I – A dispensa de liquidação prevista no art.º 171.º do CIRE não corresponde a direito ou faculdade que a lei ponha na disponibilidade do devedor; para que a liquidação possa ser dispensada é necessário que tal dispensa seja solicitada ao juiz pelo administrador da insolvência com o prévio acordo do devedor.
II – Tendo em conta a sua natureza e os objectivos ou finalidades que lhe estão subjacentes, não se justifica e não há lugar a qualquer dispensa de liquidação num momento em que já foram realizadas e concluídas as diligências com vista à venda ou adjudicação do bem (ou bens) integrado na massa e em circunstâncias que, na prática, equivalem ao exercício de um direito de remição que o legislador negou e não reconheceu ao insolvente.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
Nos autos de insolvência referentes a AA e BB, casados entre si e melhor identificados nos autos – cuja insolvência foi declarada por sentença proferida em 04/05/2023 – foi oportunamente (em 03/10/2023) apreendido para a massa o bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...00 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...42 do concelho ... e freguesia ....
Por despacho de 12/12/2023, foi determinado que os autos prosseguissem com a liquidação do activo.
Em 09/01/2024, o Sr. Administrador veio informar que, após audição ao credor com garantia real sobre o prédio apreendido a favor da Massa, nos termos do art.º 164 do CIRE, havia avançado com a respectiva liquidação, estando a decorrer desde 18/12/2023 e até 16/01/2024 tentativa de venda do prédio na modalidade de leilão electrónico
Mediante requerimento apresentado em 22/02/2024, vieram os Insolventes informar que, estando cumpridos os pressupostos estabelecidos na primeira parte do n.º 1 do artigo 171 do CIRE e tendo depositado o valor de 174.500,00€ nos termos aí determinados, haviam solicitado ao Sr. Administrador de Insolvência que solicitasse ao tribunal a dispensa de liquidação nos termos previstos no n.º 2 da citada disposição legal.
O Sr. Administrador respondeu, dizendo que os Insolventes não haviam manifestado, em momento anterior ao despacho de 12/12/2023, qualquer intenção de requerer a dispensa de liquidação e que, à data em que vieram solicitar essa dispensa (em 22/01/2024), já havia sido obtida proposta para aquisição do imóvel no valor de 184.100,00€, que veio a ser adjudicado nesses termos. Nessas circunstâncias, por ser intempestiva e porque não salvaguarda os interesses da Massa e respectivos credores, recusou o pedido dos devedores a quem solicitou a entrega do imóvel no prazo de dez dias, sendo certo que não entregaram o imóvel e vieram, ao invés, proceder ao depósito da quantia de 174.500,00€.
Conclui dizendo que não fará qualquer pedido de dispensa da liquidação, requerendo a notificação dos devedores para procederem à entrega do imóvel.
Os devedores responderam, reafirmando a sua pretensão no sentido de dispensa da liquidação e pedindo que seja anulada a adjudicação do imóvel por negociação particular.
A adquirente do imóvel – A... Unipessoal, Ld.ª – veio também aos autos, sustentando não haver fundamento legal para a pedida anulação da adjudicação, sendo certo que já procedeu ao depósito de 20% do preço.
Os devedores vieram reafirmar o pedido de suspensão da liquidação, acrescentando que estão por explicar as razões que levaram o Sr. AI a aceitar a proposta de terceiros no dia 15.02.24, quando sabia pelo menos desde o dia 30.01.24 do pedido de dispensa de liquidação, bem como a razão que o levou a violar o direito dos Insolventes à sua casa de morada de família e a decidir a questão de forma unilateral sem ouvir o Tribunal.
Os Insolventes e o Sr. Administrador reafirmaram as suas posições em requerimentos posteriormente apresentados.
Foi então proferido despacho – em 25/09/2024 – onde se decidiu indeferir o pedido de dispensa de liquidação (considerando-se prematura a apreciação de qualquer questão relacionada com a nulidade da venda, na medida em que não estava ainda concretizada qualquer venda).
Em desacordo com a decisão, os devedores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes efetuaram ao Sr. º AI o pedido de dispensa de liquidação do prédio morada de família, por terem reunido ajuda de amigos que lhes emprestaram dinheiro exclusivamente para esse fim.
2. Cumprem os requisitos elencados, são pessoas singulares e a MI não compreende uma empresa.
3. Para se excluir da liquidação promovida pelos Administradores, é preciso a liquidação ser decidida na Assembleia do Relatório.
4. E apenas após, pode o devedor eventualmente estar em condições de poder requerer esta exceção na forma de liquidar (vender), não contribuindo uma isenção de venda porque existe pagamento, i.e. é uma dispensa da liquidação promovida pelo AI, (não resultado feliz a terminologia usada pelo legislador), mas sendo - em nosso entender - de fácil compreensão a dispensa prevista não ser uma “não venda”, uma isenção à venda.
5. Em parte alguma no art.º 171 do CIRE existe uma referência ao requisito de prazos no pedido, ou na doutrina consultada, ou sequer na jurisprudência pesquisada.
6. A única referência a prazo, é a de 8 dias para o devedor entregar o valor fixado, que depositaram nas contas da MI, expressamente indicando ao Sr.º AI o seu destino, uma vez que foram várias os amigos que os ajudaram, fazendo estes diretamente depósitos na conta da MI.
7. O Sr.º AI foi previamente - à pseudo-aceitação da proposta de terceiros - notificado pelos recorrentes dessa intenção, como o próprio reconheceu em requerimento enviado aos autos.
8. Não resulta da nossa interpretação do CIRE qualquer possibilidade de decisão por parte do AI, ainda que fosse por omissão, no não envio do requerimento referido na primeira parte do n.º 2 do artigo 171.
9. O artigo 171 é claríssimo seu n.º 1 (…) O juiz pode dispensar a liquidação da massa (…)”, não restando qualquer dúvida sobre quem o legislador atribui a competência de decisão, sendo os autores perentoriamente defenderem a premissa da decisão pelo juiz, não estando inclusive este vinculado ao requerimento do Sr. Administrador da Insolvência.
10. Segundo acórdão (Proc 108/17.3T8 LRA-O.C1 ) do Tribunal da Relação de Coimbra, a falta de solicitação de autorização da comissão de credores e/ou da comunicação ao credor com garantia real para a venda de bens da massa insolvente por negociação particular, a que aludem os art.ºs 161º, nº 1 e 4, e 164º, nº 2 do CIRE, constituem justa causa para a destituição do administrador judiciário nos termos do artº 56º, nº 1, também do CIRE.
11. Este pedido de autorização nunca aconteceu, aliás, esta negociação particular foi feita com convite a um ou dois credores, segundo o próprio AI.
12. Terminado o leilão, deveria o sr.º Administrador ter dando conta da sua decisão de adjudicar, ou não, o bem, pelos 174.500 euros da melhor proposta. Não o fez!
13. Cabendo ao AI promover a alienação dos bens que integram a massa insolvente (art.º 55º, n.º 1, al. a) ), a sua autonomia fica limitada, no entanto, quando está em causa à prática de atos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, para os quais necessita do consentimento prévio da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores (art.º 161º, n.ºs 1 e 2), in Proc 487/17.2T8 CHV-J.G1 Relator: Helena Melo
14. Por isso se exige que, neste caso e para prevenir eventuais fraudes, a comissão ou a assembleia de credores e o devedor sejam informados dos termos do negócio projectado, aquelas para prestarem o seu consentimento, este para exercer a faculdade que o art.º 161º, n.º 5 lhe confere (cfr. se defende no AC. do TRC de 09.05.2017, proc. 1735/16.1T8CBR-C.C1 que temos vindo a seguir de perto)..
15. A opção de venda por negociação particular, sem prazos sem anuncio é ilegítima.
16. Como se pode retirar do requerimento enviado pelo Sr. AI e dos documentos anexados, só aceitou a proposta de 184.100,00€ no dia 2024.02.15, quando sabia pelo menos desde o dia 2024.01.30 do pedido de dispensa de liquidação!
17. O Sr.º AI entendeu que não deveria aceitar o pedido porque segundo exigiu, deveriam os recorrentes entregar também uma indemnização de 5% sobre o preço de venda da pseudo-proposta no montante de 184.100,00€.
18. No caso, inexiste, como também o douto despacho recorrido reconhece, direito a tal indemnização, uma vez que, e desde logo, não foi depositado o valor total do preço da venda (cfr. Ac. N.º 141/14.7TBGMR-E.G1, do TRG.
19. Sendo ilegal e ofensiva a exigência do Sr.º AI do pagamento da referida indemnização exigida por este, e que os recorrentes recusaram pagar e determinou que este não acedesse na dispensa de liquidação.
20. Fundando por isso, entre outros, a sua decisão num fundamento ilegal por si só determinando dever ter aceitado o pedido.
21. Devendo com base no mesmo entendimento, o douto tribunal igualmente decidido dever ter o Sr. º AI aceite o pedido de dispensa de liquidação.
22. Igualmente porque ao referido fundamento se junta ainda o facto de o prédio em causa, proposto dispensar a liquidação pelos devedores ser a sua casa de família.
23. Enquanto bem especialmente relevante para o desenvolvimento e para a estabilidade pessoal de cada indivíduo, assim como da própria família enquanto grupo, a casa de morada desta serve essencialmente de meio para a realização e concretização dos mais variados direitos fundamentais, inclusive o direito à habitação, constitucionalmente protegido, cf, artº 65º da CRP.
24. Como tal, deveria, antes de mais, ter sido acautelado pelo Sr. AI este Direito Fundamental, quando foi notificado pelos devedores para dispensar a liquidação.
25. Não se conhecendo por um lado, quaisquer diligências preparatórias da liquidação, como a avaliação do bem, nunca poderia ter sido harmonizada a dispensa antes desta data (ou mesmo da referida pelo AI), por outro, parece desconhecer o Sr. AI a sua obrigação legal de entregar um plano de liquidação, que curiosamente até sanaria algumas questões em apreciação, previsto no artº 158 do CIRE, e pelo ponto 13 da sentença de insolvência.
26. Entendemos – ao contraria da decisão a quo - ser a falta de apresentação desse plano, e desobediência clara à sentença que o nomeia, é justa causa da destituição, como previsto no al. b) do artº 169 do CIRE.
Concluem pedindo:
Que seja alterada a decisão proferida no douto despacho por outra que aceite o pedido dos recorrentes de dispensa de liquidação do prédio casa de morada de família;
Que seja o Sr. Administrador destituído de funções atento o incumprimento – reiterado - do nº 1 do artº 158, como previsto no al. b) do artº 169 do CIRE.
Não houve resposta ao recurso.
II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste, no essencial, em saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários para dispensar a liquidação da massa nos termos pretendidos pelos Insolventes/Apelantes.
III.
A decisão recorrida enunciou como assentes/provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida a 04.05.2023 foi proferida sentença a declarar a insolvência de AA e BB.
2. Em 12.12.2023 foi proferido despacho a apreciar o relatório do Sr.º AI apresentado nos termos do artigo 155.º do CIRE, determinando que os autos prosseguiam para liquidação da massa insolvente.
3. Foi ouvido o credor com garantia real sobre o bem, nos termos do n.º 2 do art.º 164, tendo o mesmo informado um valor base de alienação de 216.000,00€ e um valor mínimo de 183.600,00 €, na modalidade de leilão electrónico.
4. Em 31/10/2023, foi notificado da venda, o Exmo. Senhor Mandatário dos Insolventes, tendo ainda sido questionado quanto a uma eventual intenção em exercerem o direito de remição por parte dos familiares dos Insolventes.
5. O imóvel continuou a ser ocupado pelos Insolventes tendo o Sr.º AI informado os Insolventes que caso o imóvel veja a ser adjudicado a terceiros, deverão proceder à entrega do mesmo no prazo de 5 dias contados desde o momento em que comunicarei a adjudicação. O imóvel deverá ser entregue devoluto e no seu estado actual.
6. O leilão electrónico decorreu de 18/12/2023 até 16/01/2024.
7. A 14/12/2023 os Insolventes, atenta a quadra natalícia, requerem o adiamento da diligência de venda para o início de 2024. Tal pedido foi indeferido pelo Sr.º AI.
8. Foi agendado com os Insolventes e seu mandatário, o dia de visitas ao imóvel por parte de eventuais interessados para o dia 10-01-2024, às 16h30m.
9. O leilão electrónico prosseguiu, tendo sido recepcionadas 3 licitações, sendo a de maior valor no montante de 174.500,00€. Já após o fecho do leilão, foi recepcionada uma proposta superior ao mínimo definido, no montante de 184.100,00€.
10. Face à existência desta proposta, recepcionada após o terminus do leilão, e com a anuência do credor hipotecário, foi dada oportunidade ao proponente que havia realizado a maior licitação no leilão, de rever a sua proposta inicial, tendo o mesmo informado que não tencionava subir a sua licitação.
11. A 22-01-2024 foram notificados os Insolventes para que os familiares ascendentes ou descendentes, querendo, pudessem exercer o direito de remição, no prazo de 8 dias, depositando na conta da Massa a quantia de 184.100,00 €.
12. No dia 29-01-2024, os Insolventes solicitam ao Sr.º AI a dispensa da liquidação do bem, pelo valor de 174.500,00 €.
13. O Sr.º AI respondeu aos Insolventes, recusando o pedido nos seguintes termos: “..Ora, no caso do presentes autos, nenhuma das condições se verifica: a) A dispensa, pressupõe que o bem já não será alvo de liquidação, ora, por despacho proferido a 12-12-2023, os autos prosseguiram para liquidação, não tendo sido requerida a dispensa até essa data, pelo que, o pedido actual é intempestivo. b) O regime previsto no artigo 171, encontra justificação na intersecção de três vectores: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor, com igual salvaguarda dos interesses dos credores. No caso dos presentes autos, a liquidação não só prosseguiu, como existe uma proposta de valor superior ao mínimo definido, estando a decorrer o prazo para os familiares ascendentes ou descendentes dos insolventes, querendo, exercerem o direito de remição. c) A referida proposta mereceu a concordância do credor hipotecário, salvaguardando não só o interesse do mesmo (pois é superior ao mínimo definido), como eventualmente dos restantes credores. Face ao exposto, e pelos motivos elencados, não existe concordância da minha parte quanto ao requerimento de V.Ex.ª.”
14. A 15.02.2024 o Sr.º AI informa os Insolventes de que imóvel foi “adjudicado” ao proponente vencedor, tendo sido dado conhecimento deste facto a 15-02-2024, ao Exmo. Senhor Mandatário dos Insolventes, onde foram ainda notificados que o imóvel deveria ser entregue no prazo de 10 dias, devoluto de pessoas e bens.
15. A 19/02/2024, o Exmo. Senhor Mandatário dos Insolventes remete comunicação informando que procederam ao depósito na conta da Massa da quantia de 174.500,00€.
16. Resulta dos requerimentos de 04.06.2024 e 16.07.2024 respectivamente do proponente e do Sr.º AI que os familiares dos insolventes podem exercer o direito de remição até à data da escritura, sendo que, caso tal venha a suceder, acresce 5% ao valor de 184.100,00€ para indemnização a adquirente que já realizou o depósito de 20% do preço, conforme disposto no n.º 2 do art.º 843 do CPC
IV.
Apreciemos então a questão suscitada no recurso que, conforme se referiu, consiste em saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários para dispensar a liquidação nos termos pretendidos pelos Insolventes/Apelantes.
A dispensa de liquidação está prevista no art.º 171.º do CIRE onde se dispõe nos seguintes termos:
“1 - Se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
2 - A dispensa da liquidação supõe uma solicitação nesse sentido por parte do administrador da insolvência, com o acordo prévio do devedor, ficando a decisão sem efeito se o devedor não fizer entrega da importância fixada pelo juiz no prazo de oito dias”.
Está aqui em causa um instituto que encontra a sua justificação em razões de economia, celeridade e tutela mínima do devedor e por via do qual se pretendem evitar inúmeros dispêndios e incómodos, conforme se fez constar no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (cfr. ponto 39). Segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1], o referido regime encontra a sua justificação em três vectores, todos eles objecto assumido da preocupação da lei: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor. Segundo os citados autores[2], com o referido instituto “...obtém-se, de uma assentada, o efeito útil que a liquidação lograria produzir, com igual salvaguarda dos interesses dos credores, evitando, todavia, as delongas e as despesas a que ela sempre conduz e assegurando ao devedor a possibilidade de, não obstante a sua situação, poder manter para si ou encaminhar para quem melhor entender a propriedade dos bens, o que, não havendo prejuízo dos credores, se aceita ser um interesse atendível”.
Para além dos pressupostos de fundo (o devedor tem que ser uma pessoa singular e a massa insolvente não pode compreender uma empresa), a dispensa de liquidação supõe – como se diz, clara e expressamente, no citado art.º 171.º - uma solicitação nesse sentido por parte do administrador da insolvência, com o acordo prévio do devedor.
Não está em causa, portanto, um direito ou faculdade que a lei ponha na disponibilidade do devedor, mas sim uma faculdade do administrador da insolvência e que pressupõe o acordo prévio do devedor. Significa isso, portanto, que a dispensa de liquidação pressupõe a existência de acordo, nesse sentido, entre o devedor e o administrador de insolvência e pressupõe que este (o administrador) o solicite ao juiz.
Ora, nada disso acontece nos autos, sendo certo que o Sr. Administrador não solicitou tal dispensa e não está de acordo com ela, entendendo, pelo contrário, que ela não deve ter lugar.
Nenhuma razão assiste aos Apelantes quando argumentam no sentido de que a competência para dispensar a liquidação cabe ao juiz e que, nessa medida, não existia “...qualquer possibilidade de decisão por parte do AI, ainda que fosse por omissão, no não envio do requerimento referido na primeira parte do n.º 2 do artigo 171” (cfr. conclusões 8 e 9 das alegações).
É certo que, conforme previsto no citado art.º 171.º, cabe ao juiz decidir se deve (ou não) ser dispensada a liquidação, mas isso pressupõe, naturalmente, que tal dispensa lhe seja solicitada pelo administrador da insolvência, cabendo a este, naturalmente, decidir se formula ou não formula tal pretensão ao juiz. Nessas circunstâncias, ao recusar o pedido – que lhe havia sido dirigido pelos devedores – no sentido de solicitar ao juiz a dispensa de liquidação, o Sr. Administrador agiu em competência própria, uma vez que aquilo que estava em causa não era decidir se havia ou não lugar à dispensa de liquidação (isso era da competência do juiz), mas sim decidir se formulava (ou não) tal pretensão ao juiz. E entendeu não o fazer.
Ora, conforme se referiu supra, o requerimento do administrador de insolvência – previamente concertado com o devedor – é um dos requisitos necessários para a dispensa de liquidação[3].
Nessas circunstâncias e não tendo existido qualquer solicitação do Sr. Administrador nesse sentido e não existindo acordo entre os devedores e o Sr. Administrador sobre a matéria – como seria necessário à luz do disposto no art.º 171.º – não poderá ser dispensada a liquidação.
Mas, além do mais, o Sr. Administrador tinha fundamentos – legais e legítimos – para recusar formular a pretensão em causa.
Essa recusa do Sr. Administrador assentou, fundamentalmente, na circunstância de estar ultrapassado o momento em que a liquidação podia ser dispensada (sendo, por isso, intempestivo o pedido dos devedores) uma vez que os autos já haviam prosseguido para liquidação, já havia decorrido de 18/12/2024 até 16/01/2024 tentativa de venda na modalidade de leilão electrónico no âmbito do qual haviam sido recepcionadas três licitações; já havia sido recebida nova proposta para aquisição do imóvel, após o encerramento do leilão e os Insolventes já haviam sido notificados para que os seus ascendentes ou descendentes pudessem exercer o direito de remição.
Os Apelantes contestam esses fundamentos/argumentos, dizendo que o art.º 171.º do CIRE não faz referência a prazos para formulação do pedido.
É certo que a citada disposição legal não faz referência a prazos para formulação do pedido.
É preciso notar, no entanto, que aquilo que está em causa é a “dispensa” de liquidação e só faz sentido dispensar algo que ainda não foi feito. O que acontece quando há lugar à dispensa da liquidação, é que “...a mesma nem sequer se inicia, verificando-se a satisfação dos credores por outra via”[4] (negrito e sublinhado nossos). Além do mais, se atentarmos nas finalidades do referido instituto – que, na prática, se traduzem em poupar tempo, dinheiro e incómodos –, facilmente se constata que não terá sentido falar em dispensa de liquidação num momento em que ela está praticamente concluída e já foram realizadas as diligências necessárias a tal liquidação e, portanto, num momento em que já foi despendido tempo e já existem as despesas e custos inerentes a tais diligências (já nada se poupa e nada se ganha, nem em termos económicos, nem em termos de tempo e celeridade).
Ora, no caso dos autos, quando os Insolventes pediram ao Sr. Administrador a dispensa de liquidação, já havia decorrido – durante cera de um mês – o leilão electrónico que havia terminado com a recepção de três licitações; já havia sido recebida (após o termo do leilão) uma outra proposta de maior valor; com a anuência do credor hipotecário, já havia sido dada oportunidade ao proponente que havia realizado a maior licitação no leilão, de rever a sua proposta inicial e já haviam sido notificados os Insolventes para que os seus ascendentes ou descendentes pudessem exercer o direito de remição. Ou seja, haviam sido feitas todas as diligências – com os custos e despesas inerentes – e estava tudo pronto para adjudicar o imóvel ao proponente. Qual o sentido, portanto, de se pedir, nesta fase, a dispensa de liquidação? Nenhuma – pensamos nós – porque já nada havia a dispensar.
Em bom rigor, o que os Insolventes pretendem – ao solicitar a dispensa de liquidação depois de serem conhecidas as propostas apresentadas no âmbito do leilão electrónico e mediante depósito do valor correspondente à proposta de maior valor – é remir o bem, sendo certo, no entanto, que o legislador não concedeu ao executado/insolvente o direito de remição, que está reservado ao respectivo cônjuge, descendentes ou ascendentes (cfr. art.º 842.º do CPC). A dispensa de liquidação do activo – no momento e nas circunstâncias em que foi pedida pelos Apelantes – corresponderia, na verdade, a uma forma de contornar a vontade do legislador quando entendeu negar ao executado/insolvente o direito de remição, já que o insolvente iria obter por essa via aquilo que o legislador lhe havia vedado quando lhe negou o direito de remição e tal situação não pode ser admitida.
Concluimos, portanto, em face do tudo o exposto, que não estão reunidos os pressupostos necessários para a dispensa da liquidação do activo. Em primeiro lugar, porque o Sr. Administrador da Insolvência não o solicitou ao Tribunal (tendo recusado expressamente a formulação desse requerimento quando tal lhe foi solicitado pelos Insolventes) e, em segundo lugar, porque, no momento processual em que os autos se encontram, já não poderá haver lugar a qualquer “dispensa” de liquidação que, na prática, equivalia ao exercício de um direito de remição que o legislador negou e não reconheceu ao insolvente.
Importa fazer, por último, uma breve referência à questão – a que os Apelantes aludem nas conclusões das suas alegações de recurso – referente à (alegada) existência de justa causa para destituição do Sr. Administrador da insolvência e com base na qual pedem que o Sr. Administrador seja destituído de funções “...atento o incumprimento – reiterado – do n.º 1 do art.º 158, como previsto na al. b) do art.º 169 do CIRE”.
Sobre essa matéria, caberá apenas deixar duas notas.
A primeira nota, para dizer que, apesar de terem aludido a essa questão nas conclusões das alegações, os Apelantes não lhe fizeram qualquer referência no corpo das alegações, o que implica que essa questão se considere excluída do objecto do recurso. Com efeito, ainda que – como resulta expressamente do n.º 4 do art.º 635.º do CPC – as conclusões possam servir para restringir o objecto do recurso que havia sido delimitado no corpo das alegações (de modo que qualquer questão que não esteja incluída nas conclusões está excluída do objecto do recurso), elas não servem, porém, para alargar esse objecto mediante aditamento de questões que não haviam sido abordadas no corpo das alegações, o que bem se compreende se atentarmos no facto de as conclusões das alegações se destinarem a sintetizar os fundamentos do recurso que, suposta e pressupostamente, já foram anteriormente definidos no corpo das alegações (cfr. art.º 639.º do CPC). Assim se considerou, aliás, nos Acórdãos do STJ de 21/11/2006 (processo n.º 06A2770), de 25/03/2004 (processo n.º 02B4702), de 05/07/2001 (processo n.º 01A1864) e de 21/10/1993 (processo n.º 083400)[5], onde se considera, em resumo, que, para serem legítimas, as conclusões têm de emergir/emanar do que se expôs no corpo das alegações, razão pela qual não é legal o alargamento do âmbito das conclusões para além do que conta do corpo das alegações.
A segunda nota para dizer que tal questão e tal pretensão (a destituição do Sr. Administrador da insolvência) não foram apreciadas na decisão recorrida. É certo que os Insolventes formularam essa pretensão mediante requerimento que apresentaram em 29/07/2024, mas, até à data, essa pretensão não foi objecto de apreciação e decisão. O despacho recorrido não incidiu sobre essa pretensão, não a apreciou e sobre ela não emitiu qualquer decisão.
Em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se o despacho recorrido.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Maria João Areias)
(José Avelino Gonçalves)
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3.ª edição, página 639.
[2] Ob.cit., pág. 639.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 639
[4] Cfr. Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5.º edição, pág. 229.
[5] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.