese:
o requerente não paga há anos as prestações de alimentos aos seus filhos, filhos estes que continuam a residir com a Requerida, constituindo a propositura da presente ação um abuso de direito.
Procedeu-se à audição do Requerente em depoimento de parte e à Requerida em declarações de parte, bem como à inquirição das testemunhas indicadas por cada um deles.
Seguidamente, pelo juiz a quo é proferida Sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo a ré dos pedidos formulados na ação, condenado o autor nas respetivas custas.
*
Inconformado com tal decisão, o Requerente dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
1ª/ Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença que julgou totalmente improcedente o incidente de Atribuição da Casa de Morada da Família apresentado pelo requerente.
2ª/ Os Recorrentes impugnam no presente recurso o Direito aplicado.
3ª/ O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes.
4ª/ Não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável.
5ª/ Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à seleção de meios de prova.
6ª/ A inobservância do inquisitório, gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC, nulidade essa que importa a anulação da decisão recorrida.
7.ª/ Por sua vez a Douta Decisão manteve o direito de uso exclusivo da casa de morada de família pela requerida, até à partilha, sem a fixação de uma renda a ser paga ao requerente, violando desta forma o disposto nos artigos 990/1 do CC e 1793/1 do CPC), o que só por si basta para a revogação, ao menos parcial, da mesma.
8ª/ Especificamente, no que concerne àquela compensação, pode partir-se, como mera referência inicial, de valores de mercado (do arrendamento), motivo pelo qual deve ser fixada a compensação no valor de 700€ conforme indicado na petição inicial.
NESTES TERMOS, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR A SENTENÇA RECORRIDA, DETERMINANDO O PAGAMENTO AO RECORRENTE DE UMA COMPENSAÇÃO PELO USO EXCLUSIVO DA CASA POR PARTE DA RECORRIDA.
*
Pela Requerida foram apresentadas contra-alegações, que culminam com as seguintes conclusões:
(…).
*
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões colocadas pela Apelante são as seguintes:
1. Se o tribunal, ao não solicitar a documentação necessária a comprovar a situação económica do Requerente bem como o valor locatício do imóvel, violou o principio do inquisitório, vigente nas providências de jurisdição voluntária.
2. Se, independentemente do não reconhecimento da existência de alteração das circunstancias, a atribuição da casa de morada de família, pressupunha necessariamente a fixação de uma renda, nos termos dos artigos 990º/1 do CC e 1793º/1, do CPC.
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
I. Matéria de facto
O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
1. O Autor, AA, e a Ré, BB, contraíram matrimónio a 31 de dezembro de 1999, com convenção antenupcial, optando pelo regime da comunhão geral de bens.
2. Na constância do matrimónio, Autor e Ré procederam à construção do prédio urbano, sito em ..., composto por casa de habitação com r/c e sótão, que confronta de norte e a nascente com CC, sul com herdeiros de DD e outros, poente com EE, inscrito no serviço de Finanças sob o artigo 1544, da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...82, cujo direito de propriedade se encontra inscrito em nome do aqui Autor no estado de casado com a Ré, tendo como causa doação.
3. O imóvel identificado em 2) constituiu a casa de morada de família.
4. A aqui Ré, BB, a 6 de dezembro de 2018, instaurou a ação especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra o aqui Autor, AA, à qual veio a ser atribuída o n.º 5642/18.....
5. No âmbito da referida ação de divórcio, a 7 de janeiro de 2019, teve lugar uma tentativa de conciliação, da qual resulta que (…)
1 - Acordam que a casa de morada da família fica atribuída à autora até à partilha, assumindo esta o pagamento do IMI, prescindindo da compensação dos valores por si pagos desta natureza em sede de partilhas.”
(…)
7. Na referida ação de divórcio, a 11.03.2019, foi proferida a seguinte sentença: (…)”.
8. O aqui Autor e Ré são pais de FF (nascida a ../../2001), GG (nascido a ../../2003), HH (nascida a ../../2006) e de II (nascido a ../../2009), os quais à data da instauração da ação de divórcio eram menores de idade, tendo sido regulado o exercício das responsabilidades parentais (no âmbito da referida ação que correu termos como Apenso A, após se ter realizado a determinada apensação) nos seguintes termos:
(…)” 1 – As crianças FF, GG, HH e II, ficam a residir com a mãe, competindo a ambos os progenitores o exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida das crianças, (…)
11 – O progenitor contribuirá, mensalmente, a título de pensão de alimentos para a filha FF com a quantia de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros) mensais, e para cada uma das crianças JJ, KK e LL com a quantia de € 100,00 (cem euros) a pagar entre o dia 1 e o dia 10 do mês a que a que do ao progenitor com o qual as crianças (…)
9) A aqui Ré, a 26 de maio de 2022, instaurou o processo de inventário para partilha do património comum, no qual o aqui Autor foi nomeado como cabeça de casal, processo que se encontra em fase de incidente de reclamação contra a relação de bens.
10) No âmbito do referido processo de inventário o prédio urbano melhor identificado encontra-se relacionado e foi avaliado no montante de €223 700,00.
11) A filha FF esteve ausente da residência porque esteve a fazer voluntariado na Roménia;
12) O filho JJ encontra-se a trabalhar na França, vivendo com a sua namorada.
13) O Autor, no ano de 2022, declarou como rendimento para efeitos de IRS o montante de €14 988,05.
14) O Autor, desde o divórcio, sita em ....
15) A Ré declarou no ano de 2020 para efeitos de IRS ter auferido o montante anual de €7 800,00.
16) No interior da casa de morada de família, existe uma parede que se encontra com humidade
*
O tribunal a quo deu como “Não provados”, os seguintes factos:
O Acordo alcançado com a Requerida acerca do uso de casa de morada de família foi alcançado na perspetiva de que a “situação” se resolveria com brevidade.
A casa de habitação tem um valor locatício mensal não inferior a cerca de €700,00.
A casa onde reside o Requerente tem poucas condições de habitabilidade;
O Requerente paga €200,00 mensais de renda.
O Autor paga, todos os meses, a prestação de alimentos dos 4 filhos, num total de €450 00 e despesas.
O Autor despende de €500,00 a título de pagamento das despesas com a sua alimentação, água, luz, gás, transportes, aquisição de materiais para o seu trabalho, calçado, vestuário e despesas de saúde.
O Autor necessita de recorrer a ajuda de familiares para fazer face às suas despesas.
A Ré trabalha na junta de freguesia ... e nas campanhas da apanha da maça.
No interior da casa de morada de família, devido à falta de limpeza, cuidado e falta de devido arejamento das divisões, para além do facto provado no ponto 16 existem outras paredes de alguns dos quartos cobertas de fungos de cor preta e cinza.
Constata-se um cheiro nauseabundo que infesta a totalidade do piso superior, devido à existência de animais na habitação, designadamente um gato, fechado numa divisão no piso superior, com a caixa onde o mesmo faz as necessidades básicas sem qualquer limpeza.
O Autor paga o IMI da casa de morada de família.
O Autor tem que se deslocar à casa de morada de família diariamente por ai se encontrarem na garagem os seus utensílios de trabalho, o que lhe causa enormes transtornos.
Nos passeios da casa de morada de família, existem ervas e até pequenas árvores a crescer nas juntas do cerâmico o que causa degradação dos pavimentos exteriores.
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1. Se o tribunal, ao não solicitar a documentação necessária a comprovar a situação económica do Requerente, bem como o valor locatício do imóvel, violou o princípio do inquisitório.
A decisão recorrida veio a julgar improcedente o pedido formulado a título principal – ser a casa de morada de família dada de arrendamento à requerida mediante a renda mensal em valor não inferior a 700,00 €, desde a data do divórcio até à partilha –, considerando que a possibilidade de alteração do acordo fixado relativamente à casa de morada de família, só é admissível no caso de ocorrência de alteração substancial e anormal das circunstaâncias tidas em consideração aquando da celebração do e homologação do acordo (artigo 437º do Código Civil), alteração que não resulta dos factos dados como provados:
“Não interessa para os autos a alegação do Autor de que tem que suportar o pagamento das prestações de alimentos de despesas com os seus filhos e pagamento de IMI pois tais circunstâncias já ocorriam, exatamente nos mesmos termos, quando foi homologado o acordo. Também continua a verificar-se a circunstância de três dos quatro filhos do Autor e da Ré terem na casa de morada de família a sua residência – vide factos dados como provados no ponto 8, 11e 12. Pouco se sabe a respeito dos pressupostos fácticos que levaram a que o então casal tenha acordado na atribuição da casa de morada de família ao cônjuge mulher. O Autor sustenta o seu pedido no facto de ter perspetivado que o processo de inventário se resolveria a breve trecho, o que não sucede, estando a permanência da Ré e dos seus 4 filhos na mesma, condicionada por esse facto. Tal factualidade não se provou, nem tão pouco se conseguiu concretizar qualquer era a perspetiva do Autor quanto à duração de tal processo de inventário, seis meses, um ano, um ano e meio. Não obstante, dos factos provados resulta que, na constância do casamento nasceram quatro filhos, que ao tempo da propositura da ação de divórcio – 6 de dezembro de 2018 – eram todos menores de idade, tendo sido necessário regular o exercício das responsabilidades parentais no que lhe dizia respeito, tendo os mesmos ficado a residir com a mãe, aqui Ré; Nada mais se sabe a respeito das condições familiares e financeiras ao tempo do acordo aqui em causa, sendo insondável, perante os factos provados, saber se a situação financeira da Ré se alterou supervenientemente de tal forma que permita ser onerada com o pagamento da renda pretendida pelo Autor, sem que se coloque a em causa a subsistência dos seus filhos. Ficou provado que o Autor, no ano de 2022, declarou como rendimento para efeitos de IRS o montante de €14 988,05; que o Autor, desde o divórcio, sita em ... e que a Ré declarou no ano de 2020 para efeitos de IRS ter auferido o montante anual de €7 800,00. Ora, dos factos provados nos autos, não vemos qual o circunstancialismo que existia em 2018 e em 2019, circunstancialismo que foi determinante para os termos do acordo celebrado e que o mesmo se tenha alterado de forma substancial, pois a Ré continua a viver com os filhos e, auferindo o equivalente ao ordenado mínimo nacional, sem possibilidades económicas de pagar a renda de €700,00 que pretende o Autor, e diga-se, nem de inferior montante, pois que se o Autor alega despesas com água, luz, transportes, a Autora também as terá e certamente de maior montante, considerando a composição do seu agregado familiar. Veja-se que o Autor não logrou provar que faz os pagamentos dos montantes das prestações de alimentos devidas aos seus filhos, pelo que tal montante não poderá ser considerado como um rendimento. Assim, a factualidade provada não é idónea, por si só, a legitimar a pretendida alteração ao acordo celebrado entre as partes.”
Insurge-se o Apelante contra o decidido, apoiando-se nas seguintes ordens de razões:
- o autor alegou factos justificativos da necessidade de alteração da atribuição da casa de morada de família ou, mantendo-se a sua utilização pela recorrida, o pagamento de uma quantia pecuniária a seu favor;
- não tendo o autor juntado prova documental das despesas mensais que o mesmo suporta, poderia o tribunal a quo solicitar tal documentação para suporte da decisão proferida, o que não fez, ou até consultar o processo de embargos de executado ou o de inventário;
- a providência pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou requerida: embora sujeita ao princípio do pedido, tendo a natureza de jurisdição voluntária, o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes, pelo que o tribunal pode suprir o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão, bem como a sua prova.
Desde já, adiantamos não ser de dar razão ao Apelante.
Antes de mais, duas notas necessárias à plena compreensão do litígio:
1. o objeto da ação não consiste na atribuição à requerida da casa de morada de família – o destino da casa de morada de família até à partilha, foi determinado por acordo celebrado entre os (ex)cônjuges no processo de divórcio, devidamente homologado pelo tribunal – mas, tão só, na pretensão do requerente ao recebimento de uma “renda mensal”, em valor não inferior a 700,00 €, a pagar pela requerida, como contrapartida da atribuição da casa de morada de família;
2. o homologado acordo quanto à casa de morada de família prevê a sua atribuição à requerida, mediante a assunção por esta da obrigação de pagamento do IMI, prescindindo dos valores por si pagos desta natureza aquando da partilha.
Inserindo-se o procedimento de atribuição da casa de morada de família (artigo 990º do CPC) no elenco dos processos de jurisdição voluntária, encontra-se sujeito aos seguintes princípios básicos: 1. O tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e reconhecer informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias.” (artigo 986º, nº2, CPC) 2. Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (artigo 987º CPC). 3. As resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso) (artigo 988º).
Não existindo, em direito positivo, processos inquisitórios puros, nem processos dispositivos puros, as referidas normas consagram a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo:
a) ao nível da conformação do objeto da ação, atribuindo ao tribunal amplos poderes quanto ao conhecimento dos factos, quer ao nível das providências a tomar.
“Os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares, concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual), para além daqueles que sejam alegados pelas partes[1]”, “não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados”
b) ao nível da instrução da causa – o tribunal não está adstrito às demonstrações probatórias que as partes possam oferecer para fundamentar a decisão, admitindo também aquelas que o juiz, por sua iniciativa, possa trazer ao processo, podendo ainda recusar a produção de provas quando as considere desnecessárias.
“Nos processos de jurisdição voluntária, o juiz não está, em princípio, dependente dos factos direta ou indiretamente alegados pelos interessados, seja qual for a função que aqueles desempenhem no processo, dispondo de uma ampla iniciativa probatória, não estando dependente de qualquer ónus de alegação e apenas admitindo as provas que entender necessárias[2]”.
O fundamento da decisão de improcedência da pretensão do autor (formulada a título principal ou subsidiário), residiu, na consideração de que, existindo já uma definição quanto à atribuição da morada de família até ao divórcio, o acordo a tal respeito celebrado e homologado no âmbito do processo de divórcio, só pode ser objeto de alteração com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.
Tal como sustenta a decisão recorrida, o único facto alegado pelo requerente capaz de preencher o conceito de circunstâncias supervenientes com vista a justificar uma alteração ao regime anteriormente fixado relativamente à casa de morada de família, foi o de o acordo ter sido celebrado na perspetiva de que a partilha se resolveria a breve trecho. Factualidade esta, que, segundo a decisão recorrida não se provou, nem tão pouco se conseguiu concretizar qual era a perspetiva do autor quanto à duração de tal processo de inventário, seis, meses, um ano, um ano e meio.
E, de facto, toda a demais factualidade alegada no requerimento inicial, respeita aos factos que, no entender do requerente, justificariam a fixação de uma renda – rendimentos auferidos por cada um, valor do imóvel, despesas pessoais, viver em casa arrendada, etc..
Contudo, antes de se chegar à apreciação de tal factualidade, haveria que aferir da existência de circunstâncias (supervenientes) que justificassem a alteração do regime fixado por acordo homologado pelo tribunal.
É a este nível que a pretensão do requerente falha, desde logo – não só, não são por si alegados, como, da instrução da causa, não resultam quaisquer factos que envolvam alguma alteração substancial das circunstâncias existentes à data do divórcio (o facto de um dos quatro filhos que residiam com a mãe, se encontrar agora a trabalhar em França, não se afigura alteração bastante).
O Apelante insurge-se contra o decidido, invocando a violação do princípio do inquisitório, sem que concretize que outros factos, para além dos por si alegados, poderia o tribunal ter conhecido, sendo que, para que os pudesse apreciar e ter em consideração na decisão a proferir, teriam os mesmos de resultar da instrução da causa (seja por resultarem de documentos juntos aos autos, seja por terem sido afirmados por alguma das partes ou por alguma testemunha), ainda que, por indagação oficiosa.
Invoca, ainda, o Apelante a violação do princípio do inquisitório, com fundamento em que o tribunal poderia ter consultado determinados apensos e o processo de inventário, para dar como provadas as suas despesas. Tal argumentação afigura-se, no entanto irrelevante, uma vez que o requerente/Apelante não alegou a ocorrência de qualquer alteração substancial das condições económicas dos ex-cônjuges, relativamente à data da celebração do homologado acordo, que justificassem qualquer indagação oficiosa sobre os rendimentos de cada um.
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2. Se a atribuição temporária da casa de morada de família à Requerida pressupunha necessariamente a fixação de uma renda, nos termos dos artigos 990º, do CC e 1793º, nº1, do CPC
Segundo o Apelante, independentemente da alteração das circunstâncias, sempre, por razões de equidade e de igualdade entre os cônjuges, seria de atribuir um valor pecuniário como contrapartida da atribuição do uso e fruição da casa de morada de família, invocando o disposto no artigo 1793º, nº1 do CC.
Contudo, o que se afirma em tal norma é que “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
O que tal norma estabelece é a possibilidade de a atribuição do uso da casa de morada de família a um dos cônjuges ser concretizada mediante a imposição de um contrato de arrendamento, sujeito às regras do arrendamento para a habitação e não que, a atribuição a um dos cônjuges do direito a habitar a casa de morada de família, tenha, necessariamente, que fazer-se por essa via.
Havendo acordo dos cônjuges (e no caso de divórcio por mútuo consentimento, as partes têm necessariamente de chegar a um acordo sobre o destino da casa de morada de família), a casa de morada de família pode ser atribuída a um deles, a título gratuito ou mediante alguma compensação, envolvendo qualquer outro tipo de negócio, dentro do princípio da liberdade contratual das partes. Não existindo acordo entre os ex-cônjuges, aí sim, o tribunal “pode” dar de arrendamento a um dos cônjuges, a casa de morada de família, mas terá de existir um pedido nesse sentido por parte do cônjuge que a queira tomar de arrendamento[3], o que não é o caso.
Encontrando-nos, no caso em apreço, perante um divórcio por mútuo consentimento, foram as partes que acordaram quanto ao destino da casa de morada de família, determinando que, até à partilha, ficava atribuída à Requerida, fixando como única contrapartida, que era sobre esta que recaia a obrigação de pagamento do IMI.
É certo que a possibilidade de ser alterado o “regime fixado”, tanto se aplica ao que haja sido estabelecido por acordo homologado, como ao que tiver sido determinado por decisão judicial (artigo 1793º, nº3, Código Civil).
Contudo, a modificação pretendida fundar-se-á necessariamente em circunstâncias supervenientes (no sentido do art. 988º, nº1, 2ª parte) que a justificam e se estas revelarem alteração substancial e não meramente conjunturais que foram tidas em conta para fixar o regime anterior[4].
E, tal como o já referido, tal alteração das circunstâncias não se tem por demonstrada.
A Apelação é de improceder.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo Apelante
Coimbra, 14 de janeiro de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] António José Fialho, “Conteúdo e Limites do Princípio Inquisitório na Jurisdição Voluntária”, Petrony, p. 96. [2] António José Fialho, obra citada, pp. 67-68. [3] No sentido de que “como bem se compreende, exige-se que o interessado na constituição forçada do arrendamento exija pedido nesse sentido”, cfr., Nuno de Salter Cid, Código Civil Anotado, Livro IV Direito da Família”, Coord. de Clara Sottomayor, Almedina, p. 577-578. [4] Nuno de Salter Cid, local citado, p. 580.