Embora se tenha apurado que a sócia requerente da destituição também imputou despesas pessoais à sociedade, ficando demonstrado que, a partir de determinada altura, considerou que tal comportamento não devia prosseguir e que a atividade de ambos os estabelecimentos explorados pela sociedade tinha de ser registada com rigor e transparência, propósito que não foi seguido pelo seu sócio (requerido), que continuou a utilizar dinheiro da sociedade para diversas despesas pessoais suas e familiares e que se recusou a adotar os novos procedimentos contabilísticos, a atuação da requerente ao pedir a destituição do requerido de gerente não constitui abuso de direito.
I - Relatório
AA intentou a presente ação, pedindo a suspensão e destituição como gerente de BB da sociedade “A... Lda.”,
Por decisão proferida nos autos a 26.05.2022, foi decretada a suspensão do requerido, BB, do exercício das funções de gerente.
Citado o R. para a ação de destituição e notificado do despacho que decretou a medida cautelar de suspensão do exercício de funções de gerente, veio o mesmo apresentar contestação.
Ambas as partes apresentaram um articulado superveniente.
Foi proferido despacho que ao abrigo do princípio da economia processual e da adequação formal determinou que a oposição ao pedido de suspensão e de destituição seriam apreciadas em uma única decisão.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e a final foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, destituiu o requerido BB, do cargo de gerente da sociedade A... Lda.
O requerido não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…).
A parte contrária contra-alegou, tendo concluído as suas contra-alegações da seguinte forma:
(…).
II – Objeto do recurso
De acordo com as conclusões da apelação, as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:
. se devem ser dados como não provados os factos considerados como provados nos pontos 13, 23 e 32;
. se a redação do ponto 20 deve ser alterada, passando a constar que: O sócio BB declarou, logo, aquando da comunicação desta exigência da sócia AA, que não iria elaborar a folha de caixa com indicação dos elementos correspondentes que dela devem legalmente constar relativamente ao Hotel B...; que, igualmente, não iria proceder ao depósito bancário regular dos saldos de caixa de cada período de atividade e que não iria proceder à reconciliação bancária dos movimentos constantes dos extratos bancários com as diversas contas da contabilidade, nomeadamente com a conta corrente dos fornecedores, mas que a sócia AA poderia implementar os procedimentos que considerasse mais adequados;
. se a redação do ponto 38 deve ser alterada para a seguinte: A sociedade A..., Lda., ao longo dos anos, tem suportado despesas em viagens pessoais, refeições, aquisição de bens e outras despesas correntes realizadas pelo Recorrente, Recorrida e seus familiares;
. se a redação do ponto 46 deve ser alterada, passando a constar que: A requerente denunciou a situação de falta de aprovação e contas da sociedade junto da Conservatória do Registo Comercial ..., tendo esta despoletado o procedimento administrativo de liquidação e dissolução da sociedade que foi encerrado em 13.06.2023, com fundamento na regularização da situação de incumprimento do depósito das prestações de contas;
.se a redação do ponto 48 deve ser alterada para: A sociedade foi objeto de auditoria em 2014 por parte da autoridade Tributária tendo sido detetadas desconformidades em resultado da imputação por parte da Recorrida de despesas pessoais fora da atividade da sociedade e da existência de consultas de mesa no restaurante afeto ao estabelecimento C... sem a respetiva fatura/venda a dinheiro;
. se deve ser alterado o ponto 49 da matéria de facto provada, passando a constar que Resulta da análise contabilística efetuada após a suspensão do gerente BB que, em 2019, 2020, 2021 e 2022 (até 22.6.2022), o Hotel B... recebeu de clientes, em numerário, as quantias de 46.543.10€, 17.453.42€, 22.631.74€ e 12.833.51€, respetivamente, no total de 99.461.77€, sem que esses valores tenham sido depositado nas contas da sociedade A..., Lda., mas foram registados na contabilidade da Sociedade, tendo sido utilizados para adquirir bens necessários à atividade da sociedade:
. se deve ser alterado o ponto 53 da matéria de facto provada, passando a constar que: Em Assembleia Geral da Sociedade ocorrida em 31.05.2023, da qual o Requerido não teve conhecimento por não ter recebido a sua convocatória, a Requerente aprovou sozinha as contas dos exercícios de 2016 a 2020;
.se deve ser alterada a redação do ponto 55 dos factos provados passando a constar que: Após a decisão de suspensão do gerente (aqui requerido) a requerente assumiu a gerência sozinha e implementou medidas de controlo interno e contabilístico, tendo sido efetuadas correções na contabilidade que resultaram na correção dos valores em caixa e na conta corrente do R. que passou de credor para devedor à Sociedade do valor de € 1.486,53. A requerente contratou um Revisor Oficial de Contas (ROC), para fazer uma auditoria às contas, tendo-se decidido que as correções que fossem apuradas, seriam realizadas em 2022, porque seria muito difícil voltar a reabrir as contas de todos esses exercícios, fazer todas as alterações e voltar a entregar as declarações fiscais correspondentes. Como informado pelo ROC, sendo tecnicamente possível fazer todas correções, em 2022, com referência a exercícios anteriores (de acordo com as normas em vigor e a sugestão do Revisor de Oficial de Contas), decidiu-se que se podiam aprovar as contas que estavam pendentes até 2020, pois todos os erros e omissões iam ser corrigidos em 2022;
. se os factos dados como não provados nos pontos 3, 4, 6 e 7 devem ser considerados provados, aditando-se ao ponto 7 a seguinte matéria: “em benefício da sociedade A..., Lda.”;
. Se devem ser aditados à matéria de facto provada (além dos factos que resultam da impugnação dos pontos 3,4,6 e 7 dos factos não provados) os seguintes factos:
.Através da manipulação do programa de faturação WinRest do estabelecimento C..., a Recorrida ao longo dos anos removeu da faturação diversas vendas, as quais não eram tributadas nem entravam na contabilidade da sociedade, sendo que da auditoria tributária realizada em 2014 resultou que apenas no período de 2010 a 2012 tal conduta prejudicou a sociedade em pelo menos € 541.969,66;
. A Requerente imputa despesas à Sociedade referentes a imóveis não afetos à atividade
da Sociedade;
.A Sociedade A..., Lda., apresentava em 2020 um ativo de € 5.035.669,73, capitais próprios de € 3.577.960,76, um volume de negócios superior a € 1.300.000,00 e tinha 38 trabalhadores;
. A conta da Sociedade destinada à exploração do estabelecimento Hotel B... apresentava a 31.05.2022 um saldo bancário positivo de € 1.977.306,67, e a conta destinada à exploração do C... um saldo bancário positivo de € 581.83,23;
. se os factos, ainda que não alterados, não permitem a conclusão de que existe justa causa para a destituição do recorrente; e,
. caso assim não se entenda, se a recorrida age em abuso de direito ao requerer a destituição de gerente do recorrente.
III – Fundamentação
Na primeira instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos:
Factos Provados
1. A sociedade “A... Lda.”, NIPC ...34, com sede na Avenida ..., ..., ..., tem como únicos sócios a aqui A., AA, e BB, divorciado, gerente comercial, residente na Avenida ..., ... ..., e cada um deles é, atualmente, titular de uma quota de valor igual, do valor de 249.398,95 Euros, estando a sociedade inscrita na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial da ..., desde 1981-08-11.
2. A referida sociedade tem como objeto a exploração da atividade da área da hotelaria e suas similares, a que corresponde o CAE Principal 55111-R3 e o Secundário 55112-R3.
3. A sociedade obriga-se com a assinatura de um gerente.
4. A referida sociedade explora, desde a data da sua constituição, dois estabelecimentos hoteleiros, ambos sediados na vila da ..., em edifícios tomados de arrendamento aos pais dos dois sócios, que deles eram comproprietários em partes iguais, designados por Restaurante/Hotel C... e Hotel B..., situados, respetivamente, na Praça ..., ... ... e na Avenida ..., ... ....
5. O Hotel C... tem a capacidade hoteleira de alojamento e de serviço de refeições de cerca de 1/5 da capacidade de que dispõe o Hotel B...: respetivamente, 16 quartos e 80 quartos.
6. Os dois sócios acordaram que a gestão do Hotel B... e a gestão do Hotel/Restaurante C..., a partir da constituição da sociedade, fosse efetuada de forma autónoma ou distinta um do outro, sob o ponto de vista da gestão da sua atividade concreta, do pessoal e do apuramento dos seus resultados, sendo, todavia, toda a faturação emitida e as aquisições e responsabilidades assumidas efetuadas em nome da mesma sociedade, com destrinça do estabelecimento a que diziam respeito.
7. Por acordo dos sócios, a gestão corrente do Hotel B... ficou confiada ao sócio BB. Por seu lado, a gestão corrente do Restaurante/Hotel C... ficou confiada à sócia AA.
8. A contabilidade de ambas as unidades hoteleiras estava centralizada no Hotel B..., tendo ambos os sócios acordado que cabia ao sócio BB a responsabilidade por fazer chegar ao gabinete de contabilidade, por ele contratado para proceder à organização da contabilidade da sociedade segundo as exigências da lei comercial e fiscal, toda a documentação respeitante à atividade comercial de ambos os estabelecimentos, tendo esse serviço de contabilidade sido levado a cabo e até à atualidade pela D..., Lda. (embora com sócios gerentes diferentes ao longo do tempo), com estabelecimento na Rua ... loja ...3, ... ....
9. Para tanto, a sócia AA sempre entregou mensalmente - até por a sociedade estar sujeita ao regime de tributação mensal de IVA - ao sócio BB todas as faturas respeitantes às aquisições de bens e serviços efetuadas para o estabelecimento do C..., os documentos com as despesas com o pessoal e os documentos respeitantes às vendas de bens e serviços (faturas, faturas-recibos, documentos de pagamento por transferência bancária e documentos comprovativos dos depósitos bancários decorrentes da sua atividade). Por esta razão, o sócio BB esteve, sempre, em perfeitas condições de poder conhecer, direta e exatamente, as compras de bens e serviços efetuadas pelo C..., bem como as vendas e prestações de serviços pelo mesmo realizadas e, consequentemente, os seus resultados económicos e financeiros.
10. Desde que o sócio BB assumiu a gestão do estabelecimento Hotel B..., há pelo menos 30 anos, até à decisão que determinou a sua suspensão como gerente, o mesmo não colocou, com regularidade, à disposição da sócia AA, com vista ao seu exame e controlo, os documentos relativos à exploração do Hotel B..., ou seja, os documentos relativos às receitas realizadas (faturas, faturas-recibo, documentos de depósitos bancários, transferências bancárias, etc.), bem como os documentos relativos aos gastos do Hotel B..., as folhas de caixa dos movimentos que passaram pelo caixa, os depósitos bancários dos saldos de caixa apurados, reconciliações entre as vendas dos bens e serviços prestados e os meios de pagamento dos mesmos, reconciliações entre os extratos bancários e os depósitos e pagamentos e levantamentos efetuados. Por outro lado, o sócio gerente BB remetia toda a documentação, para registo e tratamento segundo o exigido na lei comercial e fiscal, para os gabinetes de contabilidade, sem os sujeitar à apreciação ou colocar à disponibilidade de apreciação da sócia-gerente AA.
11. A relação entre o sócio mais velho (BB) e a sócia mais nova (AA) era uma relação de convivência como se tratassem de um irmão mais velho e de uma irmã mais nova.
12. Por virtude desta ambiência familiar comum e, bem ainda, porque a sua mãe usufrutuária da sua quota na sociedade trabalhava para esta e acompanhava de perto a sua atividade, a sócia AA, que nos inícios da sociedade residia em Lisboa, nunca ousou questionar os termos em que o sócio BB geria a atividade concreta do Hotel B..., os termos em que este procedia à faturação dos serviços hoteleiros nele prestados, as aquisições que para ele fazia, os termos em que organizava a contabilidade do Hotel B... e, bem ainda, quais os documentos de receita e despesa, que relativos à atividade da sociedade A... Lda., o mesmo remetia para tratamento contabilístico e para apuramento e pagamento dos impostos de IVA e IRC e outros para o referido Gabinete de Contabilidade, bem como as contas de gerência da sociedade A... Lda. que o mesmo apresentava, no fim de cada exercício.
13. Acontece, porém, que a mãe da sócia AA passou a residir em Lisboa por razões de saúde e da idade avançada e que o sócio BB deixou, durante mais de 12 anos de dar conta dos resultados anuais resultantes, seja do exercício da atividade hoteleira da sociedade A... Lda, seja dos rendimentos de muitos outros bens imobiliários que tinha em compropriedade com a sócia de AA ou que pertenciam, em compropriedade em quotas iguais, aos referidos pais de ambos, mas cuja gestão lhes tinha sido confiada, sob o pretexto, sempre que interrogado, de que os rendimentos auferidos haviam sido investidos na construção da parte nova do Hotel B..., acima referida, em cujo investimento se haviam abalançado a partir de 2005, para além do que cada uma das suas mães CC e DD e eles próprios haviam disposto em dinheiro próprio aforrado ou obtido de empréstimo bancário.
14. Por respeito às relações familiares descritas, a sócia AA, aprovou formalmente, as contas da sociedade A... Lda que foram apresentadas pelo sócio BB nas assembleias gerais da sociedade até ao ano de 2016.
15. As reservas e suspeitas da sócia AA sobre a regularidade comercial e fiscal das contas da sociedade e a fidelidade dos registos constantes da contabilidade respeitantes ao Hotel B..., apresentados pelo sócio BB, e que reflexamente atingiam a regularidade e fidelidade das contas da sociedade atinentes aos dois estabelecimentos hoteleiros, existiam, já, entre os anos de 2010 e 2015.
16. Por isso a sócia AA socorreu-se de técnicos que a pudessem elucidar e escrutinar as contas da sociedade do exercício de 2016. Nesse sentido, consultou Contabilista Certificado. Por outro lado, solicitou um estudo comparado dos resultados da atividade e dos registos constantes da contabilidade da sociedade nos anos de 2010 a 2015.
17. Consta dos autos um documento intitulado “Relatório sobre procedimentos acordados de auditoria” (documento 4.) que se dá aqui por integralmente reproduzido.
18. Tendo presentes as informações constantes da referida auditoria e do mencionado parecer do contabilista certificado, a sócia AA advertiu o sócio BB de que, a partir de 2016, passaria a cumprir a lei comercial e fiscal no exercício da atividade hoteleira do Restaurante/Hotel C..., e, nomeadamente, a elaborar e a registar diariamente, e devidamente identificados, na folha de caixa, os recebimentos e pagamentos, o saldo de cada período, bem como os reforços e a sua origem; a proceder regularmente ao depósito bancário das quantias recebidas e a proceder à reconciliação diária das vendas de bens e dos serviços prestados, com os meios de pagamento utilizados, a proceder à reconciliação dos meios de pagamento utilizados (dinheiro, cheque ou transferência bancária), nas contas correntes dos fornecedores e a proceder às reconciliações bancárias a 31 de Dezembro com os extratos bancários.
19. Ao mesmo tempo, a sócia AA advertiu o sócio BB que deixaria de aprovar as contas da sociedade dos anos de 2016 e seguintes, caso as mesmas não estivessem suportadas nos documentos exigidos, comercial e fiscalmente, ou os documentos apresentados não permitissem um efetivo e real controlo das vendas/prestações de serviços prestados, das contas de clientes, das despesas suportadas com fornecedores (contas de fornecedores), nos mesmos termos que passaram a ser seguidos no Hotel C....
20. O sócio BB declarou, logo, aquando da comunicação desta exigência da sócia AA, que não iria elaborar a folha de caixa com indicação dos elementos correspondentes que dela devem legalmente constar relativamente ao Hotel B...; que, igualmente, não iria proceder ao depósito bancário regular dos saldos de caixa de cada período de atividade e que não iria proceder à reconciliação bancária dos movimentos constantes dos extratos bancários com as diversas contas da contabilidade, nomeadamente com a conta corrente dos fornecedores.
21. A sócia e gerente AA procedeu à convocatória da assembleia geral, por carta registada com aviso de receção enviada para o sócio BB, para funcionar no dia 16 de Dezembro de 2021, e com a Ordem do Dia constante do documento n.º 5, junto com a petição inicial, consubstanciada, em síntese, na apreciação das contas de gerência dos anos de 2019 e 2020, bem como para a prestação de esclarecimentos, por banda do sócio BB, sobre as diversas matérias referidas na Ordem do Dia, cujos termos aqui se dão por reproduzidos por razões de economia processual.
22. Porque as contas de gerência dos anos de 2019 e 2020, apreciadas na assembleia-geral de 16 de Dezembro de 2021, sofriam dos mesmos vícios dos anteriormente descritos relativamente às contas de gerência de 2016, 2017 e 2018, a Requerente AA não as aprovou.
23. Na verdade, ao não querer elaborar as folhas de caixa de cada período diário ou, até com outra periodicidade aproximada do Hotel B... e ao não querer fazer constar delas os movimentos a crédito ou débito do caixa, entre estes se incluindo os reforços efetuados ao caixa e qual os seus montantes e origens; ao não proceder ao depósito bancário dos saldos do caixa; ao não proceder à reconciliação diária das vendas e prestações de serviços efetuadas pelo Hotel B... com os meios de pagamento utilizados e concretamente identificados; ao não proceder à reconciliação dos movimentos bancários efetuados relativos ao Hotel B... com os extratos bancários relativos à mesma unidade hoteleira e ao não proceder à reconciliação das contas correntes dos credores com os meios de pagamento utilizados, o sócio-gerente BB visou privar a sócia-gerente AA de controlar as receitas e despesas respeitantes à unidade hoteleira Hotel B....
24. A sociedade A... Lda. deduziu perante o Tribunal Administrativo e fiscal ... um processo de impugnação judicial com o n.º 567/07.... contra a Câmara Municipal ..., tendo a ação sido julgada procedente e determinada a anulação de taxa cobrada pela Câmara Municipal ... à sociedade A... Lda. no valor de €82457,63.
25. O requerido em nome da sociedade celebrou com a Câmara Municipal ... um "Acordo de Regularização de Créditos", ao qual conferiram a natureza de título executivo. Nesse Acordo o sócio-gerente BB acordou com a Câmara Municipal ... em esta lhe efetuar «o pagamento da quantia de €82.4563 (oitenta e dois mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e sessenta e três cêntimos), correspondente à dívida de capital. em três prestações; através de transferência bancária para a conta da segunda outorgante (a sociedade) com o JBAN ...14 da seguinte forma:
- a primeira prestação/ no valor de €27.485,88 durante o mês de junho de 2018;
- a segunda prestação/ no valor de €27.485,88 durante o mês de setembro de 2018;
- a terceira prestação/ no valor de €27.485,88 durante o mês de dezembro de 2018».
26. No mesmo Acordo, ambos os outorgantes reconhecem que «o crédito detido pela segunda outorgante (sociedade) é de €82.45763 (oitenta e dois mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e sessenta e três cêntimos) e que, à data da sua celebração, sobre esse valor incidem juros indemnizatórios, no valor de €32.892/69 (trinta e dois mil oitocentos e noventa e dois euros e sessenta e nove cêntimos) e juros de mora à taxa legal que ascendem à presente data a €7.92447; e ainda juros vincendos»
27. No mesmo Acordo, o sócio-gerente BB, em nome da sociedade, «declara que prescinde de todos os juros vencidos e vincendos, caso o Primeiro Outorgante proceda ao pagamento do capital em dívida até à última data referida no número anterior».
28. Consta dos autos o “email” datado de 31.08.2018 e endereçado à requerente com o seguinte teor : “ Conforme combinado com a minha irmã envio-te a minuta do acordo com a Câmara. O final não tenho porque foi o meu pai que deu seguimento ao assunto mas se precisares de mais alguma coisa diz.”
29. A sócia gerente AA não teve conhecimento que as prestações a que se alude no mencionado ponto 25. tenham sido pagas à sociedade.
30. Resulta do teor dos extratos da conta corrente ...21 dos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 (BB), que o montante de 27.485.88€ (vinte e sete mil quatrocentos e oitenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos) não foi alocado a qualquer pagamento de retribuições.
31. Por outro lado, no que diz respeito ao depósito das restantes prestações do acordo com a Câmara Municipal ..., este foi registado como sendo um depósito de caixa, ou seja, de valores que supostamente estariam em caixa e que foram depositados no banco, pois não havia qualquer informação que permitisse à contabilidade registar de forma diferente.
32. Este registo está totalmente errado na sua forma contabilística (SNC) e além de não registar o proveito que resulta do recebimento daquele valor, absorve, na parte correspondente, a dimensão dos valores recebidos em dinheiro dos clientes e não depositados nas contas bancárias do Hotel B....
33. A exploração dos dois estabelecimentos hoteleiros nunca levou a qualquer divisão dos seus lucros.
34. O sócio gerente BB procedeu ao pagamento, em 2016, como se fosse despesa ou gasto da sociedade “A... Lda.”, e em nome desta, pelo menos, do valor de 25.000,00 Euros à “E...”, Contribuinte n.º ...11, sita, na Rua ..., ..., ... Lisboa, pela frequência de um Curso de MBA por parte da sua filha EE.
35. A sociedade “A... Lda.” suportou a aquisição de um sofá de jardim à sociedade F..., em 2021-09-06, no valor de €494,45, e paga por Multibanco, em proveito de EE (filha do requerido), a quem foi entregue na Rua ....
36. Esta fatura só não foi contabilizada como despesa da sociedade, em contrário da menção do nome de cliente dela constante (A... Lda), na contabilidade da sociedade, por banda do referido Gabinete de Contabilidade D..., porque a sócia-gerente AA, se deu conta, no exame que passou, recentemente, a fazer com regularidade dos documentos remetidos, por parte do sócio-gerente BB, para o Gabinete de Contabilidade D..., para registo e tratamento comercial e fiscal, em que o mesmo se incluía, que a despesa nada tinha a ver com a atividade da sociedade e por isso retirou-a do mesmo Gabinete de Contabilidade, informando-o de que a trazia consigo, como fez. Na altura, o Gabinete de Contabilidade informou a sócia-gerente que o tratamento que iria dar ao pagamento dessa fatura alheia à sua atividade através da conta da sociedade seria o de debitar a conta do sócio BB pelo montante da fatura em questão.
37. O sócio-gerente BB procedeu, ainda, a expensas da sociedade “A... Lda”, ao pagamento da fatura emitida pela G... Lda, n.º ...38, de 2021-02- 20, no valor de €10.627,20, respeitante a uma avaliação dos bens imóveis tidos em compropriedade com a sócia-gerente AA, cuja realização determinou pessoalmente que fosse efetuada, e remeteu-a para o referido Gabinete de Contabilidade D... a fim de que este procedesse ao seu tratamento contabilístico, comercial e fiscal como despesa da sociedade.
38. A sociedade “A... Lda.”, ao longo dos anos, tem suportado despesas de milhares de euros em viagens pessoais realizadas pelo requerido e familiares.
39. A sociedade “A... Lda.” suportou despesas que dizem respeito à aquisição pelo requerido de fios de ouro, brincos perolas, e brincos prata estampa, brincos de prata “Roch”, pulseira com coração; de vários artigos de supermercado e quantidade cuja aquisição foi efetuada no Supermercado Continente do lugar de Ribeira ..., nos Açores, e, ainda, vários artigos regionais dos Açores.
40. A sociedade “A... Lda.” suportou despesas que dizem respeito à aquisição pelo requerido de bens e serviços à sociedade “H... Lda”, no valor de €265,00, relativa a artigos têxteis hoteleiros, tendo essa aquisição sido efetuada para proveito da empresa "I..." pertencente às suas filhas.
41. A sociedade “A... Lda” suportou despesas que dizem respeito à aquisição pelo requerido, para seu uso pessoal e de familiares, durante o ano de 2019,2020 e 2021 de produtos de maquilhagem, perfumes, brincos, pulseiras, bolsas, roupa, calçado produtos beleza, farmácia.
42. O sócio-gerente BB, em proveito próprio, adquiriu, a expensas da sociedade, dois bilhetes de tourada espanhola, no valor de €404,00, e (entradas) para a feira tauromática de Olivenza 2020, no valor de €880,00.
43. O sócio-gerente BB, em proveio próprio, adquiriu, a expensas da sociedade, em 2019, uma carroça de cavalos, pelo valor de €2.000,00, acrescido de IVA no valor de €460,00.
44. A sócia-gerente AA retirou, ainda, do Gabinete de Contabilidade D..., na ..., aonde o Réu BB as havia entregue para serem contabilizadas como despesas da sociedade as faturas que identifica no artigo 71.º,74.º, 87.º da sua PI.
45. O hábito reiterado, manifestado na atitude do sócio-gerente BB de entender o património próprio da sociedade A... Lda como se fosse igualmente seu património pessoal e de pagar as suas despesas pessoais com rendimentos da sociedade é uma realidade que, conquanto já vinda de anos anteriores, tem persistido e até agravado nos anos de 2020 e 2021.
46. A requerente denunciou a situação de falta de aprovação e contas da sociedade junto da Conservatória do Registo Comercial ..., tendo esta despoletado o procedimento administrativo de liquidação e dissolução da sociedade que, entretanto, foi encerrado.
47. A Requerente apresentou despesas de deslocação e estadas alocadas ao estabelecimento C..., no valor de € 16.074,70 no ano de 2010.
48. A sociedade foi objeto de auditoria em 2014 por parte da autoridade Tributária tendo sido detetadas desconformidades em resultado da imputação de despesas pessoais fora da atividade da sociedade e da existência de consultas de mesa no restaurante sem a respetiva fatura/venda a dinheiro.
49. Resulta da análise contabilística efetuada após a suspensão do gerente BB que, em 2019, 2020, 2021 e 2022 (até 22.6.2022), o Hotel B... recebeu de clientes, em numerário, as quantias de 46.543.10€, 17.453.42€, 22.631.74€ e 12.833.51€, respetivamente, no total de 99.461.77€, sem que esses valores tenham sido depositado nas contas da sociedade A..., Lda.
50. O R., em nome e representação da sociedade “A..., Lda.”, contratou a empresa “J...”, com sede no Largo ...., ... Lisboa, no sentido desta organizar e promover uma candidatura ao Programa de Apoio à Produção Nacional, PT2020, o que veio efetivamente a acontecer em Março de 2021. A requerente constatou que da candidatura constavam despesas do foro pessoal do R. e, por conseguinte, não societárias.
51. O Requerido contratou a empresa “K..., Lda.”, para a execução de trabalhos de carpintaria e caixilharia na moradia que o mesmo habita de forma permanente na Av. ..., ... e da qual é coproprietário em conjunto com a Requerente.
52. Por conta dos trabalhos efetuados naquele imóvel a sociedade A..., Lda., já pagou as quantias de 18.160.40€ e 10.381.54€ respetivamente em 2021.11.15 e 2022.01.27 (doc. 23 e 24 articulado superveniente).
53. Em Assembleia geral da sociedade ocorrida em 31.05.2023 a requerente aprovou as contas dos exercícios de 2016 a 2020.
54. As contas agora aprovadas eram iguais às que foram propostas pelo requerido à requerente e que esta se recusava em aprovar.
55. Após a decisão de suspensão do gerente (aqui requerido) a requerente assumiu a gerência sozinha e implementou medidas de controlo interno e contabilístico, tendo sido efetuadas correções na contabilidade que resultaram na correção dos valores em caixa e na conta corrente do R. que passou de credor para devedor. A requerente contratou um Revisor Oficial de Contas (ROC), para fazer uma auditoria às contas, tendo-se decidido que as correções que fossem apuradas, seriam realizadas em 2022, porque seria muito difícil voltar a reabrir as contas de todos esses exercícios, fazer todas as alterações e voltar a entregar as declarações fiscais correspondentes. Como informado pelo ROC, sendo tecnicamente possível fazer todas correções, em 2022, com referência a exercícios anteriores (de acordo com as normas em vigor e a sugestão do Revisor de Oficial de Contas), decidiu-se que se podiam aprovar as contas que estavam pendentes até 2020, pois todos os erros e omissões iam ser corrigidos em 2022.
Factos não provados[1]:
.1.- Que dos extratos bancários da sociedade A... Lda relativos ao ano de 2018, consultados pela sócia gerente AA, que incluem as datas referidas para o pagamento das prestações atrás referidas não constam quaisquer transferências dos seus respetivos montantes, nem dos extratos seguintes até ao final do ano.
.2. Que relativamente ao acordo com a Câmara Municipal ... a não opção do requerido pela legal execução do objeto da anulação e da condenação da sentença administrativo-tributária e a sua opção, antes, por um acordo em que a sociedade sai prejudicada, segundo o próprio apuramento feito na data do Acordo, no valor de €40.815,16 decorrente dos juros indemnizatórios e moratórios traduz uma violação clara e grave dos deveres de gestão criteriosa e ponderada e leal com os interesses da sociedade.
.3.- Que as despesas imputadas pelo requerido à requerente nos artigos 171.º a 184.º da sua contestação sejam despesas pessoais desta última, sem relação com a atividade da sociedade.
.4.- Que a requerente tenha feito seu o proveito resultante do arrendamento até 2015 do imóvel identificado no ponto 185.º da contestação.
.5.- Que o requerido se tenha apropriado de €99 461,77.
.6.- Que a requerente tenha imputado ao requerido a totalidade dos montantes recebidos em numerário dos clientes do hotel B... nos anos de 2019 a 2022.
.7.- Que a requerente tenha removido da contabilidade faturas no valor de cerca de €12 250,00 de despesas pessoais do requerido.
Da impugnação da matéria de facto e do aditamento de novos factos
(…)
Pretende ainda o apelante que sejam dados como provados os factos constantes dos ponto 3, 4 e 6 com a seguinte redação:
.3.- Que as despesas imputadas pelo requerido à requerente nos artigos 171.º a 184.º da sua contestação sejam despesas pessoais desta última, sem relação com a atividade da sociedade.
.4.- Que a requerente tenha feito seu o proveito resultante do arrendamento até 2015 do imóvel identificado no ponto 185.º da contestação.
.6.- Que a requerente tenha imputado ao requerido a totalidade dos montantes recebidos em numerário dos clientes do hotel B... nos anos de 2019 a 2022.
Pretende ainda que sejam dados como provados os factos constantes do ponto 7 - Que a requerente tenha removido da contabilidade faturas no valor de cerca de €12 250,00 de despesas pessoais do requerido”,, aditando-lhes “em benefício da sociedade A..., Lda.”
O apelante pretende ainda que sejam aditados aos factos provados os seguintes factos:
.Através da manipulação do programa de faturação WinRest do estabelecimento C..., a Recorrida ao longo dos anos removeu da faturação diversas vendas, as quais não eram tributadas nem entravam na contabilidade da sociedade, sendo que da auditoria tributária realizada em 2014 resultou que apenas no período de 2010 a 2012 tal conduta prejudicou a sociedade em pelo menos € 541.969,66.
. A Requerente imputa despesas à Sociedade referentes a imóveis não afetos à atividade
da Sociedade.
.A Sociedade A..., Lda., apresentava em 2020 um ativo de € 5.035.669,73, capitais próprios de € 3.577.960,76, um volume de negócios superior a € 1.300.000,00 e tinha 38 trabalhadores.
. A conta da Sociedade destinada à exploração do estabelecimento Hotel B... apresentava a 31.05.2022 um saldo bancário positivo de € 1.977.306,67, e a conta destinada à exploração do C... um saldo bancário positivo de € 581.83,23.
O artº 257º, nº 5, do CSC dispõe que «se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em ação intentada pelo outro». A referida norma tem um âmbito delimitado de aplicação: versa sobre a destituição da gerência com justa causa. Apenas nesse caso, tendo a sociedade dois sócios, a destituição só pode operar por decisão judicial. E facilmente se compreende que assim seja, na medida em que o sócio-gerente contra o qual a justa causa é alegada ficaria impedido de votar essa proposta, nos termos do artigo 251º, nº 1, al. f), do CSC, pelo que ficaria à mercê do outro sócio, o qual convocaria a assembleia, proporia a destituição, consideraria provada a justa causa e aprovaria a proposta.
O art. 254º, nºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, alude ao conceito de “justa causa” de destituição do gerente, no caso de violação do dever de não concorrência. Contudo, a lei não fornece um conceito de justa causa, devendo a apreciação ser feita de modo objetivo (cfr. se defende no Ac. do STJ de 18.12.2007, proc. 2375/07-2[2]). É um conceito indeterminado que cumpre ao Tribunal integrar. Assim constituirá justa causa “qualquer circunstância, facto ou situação grave, em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa)- (cfr. se defende no Ac. do TRE, de 18.12.2007 , proc. 2375/07-2, do qual foi retirado o texto transcrito entre aspas que antecede).
Os deveres a que os gerentes estão vinculados decorrem da lei (deveres de cuidado e deveres de lealdade; art.º 64º, 1 do CSC) e podem também decorrer dos estatutos. exigindo-se que a violação da lei ou dos estatutos seja grave, praticados com dolo ou com negligência forte.
O art. 64º do Código das Sociedades Comerciais impõe a observância de deveres de cuidado, tanto nas relações internas, como nas relações externas, sejam eles credores, entidades administrativas, trabalhadores ou quaisquer outros interessados. O dever de cuidado está ínsito na atuação do “gestor criterioso e ordenado” e no grau de diligência que esta atuação exige. Os gerentes estão adstritos a deveres de cuidado, de diligência e de lealdade.
Constituirá fundamento de justa causa de destituição, além da já referida violação grave dos deveres do gerente, também a incapacidade para o exercício normal das funções. “(…) a justa causa tanto possa ser subjetiva como objetiva. Será justa causa subjetiva a que resulte da violação culposa dos deveres que, da lei ou do contrato de administração, decorrem para o gerente, em termos muito próximos da feição laboral em que se exige justa causa para o despedimento de trabalhadores. Será objetiva se respeitar à incapacidade para o exercício do cargo, sem qualquer culpa do gerente, como a incapacidade decorrente de uma situação de doença prolongada, ou qualquer outra circunstância em que, mantendo-se a prestação ainda possível, perturbe gravemente a relação de administração. Admite-se ainda que o conceito possa ter diferentes concretizações, sendo mais ou menos exigente, em diferentes hipóteses de destituição” (Menezes Cordeiro, “Código das Sociedades Comerciais Anotado” – 2009 – pág. 675 – sobre o conceito de justa causa de destituição, de onde foi retirado o extrato transcrito).
Igualmente constituirá justa causa de destituição a atuação do gerente que torne inexigível à sociedade manter a relação orgânica com aquele (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Jorge Coutinho de Abreu, Vol. IV, 2ª edição, Almedina, Junho, 2017, pág. 128).
Como se defende no Ac. do STJ de 26.02.2019, proc. nº 219/13.4TYLSB.L2.S3, “a justa causa destitutiva do gerente da sociedade relaciona-se com os princípios da confiança e a boa fé que devem ser observados por quem detém essa função na sociedade, princípios muito relevantes nas relações com os credores sociais, sócios e terceiros, de modo a que a transparência dos comportamentos e o rigor ético das condutas, possam ser valorados objetivamente e subjetivamente. A justa causa é uma sanção excludente do “infrator”, que visa defender a sociedade, na sua inserção na vida comercial.”
A relação entre a sociedade e o gerente assenta numa relação de confiança, pelo que constitui justa causa de destituição, a atuação do gerente que “exprima violação grave dos deveres de gerente, mormente, dos deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, que impliquem perda irreparável da confiança dos afetados por essa atuação, seja no contexto interno da sociedade, seja na sua relação com terceiros a justificar a impossibilidade da manutenção do vínculo que o une ao ente societário, por existir conflito de interesses gerador de danos efetivos ou potenciais, que devam ser consideradas razão inequívoca da inexigibilidade da manutenção daquele vínculo jurídico. (cfr. Ac. do STJ, de 30.9.2014 - Proc. 1195/08.0TYLSB.L1.SI, do qual foi retirado o extrato transcrito).
Ora, tendo em conta os factos dados como provados nos pontos que se transcreveram, ainda que a impugnação dos factos provados e não provados fosse julgada procedente, a factualidade que se mantêm é substancial e integradora do conceito de justa causa. A atuação do requerente, usando o património da sociedade em seu proveito e em proveito dos seus familiares, a sua recusa em adotar procedimentos contabilísticos mais transparentes, o perdão dos juros vencidos e vincendos à Câmara Municipal ..., no valor de 40.817,16, sem que se tenha apurado qualquer contrapartida para a sociedade revelam um comportamento grave, contrário ao de um gestor cuidadoso e criterioso e violador do dever de lealdade a que o gerente está adstrito, sendo contrário aos interesses da sociedade.
O artº 242º, nº 1 do CSC exige que para a exclusão judicial de sócio de sociedade por quotas, o sócio tenha tido um comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade que lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes.
A lei já não exige esse prejuízo relevante para a destituição da gerência com fundamento em justa causa.
O que está em causa na relação do gerente com a sociedade é uma relação de confiança de que este observará o interesse da sociedade, nas decisões que tomar. Independentemente do prejuízo causado, desde que esteja comprometida essa relação, ocorre justa causa. Quebrada a confiança, fica irremediavelmente comprometida a relação gerente-sociedade.
O comportamento do apelante ao longo dos anos, persistindo numa conduta que sabia ser censurável e não praticada no interesse da sociedade, mas sim no seu próprio interesse, tratando o património da sociedade, pessoa jurídica diferente, como fosse seu, independentemente do valor que a conta corrente entre o sócio e a sociedade apresente, constitui justa causa de destituição, pois mostra-se irremediavelmente quebrada a relação de confiança inerente e imprescindível à relação entre o gerente e a sociedade que representa e violados os deveres de cuidado e de lealdade a que está adstrito.
Não se põe em causa que o apelante tenha trabalhado muito em prol da sociedade que geria há mais de 30 anos. No entanto, o apelante não quis aceitar que o património da sociedade é independente do seu, sendo igualmente intoleráveis comportamentos como os praticados pelo apelante, de compra e venda de serviços/bens sem qualquer registo. A sociedade hoje privilegia, e bem, a transparência e o rigor, sendo as leis vigentes o reflexo desse pensamento.
Consequentemente, mostra-se inútil como salientado pela apelada, o conhecimento da impugnação da matéria de facto (factos provados 13, 23 e 32, factos não provados pontos 6 e 7 e alterações aos pontos 20, 38, 46, 48, 49, 53 e 55) que seria relevante, não fosse a demais matéria dada como provada, para conhecimento da questão da existência de justa causa da destituição (sem prejuízo de poderem vir a ser considerados relevantes para a apreciação da questão do abuso de direito, impondo-se, nesse caso, o seu conhecimento).
Relativamente aos factos que o apelante que sejam aditados à matéria de facto que em seu entender estão admitidos por acordo, uma vez que foram alegados nos artigos 40º, 41º e 72º da contestação e não foram impugnados, o apelante não tem razão.
São eles:
.A Sociedade A..., Lda., apresentava em 2020 um ativo de € 5.035.669,73, capitais próprios de € 3.577.960,76, um volume de negócios superior a € 1.300.000,00 e tinha 38 trabalhadores.
. A conta da Sociedade destinada à exploração do estabelecimento Hotel B... apresentava a 31.05.2022 um saldo bancário positivo de € 1.977.306,67, e a conta destinada à exploração do C... um saldo bancário positivo de € 581.83,23.
Estes factos não podem ser considerados admitidos por acordo, porquanto a apelada apenas se pronunciou sobre a factualidade alegada em sede da invocação da exceção de abuso de direito (onde tais factos não foram alegados) e sobre a admissibilidade da reconvenção, estando-lhe, aliás, vedado pronunciar-se sobre os demais factos, pelo que não se pode entender que ao não se ter pronunciado sobre os factos que não foram alegados em sede de exceção de abuso de direito, a apelante os admitiu por acordo, pelo que não houve qualquer erro do Tribunal que importe corrigir.
A demais matéria impugnada (pontos 3 e 4 dos factos não provados e a que o apelante pretende aditar) é irrelevante para o conhecimento da questão da justa causa de destituição (sem prejuízo de, à semelhança do que se referiu já, poder vir a ser analisada se for considerada relevante para a questão do abuso de direito).
Apreciemos então se a factualidade impugnada e a demais que o apelante pretende aditar aos factos provados, é relevante para o conhecimento da questão suscitada pelo apelante de que a apelada age em abuso de direito, ao requerer a sua destituição de gerente, questão que só se coloca porque se considera que os atos praticados pelo apelante constituem justa causa de destituição.
Na sua contestação, a partir do artº 153º, o apelante veio invocar o abuso de direito alegando que a imputação de despesas pessoais na Sociedade é uma prática que não é exclusiva do Requerido, sendo que a Requerente também o faz. Só que, como se encontrava a preparar o ataque ao Requerido, através das várias ações judiciais pendentes, a mesma refreou-se nos últimos tempos de o fazer de forma tão ostensiva.
A atuação do Requerido, que se pode qualificar até de ingénua, sempre foi aceite e partilhada pela Requerente enquanto as suas relações estavam bem.
Na sua contestação o apelante invoca diversas atuações da apelada que representam imputações à sociedade de despesas que são da apelada e não da sociedade, concluindo que a apelada age em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (artºs 196º e 197º da contestação) e de tu quoque (artºs 200º e 201º da contestação).
A sentença recorrida, depois de discorrer sobre o instituto do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium pronunciou-se sobre a questão, concluindo que a ora apelada não agiu em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, escrevendo a propósito “O requerido funda o abuso de direito da requerente porque esta veio requerer a sua suspensão/destituição da gerência com base em comportamentos que eram igualmente praticados pela requerente, designadamente o pagamento de despesas pessoais com o património da sociedade, a disposição do património social como sendo património pessoal, havendo assim uma chocante contradição com o comportamento anterior adotado pelo recorrido. Ou seja, imputa-lhe a atuação em abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”. Mas vistos os factos apurados conclui-se que os mesmos não assumem relevância, força e dignidade suficientes para fundamentarem a atuação da requerente em abuso de direito. Em primeiro lugar demonstrou-se que a sociedade era gerida, na prática, pelo requerido que dela dispunha, sem dar grandes justificações à requerente, em segundo lugar provou-se que a atitude da requerente perante a sociedade e o requerido alterou-se desde 2016, tendo esta declarado que pretendia mais transparência na contabilidade, bem como pretendia salvaguardar o património da sociedade sem que o mesmo se confundisse com o património pessoal. De facto e desde essa data, e até à propositura desta ação não se provou que a requerente tenha adotado uma conduta concordante e desculpabilizante com a atuação do gerente e os comportamentos que lhe são imputados e fundamentam o pedido de suspensão/destituição da gerência. Aliás é por não concordar com tal atuação que foi instaurado o presente processo.
Em síntese, não resultou provado (sendo que o ónus era do requerido) que a requerente tenha adotado uma postura contrária aos ditames da boa fé, pelo que o exercício do direito de ação por parte da requerente é totalmente legítimo, não estando demonstrado o alegado abuso de direito.”
No seu recurso o apelante vem insistir pela atuação da apelada com abuso de direito, o que a impede de obter a destituição do gerente do apelante, uma vez que levava a cabo as mesmas práticas do que este e porque pretendeu dissolver a sociedade, reiterando o abuso de direito nas modalidades de abuso de venire contra factum proprium e tu quoque.
Também, a propósito do abuso de direito, a apelada vem alegar que as alterações que se pretendem introduzir são irrelevantes para a decisão.
Vejamos:
Dispõe o artº artigo 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o respetivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O exercício abusivo do direito traduz-se no “comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal – definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto – materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”(cfr. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391 ).
O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.
A parte que abusa do direito atua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito (cfr. se defende no Ac. do STJ de 13.01.2005, proferido no proc. 04B4063). “O nosso sistema legal acolhe uma conceção objetiva do abuso de direito, não exigindo a consciência do “abusador” no sentido de se encontrar a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objetivamente, se excedam tais limites. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção.
Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (extrato retirado do Ac. do TRG de 12.02.2015, proferido no proc.4090/12).
Têm sido apontadas diversas modalidade de abuso de direito, designadamente, venire contra factum proprium, supressio, inalegabilidade formal e tu quoque.
O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas. Estas, depois de tomarem uma determinada atitude, perante os outros, devem ser coerentes, mantendo o mesmo comportamento para o futuro, evitando a lesão das expectativas geradas à volta do seu comportamento anterior.
O que é importante, para o caso desta modalidade de abuso de direito, é saber quando é que um comportamento é relevante, isto é, gera a confiança no outro, de molde a que acredite que não terá um comportamento contrário. E, em face desta crença, organiza a sua vida económico-social, esperando que o outro não altere o seu comportamento. O comportamento, gerador da confiança nos outros, tem de ser expresso e inequívoco, de molde a que seja vinculativo para a parte. Só nestas circunstâncias é que o outro acredita ou tem razões fortes para acreditar que vai honrar, no futuro, o seu compromisso. Não basta uma mera aparência para que se gere a confiança, para que se acredite que a atuação futura irá ser sempre nesse sentido. É necessária uma atitude concludente, inequívoca, assumida, expressamente, perante o outro, com uma força tal, que não deixe dúvidas, que no futuro não irá ser surpreendido com um comportamento contrário” (cfr. se defende no Ac. do TRG de 23.04.2015, proferido no proc. 495/08).
Na sua estrutura, o venire pressupõe duas condutas da mesma pessoa, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o factum proprium) é contraditada pela segunda (o venire), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito.
Ora, ainda que se altere a matéria de facto, no sentido proposto pelo apelante, não se vislumbra como é que os factos em causa podem permitir a conclusão de que a atuação da apelada gerou no apelante a convicção de que nunca iria requerer a sua destituição. O próprio apelante reconhece que a partir de determinada altura, já no intuito de vir a requerer a sua destituição, a apelada passou a apresentar despesas muito menos ostensivas do que ele.
Efetivamente, conforme se apurou e não foi posto em causa, as reservas e suspeitas da sócia AA sobre a regularidade comercial e fiscal das contas da sociedade e a fidelidade dos registos constantes da contabilidade respeitantes ao Hotel B..., apresentados pelo sócio BB, e que reflexamente atingiam a regularidade e fidelidade das contas da sociedade atinentes aos dois estabelecimentos hoteleiros, existiam, já, entre os anos de 2010 e 2015. Por isso a sócia AA socorreu-se de técnicos que a pudessem elucidar e escrutinar as contas da sociedade do exercício de 2016. Nesse sentido, consultou contabilista certificado e solicitou um estudo comparado dos resultados da atividade e dos registos constantes da contabilidade da sociedade nos anos de 2010 a 2015.
Tendo presentes as informações constantes da referida auditoria e do mencionado parecer do contabilista certificado, a sócia AA advertiu o sócio BB de que, a partir de 2016, passaria a cumprir a lei comercial e fiscal no exercício da atividade hoteleira do Restaurante/Hotel C..., e, nomeadamente, a elaborar e a registar diariamente, e devidamente identificados, na folha de caixa, os recebimentos e pagamentos, o saldo de cada período, bem como os reforços e a sua origem; a proceder regularmente ao depósito bancário das quantias recebidas e a proceder à reconciliação diária das vendas de bens e dos serviços prestados, com os meios de pagamento utilizados, a proceder à reconciliação dos meios de pagamento utilizados (dinheiro, cheque ou transferência bancária), nas contas correntes dos fornecedores e a proceder às reconciliações bancárias a 31 de Dezembro com os extratos bancários.
Ao mesmo tempo, a sócia AA advertiu o sócio BB que deixaria de aprovar as contas da sociedade dos anos de 2016 e seguintes, caso as mesmas não estivessem suportadas nos documentos exigidos, comercial e fiscalmente, ou os documentos apresentados não permitissem um efetivo e real controlo das vendas/prestações de serviços prestados, das contas de clientes, das despesas suportadas com fornecedores (contas de fornecedores), nos mesmos termos que passaram a ser seguidos no Hotel C.... E, em conformidade, a apelada deixou de aprovar as contas a partir do exercício de 2016, inclusive ate 2020, só as vindo a aprovar posteriormente, porque o ROC a informou que seria possível efetuar as correções necessárias no exercício de 2022 (ponto 22 e 55 – parte final, segmento não impugnado).
Ora, tendo em conta esta factualidade (pontos 15 a 19 e 22 e 55), o apelante não poderia criar a convicção de que a requerente nunca iria requerer a sua destituição de gerente.
Assim, tanto a factualidade impugnada como a que o apelante pretende aditar, em face dos factos dados como provados e não impugnados nos identificados pontos, ainda que fosse dada como provada, não tem a virtualidade de permitir a conclusão de que a requerente atua em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, pois que, ainda que se apurasse que a apelada pagou com o património da sociedade despesas pessoais, não se poderia concluir que a requerente atuou de modo a criar a convicção no apelante de nunca iria requerer a sua destituição.
E na modalidade de tu quoque?
O conteúdo do princípio da proibição do tu quoque é o de que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma atuação ilícita da contraparte (cfr. se defende no Ac. do STJ de 14.03.2019, proc. 1189/15.0T8PVZ.P1.S1).
O tu quoque (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:
- ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;
- ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio;
- ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.”
Como se refere ainda no acórdão do TRL de 12.01.2023 (proc. nº 25598/19.6T8LSB-A.L1-6) “Estamos perante um tipo abusivo que suscita algumas dificuldades dogmáticas. Ele disfruta, de resto, de um suporte doutrinário claramente inferior ao dos restantes tipos.
II. O Código VAZ SERRA tem numerosas consagrações parcelares da regra-mãe tu-quoque (117).
Recordamos três:
— artigo 126.º: o menor que use de dolo para se fazer passar por maior não pode invocar a anulabilidade do acto;
— artigo 342.º/2: há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova do onerado;
— artigo 570.º/1: a culpa do lesado pode reduzir ou excluir a indemnização.
Todavia, torna-se problemático generalizar estas menções: isso poderia equivaler a permitir repercutir, indefinidamente, as inobservâncias da ordem jurídica. O tu quoque requer, assim, uma aplicação confinada entre as partes envolvidas.
III. O tu quoque deve ser aproximado do segundo princípio mediante, entre a boa fé e os casos concretos: o da primazia da materialidade subjacente (118). A ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos.”
Diversamente do que se passa no "venire contra factum proprium", em que a contradição está no comportamento do titular do direito, no "tu quoque" a contradição está nas bitolas valorativas utilizadas pelo titular do direito para julgar e julgar-se.”
O sujeito que viola uma posição jurídica não pode exigir o seu acatamento, sob pena de incorrer em abuso do direito.
Assim, mostra-se relevante para a apreciação da questão do abuso de direito por parte da requerida, na modalidade de tu quoque, da seguinte factualidade impugnada pelo apelante:
Alteração do facto provado 38 - A sociedade “A... Lda”, ao longo dos anos, tem suportado despesas de milhares de euros em viagens pessoais realizadas pelo requerido e familiares - aditando-se que as despesas também foram realizadas pela requerida e seus famílias e eliminando-se a referência a milhares de euros.
Facto não provado 4 - Que a requerente tenha feito seu o proveito resultante do arrendamento até 2015 do imóvel identificado no ponto 185.º da contestação.
Facto não provado 3 - As despesas imputadas pelo requerido à requerente nos artigos 171.º a 184.º da sua contestação são despesas pessoais desta última, sem relação com a atividade da Sociedade.
E face a esta modalidade de abuso de direito, também se mostra relevante a apreciação da seguinte materialidade que a apelante pretende que seja aditada à matéria provada:
.Através da manipulação do programa de faturação WinRest do estabelecimento C..., a Recorrida ao longo dos anos removeu da faturação diversas vendas, as quais não eram tributadas nem entravam na contabilidade da sociedade, sendo que da auditoria tributária realizada em 2014 resultou que apenas no período de 2010 a 2012 tal conduta prejudicou a sociedade em pelo menos € 541.969,66.
. A Requerente imputa despesas à Sociedade referentes a imóveis não afetos à atividade
da Sociedade.
Dada a relação entre a factualidade pretendida aditar relativa à manipulação do programa de faturação Winrest, mostra-se também necessária a apreciação da alteração pretendida ao ponto 48, dada a sua interligação e para evitar contradições, o qual tem a seguinte redação - A sociedade foi objeto de auditoria em 2014 por parte da autoridade Tributária tendo sido detetadas desconformidades em resultado da imputação de despesas pessoais fora da atividade da sociedade e da existência de consultas de mesa no restaurante sem a respetiva fatura/venda a dinheiro – pretendendo o apelante que seja acrescentado que a imputação de despesas pessoais são da recorrida e que a desconformidade diz respeito ao restaurante do Hotel C....
Vejamos:
Alteração do facto provado 38
O apelante fundamenta-se nas declarações da apelada e da sua filha EE.
Sociedade.
Apreciando:
A apelada já na resposta à exceção de abuso de direito, no artº 16º, tinha admitido ter apresentado despesas pessoais em nome da sociedade, mais concretamente estadas no Brasil e viagens a Nova Iorque, mas que tais despesas ocorreram em 2010, quando ainda vigorava entre as partes um acordo no sentido de poderem ser imputadas à sociedade determinadas despesas dos gerentes com deslocações, embora tivessem sido feitas apenas no seu exclusivo interesse. No referido artº 16º da resposta, a apelada invoca que “esse pacto ou acordo de gestão foi quebrado, irrevogável e definitivamente, pela A., depois dessa fiscalização tributária, em 2017, mediante repetidas advertências e comunicações pessoais feitas ao R., até por escrito (normalmente via email), e a exigência de que, a partir de tal data, as contabilidade da sociedade teria de ser efetuada segundo as regras da legislação comercial e fiscal, o Sistema de Normalização Contabilística, e as boas práticas de transparência, entre elas se contando a elaboração das folhas de Caixa, por onde circulavam todos os débitos e créditos, e a realização de reconciliações bancárias. A A. não era obrigada a permanecer na ilegalidade, nem o R. lhe podia exigir o prosseguimento de práticas manipuladas de organização da contabilidade” .
Nas declarações que prestou em julgamento, a apelada depôs no mesmo sentido, explicando que os documentos das despesas eram entregues ao apelante, que decidia do seu destino, uma vez que era técnico oficial de contas, sendo a imputação dessas despesas à sociedade igualmente confirmado pela testemunha EE, filha do requerido, que exerceu as funções de diretora do Hotel C... entre 2002 e 2015, altura em que passou a exercer funções no Hotel B..., em virtude do desentendimento entre as partes.
Igualmente a apelada declarou que só teve conhecimento da inspeção tributária realizada em 2014 no final de 2014 ou mesmo em 2015 e que após, pretendeu alterar o seu comportamento e do sócio.
Assim, em face das declarações prestadas pela apelada que assumiu ter imputado à sociedade despesas pessoais com viagens, confirmadas pelo depoimento da testemunha e pelo relatório da inspeção tributária, deve ser alterada a redação do artº 38º, passando a ter a seguinte redação:
.A sociedade “A... Lda”, ao longo dos anos, tem suportado despesas de milhares de euros em viagens pessoais realizadas pelas partes e seus familiares, tendo a requerente deixado de apresentar tais despesas, pelo menos, a partir de 2017.
(…)
Aditamento de novo facto: Através da manipulação do programa de faturação WinRest do estabelecimento C..., a Recorrida ao longo dos anos removeu da faturação diversas vendas, as quais não eram tributadas nem entravam na contabilidade da sociedade, sendo que da auditoria tributária realizada em 2014 resultou que apenas no período de 2010 a 2012 tal conduta prejudicou a sociedade em pelo menos € 541.969,66 (artºs 162º a 165º da contestação) e alteração do facto provado 48 - A sociedade foi objeto de auditoria em 2014 por parte da autoridade Tributária tendo sido detetadas desconformidades em resultado da imputação de despesas pessoais fora da atividade da sociedade e da existência de consultas de mesa no restaurante sem a respetiva fatura/venda a dinheiro.
O apelante fundamenta-se nas declarações prestadas pela apelada, no depoimento da testemunha EE e no relatório elaborado pela Autoridade Tributária, junto como doc nº 21 com a contestação, pág. 34.
Sobre esta matéria depuseram a apelada e a testemunha EE.
Apreciando:
A alteração do programa Winrest foi alegada pelo apelante na contestação – artºs 161º a 164º . No articulado de resposta, a apelada pronunciou-se sobre estes factos, impugnando-os “na medida em que essas irregularidades tributárias resultaram de opções do R. impostas à A. e à sua filha EE e do tratamento, organização e registo contabilístico, na contabilidade, que o mesmo dava, seguindo os seus critérios pessoais, à documentação que as mesmas lhe entregavam” (artº 17º do articulado de resposta). A apelante não negou assim estes factos, apenas apresentou uma justificação para tal prática, pelo que se entende que estes factos estão admitidos por acordo. Mas ainda que não tivesse admitido tais factos, tendo em conta as declarações prestadas pela apelada, o depoimento da testemunha EE e o relatório de auditoria que dá conhecimento da desconformidade entre a faturação e as consultas de mesa no restaurante do Hotel C... (o Hotel B... não tem restaurante), entende-se que se mostram provados parte dos factos que o apelante pretende que sejam aditados. Não se provou que a omissão de proveitos do restaurante do Hotel C... conduziu a um pagamento adicional a título de IVA superior a 30.000,00, uma vez que não resulta do relatório da Autoridade Tributária que a quantia adicional de IVA tivesse resultado somente da adulteração do programa Winrest, como alega o apelante. De acordo com o relatório a liquidação adicional de IVA resultou não só da omissão de proveitos, como também da eliminação de IVA incorretamente deduzido (cfr. resulta do relatório da inspeção junto como doc. nº 21 com a contestação).
Relativamente à imputação da totalidade das despesas pessoais apuradas somente à apelada, como pretende o apelante, não entendemos que tenha sido feita prova. Desde logo, resulta das declarações da testemunha EE que a viagem ao Brasil, faturada à sociedade, envolveu a deslocação da filha da apelada (esta e o marido acabaram por não poder ir) e da própria testemunha, marido e filho, pelo que não estão em causa apenas despesas pessoais da apelada e da sua família, mas também da família do apelante.
Aditam-se, consequentemente, à matéria de facto provada, os seguintes factos:
Através da manipulação do programa de faturação WinRest do estabelecimento C..., a Recorrida ao longo dos anos removeu da faturação diversas vendas, as quais não eram tributadas nem entravam na contabilidade da sociedade, o que foi detetado na auditoria tributária realizada em 2014, reportada ao período de 2011 a 2012.
E altera-se o facto 48, inserindo-se que se trata do restaurante do C... (uma vez que o Hotel B... não tem restaurante, nem utilizava o Winrest) do seguinte modo:
A sociedade foi objeto de auditoria em 2014 por parte da autoridade Tributária tendo sido
detetadas desconformidades em resultado da imputação de despesas pessoais fora da atividade da sociedade e da existência de consultas de mesa no restaurante afeto ao estabelecimento C... sem a respetiva fatura/venda a dinheiro.
Vejamos seguidamente se a matéria provada, considerando as alterações introduzidas, permite que se considere que a apelada ao instaurar a presente ação agiu em abuso de direito, na modalidade de tu quoque.
É verdade que da matéria de facto resulta que até determinada altura era consensual entre os sócios a possibilidade de apresentarem despesas pessoais como despesas da sociedade, acordo que se manteve durante vários anos. O momento de viragem por parte da apelada, ter-se-á iniciado com a inspeção tributária que teve lugar em 2014 , conforme resulta dos autos – doc. nº 21 junto com a contestação, altura em que não foram aceites diversas despesas dos gerentes por não ter sido demonstrado terem sido efetuadas no interesse da sociedade.
Como a apelada vinha já tendo reservas e suspeitas sobre a regularidade comercial e fiscal das contas da sociedade e sobre a fidelidade dos registos constantes da contabilidade respeitantes ao Hotel B..., apresentados pelo sócio BB, e que reflexamente atingiam a regularidade e fidelidade das contas da sociedade atinentes aos dois estabelecimentos hoteleiros, desde 2010, o que se manteve entre 2010 e 2015, a requerente socorreu-se de técnicos que a pudessem elucidar e escrutinar as contas da sociedade do exercício de 2016. Nesse sentido, consultou Contabilista Certificado. Por outro lado, solicitou um estudo comparado dos resultados da atividade e dos registos constantes da contabilidade da sociedade nos anos de 2010 a 2015.
Tendo presentes as informações constantes da referida auditoria e do mencionado parecer do contabilista certificado, a sócia AA advertiu o sócio BB de que, a partir de 2016, passaria a cumprir a lei comercial e fiscal no exercício da atividade hoteleira do Restaurante/Hotel C..., e, nomeadamente, a elaborar e a registar diariamente, e devidamente identificados, na folha de caixa, os recebimentos e pagamentos, o saldo de cada período, bem como os reforços e a sua origem; a proceder regularmente ao depósito bancário das quantias recebidas e a proceder à reconciliação diária das vendas de bens e dos serviços prestados, com os meios de pagamento utilizados, a proceder à reconciliação dos meios de pagamento utilizados (dinheiro, cheque ou transferência bancária), nas contas correntes dos fornecedores e a proceder às reconciliações bancárias a 31 de Dezembro com os extratos bancários.
Ao mesmo tempo, a sócia AA advertiu que deixaria de aprovar as contas da sociedade dos anos de 2016 e seguintes, caso as mesmas não estivessem suportadas nos documentos exigidos, comercial e fiscalmente, ou os documentos apresentados não permitissem um efetivo e real controlo das vendas/prestações de serviços prestados, das contas de clientes, das despesas suportadas com fornecedores (contas de fornecedores), nos mesmos termos que passaram a ser seguidos no Hotel C..., o que o seu sócio se recusou a fazer.
Ora, se é verdade que a apelada também apresentou despesas pessoais, o certo é que a partir de determinada altura, entendeu que tal comportamento não devia prosseguir e que a atividade de ambos os estabelecimentos tinha de ser registada com rigor e transparência. Neste propósito não foi seguida pelo seu sócio que continuou a utilizar dinheiro da sociedade para diversas despesas pessoais suas e familiares e que se recusou a adotar os novos procedimentos contabilísticos.
Os factos que se aditaram aos factos provados não têm relevo suficiente para sustentar a procedência da exceção de abuso de direito.
Efetivamente, a adulteração do programa Winrest teve lugar em momento anterior à inspeção tributária realizada em 2014, a qual teve por objeto os exercícios de 2011 e 2012, tendo posteriormente a apelada procurado pautar a gestão do Hotel C... pela transparência e pelo rigor, como se referiu já, procedimentos que também procurou que fossem seguidos pelo apelante no Hotel B..., sem sucesso, só conseguindo adotar novos procedimentos a partir do momento em que o apelante foi destituído e a apelada assumiu também a gestão deste Hotel.
A faturação posterior, já em 2018, em nome da sociedade de uma despesa no valor de 1.200,00 euros relativa à limpeza de um terreno de que é comproprietária com o apelante, por se tratar de um bem que é comum de ambos os sócios, não é passível de um juízo de censura no mesmo grau que a faturação de todos os itens pessoais referidos em supra 34, 35, 37 a 43 em nome da sociedade. Se bem que tal imputação não devesse ter sido feita à sociedade, não reveste a gravidade da conduta do apelante que os factos ilustram, de modo a que se possa concluir que o comportamento da apelada, ao requerer a destituição do apelante da gerência da sociedade A..., Lda., da qual são os únicos sócios, fere de modo intolerável o sentimento de justiça dominante como é requisito do abuso de direito.
No mesmo sentido há que concluir relativamente ao pedido de dissolução formulado pela apelada com base na não aprovação das contas relativas aos exercícios de 2016 a 2020 que posteriormente veio a ser retirado, porque o motivo em que se fundamentava – não ter a sociedade as contas aprovadas desde 2016 – deixou de existir. É certo que se provou que a apelada veio a aprovar as contas, nos mesmos termos em que se encontravam quando recusou a sua aprovação, mas fê-lo porque foi informada pelo ROC que era possível no exercício de 2022 efetuar as necessárias correções aos exercícios anteriores, cfr. ponto 53 dos factos provados. Note-se que a apelada, antes de se recusar a aprovar as contas, não deixou de alertar o seu sócio para a necessidade de adotar um comportamento mais rigoroso e transparente, o que este não aceitou, sendo lícita a sua recusa de aprovação das contas.
A sentença recorrida não merece, consequentemente, censura.
Sumário:
(…).
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Coimbra, 14 de janeiro de 2025
[1] Por facilidade de exposição, optou-se por numerar os factos não provados.
[2] Acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser referidos sem indicação da fonte.