I – A excepção da ilegitimidade substantiva diz directamente respeito à relação material e afere-se em concreto, após a produção de prova, em vista da espécie de acção instaurada, dos pedidos formulados e das causas de pedir apresentadas.
II – As questões a decidir enunciadas na Sentença compõem-se das grandes temáticas suscitadas numa acção, não precludem o conhecimento de outras que sejam nelas abrangidas, ou delas decorrentes ou conexas, e decompõem-se noutros tantos segmentos que o objecto da acção exija, não podendo constituir decisão surpresa para a parte que, sempre patrocinada, acompanhou todos os termos e actos processuais.
III – A prova testemunhal tem, por um lado, que ser encarada e compreendida no seu conjunto, e, por outro lado, por reporte a cada testemunho produzido, não se podem desgarrar parcelas dos depoimentos sob pena de descontextualização e incongruência.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrentes: AA e BB
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
Em 24 de Setembro de 2020, CC e DD propuseram acção declarativa sob a forma de processo comum, de reivindicação, contra AA e BB, todos ali melhor identificados.
Após aperfeiçoamento da petição inicial[2], alegaram ser proprietários e possuidores de uma unidade predial mista, adquirida pela 1.ª A. por doação; sem autorização e contra a vontade dos AA., os RR. removeram os ferros e a rede que se encontrava fixada em cima de um muro de blocos de cimento, destruindo-os (rede e ferros), colocando, no seu lugar, fiadas em bloco em cimento e no seu topo uma pedra em mármore ou granito, rebocando a parte exterior do muro e pintando-o, apropriando-se de uma sua parcela, com o que motivaram deslocações dos AA. ao local, causando-lhes tristeza e humilhação, pelo que requereram que os RR. fossem:
«a)- Condenados a reconhecerem os autores os únicos e legítimos donos e possuidores da unidade predial composta pelos prédios descritos nas alíneas do artigo 1º desta petição;
b)- Condenados a reconhecerem os AA legítimos proprietários e possuidores do muro, numa distância aproximada de 71,0 metros de comprimento, por 0,22 metros de espessura, a que corresponde uma área de ocupação de 1,562 metros quadrados, foi ilicitamente apropriado pelos Réus, uma vez ser parte integrante do prédio rústico (unidade predial) acima descrito;
c)- Que os Réus esbulharam os AA da posse de um muro com 7,10 metros de comprimento, por cerca de 1,50 metros de altura e cerca de espessura 0,22 metros, apropriando-se pois de uma área correspondente a 1,562 metros quadrados, devendo ser, por isso, condenados a restituir aos autores o referido muro (e área), repondo a situação existente antes das obras descritas nos pontos 20º e segs desta peça.
d)- Condenados a absterem-se de por qualquer forma, via ou meio, perturbar, impedir, impossibilitar ou turbar o legal e legítimo direito dos AA ao uso, gozo e fruição do domínio e posse sobre aqueles seu prédios bem como sobre o muro, acima referenciados.
e)- Condenados no pagamento do valor da realização da reposição do muro tal como se encontrava, valor esse que por ora a Autora não tem meios para quantificar e que deverá ser liquidado posteriormente (cf. artigos 358º, n.º 2 e 609º, n.º 2, ambos do CPC), bem como permitirem a realização da referida obra;
f)- Condenados no pagamento aos AA de 100,00€ (cem euros) por danos patrimoniais (destruição da rede e quatro ferros
g)- Condenados no pagamento aos AA de 2.500,00€ por danos não patrimoniais; e
Cumulativamente,
h)- Condenados em repararem os danos que causaram no prédio da Autora, sob a fiscalização desta;
Ou em alternativa ao pedido em D)
i)- Condenados a pagarem aos Autores o valor da reparação que por ora, se liquida em 1.000,00 € (mil euros), com a ressalva da eventual necessidade de ulterior liquidação em virtude de danos que, por ora, não são perceptíveis e, como tal, não quantificáveis (cf. artigos 358º, n.º 2 e 609º, n.º 2 ambos do CPC), acrescidos de juros legais a contar da
citação até efectivo e integral pagamento; e sempre,
j)- A final, serem os RR condenados a pagarem as custas a que deram causa e demais encargos legais.».
Aquando da contestação, os RR. impugnaram a versão carreada pela contraparte, designadamente que os AA. ali tenham praticado quaisquer actos materiais de posse, antes quem o fazia era o pai da A. – com quem os RR. têm relação de parentesco –, e que o muro faz parte integrante do prédio dos RR.
Foi proferido Despacho Saneador e, em face do valor da causa (7000 €, sete mil euros), sem indicação do Objecto do Litígio e dos Temas de Prova.
Em momento imediatamente anterior à Audiência de Discussão e Julgamento os RR. arguiram a excepção de ilegitimidade substantiva dos AA., a qual foi desatendida pelo Tribunal, motivando a interposição de recurso por parte daqueles (Apenso A).
A acção prosseguiu os seus trâmites até que,
Foi exarada Sentença em 12 de Janeiro de 2024, em cuja parte dispositiva lê-se:
«a) Declaro que os autores CC e DD possuem legitimidade substantiva para intervir nos presentes autos, e consequentemente, julgo improcedente a excepção de ilegitimidade substantiva invocada pelos réus;
b) Condeno os réus AA e BB a reconhecer os autores CC e DD como únicos e legítimos donos e possuidores da unidade predial composta pelos prédios descritos em A) dos factos dados como provados;
c) Condeno os réus AA e BB a reconhecer os autores CC e DD como legítimos proprietários do muro referido em M) a Q) dos factos dados como provados, numa distância aproximada de 71,0 metros de comprimento, por 0,22 metros de espessura, a que corresponde uma área de ocupação de 1,562 metros quadrados;
d) Condeno os réus AA e BB a reconhecer que esbulharam os autores CC e DD da posse de um muro com 7,10 metros de comprimento, por cerca de 1,50 metros de altura e cerca de espessura 0,22 metros, apropriando-se, pois, de uma área correspondente a 1,562 metros quadrados, condenando os réus AA e BB a restituir aos autores CC e DD o referido muro (e área), e a repor a situação do muro existente antes das obras referidas em R) a V) dos factos dados como provados;
e) Condeno os réus AA e BB a absterem-se de, por qualquer forma, via ou meio, perturbar, impedir, impossibilitar ou turbar o legal e legítimo direito dos autores CC e DD ao uso, gozo e fruição do domínio e posse sobre aqueles seus prédios bem como sobre o muro acima referidos.
f) Condeno os réus AA e BB no pagamento aos autores CC e DD da quantia de €100,00 (cem euros) por danos patrimoniais relativos à destruição da rede e quatro ferros que a suportavam;
g) Absolvo os réus AA e BB do demais peticionado.
h) Absolvo os réus AA e BB do pedido de condenação como litigantes de má fé.
*
Condeno os autores e os réus nas custas do processo, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, na proporção do respectivo decaimento, que fixo em relação aos autores em €2.500,00.».
II.
Irresignados, os RR./Recorrentes interpuseram Recurso de Apelação, cujas alegações, terminam
«CONCLUINDO:
(…)».
III.
Os AA./Recorridos responderam ao recurso, e as suas alegações rematam com as seguintes
«CONCLUSÕES:
(…)».
IV.
Questões decidendas
Sem prejuízo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial (contradição entre o pedido e a causa de pedir e ausência de factos estruturantes da causa de pedir).
- Da excepção de ilegitimidade substantiva dos Recorridos.
- Da prolação de decisão surpresa.
- Da impugnação e apreciação da matéria fáctica, erro notório na apreciação da prova, contradição e ambiguidade entre os factos provados [als. M), O) e P)] e os não provados e ininteligibilidade da decisão sobre a matéria de facto.
V.
Dos Factos
Vêm provados os seguintes factos (transcrição, sublinhando-se os concretamente objecto de impugnação válida):
A) Pela Ap. ...69 de 2019.03.20 encontra-se registada a aquisição, a favor de CC, casada no regime de comunhão de adquiridos com DD, por sucessão hereditária e doação da meação e de quinhão hereditário, do prédio rústico, composto de terreno de regadio, sequeiro, fruteiras e pastagem, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar de Norte com EE (RR), de Sul com Caminho Público, de Nascente com Caminho Público e de Poente com FF e outro, com a área de cerca de 0,101700 ha, inscrito na matriz, anteriormente sob o artigo ...º daquela freguesia e concelho, e descrito e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...12, e do prédio urbano composto por uma cave, rés-do-chão e 1º andar, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...36º, com a área coberta de 63 m2, a confrontar de todos os lados com os próprios e descrito e na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...12.
B) Os dois prédios referidos em A) compõem uma unidade predial mista, sendo que o prédio urbano se situa no interior e numa estrema do prédio rústico, toda ela murada desde há mais de trinta anos.
C) Prédios estes que a Autora mulher adquiriu por doação escrita feita por GG, da meação e do quinhão hereditário que possuía na herança ilíquida e indivisa de sua falecida mulher, HH, celebrada na Conservatória do Registo Civil e Predial ... no dia 15 de Março de dois mil e dezanove.
D) A autora é filha e herdeira única de HH.
E) Há mais de 30 anos a esta parte que os autores, por si, e acedendo à posse dos anteriores proprietários e possuidores de tais imóveis, vêm usando, fruindo e dispondo de modo geral, segundo a sua livre vontade dos prédios referidos em A) a C).
F) Os autores e seus antecessores, sobretudo e de forma diária o pai da autora e antes do falecimento da mãe da autora conjuntamente com esta, vêm limpando, cultivando, colhendo os frutos e produtos produzidos, no prédio rústico, lavrando o terreno e cortando o mato, semeando e colhendo frutos (batatas, alface, tomate, feijão, etc.) e produtos agrícolas variados, plantando e tratando as árvores de fruto, a vinha, podando, enxofrando, desladroando, sulfatando, vindimando, comprando e aplicando adubos, fertilizantes e produtos contra infestantes e arbustivas rogando pessoal e pagando as respectivas jeiras, pagando os respectivos impostos (contribuição autárquica).
G) Quanto ao prédio urbano os autores e seus antecessores ali vêm fazendo as suas refeições e efectuando obras de manutenção, ali dormindo também os seus antecessores, e os autores esporadicamente quando ali se deslocam.
H) Os autores e seus antecessores sempre praticaram os actos referidos em E) a F) ostensivamente, à vista de tudo e todos, e assim de forma pública, sem discussão nem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus, e assim de forma pacífica.
I) Sem quaisquer interrupções ou hiatos, e assim de forma contínua.
J) Na convicção de não estarem a lesar a posse, nem quaisquer interesses ou direitos de outrem, máxime dos réus, e assim de boa-fé.
K) Exercendo tais usos, fruição, disposição, e poder de facto sobre a coisa de forma directa e imediata, sem quaisquer tipos de restrições ou limitações.
L) Plenamente convictos de estarem a exercer um direito próprio e absoluto sobre a totalidade dos prédios, com exclusão de outrem.
M) Os autores edificaram um muro em blocos em cimento e uma rede no seu topo, assente em fundação de betão, numa altura aproximada de 1,50 metros, medida pelo seu exterior (Rua Pública) e cerca de 7,10 metros de comprimento, contados do portão em ferro até à casa dos réus (sentido Nascente/Poente).
N) Muro esse que se encontra implantado na estrema Norte da unidade predial referida em B), desde há mais de 30 anos, juntamente com os ferros, rede e portão.
O) O muro configura um segmento em blocos de cimento com cerca de 7,10 metros de comprimento, que foi edificado sendo apenas visível do lado do logradouro dos réus, a altura de duas fiadas e meia de blocos de cimento com cerca de 60cms, segmento implantado no seguimento e alinhamento com o muro ou parede divisória do prédio dos réus ao longo da estrema sul, com cerca de 30metros.
P) O muro foi construído pela Junta de Freguesia que também erigiu os pilares do portão de acesso ao prédio rústico identificado em A), no âmbito de acordo verbal celebrado há já 25 e mais anos, com os antecessores dos autores, o que tudo foi edificado na estrema sul do logradouro exterior dos réus, então ainda em terra batida, adjacente à entrada por portão em ferro para a garagem do prédio dos réus.
Q) Os autores sempre exerceram actos sobre o muro que integra os prédios referidos em A), argamassando-o, colocando ferros e rede, e fixando um portão em ferro.
R) No dia 18 de Maio de 2020, o réus procederam à remoção da rede e ferros em que se encontravam fixada e apoiada em cima do referido muro de blocos em cimento, com uma altura de cerca de 1,00 metro e cerca de 7,10 metros de comprimento, que se encontrava colocada no muro que vai do pilar direito onde se encontra fixo o portão de acesso ao prédio dos autores até à casa dos réus.
S) Ao removerem a rede e os ferros em que se apoiava e encontrava fixa a rede, os réus destruíram-na bem como aos ferros.
T) Nos dias seguintes ao mencionado em R), os réus procederam à colocação no exacto local onde se encontrava e foi removida a rede e ferros, de quatro fiadas em bloco em cimento e no seu topo colocaram uma pedra em mármore ou granito, no seu topo.
U) Procederam ainda ao reboco da parte exterior do muro (na parte que confina com a via pública) e pintaram-no.
V) Os réus procederam como descrito em R) a U) sem autorização e contra a vontade dos autores, passando a ocupar o referido muro, no estado descrito, apropriando-se do mesmo na extensão e local referidos em M), numa distância de cerca de 7,10 metros de comprimento por cerca de 1,50 metros de altura, por 0,22 metros de espessura, correspondente a uma área de 1,562 metros quadrados.
W) Em consequência do comportamento dos réus tiveram os autores de se deslocar da sua residência habitual na cidade da Guarda, onde residem habitualmente, à povoação das ... para verificar os referidos actos daqueles.
X) Os autores residem na cidade da Guarda, que dista a cerca de 110km, e ali têm a sua vida organizada e estabilizada há dezenas de anos e exercem a sua actividade profissional.
Y) Para adquirir rede e quatro ferros iguais aos que foram destruídos pelos réus e proceder à sua colocação por um trolha, necessita despender quantia não concretamente apurada.
Z) Existia no local próximo dos prédios referidos em A) uma regueira de água que foi destruída no âmbito e por força das obras de pavimentação, calcetamento e manilhamento, então levadas a cabo pela Junta de Freguesia, com o apoio e superintendência da Câmara Municipal, na zona envolvente, há seguramente mais de 25 anos.
AA) As obras referidas em Z) consistiam e consistiram efectivamente, na pavimentação, alargamento e calcetamento com paralelos, dos caminhos públicos e arruamentos envolventes e das complementares de consolidação e suporte do solo e leito dos mesmos, em função das quais se tornou necessário proceder à canalização, desvio e condução por manilhas subterrâneas, das águas provenientes da Rua ... e da Rua ... que desembocavam na dita regueira e invadiam a céu aberto o mencionado prédio rústico em direcção ao ribeiro, que fica a poente do mesmo prédio, e para o qual passaram a desaguar.
BB) Para que fosse possível a realização das obras de desvio das águas e a sua canalização por manilhas subterrâneas de grande porte e diâmetro pelo prédio rústico indicado em A), foi definido como o local mais apropriado para a entrada e manobra das máquinas e viaturas, o local onde se encontra actualmente implantado o portão dos autores.
CC) O muro em pedra então existente ficou destruído com tal abertura para a passagem das máquinas para o prédio rústico referido em A).
DD) A Junta de Freguesia firmou acordo com o pai da autora, então representado pelo avô da autora, no sentido de rasgar uma abertura no muro então existente, tendo em contrapartida acordado refazer o muro e colocar um portão de acesso ao prédio rústico referido em A).
EE) Tendo a Junta de Freguesia vindo a reconstruir o muro em blocos, com altura média de 1,30m a contar dos alicerces, do qual ficaram visíveis do lado do logradouro dos réus, duas fiadas e meia com cerca de 60cm.
FF) Encontra-se implantado no muro em causa um portão em ferro com cerca de 2,80m, cujos pilares foram erigidos pela Junta de Freguesia.
GG) Os réu dirigiram ao pai da autora uma carta registada através do seu mandatário, datada de 20.03.2018, na qual consta escrito que “pretendendo subir e compor a parede divisória na zona adjacente à entrada para a sua casa no Fundo do Povo“, solicitando que o Sr. GG “retire a rede da mesma parede de forma a deixar esta livre e desimpedida para as obras que pretendem realizar.”
HH) O pai da autora deu resposta à referida carta, através de mandatário, por meio da qual declara que o muro e os pilares do portão de acesso ao prédio rústico foram efectuados pela Junta de Freguesia.
II) A casa dos réus, destinada a habitação, sita ao Fundo do Povo, na Rua ..., da freguesia ..., composta por rés-do chão destinado a garagem e 1º andar destinado a habitação, com a superfície coberta de 120m2 e com terreno de logradouro com 125m2, inscrita na matriz no ano de 1985, sob o artigo ...68, actual artigo ...60, descrita na CRPredial ... sob o número ...09 e inscrita a aquisição a favor dos réus pela Ap. ...05 de 2018/02/09, resulta das obras de edificação, reconstrução e melhoramento, feitas no local onde se encontra implantada, proveniente da reconstrução e ampliação de uma casa de altos e baixos anterior a 1951, com cave e andar amplos, com quintal, inscrita na matriz sob a artigo ...68, que os réus adquiriram no ano de 1983 por compra titulada por escritura pública notarial, aos seus donos, II e JJ, em 10 de Agosto de 1983, que que por seu turno, a haviam adquirido ao anterior dono e proprietário, EE, já falecido, que foi residente na mesma freguesia ....
JJ) Casa referida adquirida em 1983, então inscrita na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...68, com terreno de quintal, que tinha parede em pedra em toda a extensão no sentido Sul/nascente, com cerca de 1,50m de altura, que servia de muro de separação e delimitação do prédio rústico confinante, propriedade de KK, proprietária, já falecida.
KK) Sendo na parte exterior do terreno de quintal da casa, então ainda em terra batida e relvão, sem construção edificada, que os réus costumavam estacionar o seu carro quando regressavam de França.
LL) Existia no local uma regueira a céu aberto, que ladeada de ervas infestantes, atravessava o caminho público mais a nascente, vindo da Rua do Fundo do Povo e que entroncava com a Rua ... e a Rua ..., em terra batida, regueira que terminava no local onde actualmente está implantada a grelha em ferro que cobre o aqueduto que substituiu a regueira, por força das obras.
MM) Apresentava-se o terreno rústico referido em A), quando propriedade de KK, já falecida, confinante a sul/nascente da referida parede da casa e do quintal, como terreno de regadio, com o solo coberto em toda a extensão de erva quando em pousio das colheitas de milho, batata e horta, pela grande humidade do solo provocada pela invasão das águas da regueira, sem qualquer muro próprio acima do solo, tendo apenas uma pequena encosta em terra, do lado do caminho público, a nascente.
Não resultaram provados os seguintes factos (transcrição):
1) Os autores sentem-se, tristes, desanimados, humilhados, abusados e gozados pelo comportamento dos réus.
2) Os autores tiveram necessidade de se deslocar ao escritório do seu ilustre mandatário, na cidade ..., pelo menos três vezes.
3) Atenta a mentalidade das pessoas desta região, muito arreigada à propriedade, os autores são vistos como uns bananas, uns fracos, que não conseguem defender dos réus aquilo que é seu.
4) Desde os actos praticados pelos réus os autores dormem com dificuldade, sempre a pensar no assunto.
5) Sendo habitualmente abordados pelas pessoas no sentido de saberem como estão as coisas, sempre que se deslocam, em particular, à povoação de ....
6) Os autores não praticam os actos referidos em E) a G).
7) Os autores dormem diariamente no prédio urbano referido em A).
8) Muito raramente os autores são vistos na freguesia ..., passando despercebidos e sendo inclusive, desconhecidos da generalidade dos habitantes e residentes da mesma freguesia.
9) O muro em causa sempre fez e faz, desde a sua originária reconstrução em blocos de cimento, há seguramente 25 e mais anos, parte integrante do prédio dos réus, constituindo o segmento da continuação do muro divisório dos réus, implantado a sul, que delimita e separa a casa, quintal e logradouro, ao longo de toda a extrema sul com o prédio rústico referido em A).
10) O muro passou a fazer parte integrante do muro divisório referido em 9), após a sua construção, no âmbito de acordo verbal dos réus com a Junta de Freguesia ....
11) O muro foi edificado em reconstrução do anterior e antigo muro em pedra, com mais de 70 anos, que suportava no mesmo local o logradouro em terra batida da casa dos réus, ficando com uma altura aproximada de 1,30m, medida desde os alicerces do lado do aludido prédio rústico.
12) O segmento do muro reconstruído ficou assente no mesmo local onde existia sem construção edificada, a parte da antiga parede ou muro em pedra de seixo e xisto então existente, que delimitava a sul/nascente a antiga casa e quintal dos antepossuidores dos réus, II e mulher, JJ, parte da parede que separava o logradouro dos réus, então em terra batida, do prédio rústico identificado em A).
13) O logradouro dos réus terminava num pedregulho que assinalava um amontoado de pedras e terra, junto à regueira de água, a céu aberto, então existente, que ali vinha morrer, situação esta que assim se verificava quando o mesmo prédio rústico era propriedade de KK e assim se mantinha também, na altura das obras públicas da autarquia, estando o mesmo prédio rústico referido em A) então já na posse do pai da autora.
14) Em ordem a evitar demoras com o arranque das obras, a Câmara Municipal presidida então pelo Engº LL e a Junta de Freguesia ..., presidida à data por MM, privilegiando a via do diálogo e a obtenção de acordo com os réus, abordaram então o pai da ré mulher, NN, que residia na freguesia ... e os representava na sua ausência, pois eram trabalhadores emigrantes em França, no sentido de obter a devida autorização para rasgar a abertura no muro para a passagem das máquinas pesadas, veículos e materiais, para acederem e manobrarem na execução das obras de manilhamento e movimento de terras.
15) O local de passagem dos camiões referido em BB) situou-se no limite do logradouro dos réus e do muro de pedra e relvão que o suportava.
16) Uma vez contactados e postos ao corrente da finalidade das obras, os réus deram o seu consentimento, com a contrapartida de após a execução dos trabalhos a Junta de Freguesia ou a Câmara Municipal, lhes fazer em blocos e devidamente alinhado a partir do pilar do portão em ferro que dá acesso à garagem da sua casa, a parte do muro sul que ficou destruído com a abertura feita, movimento e manobra das pesadas máquinas e veículos com o entrar e sair para manobrarem no prédio rústico referido em A), que suportava o logradouro adjacente dos réus então em terra batida, o que foi aceite pela Junta de Freguesia.
17) Pretendendo o pai da autora, GG, que era então emigrante em França, representado pelo seu pai OO, que a Câmara e a Junta de Freguesia como contrapartida pelas obras que implicaram a invasão do prédio rústico com as máquinas e materiais para o desaterro e movimentação da terra, abertura da vala para implantação das manilhas e construção do muro de sustentação e consolidação do caminho público a Nascente que dá seguimento à Rua do Fundo do Povo e cujo alargamento ocupou área do prédio rústico, que as mesmas autarquias desenvolvessem todos os esforços junto dos réus, para que estes deixassem ficar no fim das obras, a abertura feita no logradouro e muro dos mesmos para o acesso das máquinas ao confinante prédio rústico daquele, de modo a mesma abertura ficar como servidão de passagem a favor do prédio rústico, vindo a ser efectivamente proposta pela Junta de Freguesia aos réus, por intermédio do pai da autora mulher, NN, que caso estes autorizassem a permanência da passagem como serventia a favor do prédio do GG, a mesma Junta de Freguesia lhes calcetava também, o logradouro.
18) Os réus considerando a seriedade da proposta da autarquia, o manifesto benefício para si e para o alindamento do logradouro com a reconstrução do muro, em blocos, e o calcetamento do mesmo logradouro, superior ao prejuízo da concedida servidão de passagem a favor do GG e atendendo ao também parentesco com o mesmo - a mãe da ré BB era sobrinha da mãe do mesmo GG -, aceitaram de boa fé o proposto, vindo a Junta de Freguesia, tal como acordado, a fazer o segmento do muro e o calcetamento do logradouro dos réus, como assim se encontra.
19) Ficando assim por seu turno, o prédio rústico que dos autores referido em A), com servidão pela referida abertura, tendo a rampa da passagem do terreno rústico, que fica em plano inferior, até ao logradouro dos réus sido construída na mesma altura.
20) Ficando o logradouro dos réus, após a construção do segmento do muro em blocos pela Junta de Freguesia, no alinhamento do muro divisório sul e do total calcetamento com paralelos da sua área, delimitado parcialmente a Norte, por um murete com duas fiadas de blocos assinalando a separação com a Rua ...; a Sul, pelo construído segmento do muro em blocos com a altura do lado do logradouro de 60cms; a Poente pelo portão da casa dos réus e a Nascente pela Rua do Fundo do Povo.
21) O logradouro adjacente à entrada da casa dos réus estreitava e terminava em bico.
22) Tempos mais tarde, o pai da autora pediu a familiares dos réus, residentes nas ..., que contactassem os réus emigrantes e residentes em França, perguntando-lhes se não se importavam que ele colocasse uma rede sobre o muro, com o argumento que era uma situação provisória para evitar a entrada de animais, especialmente cães vadios, que saltavam para o prédio e o conspurcavam e estragavam as sementeiras e as plantações e também incomodavam os seus cães de caça, que ficavam nervosos sentindo a presença daqueles.
23) Na sua boa fé, atendendo ao parentesco com o pai da autora, confiando na palavra do mesmo e movidos pela sã intenção da manutenção de relações de boa vizinhança, face aos provisórios motivos e finalidade da rede, os réus acederam à colocação da rede nas referidas circunstâncias e finalidade.
24) O Sr. GG, pai a autora, que deixou de ter cães de caça, não retirou voluntariamente a rede, apesar de instado a retirá-la, quer pessoalmente pelos réus, quer por carta registada do seu mandatário, datada de 2018.03.20.
25) Os réus avisaram que iriam iniciar as obras e retirar a rede e depositá-la, devidamente enrolada, no prédio rústico da autora, como assim fizeram no dia 18 de Março de 2020, entre as 09:00/10:00horas, com total boa fé, na presença de dois guardas da GNR, que o pai da autora em desvairada encenação, chamara ao local.
26) Vindo os réus da parte da tarde do mesmo dia 18 de Março de 2020, sensivelmente pelas 15:00horas, a ser abrupta e brutalmente agredidos pelo mesmo GG e pelos ora autores, filha e genro, que propositada e intencionalmente se deslocaram da cidade da Guarda para consertada e conjugadamente, destruírem as obras em curso no local e agredirem fisicamente os ora réus, como assim fizeram, agressões e danos pelas quais os réus de pronto apresentaram queixa junto da GNR, correndo por tais factos no Ministério Público, junto deste Juízo de Competência Genérica de Vila Nova de Foz Côa, o Inquérito n.º 53/20.....
27) O bico em que terminava o logradouro dos réus situava-se junto a um penedo ou pedregulho que assinalava um amontoado de pedras e terra que definia o limite da parede sul/nascente do quintal da casa, até ao fim de uma regueira a céu aberto.
28) Nunca tendo tido, nem tem, o prédio rústico referido em A), qualquer muro próprio que confinasse a Norte ou no sentido Norte/Nascente com o prédio urbano destinado a habitação dos réus e seu logradouro.
29) Sendo o prédio dos réus, que sempre possuiu parede ou muro divisório ao longo de toda a sua estrema sul confinante com o aludido prédio rústico.
30) O muro em discussão é propriedade dos réus que o reconstruíram, subiram e rebocaram, a partir do muro também sua propriedade em blocos de cimento, feito pela Junta de Freguesia ..., há 25 e mais anos, no âmbito do acordo verbal celebrado com os réus, então representados pelo pai da ré mulher, NN, dada a sua ausência em França onde eram emigrantes aquando das obras públicas de pavimentação calcetamento a alargamento dos arruamentos envolventes.
31) Muro reconstruído em blocos que os réus sempre possuíram, usaram e trataram como parte integrante do restante muro divisório sul que delimita o seu prédio urbano e logradouro, conservando-o, retocando ao longo do tempo as juntas de ligação dos blocos como forma evitar a sua deterioração, lavando-o e limpando-o de infestantes, o que vêm fazendo por si e representantes seus familiares, na sua ausência, há mais de 25 anos, convictos de exercerem um direito próprio e de propriedade plena e exclusiva sobre o mesmo, sem oposição, à vista de toda a gente, pública e pacificamente.
32) Os réus, no exercício legítimo do seu direito de propriedade, subiram rebocaram, pintaram e colocaram a pedra no topo e em toda a extensão do muro em questão na presente acção, no exercício legítimo do seu direito de propriedade, para melhor delimitarem e confinarem o espaço do seu logradouro exterior, adjacente à entrada para o seu prédio urbano destinado à sua habitação e lazer, e salvaguardarem e preservarem a sua privacidade.
VI.
Do Direito
São vários os aspectos, alguns de índole processual, outros de natureza substantiva, que os Recorrentes avançam contra a decisão de 1.ª Instância.
É pacífico que este Tribunal tem que enfrentar todas as questões submetidas à sua apreciação, para além das que forem de conhecimento oficioso, o que não equivale a ter que se pronunciar sobre todos os argumentos aduzidos pela(s) parte(s).
- Por uma questão de precedência lógica, importa atentar na ocorrência de eventual ineptidão da petição inicial, como geradora de nulidade de todo o processado, delimitada pelos Recorrentes pela ausência de factos estruturantes da causa de pedir e pela contradição entre o pedido e a causa de pedir, como alude o art. 186.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), do Código de Processo Civil.
Emerge do art. 3.º, n.º 1, que o figurino processual civil nacional assenta num modelo em que a acção é proposta mediante uma petição (dita inicial), peça em que o respectivo autor formula a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter – o pedido (arts. 552.º, n.º 1, al. e), e 581.º, n.º 3) –, expõe as razões fácticas e jurídicas em que a alicerça – a causa de pedir (arts. 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 4) – e individualiza os meios probatórios que, na sua óptica, a demonstram (art. 552.º, n.º 6).
Uma das traves mestras deste regime adjectivo é o princípio do dispositivo, que faz impender sobre aquele que se arroga a titularidade de um direito, a invocação dos «factos essenciais que constituem a causa de pedir», sendo que são todos aqueles sem os quais a acção não poderá proceder.
De harmonia, pode sintetizar-se que o pedido é «o direito para que [o Autor] solicita ou requer a tutela jurisdicional e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judiciária requerida); o efeito jurídico pretendido pelo Autor», enquanto que a causa de pedir é «o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o Autor invoca e pretende fazer valer»[3].
Uma vez que a nulidade de todo o processo é configurada como uma excepção dilatória, a qual é de conhecimento oficioso e que uma vez verificada, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância[4], impende sobre o tribunal a feitura de um juízo prudencial sobre se se verifica o vício de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, ou se apenas existirá uma deficiência susceptível de sanação ou aperfeiçoamento[5], o que deflui das disposições combinadas dos arts. 5.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 7.º, n.º 2, 10.º, 186.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, 552.º, n.º 1, al. d), e 590.º, n.ºs 1, 2, al. b), e 4.
Em sede recursiva, esta apreciação pressupõe que a excepção tenha sido tempestivamente arguida, acolhendo-se o entendimento segundo o qual «Quando a questão da ineptidão da petição inicial não seja suscitada pelo réu na contestação nem conhecida ex officio até à sentença final, deve entender-se que a eventual ineptidão da petição inicial fica, em princípio, suprida ou ultrapassada, concluindo-se que o réu, que não a arguiu, e o tribunal, que dela oficiosamente não conheceu, compreenderam o sentido da petição inicial.»[6].
É o caso em apreço: os AA. propuseram uma acção de reivindicação (arts. 1311.º do Código Civil, e 10.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Civil), em articulado que foi aperfeiçoado, baseada na aquisição derivada e registo a seu favor e na aquisição originária por via da usucapião, na contestação nada foi excepcionado pelos RR., a este propósito, antes pelo contrário, da sua leitura alcança-se que, a despeito de não concordarem com a argumentação tecida pela contraparte, bem compreenderam os fundamentos e o petitório aduzidos (art. 198.º, n.º 1), adiantando-se que oficiosamente o Tribunal também não a detectou (arts. 196.º e 200.º, n.º 2).
Por conseguinte, desatende-se este primeiro segmento recursivo, por ser manifestamente extemporânea, ex post, a invocação da ineptidão da petição inicial, e ainda que não fosse, não se descortina que não haja factos suficientes identificadores da causa de pedir, nem contradição desta com o pedido apresentado, que façam inquinar toda a acção.
- Designada data para a realização da audiência final os RR. excepcionaram a ilegitimidade substantiva dos AA. para a presente acção, a qual foi indeferida.
Interposto recurso, por Acórdão deste Tribunal e Secção, que remonta a 11 de Outubro de 2022, foi decidido que:
«. admitem o articulado apresentado pelos apelantes em 11.12.2022;
. indeferem o requerido pelos apelantes, sem prejuízo da questão da legitimidade substantiva vir a ser conhecida pelo tribunal a quo, na sentença final, após produção de prova.».
Neste conspecto, findo o Julgamento, a Sentença posta em crise expendeu as seguintes considerações:
«Antes de mais, porém, cabe apreciar a invocada excepção de ilegitimidade substantiva suscitada pelos réus.
E como se disse acima, os réus sustentam a excepção invocada no entendimento de que a autora e o seu pai apenas são titulares de um direito sobre o conjunto da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da mãe e cônjuge daqueles, como uma universalidade de bens e não sobre bens certos e determinados da mesma herança indivisa.
Tendo impugnado, além do mais e desde logo, na contestação por si apresentada factualidade atinente à prática de actos pelos autores consubstanciadores de aquisição por usucapião, admitindo, por outro lado, a prática dos actos descritos pelos pais da autora.
Ora, analisado o que resultou provado nos autos, nomeadamente, e para o que aqui releva, por ora, que pela Ap. ...69 de 2019.03.20 encontra-se registada a aquisição, a favor de CC, casada no regime de comunhão de adquiridos com DD, por sucessão hereditária e doação da meação e de quinhão hereditário, do prédio rústico, composto de terreno de regadio, sequeiro, fruteiras e pastagem, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar de Norte com EE (RR), de Sul com Caminho Público, de Nascente com Caminho Público e de Poente com FF e outro, com a área de cerca de 0,101700 ha, inscrito na matriz, anteriormente sob o artigo ...º daquela freguesia e concelho, e descrito e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...12, e do prédio urbano composto por uma cave, rés-do-chão e 1º andar, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...36º, com a área coberta de 63 m2, a confrontar de todos os lados com os próprios e descrito e na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...12. Sendo que os dois prédios referidos compõem uma unidade predial mista, sendo que o prédio urbano se situa no interior e numa estrema do prédio rústico, toda ela murada desde há mais de trinta anos.
Ademais, resultou demonstrado que os prédios foram adquiridos pela Autora mulher por doação escrita feita por GG, da meação e do quinhão hereditário que possuía na herança ilíquida e indivisa de sua falecida mulher, HH, celebrada na Conservatória do Registo Civil e Predial ... no dia 15 de Março de dois mil e dezanove. E que a autora é filha e herdeira única de HH.
Por outro lado, resultou provado nos autos que há mais de 30 anos a esta parte que os autores, por si, e acedendo à posse dos anteriores proprietários e possuidores de tais imóveis, vêm usando, fruindo e dispondo de modo geral, segundo a sua livre vontade dos prédios referidos. Em concreto, ficou assente que os autores e seus antecessores, sobretudo e de forma diária o pai da autora e antes do falecimento da mãe da autora conjuntamente com esta, vêm limpando, cultivando, colhendo os frutos e produtos produzidos, no prédio rústico, lavrando o terreno e cortando o mato, semeando e colhendo frutos (batatas, alface, tomate, feijão, etc.) e produtos agrícolas variados, plantando e tratando as árvores de fruto, a vinha, podando, enxofrando, desladroando, sulfatando, vindimando, comprando e aplicando adubos, fertilizantes e produtos contra infestantes e arbustivas rogando pessoal e pagando as respectivas jeiras, pagando os respectivos impostos (contribuição autárquica).
Ao que acresce que quanto ao prédio urbano os autores e seus antecessores ali vêm fazendo as suas refeições e efectuando obras de manutenção, ali dormindo também os seus antecessores e os autores esporadicamente quando ali se deslocam.
E demonstrado ficou, igualmente, que os autores e seus antecessores sempre praticaram os actos referidos ostensivamente, à vista de tudo e todos, e assim de forma pública, sem discussão nem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus, e assim de forma pacífica, sem quaisquer interrupções ou hiatos, e assim de forma contínua, na convicção de não estarem a lesar a posse, nem quaisquer interesses ou direitos de outrem, máxime dos réus, e assim de boa-fé. Exercendo tais usos, fruição, disposição, e poder de facto sobre a coisa de forma directa e imediata, sem quaisquer tipos de restrições ou limitações, plenamente convictos de estarem a exercer um direito próprio e absoluto sobre a totalidade dos prédios, com exclusão de outrem.
Por outra parte ainda, ficou provado nos autos que os autores edificaram um muro em blocos em cimento e uma rede no seu topo, assente em fundação de betão, numa altura aproximada de 1,50 metros, medida pelo seu exterior (Rua Pública) e cerca de 7,10 metros de comprimento, contados do portão em ferro até à casa dos réus (sentido Nascente/Poente), o qual se encontra implantado na estrema Norte da unidade predial referida em B), desde há mais de 30 anos, juntamente com os ferros, rede e portão.
Tal muro configura um segmento em blocos de cimento com cerca de 7,10 metros de comprimento, que foi edificado sendo apenas visível do lado do logradouro dos réus, a altura de duas fiadas e meia de blocos de cimento com cerca de 60cms, segmento implantado no seguimento e alinhamento com o muro ou parede divisória do prédio dos réus ao longo da estrema sul, com cerca de 30metros.
Na realidade, o muro foi construído pela Junta de Freguesia que também erigiu os pilares do portão de acesso ao prédio rústico identificado acima, no âmbito de acordo verbal celebrado há já 25 e mais anos, com os antecessores dos autores, o que tudo foi edificado na estrema sul do logradouro exterior dos réus, então ainda em terra batida, adjacente à entrada por portão em ferro para a garagem do prédio dos réus.
Exercendo desde sempre os autores, por si e antecessores, actos sobre o muro que integra os prédios referidos anteriormente, argamassando-o, colocando ferros e rede, e fixando um portão em ferro.
Ora, em face desta factualidade, não restam dúvidas que os autores têm legitimidade substantiva para a presente acção.
Com efeito, se por um lado, se constata o direito de propriedade consubstanciada na aquisição dos prédios e do muro que este integra por via do direito sucessório e ainda de doação de meação e quinhão hereditário, mesmo que assim não fosse, mostram-se preenchidos os requisitos para a aquisição por usucapião.
Como avançou, desde logo, o Tribunal da Relação de Coimbra na decisão proferida a que acima se fez referencia, sendo certo que na sucessão, anteriormente à partilha, os herdeiros apenas são titulares de um direito indivisível, e não se pode atribuir a cada herdeiro a qualidade de proprietário de qualquer bem concreto que integre a herança indivisa, já quando existe apenas um herdeiro, não há necessidade de proceder, por razões óbvias, a qualquer partilha. E assim o herdeiro será, então sim, titular de um direito de propriedade sobre um concreto bem.
No caso dos autos, como desde logo avançou o Tribunal da Relação de Coimbra, mostrando-se comprovado nos autos a doação pelo pai da autora à mesma, quer da sua meação nos bens, quer do quinhão hereditário de que era titular por óbito da esposa, e sendo a autora a única filha e herdeira – com exclusão do seu pai – da de cujus HH, a autora é titular de todos os bens que integram o acervo hereditário. E assim, na sequência do que se disse, não há partilha a realizar, e a mesma é titular de um direito de propriedade que recai sobre os concretos bens que integram a herança HH.
Mostrando-se, desde logo, por esta via demonstrado o direito de propriedade da autora sobre os bens.
Mas ainda que assim não fosse, como se disse, também por via do instituto da usucapião se mostrava verificado este direito de propriedade.
Assim, e como se começou por dizer, inexistem dúvidas da legitimidade substantiva dos réus para a presente acção, o que se declara, julgando-se improcedente a excepção correspectiva invocada.».
Para além deste excerto há que chamar à colação a anterior decisão exarada neste Tribunal e Secção, no âmbito do já referido Apenso A.
Daquele Acórdão respiga-se, entre o mais, que:
«O que resulta da interpretação do articulado pelos apelantes é que estes (através do seu ilustre mandatário), ao reanalisarem a petição inicial, quando se preparavam para o julgamento que se encontrava marcado para três dias depois, se aperceberam que não tinha sido efetuada a partilha dos bens deixados por morte da mãe da A. e como tal, em seu entender, a herança mantinha-se indivisa, não sendo a A., consequentemente, titular do direito de propriedade sobre os prédios (nem sobre o muro em causa).
…
A ilegitimidade substantiva diferentemente da ilegitimidade processual envolve a apreciação do mérito da causa e sendo julgada procedente conduzirá à absolvição do pedido. A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido (cfr. se defende no Ac. do TRP de 04.10.2021, proferido no proc. 1910/20.4T8PNF.P1).
Incumbe ao tribunal decidir em cada ação, se o A. é efetivamente o real titular do direito que invoca, no caso concreto o direito de propriedade sobre um determinado prédio e sobre o muro nele erigido, o que aliás se reconheceu na decisão reclamada, onde se consignou “Não obstante, o Tribunal a quo na sentença não deixará de face aos factos alegados, de apreciar na sentença, se assiste (ou não) aos AA. o direito de propriedade sobre os identificados imóveis, por se tratar de questão sobre o qual está obrigado a pronunciar-se, tendo em conta a causa de pedir e os pedidos formulados pelos apelantes.”
Os apelantes alegaram a exceção de ilegitimidade substantiva dos apelados e requereram:
a) Seja declarada a ineficácia da cessão de meação e de quinhão hereditário invocada pelos Autores como modo legitimo de aquisição do direito de propriedade sobre os bens imóveis a que se arrogam, identificados nas alíneas a) e b) do artigo 1º da P.I., por a mesma cessão apenas originar o direito à aquisição dos mesmos bens se vierem a preencher o quinhão do cedente, o que só a partilha da herança indivisa pode determinar.
b) Seja consequentemente proferida decisão sobre o mérito da causa, declarando-se a improcedência dos pedidos formulados de a) a j) do petitório.
c) Seja declarada a ilegitimidade substantiva dos Autores.
d) Seja declarada a Nulidade do Registo Predial a favor da Autora CC pela Ap. ...69 de 2019/03/20, sobre os prédios rústico e urbano da descrição ...12, comunicando-se à Conservatória do Registo Predial ....
Relativamente ao requerido nas alíneas c) e b):
…
Os AA. fundamentam a propriedade dos bens:
. na doação escrita (-artº 1 a 3 da pi corrigida) feita por GG, da meação e do quinhão hereditário que possuía na herança ilíquida e indivisa de sua falecida mulher, HH, celebrada na Conservatória do Registo Civil e Predial ... no dia 15 de Março de 2019;
. na usucapião – artº 4º a 19º da pi corrigida – alegando que há mais de 30 anos que vêm, relativamente ao prédio rústico, limpando, cultivando, colhendo os frutos e produtos produzidos (batatas, alface, tomate, feijão, etc) designadamente, lavrando o terreno e cortando o mato, semeando e plantando e tratando as árvores de fruto, a vinha, podando, enxofrando, desladroando, sulfatando, vindimando, comprando e aplicando adubos, fertilizantes e produtos contra infestantes e arbustivas, rogando pessoal e pagando as respetivas jeiras, pagando os respetivos impostos (contribuição autárquica). E, dormindo, fazendo as suas refeições e efetuando obras de manutenção, no prédio urbano, o que desde sempre fizeram ostensivamente, à vista de tudo e todos, e assim de forma pública, sem discussão nem oposição de ninguém, nomeadamente dos RR, e assim de forma pacífica, sem quaisquer interrupções ou hiatos, e assim de forma continua. Na convicção de não estarem a lesar a posse, nem quaisquer interesses ou direitos de outrem, máxime dos RR, e assim de boa-fé. Exercendo tais usos, fruição, disposição, e poder de facto sobre a coisa de forma direta e imediata. Sem quaisquer tipos de restrições ou limitações, plenamente convictos de estarem a exercer um direito próprio e absoluto sobre a totalidade da sua “res”, com exclusão de outrem, e em termos de direito de propriedade, atos que Assim, os Autores, sempre praticaram à vista e com conhecimento de toda a gente, nomeadamente dos RR., designadamente, e agora relativamente ao muro ilicitamente ocupada pelos RR (parte integrante do acima identificado prédio rústico e unidade predial), argamassando-o, colocando ferros e rede, fixando um portão em ferro, etc.
No âmbito das ações de reivindicação, a prova do direito de propriedade terá de ser feita através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio por parte do reivindicante ou de qualquer dos antepossuidores; quando a aquisição for derivada, terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que se verifique a presunção legal da propriedade, como a resultante da posse ou do registo (conforme se defende no Ac. do STJ de 05.05.2016, proferido no proc. 5562/09, e onde são mencionados no mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 16.06.83, BMJ 328, p. 546 e de 10.03.98, processo n.º 97A710).
No Ac. do TRE de 07.11.2019, proferido no proc. 501/18.4T8OR.E1 considerou-se que não obstante a falta de partilha válida, tal não impedia a aquisição por usucapião dos imóveis entregues ao herdeiro, decorrido o prazo de 20 anos, contados a partir da aquisição da sua posse jurídica, que se considerou não titulada e como tal se presume de má-fé .
A apreciação da questão da legitimidade substantiva dos AA. terá de ser efetuada tendo em conta as duas causas de aquisição do direito de propriedade invocadas pelos AA., pelo que, havendo ainda matéria controvertida a apurar, uma vez que os apelantes, na contestação, impugnaram todos os factos alegados pelos AA., nos quais suportam a aquisição por usucapião, há que relegar o seu conhecimento para final. Não podendo o tribunal conhecer já desta questão, não pode proferir de imediato decisão sobre o mérito da causa como é pedido pelos apelantes na alínea b) do seu requerimento de 11.12.2021.».
Adere-se aos entendimentos perfilhados na Sentença e Acórdão acima transcritos, por serem cristalinos e completos: uma vez que a legitimidade substantiva diz directamente respeito à relação material e afere-se em concreto, após a Audiência é indiscutível que, em vista da espécie de acção instaurada, dos pedidos formulados e das causas de pedir apresentadas (sucessão/doação, registo, prática de actos de uso, fruição e disposição desde há várias décadas), assiste legitimidade substantiva aos AA.
Como assim, improcede esta excepção.
- Se bem se compreende a alegação sob a chancela da «decisão surpresa», os Recorrentes imputam à decisão recorrida a nulidade processual decorrente de não figurar nas «… Questões a decidir” assinaladas em III- da sentença , como únicas questões a decidir … a natureza do terreno adjacente à entrada para a casa dos réus.», bem como «…. nunca tendo no decurso da lide sido fixado o objecto da acção nem enunciados os temas da prova, constituindo na opinião dos apelantes/réus, a fixação tardia das questões a decidir na acção e para mais só na própria sentença final, verdadeira decisão surpresa que nos termos do nº3, do artigo 3º do CPC, provoca nulidade,…».
O modelo processual acolhido na legislação portuguesa é o do processo equitativo, com tutela constitucional[7], na esteira, inter alia, dos arts. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[8], e 47.º, § 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[9], ambos instrumentos aos quais Portugal está vinculado, ex vi art. 8.º da Constituição da República Portuguesa.
Aqui integra-se a garantia dos direitos de defesa, cuja dimensão mais impressiva é a do exercício do princípio do contraditório, implicando, desde logo, a proibição de indefesa.
Esta consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe são respeitantes.
A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses[10].
A efectividade do direito de defesa pressupõe, entre o mais, o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; o conhecimento, pelas partes, das decisões proferidas no processo; o conhecimento da conduta processual da parte contrária, ou a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta[11], de modo a evitar que seja confrontada com uma decisão judicial não esperada.
Daí que o próprio art. 3.º do Código de Processo Civil seja assertivo ao tornar excepcionais os casos em que se podem tomar providências contra alguém que não tenha sido previamente ouvido.
Isto dito, as questões a decidir compõem-se das grandes temáticas suscitadas numa acção, não precludem o conhecimento de outras que sejam nelas abrangidas, ou delas decorrentes ou conexas, e decompõem-se noutros tantos segmentos que o objecto da acção exija.
Como foi o caso.
Necessariamente que os Recorrentes, devidamente patrocinados, tendo contestado a pretensão em termos que dúvidas não restam que a compreenderam, e acompanhado os concretos termos em que a acção se desenrolou, não podiam, legitimamente, desconhecer esta circunstância.
Distinto das questões a decidir e não confundível com as mesmas é a apreciação da matéria fáctica, por parte do Tribunal a quo, e a ser conhecida enquanto tal.
No que concerne ao objecto da acção, os Recorrentes repisam anterior objecção, já conhecida nos autos[12] e contra a qual não reagiram oportunamente[13], com o que se precludiu tal direito[14].
Efectivamente, o Despacho Saneador[15] e a norma em que se estribou são claras ao possibilitar, em função do valor atribuído à acção, que o Juiz use do dever de gestão processual («… consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo»), sendo que no caso em epígrafe entendeu-se dispensar a identificação do Objecto do Litígio e dos Temas da Prova, o que não merece qualquer reparo (arts. 6.º e 547.º).
Na Sentença não se antevê qualquer sub-decisão que pudesse surpreender os Recorrentes, com a qual não pudessem esperar, ou que possa ter diminuído ou postergado as suas garantias de defesa, não lhes assistindo a mínima razão neste fundamento.
Não colhe, pois, este motivo.
- Os Recorrentes rejeitam a apreciação da matéria fáctica, por ter «…desacreditado todos os elementos de prova dos RR. -depoimento de parte e prova testemunhal …», «… invocam a falsidade do depoimento…», com o que a decisão recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova, assacam contradição e ambiguidade «… em M) dos factos provados, pois o mesmo terreno surge referido como o logradouro exterior dos réus, quer em O), quer em P), dos factos provados…», e, de um modo geral, alegam contradição entre a factualidade provada e não provada e ininteligibilidade da matéria factual.
Antes de mais uma nota para repudiar liminarmente a invocação que os Recorrentes agora fazem quanto à não deslocação do Tribunal ao local, quando é certo que o despacho que assim o decidiu, não concitou qualquer oposição no momento temporal próprio[16].
Procura-se, assim, repristinar o conhecimento de uma questão, esquecendo-se que não tendo recorrido, o direito de invocação há muito se precludiu, com o que se extinguiu o seu direito.
No que tange às normas civis adjectivas, mormente o art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c), constata-se que o recorrente tem o ónus de especificar obrigatoriamente, no requerimento recursivo, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que tem por incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que servirão para proferir nova decisão, e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida[17].
Enquanto que, no que concerne ao primeiro segmento – concretos pontos de facto –, este ónus pretende delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto, já a segunda exigência – concretos meios de prova –, tem sobretudo como função servir de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação[18].
No tocante ao último requisito legal – decisão substitutiva –, assinala-se que o respectivo impugnante não carece de indicar, nas conclusões das suas alegações, a decisão alternativa que deveria prevalecer, desde que o tenha feito de modo perceptível no texto das suas alegações.
O que tem respaldo no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Uniformização de Jurisprudência) n.º 12/2023[19].
Em suma, aquilo que o legislador visou foi arredar a instância recursiva não séria (tabelar, vaga ou não pormenorizada), por ser contrária aos princípios da cooperação, lealdade e boa-fé processuais.
À luz daquele preceito legal, o modo como a impugnação da matéria de facto foi conformada pelos Recorrentes é muito deficiente, à semelhança do que foi sustentado na resposta, mas ainda assim possibilita alguma apreciação.
Os Recorrentes escudaram-se em fórmulas abstractas e imprecisas, optando por remeter em bloco para a transcrição do(s) depoimento(s), não concretizando o cerne da impugnação, por reporte a cada uma das testemunhas/depoimentos de parte, nem indicando em concreto o que, na sua perspectiva, foi descurado ou mal decidido, a razão de ser de merecer uma resposta diferente, e qual seria essa resposta, como é exigência legal.
O que os Recorrentes quereriam seria um segundo julgamento integral da prova produzida, como ressalta à evidência do corpo das suas alegações, mas não é esse o sistema adjectivo instituído.
Em linha com a exigência constitucional (art. 205.º, n.º 1), o art. 154.º do Código de Processo Civil impõe o dever genérico de fundamentação da decisão judicial, dever este que é densificado aquando do tratamento da matéria atinente à prolação da sentença.
O art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
O princípio da prova livre significa que a prova é apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas apreciada em conformidade racional com essa prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência[20].
O juiz tem necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada das declarações e/ou dos depoimentos produzidos, com os documentos e outros meios de prova oportunamente contraditados, insertos nos autos ou que lhe sejam oferecidos.
Estando legalmente assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a questão coloca-se no âmbito da esfera dessa (re)apreciação em 2.ª Instância – art. 662.º do Código de Processo Civil.
Realça-se que o controlo da decisão de facto não tem como escopo efectuar um segundo julgamento da causa, mas antes proceder à reapreciação da parcela factual concretamente impugnada, de harmonia com o princípio do dispositivo[21].
Esta tarefa assim demarcada é possível por vigorar o princípio do registo obrigatório e integral das declarações e dos depoimentos produzidos em Audiência de Discussão e Julgamento (art. 155.º), dando ao Tribunal da Relação as condições necessárias para reponderar a prova, desde logo – mas não exclusivamente –, nos termos solicitados pelo respectivo impugnante.
Com esta ampla latitude formará uma convicção independente, autónoma e própria sobre a factualidade.
Por conseguinte, este Tribunal deve – leia-se, tem que – sindicar o iter da formação da convicção do julgador, naquilo que se referir, v.g., à existência de um processo lógico e objectivado de raciocínio, ou à observância das regras de direito probatório material[22] ou até ao respeito pelos ditames do onus probandi, que alicerçam e subjazem à matéria fáctica.
E, fazendo-o, pode concluir em sentido (parcial ou integralmente) concordante ou diverso, contanto que haja prova materializada, densificada e consistente para o efeito, o que encontra amparo no citado art. 662.º, n.º 1[23].
Não obstante, na dúvida o princípio da imediação (com a oralidade e a concentração que caracterizam a produção de prova) funciona como um outro limite em tudo o que esteja a coberto da fundamentação plausível, coerente, integrada e satisfatoriamente inteligível[24].
O Tribunal a quo enquadrou a fundamentação de facto como segue:
«b) Motivação da matéria de facto
Para formar a sua convicção, e dar como provados e não provados os factos acima referidos, o tribunal teve em conta, por um lado, o depoimento de parte dos réus, os quais – tal como de resto já haviam feito em sede de contestação – confirmaram ter procedido à retirada da rede do muro a qual apenas se encontrava colocada por autorização que concederam ao pai da autora mas sempre no pressuposto de ser retirada posteriormente. Disseram que efectuaram obras de alteamento, e pintura do muro. Referiram, contudo, que o muro é de sua propriedade, tendo resultado de acordo que na altura o sogro fez com a Junta de Freguesia, por altura de obras realizadas por esta há mais de 20 anos. O réu disse, no entanto, não saber quem colocou os pilares nem os paralelos e que o portão apenas foi colocado mais tarde.
Indagado da razão de o acordo da Junta ter sido feito consigo, representado pelo sogro, o réu disse que o muro é seu porque “pega” com um terreno seu, divide um terreno do outro. Afirmou que o portão é seu, que a sua propriedade vai até à grelha de água que ali se situa, e que inclusivamente os autores para entrarem no portão têm que “pisar” terreno que é seu. Foi também o réu questionado por que motivo então não impede que ali acedam e que ali esteja o portão, e o mesmo disse que primeiro foi feito acordo quanto a tal com os antecessores da autora, e só depois transmitido, mas que em todo o caso nunca disseram para fechar por anda serem familiares. Para reforçar que o espaço em frente ao portão da sua casa é de sua propriedade referiu a existência do lado oposto ao do muro de um murete que divide, então, do caminho.
A ré referiu, em suma, o mesmo que o réu marido, todavia, demonstrou ser sabedor que era a autora quem é agora proprietária dos prédios em causa. Mais, referiu por um lado, tal como o réu, que a sua propriedade se estende até à grelha, porém, no seu discurso afirmou que como as obras realizadas pela Junta destruíram muro e passaram no terreno que era então do pai da autora, que este aproveitou para fazer o portão, e que na altura estavam ausentes e quando chegaram o portão já estava feito, e que dizem que foi a Junta quem o abriu.
Ambos os réus confirmaram que parte dos trabalhos passaram por manilhar, ocorrendo tal no terreno do pai da autora.
Quanto à retirada da rede e dos ferros de suporte desta, ambos os réus o confirmaram, dizendo que cortaram os ferros junto ao muro e enrolaram a rede, colocando a mesma no lado do terreno dos autores. Confirmaram depois o alteamento do muro, a colocação de uma pedra para finalizar, e que ficou por rebocar por não lhes ter sido permitido.
Ora, do mencionado pelos réus não resultou que inclusivamente os mesmos fossem coerentes quanto ao exacto local onde termina a sua propriedade.
Todavia, a versão dos réus não colheu convencimento perante a leitura feita pelo tribunal dos factos e da prova produzida, e isto porque, por um lado, foi contrariada por testemunhas que foram inquiridas em sede de audiência final e demonstraram conhecimento dos factos e segurança e assertividade no seu depoimento, como foi o caso das testemunhas PP e MM, ambos já tendo integrado a Junta de Freguesia, e que mesmo quando confrontadas em sede de acareação com outras testemunhas ouvidas, nomeadamente, arroladas pelos réus, mantiveram-se firmes nas suas declarações, e por outra parte, porque o interesse dos réus na causa condicionou, igualmente, a sua credibilidade, contrariamente à ausência de interesse na causa das aludidas testemunhas. E na verdade, aquando da celebração do acordo que integrou a construção do muro os réus não se encontravam em Portugal, pelo que não tiveram intervenção em qualquer acordo. Já a testemunha MM afirmou ter estado presente nas conversas tidas com vista ao acordo.
Aliás, mais se diga que a versão trazida aos autos na contestação apresentada pelos réus, foi, inclusivamente, contrariada por declarações feitas por testemunhas arroladas pelos mesmos, como foi o caso de QQ, irmã da ré, que afirmou – contrariando a alegada aceitação quanto à abertura do portão em virtude de acordo celebrado com a Junta de Freguesia, mas que até os réus nos seus depoimentos de parte deram a entender não ter sido por si consentido – que disse à irmã para fechar o portão porque iria ter problemas e que aquela só assentiu por serem família. Referiu, todavia, ter sido de facto celebrado um acordo, e frisou que nessa altura estava cá em Portugal e que esteve presente numa reunião onde esteve também o seu pai e que este queria o muro e caminho compostos. Mas, mais adiante no seu depoimento, quando questionada de quem era afinal o muro, a testemunha acabou por dizer que como o muro que vai do portão até casa da irmã foi feito pela Junta que é da Junta de Freguesia! Portanto, pelo que se vê, a testemunha que primeiramente estava tão segura do acordo feito, afinal revelou nada saber quanto à propriedade do muro.
Ainda a respeito desta testemunha, adianta-se, não ter merecido credibilidade pela postura e parcialidade das suas declarações, e porquanto, também as suas declarações foram contrariadas pela demais prova produzida, nomeadamente, pelo dito pelas duas testemunhas acima referidas – PP e MM. Com efeito, estas duas testemunhas que, como já se disse, integraram a Junta de Freguesia, manifestando, de forma credível e desinteressada, serem sabedoras e conhecedoras na primeira pessoa que o muro e a abertura do portão foram feitos pela Junta de Freguesia, mas em função de um acordo celebrado com o pai da autora, e não com os réus, descreveram quem esteve presente nas conversas, e sem que alguma vez tivessem referido a testemunha QQ. Ao que acresce, aliás, que nenhuma outra testemunha em momento algum referiu a presença desta ou que a mesma houvesse participado nas negociações, nem mesmo os réus o referiram.
A testemunha QQ foi, ainda, confrontada com a fotografia de fls. 33, tendo-lhe sido questionado por que motivo, se o muro pertencia à irmã, como primeiramente invocou nas suas declarações, o muro não está pintado, a mesma disse desconhecer a razão.
Em suma, a testemunha mostrou-se confusa e contraditória diversas vezes no seu depoimento, e pese embora a sua relação familiar pudesse não ser, em abstracto, factor de parcialidade, a realidade é que no caso desta testemunha o foi. E tanto assim é, que a testemunha se percebeu da contraditoriedade e confusão do seu depoimento que acabou por sentir necessidade de justificar ao tribunal que tinha tido um problema de saúde – ainda que tenha dito há 20 anos atrás - e que, por isso, já não sabe muita coisa.
Ora, a construção do muro, ficou para todos assente, ocorreu há cerca de, pelo menos, 25 anos atrás.
Portanto, reitera-se, o depoimento desta testemunha não foi merecedor de credibilidade.
Quanto à testemunha MM, como se disse, mostrou-se credível.
Assim, quanto a esta testemunha releva mencionar, além da forma como se disse que depôs, que relatou de forma concretizada quais as obras realizadas pela Junta de Freguesia, nomeadamente, de calcetamento e a colocação de manilhas, que na altura o pai da autora cedeu terreno para alargamento do caminho, e que foi com este que a Junta de Freguesia fez acordo, afirmando mesmo a testemunha ter estado presente, e que os réus nunca foram chamados para nada. O acordo, referiu, contemplava então o muro e o portão.
MM disse, aliás, e a nosso ver com toda a propriedade, pertinência e relevância para a discussão em causa nos autos, que a obra de construção do muro e do portão foi feita sem que ninguém se tivesse manifestado contra. Pelo que, afirmou de modo seguro, não ter reserva alguma de que o muro foi feito na propriedade do pai da autora, na altura.
Acrescentou, ainda, quando questionado a esse respeito, que à frente do portão dos réus apenas foi calcetado por se tratar de espaço que é público.
A este propósito não pode o tribunal deixar de referir que, na verdade, o afirmado por esta testemunha não é desprovido de sentido. Pelo contrário, atentas as regras de experiência comum e da lógica, o que se afigura mais plausível é essa mesma afirmação.
Repare-se que os réus muraram a sua propriedade e nela colocaram um portão. Ora, ainda que utilizassem o espaço que designam por logradouro para colocar o carro, que sentido possui que alguém vedasse a propriedade e deixasse uma parcela de terreno fora dessa mesma vedação. Mas é o que, a acreditar-se na versão dos réus teria ocorrido como retrata a fotografia de fls. 71. A propriedade dos réus está toda murada e vedada com portão, e o alegado logradouro ficaria fora desse portão. Naturalmente que tal é desprovido de sentido e lógica, ainda que as testemunhas arroladas pelos réus, à semelhança destes, tenham dito que a sua propriedade terminava em bico próximo da grelha, onde era goteira de água.
Que utilizassem o alegado logradouro para colocar o carro porque de espaço público se trata e porque ninguém nunca se opôs, essa versão sim tem sentido. Em todo o caso, mesmo que com efeito o espaço referido como logradouro – que não consta indicado da certidão matricial – fosse propriedade dos réus, não faz com que o muro o seja. Mas, acrescente-se, não foi explicado por ninguém por que razão acabando antes em bico a propriedade dos réus, por que agora tem uma configuração distinta.
As declarações prestadas por MM foram corroboradas pela testemunha PP, também integrante da Junta de Freguesia, e que relatou de igual modo as obras feitas, que foi feito um acordo com o pai da autora, nos termos do qual o mesmo cedeu terreno para alargar o caminho e em troca feito muro, não tendo também ele dúvidas que o muro foi construído na propriedade que hoje é da autora, e que também adiantou saber que foi dado à mesma pelo pai após morte da mãe.
Esta testemunha reportou-se ainda ao facto de ver o pai da autora lá a tratar da horta, onde disse ter, nomeadamente, batatas e couves, e que a autora quando se desloca a ... fica lá em casa, tendo já lá visto os autores, e tendo-os visto também a colocar herbicida. Sendo que nunca ouviu ninguém dizer que não era propriedade da autora.
Relevante para o apuramento da factualidade em causa nos autos foi, igualmente, o depoimento da testemunha GG, o qual apesar de ser pai da autora, prestou um depoimento merecedor de credibilidade, por um lado, pela forma segura como se reportou aos factos e de que revelou ser efectivamente conhecedor. E por outro lado, porque as suas declarações mostraram-se plausíveis, sinceras, e corroboradas pela demais prova produzida e junta aos autos.
Assim, quanto à propriedade dos prédios em causa nos autos, a testemunha esclareceu que mora e cuida dos mesmos, mas que doou os bens em causa à filha após o falecimento da esposa.
Por outro lado, disse que o que cultiva é para si, mas os impostos são pagos pela filha e pelo genro, que coloca herbicidas, dorme na casa, assim como a filha quando vai a ....
Confirmou que colocou a rede no muro e que este e os pilares foram colocados pela Junta de Freguesia, em troca de ter dado terreno seu para alargar o caminho. Negou ter pedido autorização a alguém, ao invés a Câmara é que lhe pediu a si, e que passaram com as máquinas onde tem o portão. Disse que na altura dessas obras foi o seu pai quem tratou porque se encontrava no estrangeiro e que foram intervenientes o Eng. LL – também confirmado pelas testemunhas MM e PP – e MM.
Referiu que a propriedade da D.ª BB acabava onde agora têm os réus o portão, o que confirmou quando confrontado com as fotografias de fls. 71 e 75, dizendo que o muro dos réus era até ao portão destes, e questionado por que motivo existia o murete do outro lado do muro, referiu que foi porque alguém lhes deixou fazer o mesmo.
Referiu que, de facto, foi retirada a rede, e alteado o muro, para o que não foi dada qualquer autorização e que a filha ficou chateada e enervada.
Quanto à testemunha RR, que disse ser vizinho dos réus, confirmou o alargamento das ruas aquando das obras realizadas e que foi a Junta de Freguesia quem fez muro, que abriram o muro quando foi para passar com as manilhas e colocaram dois pilares do portão. Referiu que foi quem subiu o muro, e que o muro do pai da autora era continuação do muro dos réus que era em pedra até à casa destes e que pedia ao pai da autora para deixa andar lá a rebocar.
Quanto a calcetar o logradouro, disse que era porque pertencia aos réus, mas não deixou de dizer que a propriedade terminava em bico.
Questionada a testemunha disse, porém, ter estado emigrada vários anos.
Foi confrontado com alguma fotografias constantes dos autos, nomeadamente, fls. 71, 75, 33 e 30, sendo que quanto a esta não se conseguiu localizar.
Face a forma como depôs, por vezes, confusa, e a que a versão que trouxe a julgamento foi contrariada pela demais prova produzida, não logrou particular convencimento o que a testemunha referiu.
E o mesmo se diga em relação à testemunha SS, também vizinha dos réus e que disse ser esposa da anterior testemunha. É que apesar de a testemunha ter confirmado que foram efectuadas obras e que a água acumulava na propriedade que era então do pai da autora, disse que não sabe nada acerca do acordo que foi feito em relação ao muro. Mais disse não saber quem pôs o portão e na realidade acabou por referir que quando o marido se encontrava na Suíça permanecia muito em casa da sua mãe.
Também referiu a testemunha a existência de um anterior portão onde é a grelha que era do réu, mas a realidade é que, ainda que referido igualmente por outra testemunha, nenhum dos elementos documentais juntos aos autos permite corroborar o que disse, e que na verdade não se afigura razoável como já acima se disse.
Por fim, foi ainda ouvido TT, de 88 anos de idade, que disse ter andado lá a marear e que muro já existia nessa altura, que existia anteriormente um portão ou porta de madeira, que disse ainda lá existir actualmente, o que não foi referido por qualquer outra testemunha.
Também se referiu à anterior configuração da casa dos réus, sendo que neste aspecto o tribunal não teve reservas quanto ao referido.
Quanto à realização das obras, a que também se referiu, mostrou-se confuso, nomeadamente, com o tempo da sua realização.
Uma vez mais, a demais prova contrariou parte do relatado por esta testemunha.
O tribunal considerou, ainda, toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente, todas as fotografias juntas quer pelos autores quer pelos réus, de fls. 12 v.º, 13, 30 v.º a 33, 36 a 37 v.º, 71 a 71 v.º, sendo na fotografia de fls. 71 é visível que o logradouro dos réus não se prolongava para o lado que confronta com o prédio rústico dos autores, nem aí é visível qualquer antigo muro de suporte do logradouro, mas apenas um desnível e algumas pedras desordenadas por estarem em declive, de fls. 75 e 75 v.º, imagens de fls. 73 v.º a 74, as certidões de registo predial e matricial de fls. 9 a 10 v.º,e de fls. 29 v.º e 30 a habilitação de herdeiros de fls. 133 a 134 e documento da AT de fls. 135, as informações prestadas pela Câmara Municipal de fls. 65 a 67, e de fls. 81 a 89, a escritura de doação de meação e quinhão hereditário de fls. 11 a 12, escritura de compra e venda de fls. 27 v.º a 29, as cartas e respectivos registos e/ou avisos de recepção de fls. 33 v.º a 35, 76 a 77, notificação judicial avulsa de fls. 103 a 113, as imagens em que as testemunhas indicaram onde termina o prédio dos autores antes da construção do muro de fls. 136 a 137.».
No segmento útil da impugnação da matéria de facto, os Recorrentes insurgem-se contra a desvalorização, que reputam de arbitrária e inexplicável, do seu depoimento de parte, das testemunhas RR, RR, e QQ (irmã da Recorrente, com audíveis incongruências e que não sabia afiançar com segurança a propriedade do muro), com valorização das testemunhas dos Recorridos, e pela omissão de pronúncia quanto às fotografias.
Resulta inquestionável deste excerto que o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo esteou-se na prova pré-existente carreada pelas partes aos autos, oficiosamente ordenada (cf. Acta de 29 de Abril de 2021), e posteriormente a produzida em Julgamento, foi sujeita ao princípio da corroboração, cotejada e examinada de modo proficiente e lógico, nada se lhe podendo apontar negativamente.
Percorridos aqueles depoimentos e testemunhos o que decorre é, precisamente, o contrário do agora afirmado, e o encontro com a convicção acima reproduzida (os próprios Recorrentes confirmaram, em 23 de Janeiro de 2023, ter retirado a rede e os ferros, o alteamento do muro e a pedra de finalização, que os trabalhos de manilhar ocorreram no terreno do pai da ora Recorrida, e não conseguiram delimitar o terreno que a si pertence), AA e RR (o primeiro, pela circunstância de ter estado ausente do país, só tinha um conhecimento parcelar, e a segunda também desconhecia segmentos relevantes em discussão, v.g., a polémica à volta do muro e do portão), sendo certo que a testemunha MM, que também foi arrolada pelos Recorrentes, tendo em conta as suas funções na Junta de Freguesia, teve conhecimento directo e abrangente dos contornos desta disputa, e é uma testemunha descomprometida de ligações familiares, e, por último, a sentença valora as acareações que foram efectuadas nas sessões de 11 e de 26 de Maio de 2023 (aqui precisamente com UU[25], tendo conferido credibilidade à versão de MM).
Entende-se a apelidada falsidade do depoimento como a mera discordância dos Recorrentes ao teor das afirmações produzidas pelas testemunhas que trouxeram uma versão diferente da sua.
Os Recorrentes olvidaram-se que a prova testemunhal tem, por um lado, que ser encarada e compreendida no seu conjunto, e, por outro lado, por reporte a cada testemunho produzido, não se podem desgarrar parcelas dos depoimentos sob pena de descontextualização e incongruência.
Para além disso, a convicção do Tribunal também encontrou eco na extensa prova documental inserta nos autos (designadamente, certidões e documentos camarários).
No tocante às fotografias, não se alcança a razão de ser da sua «força probatória plena», mas resulta da Audiência que houve testemunhas a quem foram exibidas e foram confrontadas com as fotografias trazidas por ambas as partes e o seu resultado está expresso na motivação de facto, em termos coincidentes com a realidade processual.
Uma nota sobre o erro notório na apreciação da prova, contradição, ambiguidade e ininteligibilidade entre os factos provados e os não provados, nomeadamente a existente nas als. M), O) e P).
Neste Tribunal já se deixou consignado que o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, verificando-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de uma pessoa de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum[26].
Paralelamente, a nulidade da Sentença por ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, tem assento no art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do Código de Processo Civil.
Apesar dos Recorrentes terem a sentença por nula, por supostos erros, contradições e ambiguidades, o certo é que a conformam no contexto de uma errada apreciação dos factos e/ou do Direito.
Ora, é consabido que o erro de interpretação dos factos e/ou do direito ou na aplicação deste constitui erro de julgamento, e não o vício de nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão[27].
Perlustrados os factos não se alcança que exista algum destes vícios, mormente não os há nas alíneas M), O) e P), antes sendo escorreita e compatível a factualidade provada e não provada.
Em suma, não existiu a apodada «… arbitrária apreciação da prova, alicerçada em apriorísticos juízos triviais e convencimentos discricionários e subjectivos do próprio julgador».
Os Recorrentes não tiveram ganho de causa e discordam dos factos e das conclusões deles emergentes retiradas pelo Tribunal de 1.ª Instância, mas não os contrariaram em termos efectivos, isto é, só a mera divergência intelectual não sustenta uma decisão diferente, a si favorável.
Não o tendo feito e não havendo outro motivo que legitime a alteração da factualidade, nada mais tendo sido submetido à análise deste Tribunal, improcede, in toto, o recurso.
Por terem decaído integralmente, os Apelantes respondem pela satisfação das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
VII.
Decisão:
Com os fundamentos explicitados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais configura encaro dos Apelantes.
Registe e notifique.
(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
[1] Juiz Desembargador 1.º Adjunto: Dr. Paulo Correia
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Helena Melo
[2] Cf. despacho exarado em 23 de Dezembro de 2020.
[3] Manuel de Andrade in, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 111.
[4] Arts. 577.º, al. b), 578.º, e 576.º, n.º 2, de forma respectiva.
[5] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S2, de 26-03-2015, e Proc. n.º 3777/17.0T8VFR.P1.S1, de 27-01-2022 disponíveis, como os demais, em https://www.dgsi.pt/juridicas.nsf.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 1934/17.9T8PNF.P1.S1, de 13-05-2021.
[7] Conforme art. 20.º, Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva:
«…
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.».
[8] A Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (via Lei n.º 45/2019, de 27-06), faz parte do direito interno desde 09-11-1978 (aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13-10, e publicada no Diário da República, I Série, n.º 236, de 13-10-1978, com rectificação subsequente no Diário da República, n.º 286, de 14-12-1978).
[9] Jornal Oficial (2000/C 364/01), de 18-12-2000.
A Carta, proclamada em 2000, na sua versão revista e adaptada em 12-12-2007, tornou-se juridicamente vinculativa para a União Europeia, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 01-12-2009, o que significa que, desde essa altura, beneficia do mesmo valor (e segurança) jurídico que os Tratados – cf. artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia.
[10] Gomes Canotilho e Vital Moreira in, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 164.
[11] Lopes do Rego in, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, p. 17.
[12] Cf. requerimento entrado em 22-04-2021.
[13] Após notificação do despacho que sobre a mesma se pronunciou, de 26-04-2021.
[14] O princípio da preclusão quer significar que na lei adjectiva há ciclos processuais, por vezes rígidos, para a prática de determinados actos e que não sendo praticados no momento temporal previamente definido, inviabilizam a sua prática em momento ulterior.
Acolhem-se, directamente, interesses de celeridade processual ao prevenir o arrastamento dos processos, de lealdade e completude na actuação processual, de auto-responsabilização das partes pelo desenvolvimento e desfecho dos autos, e de progressiva definição das situações jurídicas, mas não descurando a justa composição do litígio e a verdade substancial através, v.g., do princípio do inquisitório, do instituto do justo impedimento ou do atendimento de circunstâncias supervenientes.
[15] «Atento o valor atribuído à presente acção (não superior a metade da alçada da Relação), passa-se a proferir despacho saneador e a designar data para a realização da audiência de discussão e julgamento e respectiva programação dos actos – artigo 597.º, alíneas c), f), e g), do C.P.C..».
[16] Cf. Acta de 20-06-2024.
[17] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 3692/21.3T8LRS.L1.S1, de 26-11-2024, Proc. n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, de 08-02-2024, e Proc. n.º 3674/21.5T8VIS.C1.S1, de 16-01-2024.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 18321/21.7T8PRT.P1.S1, de 06-02-2024.
[19] Cuja prolação ocorreu no Proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, de 17-10-2023, uniformizando jurisprudência no sentido que:
«Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.».
[20] Alberto dos Reis in, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª edição, p. 245.
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1, de 07-09-2017.
[22] Dado que a lei adjectiva consagra um sistema misto de valoração probatória, que tempera o princípio da livre valoração da prova, com um catálogo de excepções atinentes a prova legal ou tarifada.
[23] Epigrafado Modificabilidade da decisão de facto, dita que:
«1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.».
[24] Anota Ana Geraldes in, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, 2013, p. 609, que em caso de dúvida, «…face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.».
[25] Decorre da Acta da última sessão de Julgamento e da Sentença ter sido requerida e deferida a extracção de certidão das suas declarações para remessa aos serviços do Ministério Público.
[26] Proc. n.º 26/16.2GESRT.C1, de 10-07-2018.
[27] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 05B3035, de 11-10-2005, e no Proc. n.º 9526/10.7TBVNG.P1.S1, de 09-11-2017, do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n.º 708/20.4T8VNG.P1, de 18-09-2023, e do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 301/21.4T8OAZ.P1, de 10-07-2024.