TRANSAÇÃO
NÃO HOMOLOGAÇÃO
CONTEÚDO CONTRÁRIO A IMPOSIÇÃO LEGAL
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
CONCERTAÇÃO ENTRE AS PARTES
FINALIDADE MERAMENTE REGISTRAL
Sumário

I – Por incidir sobre matéria que está subtraída à disponibilidade das partes, não pode ser homologada uma transacção onde as partes outorgantes estabelecem/reconhecem a aquisição dos direitos ali em causa (nua propriedade e usufruto) por força de uma doação, com reserva de usufruto, que foi efectuada pelos réus ao autor, de forma verbal; tal doação está, por força da lei, ferida de nulidade, não sendo permitido às partes retirar direitos de um acto/negócio que a lei considera nulo e ao qual nega a produção dos efeitos referidos.
II – O interesse em agir – entendido como pressuposto processual cuja falta constitui excepção dilatória inominada – traduz-se, em linhas gerais, na circunstância de o autor ter uma necessidade justificada e razoável de recorrer aos tribunais para assegurar o seu direito, seja porque ele está a ser violado ou contestado (como sucede nas acções de condenação), seja porque ele só pode ser efectivado mediante recurso ao tribunal (como sucede nas acções constitutivas) ou seja porque existe uma situação de incerteza grave e objectiva na existência e definição do direito que reclame a intervenção judicial (como sucede nas acções de simples apreciação).
III – Estando em causa uma acção em que autor e réus – perfeitamente concertados entre si e (aparentemente) com o único propósito de obter uma sentença para efeitos de registo predial – reclamam o reconhecimento da nua propriedade e direito de usufruto, respectivamente, sobre determinados imóveis, reconhecendo cada uma das partes o direito da outra (celebrando, logo após os articulados, transacção com o mesmo conteúdo) e sem que resulte da alegação fáctica que trouxeram aos autos qualquer litígio ou conflito de interesses no que toca aos referidos direitos ou qualquer outro facto do qual se possa inferir uma situação de incerteza que, sendo grave e objectiva, pudesse justificar, em termos de razoabilidade, a necessidade de recorrer ao tribunal e sem que invoquem, sequer, qualquer dificuldade relevante no recurso aos meios extrajudiciais legalmente previstos para o efeito de obter o registo dos direitos em causa, impõe-se concluir pela inexistência de interesse em agir com a consequente absolvição da instância.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Rua ..., ..., ..., ... Coimbra veio instaurar acção contra BB e CC, residentes na Rua ..., Ribeiro ..., ... ..., formulando as seguintes pretensões:

- Que seja declarado – e os Réus condenados a reconhecerem – que o Autor é titular da nua propriedade sobre os imóveis que identifica no art.º 18.º da petição inicial desde o dia 25/12/1988;

- Que seja declarada como válida e real a doação, com reserva vitalícia de usufruto, a favor dos Réus, em 25/12/1988;

- Que os Réus sejam condenados a restituírem a posse dos referidos imóveis ao seu proprietário;

- Que sejam declaradas nulas quaisquer inscrições registais a favor dos Réus de aquisição da propriedade dos referidos imóveis;

- Que seja ordenado o registo dos usufrutos vitalícios a favor dos Réu BB e CC, e da nua propriedade;

- Que os Réus sejam condenados a reconhecer que nunca foram feitas alterações aos prédios em causa e que os referidos prédios urbanos não sofreram quaisquer alterações até hoje, nem quaisquer obras com excepção das obras naturais de manutenção e restauro.

Para fundamentar essas pretensões, alegou em resumo:

- Que em 25/12/1988, os Réus (pais do Autor) doaram-lhe verbalmente, com reserva de usufruto, os bens que estão identificados no art.º 18.º da p.i., tendo doado ao filho DD (irmão do Autor) os imóveis identificados no art.º 19.º da petição;

- Que não conseguiram até hoje formalizar tais doações porque não conseguem efectuar as correspondências dos artigos matriciais de 1931 com os actuais o que tem impedido o registo dos bens para posteriormente formalizar as referidas partilhas em vida e também porque, entretanto, os Réus se incompatibilizaram com o filho DD;

- Que, apesar disso, a posse dos bens foi, à data, imediatamente entregue ao Autor e ao seu irmão, pelo que o Autor vem exercendo a posse sobre os bens descritos no art.º 18.º desde 25/12/1988, à vista de todos e sem oposição de ninguém, razão pela qual invoca também a sua aquisição por usucapião.

Os Réus contestaram, aceitando os factos alegados pelo Autor, salvo no que toca ao prédio inscrito na União de freguesias ... e ... sob o n.º ...46, que, segundo os Réus e ao contrário do alegado na p.i., não foi doado a nenhum dos filhos, tendo em conta que apenas o adquiriram em 2010.

Concluem pela parcial procedência da acção e pedem em reconvenção:

a) Que seja declarado que o artigo matricial n.º ...46 da União de freguesias ... e ... é propriedade plena dos Réus;

b) Que o Autor seja condenado a reconhecer o direito de propriedade plena dos Réus sobre o artigo matricial n.º ...46 da União de freguesias ... e ... é propriedade plena dos Réus;

c) Que seja reconhecido o direito de usufruto vitalício e sucessivo a favor dos Réus, por o terem reservado para si, sobre todos os imóveis identificados em 46 da Reconvenção.

Findos os articulados, vieram as partes juntar aos autos transacção que haviam celebrado com o seguinte teor:


1.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que o Autor AA, adquiriu, em 25 de Dezembro de 1988, por doação que recebeu do Réus, a nua propriedade dos seguintes imóveis (descrições e matrizes actuais):

I) Artigo matricial urbano n.º ...5 da União de freguesias ... e ...;

II) Artigo matricial urbano n.º ...7 da União de freguesias ... e ...;

III) Artigo matricial urbano n.º ...16 da União de freguesias ... e ...;

IV) Artigo matricial rústico n.º ...30 da União de freguesias ... e ...;

V) Artigo matricial rústico n.º ...12 da União de freguesias ... e ...;

VI) Artigo matricial rústico n.º ...28 da União de freguesias ... e ...;


2.

As PARTES reconhecem, confessam e declaram que relativamente ao prédio rústico correspondente ao actual artigo matricial n.º ...28 da União de freguesias ... e ..., o mesmo encontra-se descrito e registado na totalidade a favor dos Réus, o que não invalida os factos aqui confessados e acordados entre as Partes.

3.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que o Autor AA, adquiriu, em 25 de Dezembro de 1988, em consequência da tal referida doação que recebeu do Réus, a nua propriedade do artigo matricial urbano n.º ...74 da União de freguesias ... e ..., ....

4.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que o Autor AA, adquiriu, em 25 de Dezembro de 1988, em consequência da tal referida doação que recebeu do Réus, a propriedade plena do artigo matricial rústico n.º ...51 da freguesia ..., ....

5.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que os imóveis referidos em 3 e 4 desta transacção já se encontram regulamente registados a favor do Autor em consequência da formalização da referida doação, quanto a estes imóveis, por escritura pública datada de 29 de Janeiro de 2013 (cf. documento n.º 14 da PI).

6.

As Partes reconhecem, confessam e declaram, pois, o Autor como dono e legítimo proprietário da nua propriedade dos imóveis identificados em 1. desta transacção.

7.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que os Réus têm o usufruto sucessivo e vitalício, desde 25 de Dezembro de 1988, sobre os seguintes bens:

I) Artigo matricial urbano n.º ...5 da União de freguesias ... e ...;

II) Artigo matricial urbano n.º ...7 da União de freguesias ... e ...;

III) Artigo matricial urbano n.º ...16 da União de freguesias ... e ...;

IV) Artigo matricial rústico n.º ...30 da União de freguesias ... e ...;

V) Artigo matricial rústico n.º ...12 da União de freguesias ... e ...;

VI) Artigo matricial rústico n.º ...28 da União de freguesias ... e ...;

B) Na freguesia ... e ..., Concelho ...:

I) artigo matricial urbano n.º ...74 da União de freguesias ... e ...;


8.

As Partes reconhecem, confessam e declaram os Réus já têm registado a seu favor o usufruto vitalício e sucessivo do artigo matricial urbano n.º ...74 da União de freguesias ... e ..., ... que em consequência da formalização da referida doação, quanto a estes imóveis, por escritura pública datada de 29 de Janeiro de 2013 (cf. documento n.º 14 da PI).

9.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que não só não conseguem efectuar a correspondência entre os artigos matriciais existentes nos documentos juntos aos presentes autos e as actuais matrizes, como também diversos daqueles prédios não estão na realidade descritos nas Conservatórias do Registo Predial competente, ao contrário do que os referidos documentos estabelecem, devendo certamente tratar-se de lapso que nunca foi rectificado ao longo destes quase cem anos.

10.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que os Réus são os únicos proprietários plenos do artigo matricial n.º ...46 da União de freguesias ... e ..., Coimbra.

11.

As Partes Reconhecem, confessam e declaram que não há qualquer pagamento a efectuar entre si por conta dos presentes autos ou transacção.

12.

As Partes reconhecem, confessam e declaram que os imóveis em crise não sofreram até aos dias de hoje qualquer tipo de alteração, com excepção de obras de limpeza, conservação e/ou restauro, bem como que as suas áreas não estão medidas com rigor até ao momento.

13.

As custas e demais encargos com o processo em dívida a juízo serão suportadas em partes iguais, sem prejuízo da aplicação do artigo 14º-A alínea d) do RCP.

14.

Autor e Réus renunciam desde já ao direito de recurso da sentença homologatória da presente transação.

Por decisão proferida em 03/04/2024, foi recusada a homologação da referida transacção, ao mesmo tempo que se determinou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a falta de interesse em agir.

O Autor veio interpor recurso. Tal recurso não foi admitido por se ter entendido que a decisão não era susceptível de apelação autónoma, decisão que veio a ser confirmada por decisão desta Relação no âmbito de reclamação apresentada ao abrigo do disposto no art.º 643.º do CPC.

Entretanto, Autor e Réus vieram, em conjunto e no mesmo requerimento, pronunciar-se sobre a falta de interesse agir, pugnando pela existência desse interesse e dizendo, em resumo, que, à data de entrada da p.i., existia efectivamente um litígio entre as partes na medida em que o Autor entendia que os seus pais já não reconheciam o seu direito e, além do mais, há pelo menos um prédio da lista que o Autor apresenta em relação ao qual os Réus não aceitam que tenha sido transmitido ao Autor.

Foi então proferido despacho saneador – em 21/06/2024 – onde se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir com a consequente absolvição dos Réus e do Autor reconvindo da instância.

Inconformados com a decisão, vieram os Réus interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

Não foi apresentada resposta ao recurso.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se a decisão que recusou a homologação da transacção está ferida de nulidade por falta de fundamentação;

· Saber se estão (ou não) reunidas as condições necessárias para homologar a transacção;

· Saber se está (ou não) verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir.


/////

III.

Apreciemos o objecto do recurso.

Conforme resulta das alegações, o presente recurso é direccionado, não só à decisão que julgou verificada a excepção de falta de interesse em agir (com a consequente absolvição dos Réus e do Autor da instância), mas também à decisão que recusou a homologação da “transacção” celebrada entre as partes.


*

Comecemos pela decisão que recusou a homologação da transacção.

Para recusar tal homologação, considerou a decisão, no essencial, que, na situação fáctica desenhada nos autos, não se configurava a existência de qualquer conflito entre as partes, o que confluía na inutilidade de recurso à presente acção para lograr aquilo que na verdade pretendiam e que se traduzia apenas em obter a inscrição matricial e o registo em seu nome dos prédios cuja nua propriedade e usufruto pretendem ver reconhecidos. Conclui dizendo que “Não deve ser homologada uma transação judicial em que as partes, por sua única e exclusiva vontade, subtraem à apreciação jurisdicional os requisitos da usucapião, obtendo validação judicial quanto à aquisição ex novo de determinados prédios, eliminando, assim, por via indireta, o acatamento de condicionalismos legais e administrativos”.

Discordando dessa decisão, os Apelantes começam por invocar a sua nulidade por falta de fundamentação, mais sustentando, no essencial: que não existem obstáculos à homologação da transação; que existia efectivamente um conflito entre as partes; que a transacção foi celebrada por quem tinha legitimidade para o fazer e o seu objecto não é ilegal; que a transacção não traduz qualquer fraude legal, pois não se tentou contornar um qualquer condicionalismo legal ou administrativo urbanístico ou de ordenamento do território ou neutralizar um qualquer dispositivo legal como acontecia no caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/03/2016 no qual a decisão se terá baseado e que o que aqui está em causa é, no fundo, homologar um contrato de doação com reserva de usufruto sucessiva e vitalícia a favor dos doadores, sendo certo que o reconhecimento de tal direito de propriedade através da aquisição originária da usucapião apenas havia sido invocado a título subsidiário.

Apreciemos.

No que toca à nulidade da decisão, estamos convictas que ela não está configurada.

É certo que, conforme preceitua a alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

No entanto, conforme vem sendo entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[1], a verificação dessa situação, enquanto causa geradora da nulidade da sentença, pressupõe a falta, em absoluto, de qualquer fundamentação (seja ela de facto ou de direito) ou uma deficiência de fundamentação de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”. Conforme dizia Alberto dos Reis[2], «O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade».

Os vícios susceptíveis de determinar a nulidade da sentença têm que ser vícios cuja gravidade seja susceptível de afectar o valor intrínseco e formal da sentença; não estão em causa, portanto, meras deficiências da fundamentação, mas sim circunstâncias mais graves que retiram à sentença a credibilidade e legitimidade que lhe deve ser inerente. As meras deficiências e insuficiências ou a mediocridade da fundamentação não têm idoneidade ou gravidade bastante para determinar a nulidade da sentença; o que determina essa nulidade é a total inexistência dessa fundamentação ou uma deficiência da fundamentação que seja de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”, ou seja, por não permitir, de todo e em absoluto, perceber as razões que conduziram à decisão.

Ora, pensamos não ser esse o caso da decisão em análise.

A decisão em questão poderá não conter uma fundamentação exuberante e poderá até estar errada, mas isso não equivale a dizer que não esteja fundamentada ao ponto de se concluir pela sua nulidade. Ainda que de forma sucinta, e independentemente da questão de saber se o fez ou não de forma acertada (questão que não releva para efeitos de nulidade da sentença e apenas traduz erro de julgamento), a decisão enunciou as razões pelas quais recusou a homologação da transacção, dizendo: que os articulados não evidenciavam a existência de qualquer conflito entre as partes; que, tendo em conta os objectivos pretendidos pelas partes (obter a inscrição matricial e o registo em seu nome dos prédios cuja nua propriedade e usufruto pretendem ver reconhecidos), era inútil o recurso à acção e que não deveria ser homologada uma transação judicial em que as partes, por sua única e exclusiva vontade, subtraem à apreciação jurisdicional os requisitos da usucapião, obtendo validação judicial quanto à aquisição ex novo de determinados prédios, eliminando, assim, por via indireta, o acatamento de condicionalismos legais e administrativos.

Não se configura, portanto, a apontada nulidade.

Quanto ao mais, ou seja, quanto à questão de saber se a transacção deve (ou não) ser homologada, também nós entendemos que não; a transacção não está em condições de poder ser homologada.

Vejamos.

Em primeiro lugar, cabe dizer que a aludida “transacção” nem sequer poderá, em bom rigor, ser qualificada como tal.

Segundo o disposto no n.º 1 do art.º 1248.º do CC, a transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (concessões que, conforme previsto no n.º 2, podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido). A transacção pressupõe, portanto, duas coisas essenciais: a existência de um litígio entre as partes (pode ser um litígio já pendente em juízo ou não, mas tem que existir um litígio) e recíprocas concessões das partes.

O litígio – que é pressuposto necessário da existência de uma transacção – traduz, em linhas gerais, “...uma controvérsia entre as partes (...) uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la[3], ou dizendo de outro modo e utilizando as palavras de Alberto dos Reis[4], “...um conflito de interesses cujo tratamento jurídico é duvidoso ou incerto”.

Ora, na situação dos autos, não existe um verdadeiro litígio ou conflito de interesses que a transação tivesse solucionado, nem esta envolveu qualquer concessão das partes no que toca às pretensões a que cada uma delas se arrogava.

 Com efeito, lendo a petição inicial (onde é formulado o pedido da acção) e a contestação/ reconvenção (onde é formulado o pedido reconvencional), facilmente se constata que não vem aí configurado ou “desenhado” qualquer litígio entre as partes, seja no que toca aos factos alegados, seja no que toca aos direitos que cada uma das partes pretende ver reconhecido (a nua propriedade do Autor em relação aos prédios que identifica no art.º 18.º da petição inicial e o direito de usufruto dos Réus em relação aos mesmos prédios, emergentes de uma doação efectuada pelos Réus ao Autor, bem como o direito de propriedade plena dos Réus sobre o artigo matricial n.º ...46 da União de freguesias ... e ...). Em nenhum dos articulados se faz referência ao facto de a outra parte ter violado ou negado, fosse de que forma fosse, os direitos que a outra reclama para si e nada se diz que aponte para existência de qualquer litígio ou conflito de interesses entre as partes; aquilo que os articulados evidenciam é que as partes estão em total sintonia, alegando ambas – sem qualquer divergência – a existência de uma doação (verbal) efectuada em 25/12/1988 pelos Réus ao Autor, com reserva de usufruto, tendo como objecto os imóveis descritos no art.º 18.º da p.i., pretendendo cada uma das partes, sem qualquer oposição da outra, o reconhecimento desses direitos (a nua propriedade para o Autor e o usufruto para os Réus) apenas para o efeito (sendo certo que, nas situações descritas, não alcançamos qualquer outro objectivo) de obter uma sentença que lhes permita levar ao registo a aquisição desses direitos, o que evidencia, desde logo, a falta de interesse em agir, como se explicará mais adiante. Note-se que, apesar de os Réus terem contestado o alegado pelo Autor em relação ao prédio inscrito sob o art.º ...46 e apesar de os Réus pedirem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre esse imóvel, isso não tem aqui qualquer relevância, uma vez que o Autor nunca se arrogou qualquer direito sobre esse imóvel (em relação a esse imóvel, o Autor apenas alegava – de forma totalmente desnecessária, aliás – que havia sido doado ao seu irmão) e, pelas mesmas razões, não releva, para os efeitos que aqui estamos a tratar, a circunstância de a transacção ter incluído o reconhecimento de que os Réus eram proprietários plenos desse imóvel. Mesmo no que toca a esse imóvel não há qualquer indicio de litigio ou conflito de interesses entre as partes.

É certo, por outro lado, que a transacção celebrada limitou-se a consignar as posições que as partes já haviam assumido nos articulados e que eram totalmente convergentes, com reconhecimento dos direitos que cada uma das partes reclamava – sem qualquer oposição ou contestação da outra – e que haviam sido adquiridos pela alegada doação, com reserva de usufruto, que havia sido efectuada em 25/12/1988.

Ou seja, além de não existir – não estava configurado nos autos, tendo em conta a posição assumida pelas partes e os factos que haviam alegado – qualquer litígio efectivo que pudesse ser solucionado através de uma transacção, a transacção celebrada também não envolveu, em rigor, qualquer concessão ou cedência de nenhuma das partes, como é suposto e necessário que aconteça para que se possa falar em transacção; cada uma das partes confessou o pedido formulado pela outra e cada uma delas obteve o total reconhecimento dos direitos que reclamava e que não eram objecto de qualquer controvérsia ou litígio pois é certo que nenhuma delas punha em causa os direitos da outra.

É certo – como dizem os Apelantes – que o argumento utilizado pela decisão recorrida quando diz que “Não deve ser homologada uma transação judicial em que as partes, por sua única e exclusiva vontade, subtraem à apreciação jurisdicional os requisitos da usucapião, obtendo validação judicial quanto à aquisição ex novo de determinados prédios, eliminando, assim, por via indireta, o acatamento de condicionalismos legais e administrativos” (e que corresponde ao sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 08/03/2016[5]) não tem inteira aplicação à situação dos autos (o que estava em causa na situação tratada nesse acórdão eram os condicionalismos legais e administrativos que impediam a divisibilidade do prédio e que se pretendiam ver ultrapassados com a confirmação judicial – por via da homologação de uma transacção – de aquisição de determinadas parcelas por usucapião sem qualquer apreciação jurisdicional dos requisitos da usucapião).

De qualquer forma e ainda que não seja idêntica à que foi tratada no referido Acórdão, a verdade é que, nas circunstâncias descritas, a situação dos autos não deixa de poder ser encarada como uso anormal do processo – com aparente simulação processual – para o efeito de atingir um fim não permitido na lei, ou seja, com o objectivo de obter uma sentença que homologue o acordo (pré-existente) das partes e reconheça os direitos a que se arrogam (em total sintonia e sem qualquer divergência) para o efeito de procederem ao registo desses direitos (com a aparente convicção de que tal sentença facilitaria o registo que, com recurso a outros meios legalmente previstos, seria mais difícil, mais moroso ou mais caro), o que, à luz do disposto no art.º 612.º do CPC, não deve ser permitido. Na verdade, e bem vistas as coisas, a situação que ocorre nos autos – instauração de acção judicial por uma das partes contra a outra, apresentação de articulados com formulação das pretensões de cada uma das partes (em total sintonia e sem evidência ou indício de qualquer litígio, conflito de interesses ou situação de incerteza no que toca à definição dos direitos em causa, não obstante algumas discordâncias pontuais - no que toca designadamente ao prédio inscrito sob o art.º ...46.º - que, eventualmente, até terão sido introduzidas para credibilizar a contestação, mas sem que se evidencie, ainda assim, qualquer conflito de interesses entre as partes, tendo em conta que o Autor nunca se arrogou a titularidade de qualquer direito sobre esse imóvel) com imediata celebração de transacção que reconhece todas essas pretensões – equivale, na prática, a um pedido conjunto das partes ao tribunal – mediante acção que instauram, conjuntamente, para esse efeito – para que homologue e confirme as suas declarações e reconheça os direitos que elas entendem pertencer-lhe, sem que exista verdadeiramente um qualquer litigio que se pretendesse solucionar por via de confissão, desistência ou transacção. Ora, não estando essa possibilidade legalmente prevista e não sendo admitida, também não poderá ser permitido que os mesmos objectivos sejam alcançados por via da homologação da aludida transacção ou desistência.

De qualquer forma e independentemente dessa questão, a transacção – ou confissão – em causa não podia ser homologada.

Segundo o disposto no n.º 3 do art.º 290.º do CPC, cabe ao juiz examinar se a transacção (ou confissão) é válida, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, homologando-a caso conclua pela sua validade e recusando, naturalmente, a sua homologação caso conclua pela sua invalidade.

Dispõe, por outro lado, o n.º 1 do art.º 289.º do CPC que “Não é permitida confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”. E, segundo disposto no art.º 1249.º “As partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos”.

É indiscutível, portanto, que o tribunal tem que controlar o objecto da transacção (ou confissão) e a sua validade. Conforme refere M. Teixeira de Sousa[6], o objecto destes negócios processuais “... não pode ser indisponível (art. 289.º) e tb não pode ser impossível, indeterminável, contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (art. 280.º e 1249.º CC) (...) O objecto da desistência e da confissão do pedido e da transacção tb não pode corresponder a algo que, em abstracto, não possa ser tutelado nos tribunais, por ser estranho à lei reguladora do mérito da causa (...) Noutros termos: o tribunal só pode homologar o negócio processual se, em abstracto, o seu objecto puder ser objecto de um processo e de uma decisão condenatória ou absolutória do tribunal (...)”.

Vejamos o que acontece no caso.

Aquilo que as partes fizeram na transacção foi reconhecer que as partes adquiriram os direitos em causa (nua propriedade, no caso do Autor e usufruto, no caso dos Réus) por doação que, com reserva de usufruto, havia sido feita pelos Réus ao Autor em 25/12/1988. Note-se que os Réus não declaram – como poderiam ter feito – doar ao Autor (nesse momento e com efeitos reportados à data da transacção) os imóveis em causa, com reserva de usufruto, nem o Autor declarou aceitar essa doação; o que fizeram foi reconhecer que os direitos foram adquiridos através da doação feita em 1988, reportando, portanto, a essa data a aquisição desses direitos. E, portanto, se essa transacção fosse homologada, o Tribunal estaria a declarar – por via dessa homologação – que as partes haviam adquirido esses direitos por via dessa doação.

Sucede que as partes não adquiriram quaisquer direitos por via dessa doação porque, como resulta claramente dos autos e dos respectivos articulados, essa doação foi feita verbalmente, quando é certo que está sujeita, por lei, a forma escrita (actualmente, e por força do disposto no n.º 1 do art.º 947.º do CC, tem que ser celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado e à data em que alegadamente foi efectuada – 1988 – estava sujeita a escritura pública). Tal doação é, portanto, nula, nos termos previstos no art.º 220.º do CC e, nessa medida, não constituía fonte válida para aquisição de quaisquer direitos. Nessas circunstâncias, só por via da usucapião poderia ser reconhecida a aquisição dos direitos aqui em causa, sendo certo, no entanto, que – como os Apelantes referem, de forma enfática, nas suas alegações – a usucapião apenas foi invocada nos autos a título subsidiário e a transacção não lhe faz qualquer referência. Ou seja, aquilo que fez constar da transacção é que as partes adquiriram os direitos em causa por via da referida doação de 1988 e o acordo/negócio com esse conteúdo é contrário à lei e não está na disponibilidade das partes porque não lhes é permitido retirar direitos de um acto/negócio que a lei considera nulo e ao qual nega a produção dos efeitos referidos. Conforme refere M. Teixeira de Sousa[7], “Se a acção se fundar num negócio jurídico unilateral de uma das partes ou num contrato celebrado entre as partes, o tribunal não pode considerar irrelevante a sua nulidade, dado que esta é matéria subtraída à disponibilidade das partes (art. 289.º, n.º 1). P. ex.: o autor reivindica um imóvel com base num escrito particular; se o réu confessar o pedido, o tribunal não pode homologar esta confissão”.

A referida transacção – ou confissão dos pedidos – não podia, portanto, ser homologada.


*

Analisemos agora a questão referente à existência (ou não) de interesse em agir que esteve subjacente à decisão que, com fundamento na falta desse interesse, veio a determinar a absolvição dos Réus da instância.

Embora a lei não lhe faça referência expressa, o interesse processual ou interesse em agir tem sido encarado, pela doutrina e jurisprudência, como um pressuposto processual, correspondendo a falta desse interesse a uma excepção dilatória inominada que, como tal, determina a absolvição da instância[8].

No sentido de caracterizar o referido pressuposto processual, dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[9] que ele se traduz “na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, significando, em suma – como refere Pais do Amaral[10] –, que o direito do demandante está carecido de tutela judicial e que, como tal, tem necessidade de se socorrer dos tribunais, instaurando o respectivo processo.

Como esclarecem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[11], “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais que isso”.  Em sentido semelhante, afirma Manuel de Andrade[12] que “não se trata de um necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.

Conforme se diz no Acórdão do STJ de 25/01/2024[13], está em causa um pressuposto processual “... cuja exigência visa evitar que a máquina judiciária seja posta em marcha para tramitação de acções frívolas ou inúteis, dado que isso acarretaria uma sobrecarga absolutamente injustificada da actividade dos tribunais”, exigindo-se, nessa medida, um efectivo interesse no recurso ao tribunal para tutela e defesa dos seus interesses, devendo ser visível que a propositura da acção – e a possibilidade da sua procedência – proporciona uma utilidade prática ao autor.

Reafirmando o que já se disse noutros acórdãos relatados pela aqui relatora[14], a falta de interesse em agir reportar-se-á, portanto, às situações em que, não obstante ser titular da relação jurídica controvertida que invoca e não obstante ser titular do direito a que se arroga, o autor não tem uma necessidade justificada e razoável de recorrer aos tribunais para assegurar o seu direito ou para satisfazer a sua pretensão (como será o caso, por exemplo, da pessoa que propõe uma acção para ver declarado o seu direito, quando esse direito nunca foi contestado pelas pessoas contra quem propõe a acção e sem que exista outra razão que imponha a necessidade de ver reconhecido judicialmente esse direito) e, portanto, a decisão que viesse a julgar a acção procedente seria inútil ou perfeitamente dispensável porque, na realidade, não determinaria para o autor um qualquer benefício ou proveito prático que, de algum modo, justificasse a demanda do réu e a actividade do tribunal.

Esse interesse em agir manifesta-se e concretiza-se de formas diferentes consoante o tipo de acção que está em causa. Nas acções de condenação, ele resulta da violação do direito do autor por parte do réu – ou, pelo menos, da previsão dessa violação – concretizando-se, portanto, na necessidade de o autor obter a reintegração do seu direito; nas acções constitutivas, tal interesse radicará na circunstância de estar em causa um direito potestativo que não possa ser exercido mediante simples acto unilateral do seu titular, concretizando-se, por isso, na necessidade de recorrer ao tribunal para efectivar esse direito; nas acções de simples apreciação tal interesse resultará da circunstância de existir uma situação de incerteza que, além de ser objectiva (resultando, portanto, de factos ou circunstâncias exteriores ao autor e que não se reconduzam a meras dúvidas, apreciações ou valorações subjectivas), seja grave (por ser susceptível de causar prejuízo ao autor), concretizando-se, portanto, na necessidade – justificada, razoável e fundada – de o autor solicitar a intervenção do tribunal com vista à resolução/definição daquela situação[15].

Regressando ao caso dos autos e analisando os seus contornos à luz das considerações efectuadas, não poderemos deixar de concordar com a decisão recorrida quando entendeu estar configurada a falta de interesse em agir, não só do Autor (em relação à acção), mas também dos Réus (em relação à reconvenção).

Com efeito, lendo a petição inicial (onde é formulado o pedido da acção) e a contestação/ reconvenção (onde é formulado o pedido reconvencional), facilmente se constata que não vem aí configurado ou “desenhado” qualquer litígio entre as partes, seja, no que toca aos factos alegados, seja no que toca aos direitos que cada uma das partes pretende ver reconhecido (a nua propriedade dos Autores em relação aos prédios que identifica no art.º 18.º da petição inicial e o direito de usufruto dos Réus em relação aos mesmos prédio, emergentes de uma doação efectuada pelos Réus ao Autor).

Na verdade, lendo os referidos articulados, facilmente se constata que neles não é feita referência ao facto de a outra parte ter violado ou negado, fosse de que forma fosse, os direitos que a outra reclama para si. O Autor alegou a existência de uma doação com reserva de usufruto que lhe havia sido efectuada pelos Réus (seus pais) em relação aos prédios que identifica e, em consequência, reclama o reconhecimento da nua propriedade sobre esses prédios, reconhecendo que aos pais (os Réus) pertence o respectivo usufruto e nada alegou que aponte para o facto de o seu direito estar a ser violado, negado ou posto em causa pelos Réus, alegando mesmo estar convicto de que os Réus não o querem prejudicar (e, de facto, nada alegou que pudesse apontar para tal) e que, assim que receberem a citação de imediato procurarão chegar a acordo com o Autor (como, de facto, aconteceu, já que, logo após os articulados, vieram celebrar transação onde consignaram os direitos que haviam invocado nos respectivos articulados). O mesmo aconteceu na contestação/reconvenção, onde os Réus reconhecem o direito reclamado pelo Autor, invocam e reclamam o reconhecimento do seu direito de usufruto (que já havia sido alegado e reconhecido pelo Autor), sem que se retire do referido articulado a existência de qualquer conflito entre as partes no que toca aos referidos direitos. Ou seja, as partes estão perfeitamente de acordo sobre os direitos que pertencem a cada uma delas, reconhecem esses direitos e não fazem alusão a qualquer litigio ou desacordo cuja resolução reclamasse a intervenção judicial. Reafirmamos – como já se disse supra – que o que se disse não sofre qualquer alteração pelo facto de os Réus terem contestado o alegado pelo Autor em relação ao prédio inscrito sob o art.º ...46, uma vez que o Autor nunca se arrogou qualquer direito sobre esse imóvel (em relação a esse imóvel, o Autor apenas alegava – de forma totalmente desnecessária, aliás – que havia sido doado ao seu irmão). Naquilo que efectivamente releva e está em causa nos autos, as partes estão, como se disse, perfeitamente de acordo sem registo ou indício de qualquer litígio ou conflito em relação aos direitos cujo reconhecimento é peticionado.

Conforme dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[16], “Se ninguém contestou o direito do dono do terreno, nem violou por qualquer forma as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a falta de interesse na acção que ele proponha para fazer reconhecer o seu direito de propriedade pelos proprietários vizinhos”. É essa a situação dos autos: não resultando da petição inicial que os Réus tenham contestado ou violado por qualquer forma os direitos (nua propriedade) reclamados pelo Autor e não resultando da contestação que o Autor tenha contestado ou violado por qualquer forma os direitos (de usufruto) reclamados pelos Réus, nenhuma deles tem interesse em pedir contra o outro o reconhecimento desses direitos. 

É certo, portanto, que, desse ponto de vista, não existe nenhuma necessidade justificada e razoável de recorrer aos tribunais para assegurar esses direitos e satisfazer as pretensões de Autor e Réus, pois é certo que nenhuma das partes contesta e põe em causa os direitos da outra.

Resta saber se existe algum outro interesse relevante das partes que justifique a necessidade de obter o reconhecimento judicial dos seus direitos.

No âmbito das acções de simples apreciação – onde a presente acção também pode ser inserida, não obstante também sejam formulados pedidos de cariz condenatório  – o interesse em agir pressupõe, como já se disse, a existência de uma situação de incerteza que, além de ser objectiva (resultando, portanto, de factos ou circunstâncias exteriores ao autor e que não se reconduzam a meras dúvidas, apreciações ou valorações subjectivas), seja grave (por ser susceptível de causar prejuízo ao autor), concretizando-se, portanto, na necessidade – justificada, razoável e fundada – de o autor solicitar a intervenção do tribunal com vista à resolução/definição daquela situação.

Mas, mesmo sob esse ponto de vista, não detectamos nos autos – tendo em conta a matéria alegada – qualquer interesse relevante que possa justificar o recurso aos tribunais.

Com eventual relevância para essa matéria, o Autor apenas aludiu a dificuldades de registo – para posterior formalização das doações – resultantes do facto de não conseguirem efectuar as correspondências dos artigos matriciais de 1931 com os actuais. Nada mais se alegou que possa ser relevante para efeitos de considerar verificado o interesse em agir.

Mas a verdade é que essas alegadas dificuldades não criam qualquer situação de incerteza, muito menos objectiva e grave, uma vez que tais dificuldades não obstaram a que o Autor – e os Réus – identificassem os concretos imóveis que alegam ter sido doados ao Autor com reserva de usufruto para os Réus e, portanto, não se percebe – sendo que tal não foi alegado e concretizado – quais as dificuldades que poderiam (ou poderão) existir para obter o registo.

Na verdade, o que as partes pretendem (de comum acordo, como se retira dos termos dos respectivos articulados, e da “transacção” que vieram celebrar logo de seguida e que reproduz a posição constante dos articulados) é obter um título (sentença) que lhes permita registar os imóveis em causa (que estão perfeitamente identificados), ali fazendo inscrever a aquisição do direito de propriedade a favor do Autor e o direito de usufruto a favor dos Réus.

Sem questionar a legitimidade do interesse das partes em proceder a tal registo (no pressuposto de que tenha existido, efectivamente, aquisição dos direitos por usucapião, pois é certo que a alegada doação verbal seria nula e, portanto, não seria fonte legítima de aquisição de direitos), a verdade é que, não existindo qualquer litígio entre as partes e não emergindo dos autos e das alegações constantes dos articulados qualquer situação de incerteza acerca desses direitos, não existe qualquer interesse legítimo e razoável na instauração de uma acção judicial. Com efeito, se é certo que existem meios adequados e apropriados para obter o registo em causa – como sejam a escritura de justificação notarial, nos termos dos artigos 89.º e segs. do Código de Notariado ou o processo de justificação previsto nos artigos 116.º e segs. do Código de Registo Predial – a verdade é que nada foi alegado que, de alguma forma, nos induza a concluir pela existência de qualquer dificuldade relevante no recurso a esses meios para o efeito de alcançar o efeito pretendido e que, nessa medida, seja susceptível de colocar as partes em situação de objectiva, justificada e razoável necessidade de recorrer a juízo para obter a tutela dos seus direitos.

Aceitamos como correcta a alegação dos Apelantes constante da conclusão 24.ª, quando dizem que “O interesse em agir, na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo, verificar-se-á em caso de indisponibilidade de outros expedientes (extra-judiciais) de realização da tutela judiciária pretendida, seja porque tais meios, na realidade, não existem, seja porque, existindo, se encontram já exauridos”. O que não aceitamos é a alegação constante da conclusão 25.ª, onde se diz que “As Partes não conseguiam através dos meios extra-judiciais registar os imóveis em discussão, motivo pelo qual recorreram à tutela judicial para verem as suas pretensões concretizadas”. E não aceitamos esta alegação porque nada se alegou na petição inicial ou na contestação que permitisse afirmar – como agora afirmam os Apelantes (em termos genéricos e sem qualquer concretização) – que tivessem tentado, de alguma forma, registar os imóveis em causa e que por alguma razão não o tivessem conseguido.

Veja-se, a propósito desta matéria e para terminar, o Acórdão desta Relação de 26/04/2022[17] (subscrito pela aqui relatora na qualidade de adjunta), em cujo sumário se escreveu o seguinte:

I – Visando o peticionado na ação e na reconvenção o reconhecimento/declaração de ter cada uma das partes adquirido por usucapião uma metade concreta, especificada, de um prédio rústico, sem incerteza quanto a tal aquisição ou litígio a respeito – antes resultando total sintonia de posições –, no objetivo comum de alcançar um documento (sentença) que permita registar a aquisição do direito de propriedade invocado no processo, tem de concluir-se pela inexistência de interesse em agir de autores e reconvintes, com a decorrente absolvição da instância (...).

II – Com efeito, trata-se de pedido caraterístico das ações de simples apreciação positiva, que não prescindem de uma situação de incerteza objetiva quanto à existência do direito, a qual não se verifica no caso.

III – As partes podiam socorrer-se do processo de justificação previsto nos arts. 117.º-B a 117.º-O do Código de Registo Predial para obtenção de documento que servisse de base ao registo da aquisição do direito, pelo que tinham ao seu alcance um meio extrajudicial para obtenção do pretendido na ação, a qual se queda desnecessária”.

Entendemos, portanto, em face de tudo o exposto, que não existe, de facto, qualquer interesse em agir, que possa legitimar e justificar a propositura desta acção[18].

Resta concluir, em face do exposto, pela improcedência do recurso e pela confirmação das decisões aqui em causa: a decisão que recusou a homologação da transacção e a decisão que, julgando verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir, absolveu os Réus e o Autor reconvindo da instância.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

IV.
Em face de tudo o exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão que recusou a homologação da “transacção” celebrada entre as partes, bem como a decisão que julgou verificada a excepção de falta de interesse em agir e determinou a absolvição dos Réus e do Autor da instância.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                   (Chandra Gracias)

                                                  (Maria João Areias) 


[1] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3.º edição revista e actualizada, pág. 856.
[4] Ob. cit., pág. 494.
[5] Proferido no processo n.º 7240/11.5TBCSC.L1-1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] CPC online, anotação ao art.º 290.º, no Blog do IPPC.
[7] CPC online, já citado, anotação ao art.º 290.º.
[8] Cfr. designadamente, os Acórdãos do STJ de 25/01/2024 (processo n.º n.º 2709/22.9T8PTM.E1.S1), de
 27/10/2022 (processo n.º 82/19.1T8STB.E1.S1) e de 19/12/2018 (processo n.º 742/16.9T8PFR.P1.S1), todos disponíveis em http://dgsi.pt.
[9] Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 179.
[10] Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 113.
[11] Ob. Cit. págs. 180 e 181.
[12] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, págs. 79 e 80.
[13] Proferido no processo n.º 2709/22.9T8PTM.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[14] Cfr. designadamente, o Acórdão de 08/07/2021, proferido no processo n.º 863/20.3T8CTB-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., págs. 182 a 187; Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 80 a 82; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 252 e Pais do Amaral, ob. cit. págs. 114 a 116.
[16] Ob. cit., pág. 180.
[17] Proferido no processo n.º 82/21.1T8ALD.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[18] Neste sentido se pronunciaram também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/01/2017, 27/05/2010, 06/11/2008 e 07/04/2005 que, recaindo sobre situações idênticas às dos autos, foram proferidos nos processos n.ºs 3583/16.0T8SNT.L1-2, 2003/08.8TBBNV.L1-8, , 5636/2008-2 e 469/2005-8, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.