ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
VALOR PROBATÓRIO
CONFISSÃO EM FASE NEGOCIAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE EMPREITADA
IVA
PREÇO
Sumário

I – Não sendo arguida nem demonstrada a falsidade de um documento autêntico, o mesmo faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Por conseguinte, uma escritura pública faz prova plena de que os outorgantes proferiram as declarações nela vertidas, mas não garante a veracidade dessas declarações, a não ser na medida em que configurem uma confissão feita à parte contrária.
II - O facto objecto de confissão tem uma natureza bifronte: é desfavorável ao declarante e favorável ao beneficiado. A aferição do carácter desfavorável da declaração reporta-se ao momento da formalização da declaração e não ao momento em que o juiz a valora, pois o animus confitendi centra-se na vontade do declarante, independentemente das suas consequências legais.
III – O preço declarado por ambos os outorgantes numa escritura pública de compra e venda não assume a natureza bifronte que a declaração confessória pressupõe, configurando uma declaração negocial recíproca e actual de ambas as partes, referente à formação do próprio contrato e não ao reconhecimento do que quer que seja.
IV – Os factos conclusivos, ou em que se divise uma componente conclusiva, são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum ou se configurarem juízos de valor não jurídicos emitidos a partir dos demais factos provados.
V – No contrato de compra e venda, a transferência do direito de propriedade ou de outro direito nunca é gratuita, ao contrário do que sucede no contato de doação. Mas o uso da expressão “preço” significa que o legislador foi mais longe, impondo uma correspectividade em dinheiro, ao contrário do que sucede no contrato de permuta, troca ou escambo.
VI – O acordo em que as partes estipulam o pagamento de parte do preço de determinados serviços de construção de duas moradias, mais concretamente de 206 mil euros, por via da entrega de determinados bens imóveis, sendo a parte restante, mais concretamente 36 mil euros, paga em numerário, não configura um contrato de permuta ou um contrato de compra e venda (ainda que relacionado com um contrato de empreitada), mas sim um contrato de empreitada.
VII – O contrato de empreitada, enquanto modalidade do contrato de prestação de serviços, está sujeito a IVA. Por regra, é sujeito passivo desse imposto o empreiteiro, enquanto pessoa que se dedica a essa actividade de prestação de serviços. Tal imposto repercute-se obrigatoriamente no preço a pagar pelo dono da obra, enquanto adquirente dos serviços, o qual é igualmente responsável pelo pagamento do IVA ao Estado.
VIII – A importância do imposto liquidado pelo empreiteiro deve ser adicionada ao valor da factura, para efeitos da sua exigência ao dono da obra. O empreiteiro apenas poderá exigir deste o valor correspondente ao IVA, por cujo pagamento é em primeira linha responsável perante a administração fiscal, logo que emita a respectiva factura nos termos da lei. Assim, a emissão da factura não é condição sine qua non para que o IVA seja devido, ou seja, para que o Estado o possa exigir; mas é condição sine qua non para que o prestador dos serviços, contribuinte de direito do imposto, o possa exigir do adquirente, contribuinte de facto do mesmo.
IX – Verificados os pressupostos previstos no artigo 2.º, n.º 1, al. j), do CIVA, a inversão do sujeito passivo é obrigatória, passando a caber aos adquirentes ou destinatários dos serviços aí referidos, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido.
X – Não sendo questionada a transmissão do direito de propriedade sobre o terreno onde estava implantada determinada construção e não se tendo demonstrado a constituição de qualquer direito real que permitisse à alienante manter na sua esfera jurídica a referida construção, maxime a constituição de um direito de superfície, impõe-se concluir que o direito transmitido incidia igualmente sobre esta construção, por força do princípio superficies solo cedit consagrado na norma do artigo 1344.º do CC.

Texto Integral

Processo n.º 1273/21.0T8PNF.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Rua ..., ... Lousada, e A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., ..., ... e ..., ... Lousada, intentaram a presente acção declarativa comum contra B..., Lda., com sede na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada.
Alegaram, em essência, os créditos que detêm sobre a ré, provenientes:
- No caso da 1.ª autora, do preço do prédio que a sociedade C..., Lda. (já dissolvida e de que foi única sócia, gerente e liquidatária a 1.ª autora) vendeu à ré em 21.12.2016 e do valor das benfeitorias (edificação) que aquela sociedade havia realizado naquele prédio;
- No caso da 2.ª autora, do crédito que C..., Lda. deu em pagamento a BB e que esta entregou à 2.ª autora a título de suprimentos, corresponde ao preço de diversos prédios que a referida sociedade vendeu à ré em 20.12.2016 e 04.01.2017, e da indemnização devida pelo incumprimento do contato de empreitada (abandono da obra e defeitos) que a 2.ª autora celebrou com a ré como forma de liquidação do crédito antes referido, deduzidos do valor que a ré incorporou nos terrenos da 2.ª autora.
Concluíram pedindo a condenação da ré a pagar à 1.ª autora a quantia de 139.200,00 €, acrescida de juros de mora, e a pagar à 2.ª autora a quantia de 122.156,25 €, acrescida dos juros de mora.
A ré apresentou contestação onde impugnou a versão dos factos descrita na petição inicial, alegou a sua versão desses factos (alegando que apenas negociou com a 1.ª autora, comprometendo-se a construir duas mordias pelo valor global de 242.000,00 €, mediante a entrega dos lotes de terreno acima referidos, avaliados em 206.000,00 €, e de 36.000,00 € em dinheiro, posteriormente deduzido de 18.000,00 € correspondentes a serviços realizados pela autora, e acrescido de 32.303,04 € correspondentes a serviços extra, alegando ainda que os serviços realizados ascendem a 157.456,53 € e que foi a autora que incumpriu o contrato e inviabilizou a conclusão da obra pela ré), arguiu a falta de legitimidade da 1.ª autora, pediu a condenação desta como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré, e pugnou pela improcedência da acção.
Para além de contestar, a ré deduziu reconvenção, pedindo a condenação solidária das autoras a pagar-lhe a quantia de 55.177,32 € acrescida de juros de mora, correspondente à vantagem patrimonial que deixou de auferir por não ter concluído a obra (30.000,00 €), ao lucro que deixou de auferir (5.000,00 €) e aos impostos que teve de suportar (20.177,32 €) por ter sido impedida de comercializar os bens que foram arrestados no procedimento cautelar apenso.
As autoras replicaram, pugnando pela improcedência da reconvenção. Mais pediram a condenação da ré em multa como litigante de má-fé.
Tendo-se frustrado a tentativa de conciliação das partes, foi dispensada a realização de audiência prévia, proferido despacho saneador – no qual foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade da 1.ª autora/reconvinda, decisão que veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação do Porto –, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova – posteriormente ampliados na sequência do acórdão que julgou a 1.ª autora parte legítima.
Veio a realizar-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, decide-se:
a) Condenar a ré a pagar à autora A..., Lda., a quantia de € 31.182,22 (trinta e um mil cento e oitenta e dois euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de juros comerciais que vigorar no período temporal em referência, vencidos e vincendos desde a citação para a presente acção e até integral pagamento daquele valor;
b) Absolver as autoras/reconvindas do pedido reconvencional deduzido pela ré/reconvinte;
c) Absolver as partes dos pedidos de condenação como litigantes de má fé.
Custas da acção a cargo das autoras e da ré, na proporção do decaimento.
Custas da reconvenção a cargo da ré.
Registe e notifique».

*
Inconformada, a ré apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1ª- Este recurso é incidente sobre a decisão acerca da matéria de facto e a respeito da solução de direito, constituindo questões a conhecer (i) a junção aos autos de documentos que a lei exige para a prova de parte dos factos considerados provados, (ii) saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto, (iii) a solução de mérito.
2ª- O facto não provado nº1 da sentença acha-se indiciariamente demonstrado no documento nº3 junto com o requerimento referencia citius 46733853 de 9-10-2023, consistente numa publicação em 23-02-2017 no Portal da Justiça da feitura de ato de registo de dissolução e encerramento da liquidação relativamente à sociedade C..., Lda, pelo que, caso se entenda que o esse facto registral se demonstra por meio de certidão, é de concluir que, em face daquela prova indiciária e ao abrigo do disposto no mencionado artigo 411º do C.P.C., a Mª Julgadora deveria ter assumido uma atitude proativa na realização de todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, e ter, designadamente, ordenado oficiosamente a requisição da certidão registral da sociedade C..., Lda, o que, todavia, não fez, dando o facto por não provado com evidente e relevante influência na justa composição do litígio, em desfavor das autoras.
3ª-As partes formalizaram o negócio que celebraram entre si através das escrituras publicas evidenciadas nos pontos provados 2 e 6 da sentença, consistente, aparentemente, em compra e venda, sendo certo que, como resulta da demais matéria provada, designadamente no ponto 17, as partes celebraram entre si uma permuta, consistente unicamente na transferência recíproca de coisas, sendo que, não obstante essa simulação, o negocio dissimulado que quiseram - a troca ou permuta – é valido em virtude do cumprimento do requisito formal, como dito no artigo 241º do C.C.
4ª- As autoras impugnam a decisão acerca do ponto provado 28, sendo fixado o valor de € 121.000,00 para a construção de cada uma das moradias que já contemplava aquele desconto da retirada daquelas especialidades, sendo isto que está refletido no documento n.º 20 junto com a oposição da providência cautelar, anexo I, p. 2 a 4.
5ª- No documento n.º 20 junto com a oposição da providência cautelar, anexo I, p. 2 a 4 mostra-se omitida a execução dos arranjos exteriores de cada uma das moradias, também a cargo da ré, arranjos exteriores esses que constam de um projeto de especialidade que integra o licenciamento camarário aprovado para as ditas habitações que a ré se obrigou entregar segundo o ponto provado 17., projeto de especialidade esse que está evidenciado nos autos, assim como se mostra omitido o custo da execução desses arranjos exteriores.
6ª- A impugnação da 2ª parte do ponto provado 28 de fls 12 da sentença funda-se no projeto de especialidade de arranjos exteriores apenso a estes autos, e ainda no depoimento não contraditado da testemunha Arquiteto CC, o qual revelou que os custos dos arranjos exteriores de cada um dos imoveis que a ré se obrigou entregar ascendia a 42.764,00 €, como resulta desse depoimento, registado na ata de 19-02-2024, e está gravado através do sistema integrado de gravação digital de seguinte forma: 10:48:05 – 11:57:49 e ficheiro áudio 20240219104803_3744034_2871635.wma, e na parte que releva acerca dos arranjos exteriores de cada um dos imoveis, concretamente da rotação 00:25:47 até à rotação 00:30:38, sendo possível concluir que ao valor de cada moradia revelado pelos autos de 121.000,00 € há que acrescentar o custo dos arranjos exteriores de cada um dos imoveis de 42.764,00 €, razão pela qual se pede a alteração da redação do ponto 28 por forma a que passe a constar que “28. A Ré comprometeu-se perante a 2ª autora a construir duas habitações para a Autora AA pelo valor de 163.764,00 € cada, num total de 327.528,00 €.”.
7ª- A análise critica do teor do ponto provado 29, convoca a regra do artigo 349º do C.C. que refere que “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”, pelo que, sabendo-se que o custo para a ré das moradias a entregar é de 327.528,00 € como acabado de apurar quanto ao ponto 28, e que há um remanescente em dinheiro de 36.000,00 € a entregar à ré como advém do ponto provado 30., então é de inferir que o pagamento parcial total que a ré já recebeu é da diferença entre esse custo total e o remanescente a pagar, ou seja, é de 291.528,00 €. (327.528,00 € - 36.000,00 €), e assim, importa alterar a redação do artigo provado 29, o qual deve exarar que “29. E que para pagamento parcial do preço a 2ª Autora teria que pagar à Ré a quantia de 291.528,00 € com a entrega dos lotes de terreno objecto das escrituras públicas supra melhor identificadas.”
8ª- Na hipótese de improceder a alteração do ponto provado 28 nos termos acabados de expor na conclusão 6ª, outra vertente impugnatória carece de análise critica no que se refere ao ponto provado 29, e assim, sem prescindir do que está na conclusão 7ª, diz-se que, face aos pontos provados 6 e 49, o valor total que a ré recebeu é de 249.416,77 € que é a soma dos valores dos lotes do ponto provado 6 (excetuado o lote ...) com o valor do ponto provado 49 que é do lote ... mais edificação (187.682,35 € - 18.265,58 € + 80.000,00).
9ª-De forma assaz surpreendente, mas totalmente inexplicável na dialética que produziu, a Mª Julgadora faz consignar no ponto provado 29 que para pagamento parcial do preço a 2ª Autora teria que pagar à Ré a quantia de 206.000,00 € com a entrega dos lotes de terreno objeto das escrituras públicas supra melhor identificadas, explicando mais adiante na sentença que este valor inclui a edificação no lote ..., o que fez sem revelar como chegou a esse valor de 206.000,00 €.
10ª- Este valor de 206.000,00 deve ser alterado/modificado em face da violação da prova feita por documento autêntico, uma vez que consta que, por escrituras lavradas no dia 20 de Dezembro de 2016 e no dia 4 de Janeiro de 2017, no Cartório Notarial a cargo da notária DD, a ré declarou comprar à C..., Lda., que declarou vender, os imóveis descritos na competente Conservatória do Registo Predial sob os números ...- ... pelo preço de €18.265,58, ...- ... pelo preço de €29.247,47, ...- ... pelo preço de €27.465,25, ...-... pelo preço de €27.603,15, ...- ... pelo preço de €27.762,29, ...- ... pelo preço de €27.900,19 e ...- ... pelo preço de € 29.438,42, a força probatória desses documentos cobrem o facto de a ora ré ter produzido essas declarações no que concerne ao preço/valor dos imoveis, pelo que tem que se concluir que os factos confessados – os valores/preços de todos e cada um dos imoveis a que aludem tais escrituras publicas - têm de se considerar como provados, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - artigo 393º, nº 2, e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - artigo 351º, nº 1, do C.C.), sem prejuízo, porém e como já se disse, de se poder demonstrar a falsidade dos aludidos documentos autênticos ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração “confessória” (artigos 372º, nº 1 e 359º do C.C.), o que a ré, todavia, nem sequer tentou.
12ª-Destarte, e nesta vertente, mas sem prescindir do anteriormente exposto, importa alterar a redação do artigo provado 29, o qual deve exarar que “29. E que para pagamento parcial do preço a 2ª Autora teria que pagar à Ré a quantia de 249.416,77 € com a entrega dos lotes de terreno objecto das escrituras públicas supra melhor identificadas.”
13ª- Ainda nesta última vertente impugnatória do ponto provado 29 que pressupõe a improcedência da impugnação do ponto 28 nos moldes pretendidos, inexiste qualquer remanescente a entregar, razão pela qual o facto provado 30 deve ser eliminado.
14ª- À exceção dos pontos 44 e 49, os demais pontos provados 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 47, 48 e 50 encerram conclusões e não factos, e, como tal, nem sequer deviam constar do elenco dos factos provados, em obediência ao disposto no nº4 do artigo 607º do CPC o qual dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência, o qual se deve interpretar aludindo a factos concretos e não a expressões de natureza conclusiva ou que sejam de qualificar como tal ou de pura matéria de direito, o que conduz à eliminação dos referidos pontos 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 47, 48 e 50 do elenco dos factos provados.
15ª-No que concerne ao ponto provado 44., a Mª Julgadora ofende o citado dispositivo do nº4 do artigo 607º do C.P.C. ao consignar nesse ponto os valores apurados pelo representante da ré no documento de “perícia” junto ao procedimento cautelar, ignorando o valor final obtido por negociação e acordo das partes nestes autos e concretamente no procedimento cautelar, que são aqueles exarados pelo perito que as partes escolheram, pelo que a resposta ao ponto provado 44 deve ser modificada/alterada por forma a que dele passem a constar os valores apurados pelo perito que as partes escolheram, valores esses que as partes aceitaram por acordo.
16ª- No que respeita ao ponto provado 49., não é verdade que as partes tenham acordado nesse valor de 80000,00 €, sendo certo que a Mª Julgadora não evidencia – nem pode evidenciar – em que meio probatório se funda para afirmar que as autoras deram o seu acordo a esse valor de 80000,00 €.
17ª- A impugnação do teor do ponto provado 49 assenta no depoimento de CC, registado na ata de 19-02-2024, gravado através do sistema integrado de gravação digital de seguinte forma: 10:48:05 – 11:57:49 e ficheiro áudio 20240219104803_3744034_2871635.wma, na parte que releva acerca do valor do lote ... com a edificação existente, concretamente da rotação 00:02:26 até à rotação 00:17:50, porquanto as autoras tinham uma proposta de aquisição no valor de 120.000,00 €, não tendo, pois, qualquer sentido fazer-se crer que as autoras aceitaram 80.000,00 € para essa edificação e lote, o que viola claramente as mínimas regras da experiência, pelo que pede-se a alteração/modificação da resposta ao facto provado no sentido de se exarar o valor de 120.000,00 € como pretendido pelas autoras.
18ª- No âmbito do contrato de permuta que as partes celebraram entre si e vem provado nos autos, concretamente no facto provado 17., não há lugar à liquidação de I.V.A. no que respeita à obrigação da ré, pois a permuta não consubstancia uma transferência onerosa de bens passível de I.V.A., mas sim transmissão, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional, como definido no artigo 2º do C.I.M.T., sendo que integra o conceito de transmissão de bens imóveis as permutas, pela diferença declarada de valores ou pela diferença entre os valores patrimoniais tributários, consoante a que for maior, em ordem ao preceituado no nº5, alínea b), da citada norma, pelo que a imputação feita às autoras na sentença da quantia de 32.689,50 € deve ser eliminada, e também o facto provado 45 deve ser eliminado dos factos provados.
19ª-A sentença diz, a páginas 28 que “Assim, à data da resolução - 31 de Outubro de 2017 – a obra realizada pela ré no quadro do mencionado contrato de empreitada totalizava o valor de € 174.817,78, com IVA já incluído (€ 84.501,88 + € 57.626,40 = 142.128,28 x 23%).”, mas ignora que o IVA é liquidado à taxa de 6% nos casos de construção ou reabilitação para habitação a custos controlados ou para arrendamento acessível, e que nas A.R.U. (Áreas de Reabilitação Urbanas), nos casos de construção para habitação, o IVA é também liquidado à taxa de 6% até Setembro de 2023, sendo certo que as moradias que a ré se obrigou entregar se destinam à habitação e acham-se edificadas em terrenos situados na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada, conforme ponto provado 17., terrenos esses situados no interior da área da A.R.U. da vila de Lousada, tal como definida no Aviso nº9316/2017 publicado a páginas 17562 do D.R. II Série nº156 de 14-08-2017, concluindo-se assim e sem prescindir da conclusão que antecede, o I.V.A. a liquidar à taxa de 6% ascende a 8.527,69 € (€ 84.501,88 + € 57.626,40 = 142.128,28 x 23%), o que origina a modificação/alteração do facto provado 45 e neste sentido.
20ª- A existência das faturas ou de documentos equivalentes, bem como os requisitos legais dos mesmos, têm que ser observados por forma a permitirem um controle sobre que exato bem foi transmitido ou que serviço foi prestado, quando, onde, em que quantidade/extensão, e a quem, por serem os mesmos suscetíveis de gerar o direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado, permitindo reconstituir que serviço foi prestado ou que bem foi transmitido e qual o seu custo, não podendo haver duplicação de deduções de IVA., pelo que as faturas consubstanciam formalidade ad substanciam, que não meramente ad probationem, para efeitos da liquidação do I.V.A., faturas essas ou documentos equivalentes que se mostram ausentes dos autos.
21ª-A emissão das faturas com vista à liquidação do Iva neste concreto negócio consubstancia ato imputável à ré, e assente a obrigatoriedade da prova documental, no caso através da fatura, a sanção será de considerar não escrita tal factualidade – a liquidação do I.V.A. - por aplicação do artigo 607 nº5 do CPC, que abrange os documentos ad substantiam, por imposição indireta, pelo que se conclui que, independentemente de este concreto negócio que as partes celebraram – a permuta – não ter incidência de I.V.A., certo é que, caso assim se não entenda, o I.V.A. não pode ser exigido das autoras, em virtude da inexistência nos autos do documento, formalidade ad substanciam, exigível para a prova do facto (o IVA) – a fatura -, sendo também certo que sempre o seria à taxa de 6% e não àquela de 23% usada na sentença, o que conduz à eliminação da quantia de 32.689,50 € imputada a este título às autoras/recorrentes.
22ª- Por último e quanto ao IVA coloca-se a questão da aplicação da regra da inversão do sujeito passivo em sede de I.V.A., nos serviços de construção civil, matéria regulamentada no Decreto-Lei nº 21/2007, de 29 de janeiro (que introduziu alterações no Código do IVA) e Ofício-Circulado nº ..., de 24 de maio, que é obrigatória, caso (i) esteja em causa a atividade da construção civil e (ii) a entidade ser sujeito passivo de IVA que pode exercer o direito à dedução do imposto suportado total ou parcialmente, como é o caso da 2ª autora, A....
23ª- Compete à 2ª autora autoliquidar o I.V.A., mediante a fatura a emitir pela ré, o que não ocorreu, pelo que também por esta razão, não há lugar ao desconto do IVA nas “contas” entre as autoras e a ré, abatendo tal IVA no saldo apurado a favor das autoras, na hipótese de estes estarem obrigadas a autoliquidar o IVA, o que significaria uma duplicação de pagamento, devendo, assim, ser eliminada, o que também é causa de eliminação do ponto provado 45, ou, caso se não entenda como acima exposto, o IVA reduzido à taxa de 6%.
24ª- A sentença determinou, como provado, o que fez constar a fls 18/19 sob os pontos 17, 18, 19 e 20 dos pontos não provados, e a fls 32 e 33 da mesma, a Mª Julgadora explicita a fundamentação da sua convicção, dizendo “Na verdade, as declarações de parte da AA e os depoimentos das testemunhas EE e FF, conjugados com os documentos n.º 5 a 8 juntos aos autos em 21/11/2023 através do requerimento com a referência n.º 47197049, são contrariados pelas declarações dos legais representantes da ré e pelo depoimento da testemunha GG, sendo que, aceitando-se que a empresa daquela testemunha andou a concluir as obras das moradias, a mesma não discriminou nas facturas que apresentou os valores da conclusão e os valores da alegada reparação dos invocados defeitos.”, o que as autoras contestam, e pugnam pela sua alteração para os factos provados, fundamentando a pretensão no depoimento da testemunha FF (este conjugado com os documentos n.º 5 a 8 juntos aos autos em 21/11/2023 através do requerimento com a referência n.º 47197049), depoimento este registado na ata de 22-11-2023, gravado através do sistema integrado de gravação digital de seguinte forma: 10:17:53 – 10:57:13 e ficheiro áudio 20231221101751_3744034_2871635.wma, e concretamente da rotação 0:00:00 à rotação 00:16:54, constatando-se que a testemunha, para além de ter confirmado as faturas e o recebimento das quantias que elas titulam, também foi clara ao afirmar que nesses imoveis somente efetuou reparações, e não obra nova, devendo, pois, modificar-se/alterar-se a matéria dos pontos não provados 17 a 22 no sentido de os incluir na matéria de facto provada.
25ª- A ré deixou a parte entregue do imóvel, no exato estado em que a ré as deixou na data referida em 25 dos factos provados, padeciam de vícios vários que as desvalorizavam, mas também impediam a realização do fim a que se destinavam, a saber: uma a habitação da sócia da 2ª autora, e outra a habitação do filho da sócia da 2ª autora, bem como não tinham as qualidades asseguradas pela ré e necessárias à realização daquelas finalidades de habitação, sendo que tais vícios consistiam em incorreto isolamento térmico do pavimento, incorreta aplicação do revestimento das paredes, incorreta impermeabilização das soleiras, ombreiras e padieiras dos vãos (permitindo o aparecimento de humidades no interior), má execução do descaimento das palas, fissuração generalizada em várias paredes, incorreto isolamento de parte das paredes exteriores, má execução da janela de lavandaria, incorreto nivelamento do piso, com diferenças de cotas substanciais e incorreta definição do espaço para introdução dos rodapés nas paredes, pelo que a 2ª autora viu-se compelida a proceder a tais reparações, no que gastou a quantia de 18.951,03 €, o que funda a pretensão de condenação da ré no ressarcimento da quantia de 18.951,03 € ao indicado título.
26ª- Relativamente à edificação feita no lote ..., lida a escritura publica que transmitiu o lote para a ré, vê-se que a ré comprou uma parcela de terreno para construção - lote n.º ..., e que dessa escritura nada consta a propósito da edificação, composta de edifício destinado a habitação unifamiliar em construção, pelo que não se entende a forma sui generis mediante a qual a Mª Julgadora decidiu que a escritura transmite também para a ré a referida edificação, e que o preço de tudo foi de 80000,00 €.
27ª- Prédio rústico é uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia e prédio urbano é qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro, como é dito no nº2 do artigo 204º do C.C., pelo que a natureza da prédio urbano é o edifício, que, segundo, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª Ed., pág.s 195 e Santos Justo, in “Direitos Reais”, ano 2007, pág.s 125, o edifício é elemento essencial à qualificação como urbano de um determinado prédio, porquanto sendo o prédio urbano, tal como o prédio rustico, uma parte delimitada do solo, o urbano deve constituir com o solo uma “unidade estrutural”, unidade esta que há-de pautar-se pelos seus elementos essenciais, mormente as paredes mestras, os pilares e vigas de sustentação, a cobertura (telhado ou terraço), os alicerces, estacas ou qualquer outro meio de fixação permanente ao solo (incorporação), as instalações de água e eletricidade, entre outros, sendo, pois, a incorporação que faz nascer uma unidade entre o solo e a obra nele implantada, constituída esta por materiais de construção (cimento, tijolos, placas, telhas, pedras, areia, canalizações, fios de electricidade, etc) que antes tinham individualidade própria e autonomia económica e jurídica, mas que, devidamente combinados e justapostos pelo trabalho humano, em termos de, uma vez incorporados, não mais possam ser separados sem destruição dessa unidade.
28ª- No caso dos autos, independentemente da proximidade física e funcional da edificação com o terreno onde está incorporada, conclui-se que a edificação não está ao serviço da parcela de terreno, edificação essa que passou a gozar de autonomia económica, ocorrendo, por conseguinte, uma substancial alteração da composição do prédio, que passa de parcela de terreno para construção para edifício em construção ou edifício inacabado, passível de transmissão.
29ª- A edificação em construção no solo do lote n.º ... era passível de ser alienada como “venda de prédio em construção”, estava e está sujeita a forma – o documento autêntico ou autenticado, a qual consubstancia uma formalidade ad substanciam, insuscetível de ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior, como diz o nº1 do artigo 364º do C.C., sob pena de incorrer na nulidade a que alude o artigo 220º do C.C., sendo que a alienação desse prédio/edificação inacabada não foi feita, designadamente segundo a forma exigível, pelo que é nula, o que é do conhecimento oficioso.
30ª- Em consequência do exposto, as recorrentes pedem a este Colendo Tribunal que (i) revogue a decisão recorrida, (ii) ordene a junção aos autos de certidão integral do registo comercial da sociedade C..., Lda, incluindo o documento que sustentou o ato de registo consistente na insc. 2- Ap... – Dissolução e Encerramento da Liquidação e (iii) determine que, junto o documento em causa e exercido o contraditório, se proceda, nos termos legais, à audiência de julgamento (para alegações atento o novo meio de prova) e posterior prolação de sentença, mas caso assim não entenda, modifique a decisão da matéria de facto de acordo com o acabado de expor, e em consequência condene a ré na restituição às autoras da quantia que resulte da diferença entre o valor do que entregaram à ré e do que receberam da ré, acrescido do valor gasto na eliminação dos vícios/defeitos das moradias inacabadas, sem prejuízo do conhecimento oficioso da nulidade provinda da transmissão da edificação inacabada no lote ... e seus efeitos no negócio».
A ré não respondeu à alegação das recorrentes.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes:
1. A alteração da decisão sobre a matéria de facto, no que concerne aos pontos 29 a 30, 33, 35, 36, 38 a 45 e 47 a 50 dos factos provados e aos pontos 1 e 17 a 20 dos factos não provados.
2. A consequente condenação da ré a pagar a ambas as autoras a quantia que resulte da diferença entre o valor do que entregaram à ré e do que receberam da ré, sem IVA, acrescido do valor gasto na eliminação dos vícios/defeitos das moradias inacabadas.
3. O conhecimento oficioso da nulidade provinda da transmissão da edificação inacabada no lote ... e seus efeitos no negócio.
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III. Fundamentação
A. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. À data de 20/12/2016, a ré dedicava-se, como ainda hoje se dedica, à atividade de construção de edifícios (residenciais e não residenciais), o que faz habitualmente e com o intuito do lucro (alínea A) dos factos assentes).
2. Por escritura lavrada no dia 21 de Dezembro de 2016 no Cartório Notarial a cargo da notária DD, a ré declarou comprar à C..., Ldª, que declarou vender “… o prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Lousada, composto de parcela de terreno para construção – lote n.º ... inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... … descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº ... da freguesia ... …”, pelo preço de € 18.265,58, tudo nos moldes vertidos nos documentos 4 e 5 juntos com a petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos (alínea B) dos factos assentes).
3. Não obstante ter sido declarado no contrato identificado no ponto que antecede que o preço foi pago pela ré e recebido pela vendedora C..., Ldª, o certo é que esse preço não foi pago, e assim também não foi recebido, pelo que, as declarações prestadas pelos outorgantes nesse contrato quando dizem “… que declaram ter já recebido …” não correspondem à verdade (alínea C) dos factos assentes).
4. Todos os outorgantes, nas qualidades em que outorgavam, sabiam que o preço não tinha sido pago pela ré à C..., Lda., e que esta não tinha recebido esse preço (alínea D) dos factos assentes).
5. À data da transmissão da referida parcela de terreno para construção, o identificado lote ..., a vendedora C..., Lda., tinha em construção nele uma edificação, composta de edifício destinado a habitação unifamiliar (alínea E) dos factos assentes).
6. Por escrituras lavradas no dia 20 de Dezembro de 2016 e no dia 4 de Janeiro de 2017, no Cartório Notarial a cargo da notária DD, a ré declarou comprar à C..., Lda., acima já identificada, que declarou vender, os imóveis descritos na competente Conservatória do Registo Predial sob os números ...- ... pelo preço de €18.265,58, ...- ... pelo preço de €29.247,47, ...- ... pelo preço de €27.465,25, ...-... pelo preço de €27.603,15, ...- ... pelo preço de €27.762,29, ...- ... pelo preço de €27.900,19 e ...- ... pelo preço de € 29.438,42, nos moldes vertidos nos docs. 3 e 4 juntos na providência cautelar apensa e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea F) dos factos assentes).
7. Não obstante ter sido declarado nos contratos identificados na alínea que antecede que todos os preços foram pagos pela ré e recebidos pela vendedora C..., Lda., o certo é que todos esses preços não foram pagos, e assim também não foram recebidos, pelo que as declarações prestadas pelos outorgantes nesses contratos quando dizem “… que declaram ter já recebido …” não correspondem à verdade (alínea G) dos factos assentes).
8. Todos os outorgantes, nas qualidades em que outorgavam, sabiam que os preços não tinham sido pagos à C..., Lda., e que esta não tinha recebido esses preços (alínea H) dos factos assentes).
9. A Ré recebeu os imóveis descritos nas escrituras (alínea I) dos factos assentes).
10. À data de 20/12/2016, a 1ª autora era a única sócia e gerente da sociedade comercial por quotas sob a firma C..., Lda., com sede no Edifício ..., loja ..., União das freguesias ..., ... e Ordem, concelho de Lousada, matriculada na competente Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula ..., a qual se dedicava à atividades de acabamento de construção civil, atividades de engenharia e arquitetura, construção civil e obras públicas, promoção mobiliária, compra e venda de imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim, o que fazia regularmente e com o intuito do lucro.
11. Posteriormente, em acta datada de 20/02/2017, foi declarado aprovar a dissolução e liquidação da sociedade C..., Lda., data na qual se mantinha como única sócia e gerente a aqui 1ª autora, tendo ali sido, ainda, declarado “nomear a Sra. AA (…) como representante para efeitos tributários, bem como o depositário dos livros e demais escrituração da respectiva sociedade.
12. À data de 21/12/2016, o edifício aí mencionado tinha uma cércea de cave, rés-do-chão e andar, com estrutura feita e alvenaria, uma área de construção de 344m2 e um volume de construção de 582m3, e tinha colocado o portão de garagem.
13. Estavam também executados os arranjos exteriores, nomeadamente os muros exteriores e interiores, passeios internos e acesso à rampa.
14. Pelo menos, no ano de 2023, o preço corrente de mercado da mencionada edificação, uma vez concluídas as obras de construção civil, ascendia a quantia não inferior a €185.000,00.
15. Por documento datado de 5/01/2017, intitulado de “dação em pagamento”, no qual constam como outorgantes, C..., Lda., representada por AA, na qualidade de primeira outorgante, e BB, na qualidade de segunda outorgante, foi declarado o vertido no documento n.º 6 junto aos autos em 9/10/2023, com o requerimento com a referência 46733853, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente que:
“Considerando que: a) a segunda outorgante é dona de um saldo a seu favor a título de empréstimos realizados à primeira outorgante; b) a primeira outorgante é dona de um crédito de cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos, que é a soma dos preços que não recebeu e a que se referem as escrituras lavradas no dia 20 de Dezembro de 2016 e no dia 4/01/2017 (…), em que é devedora a sociedade comercial (…) B..., Lda.”. É celebrado o presente contrato de dação em cumprimento, que se rege pelas cláusulas seguintes: Cláusula primeira (objecto e montante) 1. Nos termos do presente contrato, a primeira outorgante dá em pagamento à segunda outorgante a totalidade do crédito que detém sobre a sociedade por quotas que gira sob a firma B..., Lda., no montante de € 187.682,35 (cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos), que esta aceita. 2. O presente contrato tem por objectivo extinguir parcialmente o saldo a favor da segunda outorgante de empréstimos feitos à primeira outorgante (…)”.
16. Por documento datado de 1/02/2017, intitulado “transmissão de crédito”, no qual constam como outorgantes, BB, na qualidade de primeira outorgante, e A..., Lda., representada por AA, na qualidade de segunda outorgante, foi declarado o vertido no documento n.º 7 junto aos autos em 9/10/2023, com o requerimento com a referência 46733853, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente que: “Considerando que: a) a primeira outorgante é sócia da segunda outorgante; b) a primeira outorgante recebeu por dação em cumprimento por parte de C..., Lda., um crédito no valor de € 187.682,35 (cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos) (…); c) A segunda outorgante haverá de pagar à primeira outorgante o aludido crédito de € 187.682,35 (cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos), na exacta medida e mesmo momento da emissão de facturas e recibos pela B... à segunda outorgante referente à empreitada e até ao montante do crédito de € 187.682,35 (cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos)(…). É celebrado o presente contrato de transmissão de crédito, que se rege pelas cláusulas seguintes: Cláusula Primeira (objecto e montante) 1. Nos termos do presente contrato, a primeira outorgante transmite à segunda outorgante o crédito do montante de € 187.682,35 (cento e oitenta e sete mil e oitocentos e dois euros e trinta e cinco cêntimos), que detém sobre a sociedade comercial (…) B..., Lda., (…), consistente na soma dos preços que esta B... não pagou e a que se referem as escrituras lavradas no dia 20/12/2016 e no dia 4/01/2017, transmissão esta que a segunda outorgante aceitou. 2. O presente contrato tem por objectivo permitir à segunda outorgante compensar o preço da empreitada titulado pelas facturas a emitir pela B..., Lda., com igual montante do crédito aqui transmitido, e justifica-se tendo em consideração a relação societária entre as partes. (…)”.
17. Em data em concreto não apurada, mas sempre antes do dia 20/12/2017, a autora AA e a ré acordaram que o pagamento dos preços dos imóveis que, posteriormente, iriam ser vendidos à ré, através das escrituras supra identificadas, seria efectuado pela entrega de dois imóveis, do tipo moradias unifamiliares, que a ré se obrigava a contruir em terrenos situados na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada, à exceção do projeto da especialidade de eletricidade e IPED (Telefones), que não ficaria a cargo da ré.
18. Mais ficou acordado, nessa altura, que ficariam a cargo e expensas da ré o fornecimento de todos os materiais e a mão-de-obra para a construção das moradias, à exceção do fornecimento e pagamento do material cerâmico de revestimento das cozinhas e casas de banho de ambas as moradias.
19. Aquando da celebração da primeira das referidas escrituras, a autora AA fez saber e deu a conhecer à ré que a venda dos imóveis iria ser feita pela sociedade C..., Lda., proprietária dos mesmos, e que a obrigação assumida pela ré e descrita nos anteriores pontos 17 e 18 seria agora por ela assumida perante a autora A..., Lda., a quem pertenciam os terrenos onde as moradias teriam de ser construídas, passando a ser desta a obrigação do fornecimento e pagamento do material cerâmico de revestimento das cozinhas e casas de banho de ambas as moradias, o que a ré aceitou.
20. Em 2016 e 2017, os serviços administrativos da empresa D..., dirigidos pelo Sr. HH, asseguravam também os serviços administrativos da ré.
21. Por comunicação eletrónica, vulgo e-mail de 3/02/217, provindo da dita D..., Lda., e subscrito pelo Sr. HH, este em representação da ré anunciou à autora AA, à data sócia da 2ª autora, que “no seguimento da conversa com o Engº II, vimos enviar o contrato para vossa análise e caso seja tudo de acordo a assinatura do mesmo”.
22. A ré iniciou a execução das duas moradias, mas interrompeu os trabalhos em Outubro de 2017.
23. Em momento anterior à interrupção dos trabalhos, a ré exigiu o pagamento da quantia de € 16.151,52 de trabalhos “adicionais”, a que acresceriam € 9.000,00, a título de valor contratual alterado.
24. O que a autora AA, assim como a 2ª autora, não aceitaram.
25. Por carta endereçada à autora AA, datada de 31 de Outubro de 2017 e por esta recebida, a ré declarou-lhe o vertido no documento n.º 14 junto no processo principal em 6/07/2021 com o requerimento das autoras com a referência 39387372, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
26. A partir do envio da carta referida no ponto anterior, a ré não mais realizou qualquer trabalho na obra.
27. O teor do ponto 7 da referida carta não foi previamente discutido com a 2ª autora, não tendo esta dado a sua concordância ao aí comunicado.
28. A Ré comprometeu-se perante a 2ª autora a construir duas habitações para a Autora AA pelo valor de 121.000,00 € cada, num total de 242.000,00 €.
29. E que para pagamento parcial do preço a 2ª Autora teria que pagar à Ré a quantia de 206.000,00 € com a entrega dos lotes de terreno objecto das escrituras públicas supra melhor identificadas.
30. E, ainda, o remanescente de 36.000,00 €.
31. Sendo que as partes vieram a acordar, posteriormente, que haveria acertos a fazer resultantes de especialidades que ficariam a cargo da Autora, mas que no acordo inicial estavam a cargo da Ré, concretamente a carpintaria, serralharia e tectos falsos de cada moradia.
32. Acordando, ainda, que os valores dos trabalhos de serralharia, carpintaria e tectos falsos de cada moradia, seriam descontados com base nos valores de cada especialidade referida no orçamento inicial e assim acordados, a saber € 10.115,45, 11.319,67 e 12.716,56, respectivamente, por cada moradia.
33. Existiram divergências de áreas entre os projectos e as obras efectivamente realizadas, que são as que constam do relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
34. As partes estavam de acordo que todo o licenciamento, taxas e demais encargos seriam a cargo da 2ª Autora.
35. Já numa fase posterior, ao acordo do ponto antecedente, a autora AA, em representação da 2ª autora, solicitou várias alterações em obra.
36. Alterações, essas, que implicaram um acréscimo ao valor de cada moradia de 16.151,52 €, num total de 32.303,04 €.
37. Antes de a Ré ter deixado de trabalhar em obra, deixou a 2ª autora, representada pela autora AA, de entregar atempadamente alguns dos materiais cuja responsabilidade lhe cabia para a conclusão dos trabalhos da primeira moradia.
38. No momento em que a Ré deixou de trabalhar na obra, a primeira moradia encontrava-se no estado de construção melhor descrito no relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
39. Quanto à segunda moradia, a mesma encontrava-se, nesse momento, no estado de construção melhor descrito no relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos, estando tudo encaminhado para que fossem cumpridos os prazos de entrega acordados.
40. Esta segunda habitação foi iniciada antes do prazo previsto e acordado.
41. Estes factos foram comunicados à 2ª Autora e a AA que sabiam dos custos e acertos que iam surgindo.
42. As Autoras, por não concordarem com o valor dos acertos propostos pela Ré, recusaram-se a fazer, nos moldes que inicialmente as partes tinham acordado, as entregas por conta do valor que teriam que suportar.
43. E por essa razão, e após várias interpelações, a Ré comunicou por carta enviada à Autora a intenção de não continuar com as obras, tudo nos moldes já descritos no anterior ponto 25.
44. Mas as obras realizadas pela Ré à 2ª Autora ascenderam, àquela data, ao seguinte: moradia Um: 84.501,88 € além de impostos que fossem devidos; moradia Dois: 57.626,40 € além de impostos que fossem devidos.
45.Acrescem a estes valores, os respectivos impostos que serão suportados pela 2ª Autora, seja o IVA debitado directamente ou por meio de autoliquidação.
46. Em 21/12/2017, a 2ª autora deu continuidade às obras de ambas as moradias por terceiros, sem interpelar a Ré no sentido de lhe dar a possibilidade de concluir os trabalhos.
47. A ré, ao não realizar esses trabalhos, ou seja, a totalidade dos trabalhos acordados, deixou de auferir uma vantagem patrimonial de pelo menos 15.000,00 € por cada moradia, que se reflectiria no preço a suportar na aquisição dos lotes de terreno.
48. Posteriormente à celebração das respectivas escrituras o preço acordado para as vendas foi liquidado parcialmente pela Ré através do valor das obras realizadas até à interrupção dos trabalhos, nos moldes supra descritos, valor esse mencionado no anterior ponto.
49. O valor atribuído por acordo das partes ao lote ..., incluindo terreno e construção, foi de 80.000,00 €, nunca questionado pelas partes.
50. Todas as construções foram contabilizadas para pagamento do preço das construções realizadas pela Ré nas habitações a seu cargo.
51. O arresto decretado impediu a Ré de, em meados de 2019, vender tal lote pelo valor de 85.000,00 €, e, com isso, viu-se impedida, nessa altura, de realizar um lucro de 5.000,00 €, sendo certo que, em 9/01/2023, já depois do levantamento do arresto sobre o lote em causa, levantamento este ocorrido por acordo entre as partes nesse sentido celebrado na providência cautelar apensa no dia 20/01/2021, a ré vendeu o referido lote com a construção lá existente já concluída a suas expensas pelo valor de 195.000,00.
52. Por força do arresto decretado, tendo os imóveis sido adquiridos sem necessidade de pagamento de IMT por se destinarem à revenda, a Ré viu-se impedida de os comercializar e com isso obrigada a liquidar IMT no montante de 11.094,67 €.
53. E a liquidar os IMI e AIMI dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, pagos nos anos seguintes aos que respeita, num total de 9.082,65 €.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provado que:
1. A dissolução e liquidação aprovadas e descritas em 11 dos factos provados tivessem sido formalizadas por escritura pública ou documento equivalente, e bem assim que tivessem sido registadas, na respectiva certidão de matrícula da sociedade C..., Lda.
2. À data de 21/12/2016, a estrutura e alvenarias referidas em 12 dos factos provados estivessem totalmente concluídas, e bem assim que nessa edificação estivesse concluído o reboco exterior (pronto a pintar), os pisos (prontos a levar revestimento) e cobertura.
3. Naquela data, essa edificação também possuísse todos os tubos para as infraestruturas de abastecimento de água, saneamento, eletricidade e telefone.
4. O custo total das obras descritas nos pontos 12 e 13 dos factos provados, em quantidades, qualidades e preços correntes no mercado, ascendesse a €120.000,00.
5. As obras que faltavam executar para que a edificação ficasse então concluída, ou seja, as caixilharias (com exclusão do portão da garagem), os revestimentos interiores, pintura e condutores de águas pluviais, ascendessen a um custo de € 25.000,00, em preços correntes de mercado, tendo em atenção as respetivas quantidades e sendo de qualidade média.
6. Nos anos de 2016 e 2017, o preço corrente de mercado da edificação mencionada em 12 e 13 dos factos provados, uma vez concluídas as obras de construção civil, ascendesse à quantia de € 185.000,00.
7. Os preços declarados nas escrituras públicas referidas em 2 e 6 dos factos provados correspondessem aos preços acordados de facto para essas vendas.
8. De seguida aos actos descritos em 15 e 16 dos factos provados, a 2ª autora e a ré tivessem acordado em regularizar o pagamento do referido crédito global de €187.682,35 referente à soma dos preços não pagos dos imóveis vendidos da seguinte forma: a) A ré obrigava-se para com a 2ª autora a realizar a obra de construção de dois imóveis, do tipo moradias unifamiliares, em terrenos pertença da 2ª autora, situados na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada, os quais foram objeto de processos de licenciamento de obras particulares com os números … e … da Câmara Municipal ..., devidamente deferidos; b) A ré executaria toda a obra das moradias de acordo com os projetos de arquitetura e das especialidades dos mencionados licenciamentos que declarou conhecer.
9. A 2ª autora e a ré tivessem convencionado o prazo de um ano contado de 4/01/2017 para a obra de edificação das duas moradias, a qual se consideraria concluída com o efetivo termo dos trabalhos de acordo com os projetos, a que acresceriam todas as licenças inerentes às moradias, incluindo as de utilização.
10. Tivessem acordado, ainda, que o documento de receção das moradias construídas por parte da 2ª autora significaria também a efetiva e real plena quitação do preço global de €187.682,35 referente à soma dos preços dos imóveis vendidos e que a ré comprou.
11. Mais tivessem acordado que, no momento de receção da obra e consequente entrega do documento no ponto que antecede, a 2ª autora pagaria à ré a quantia de €14.000,00, e se tivesse consignado que, para além deste pagamento, a 2ª autora nada mais teria que pagar à ré por causa da edificação das moradias, seja a que título fosse.
12. À data dos negócios em causa nos autos, os únicos sócios e gerentes da ré eram também únicos sócios e gerentes de uma empresa designada por D..., Lda..
13. A comunicação referida em 21 dos factos provados tivesse sido dirigida à 2ª autora.
14. Em anexo ao email referido em 21 dos factos provados, a ré tivesse enviado uma minuta de contrato de onde constavam os convénios sumariados nos pontos 32º a 35º desta petição inicial.
15. A minuta do contrato anexa a essa comunicação eletrónica fosse aquela que integra o doc. 11-A junto aos autos em 6/07/2021, com a referência n.º 39386905, ou fosse aquela que está junta a fls. 32 da providência cautelar apensa.
16. À data referida em 25 dos factos provados, a ré incorporara nos terrenos materiais e mão de obra de construção civil em valor não superior a €100.000,00.
17. Ambas as moradias, no exacto estado em que a ré as deixou na data referida em 25 dos factos provados, padeciam de vícios vários que as desvalorizavam, mas também impediam a realização do fim a que se destinavam, a saber: uma a habitação da sócia da 2ª autora, e outra a habitação do filho da sócia da 2ª autora, bem como não tinham as qualidades asseguradas pela ré e necessárias à realização daquelas finalidades de habitação.
18. Tais vícios consistiam em incorreto isolamento térmico do pavimento, incorrecta aplicação do revestimento das paredes, incorrecta impermeabilização das soleiras, ombreiras e padieiras dos vãos (permitindo o aparecimento de humidades no interior), má execução do descaimento das palas, fissuração generalizada em várias paredes, incorrecto isolamento de parte das paredes exteriores, má execução da janela de lavandaria, incorrecto nivelamento do piso, com diferenças de cotas substanciais e incorrecta definição do espaço para introdução dos rodapés nas paredes.
19. A 2ª autora reclamou da ré a reparação de tais vícios, o que a ré negou.
20. A 2ª autora viu-se compelida a proceder a tais reparações, no que gastou a quantia de €19.600,00.
21. A 2ª autora reclamou, em 1/11/2017, à ré o pagamento do preço dos imóveis acima identificados, abatido do valor que a ré incorporou nos terrenos da 2ª autora situados na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada, mas acrescido do valor gasto pela 2ª autora na reparação dos vícios revelados por essas construções, o que a ré não fez.
22. Posteriormente, as partes tivessem chegado a acordo que haveria acertos de contas a fazer em virtude de excessos de construção realizados pela Ré que seriam suportados pela 2ª Autora, por constituírem alterações aos projectos iniciais.
23. Após o acordo descrito em 28 a 30 dos factos provados, as partes aceitaram que a electricidade e estores das moradias ficassem a cargo da 2ª Autora, pelo que haveria, ainda, a descontar 9.000,00 € por cada moradia, num total de 18.000,00 €.
*
3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente, sem prejuízo do que diremos infra, não suscita dúvidas o cumprimento, por parte das recorrentes, dos ónus primários consagrados nas diversas alíneas do n.º 1, do referido artigo 640.º, bem como do ónus secundário estabelecido na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, visto que aquelas indicaram de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que consideram incorretamente julgados (os pontos 28, 29, 30, 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 49 e 50 dos factos provados e os pontos 1 e 17 a 20 dos factos não provados), indicaram a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada um desses pontos (sendo certo que, quanto aos pontos 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 47,, 48 e 50 dos factos provados, pugnaram simplesmente pela sua eliminação) e fundamentaram a sua discordância na prova que descrevem e analisam na referida alegação (e indicaram, no que concerne aos pontos 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 47,, 48 e 50 dos factos provados, as razões para a sua eliminação). Acresce que as recorrentes transcreveram a prova gravada em que se baseiam, mais indicando o minuto e o segundo do início e do fim dos respectivos excertos.
Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
c. Importa ainda considerar que o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, compreende a possibilidade de actuação oficiosa da Relação em matéria de reapreciação da matéria de facto, por via da aplicação de regras vinculativas de direito material probatório que tenham sido ignoradas ou desrespeitadas pela decisão recorrida, situações em que o poder de cognição da segunda instância não está dependente do cumprimento do triplo ónus previsto no artigo 640.º do CPC (ao contrário do que sucede nas situações em que a alteração da matéria de facto está dependente da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal), podendo nem sequer depender da própria impugnação da decisão da matéria de facto, desde que a atuação da Relação se contenha no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e nos limites objectivo e subjectivo do recurso (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, cit., pp. 795-796).
No caso concreto impõe-se tal intervenção oficiosa, visto que o ponto 6 dos factos julgados provados não é integralmente comprovado pelas escrituras públicas para cujo teor remete.
Afirma-se neste ponto 6 que os documentos n.º 3 e 4 do requerimento inicial do procedimento cautelar em apenso correspondem a duas escrituras, lavradas no dia 20.12.2016 e 04.01.2017, quando na verdade o documento n.º 3 corresponde a uma escritura pública datada de 04.01.2017 e o documento n.º 4 a uma escritura pública datada de 21.12.2016.
Acresce que esta escritura pública de 21.12.2016, relativa à compra e venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... – ..., mais não é do que a escritura pública descrita no ponto 2 dos factos provados, igualmente junta como documento n.º 4 da petição inicial destes autos principais.
Em suma, os documentos autênticos em que se baseiam os pontos 2 e 6 dos factos provados não correspondem a três escrituras públicas datadas de 20.12.2016, 21.12.206 e 04.01.2017, como ficou a constar destes pontos e acabou por ser afirmado na fundamentação de direito da decisão, mas apenas a duas escrituras públicas datadas de 21.12.2016 e 04.01.2017.
Nestes termos, impõe-se eliminar do ponto 6 dos factos provados as referências à escritura de 20.12.2016 e à venda do imóvel ... – ... pelo preço de 18.265,58 €, passando assim a ser a seguinte a redacção daquele ponto 6:
6. Por escritura lavrada no dia 4 de Janeiro de 2017, no Cartório Notarial a cargo da notária DD, a ré declarou comprar à C..., Lda., acima já identificada, que declarou vender, os imóveis descritos na competente Conservatória do Registo Predial sob os números ...- ... pelo preço de €29.247,47, ...-... pelo preço de €27.465,25, ...-... pelo preço de €27.603,15, ...- ... pelo preço de €27.762,29, ...- ... pelo preço de €27.900,19 e ...-... pelo preço de € 29.438,42, nos moldes vertidos no doc. 3 junto na providência cautelar apensa e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea F) dos factos assentes).
d. Feita esta correcção, importa agora reapreciar os factos concretamente impugnados pelas recorrentes.
No que respeita aos factos provados, as recorrentes começam por afirmar que ao valor de 121.000,00 € por moradia referido no ponto 28 tem de acrescer o valor de 42.764,00 € por cada uma dessas moradias, num total de 163.764,00 € vezes dois, ou seja, 327.528,00 €, em vez dos 242.000,00 € aí mencionados.
Alega, para tanto, que o licenciamento camarário aprovado para as habitações que a ré se comprometeu a entregar à 2.ª autora integra um projecto de especialidade de arranjos exteriores, conforme documento apenso a estes autos, que o documento n.º 20 da oposição ao arresto (concretamente o anexo I, páginas 3 e 4), em que o tribunal a quo se baseou para julgar demonstrado o valor de 121.000,00 € por cada moradia, é omisso relativamente à execução dos arranjos exteriores e ao respectivo custo e que resulta do depoimento não contraditado da testemunha CC que os custos dos arranjos exteriores de cada um dos imóveis ascendia a 42.764,00 €.
Ainda que se admita que o depoimento daquela testemunha é suficiente para demonstrar ser este o custo dos arranjos exteriores previstos no projecto aprovado pela Câmara Municipal ..., entendemos que a prova invocada não demonstra que a ré se tivesse comprometido a executar esses arranjos exteriores e, muito menos, pelo preço estimado pela testemunha CC.
Por um lado, esta testemunha (cujo depoimento ouvimos na totalidade) revelou não ter conhecimento do acordo celebrado entre as partes, pois não teve qualquer intervenção na sua celebração ou na construção das moradias, apenas se tendo deslocado ali a pedido da 1.ª autora para ver se estava tudo bem, tendo então verificado que os arranjos exteriores previstos no projecto camarário – que afirmou conhecer – não estavam feitos, tendo avaliado o seu custo com base nos seus conhecimentos e não com base no que foi acordado entre as partes.
Por outro lado, ao contrário do que se sugere na alegação das recorrentes, do ponto 17 dos factos provados não decorre que tais arranjos exteriores estivessem incluídos no acordo celebrado entre as partes, pois ali apenas se menciona a construção (exceptuada a especialidade de electricidade e IPDE, assim como o fornecimento e pagamento do material cerâmico de revestimento das cozinhas e casas de banho, mencionado no ponto 18, importando ter ainda em conta as demais especificidades mencionadas nos pontos 31, 32 e 34) e a entrega de duas moradias unifamiliares, nada se dizendo sobre arranjos exteriores.
Acresce que, como bem se refere na decisão recorrida, a prova documental produzida corrobora a versão da autora a respeito deste acordo, não sustentando que a ré se tenha comprometido a fazer mais do que consta do anexo I do documento 20 da oposição ao arresto.
De resto, o Tribunal a quo julgou não provado que a ré se tenha obrigado a executar toda a obra das moradias de acordo com os projetos de arquitetura e das especialidades objeto dos processos de licenciamento de obras particulares com os números 455/16 e 456/16 da Câmara Municipal ..., devidamente deferidos, conforme consta do ponto 8 dos factos não provados, sem que as recorrentes tenham impugnado esta decisão.
Nestes termos, não vislumbramos qualquer razão para dissentirmos da apreciação feita pelo tribunal a quo a respeito da matéria vertida no ponto 28 dos factos provados, pelo que improcede a respectiva impugnação.
e. Afirmam, de seguida, as recorrentes que sendo o custo das moradias a entregar de 327.528,00 € e havendo um remanescente de 36.000,00 € a entregar à ré, como advém do ponto 30 dos factos provados, infere-se que o pagamento que a ré já recebeu corresponde à diferença entre aquele custo total e este remanescente a pagar, ou seja, é de 291.528,00 €, pelo que o ponto 29 dos factos provados deve ser alterado em conformidade.
Porém, não tendo as recorrentes logrado demonstrar que a ré se comprometeu perante a 2.ª autora a construir duas habitações para a Autora AA pelo valor de 163.764,00 € cada, num total de 327.528,00 €, fica prejudicada a inferência em que aquelas baseiam a impugnação deste ponto 29 dos factos provados, pelo que improcede igualmente tal impugnação.
f. Subsidiariamente, para a hipótese de improceder a alteração do ponto 28 dos factos provados nos termos antes mencionados, afirmam as recorrentes que o valor dos lotes entregues à ré ascende a 187.682,35 €, como decorre dos pontos 2, 3, 5 e 6 dos factos provados, e que o valor do lote ... e da construção nele existente, referida no ponto 5 dos factos provados, ascende a um total de 80.000,00 €, como decorre do ponto 49 dos factos provados, pelo que, na tese da própria sentença recorrida, o valor total entregue pelas autoras à ré ascende a 249.416,77 € e não a 206.000,00 € como ficou a constar do ponto 29 dos factos provados. Mais alegam que a Sra. Juíza a quo não revelou como logrou alcançar este valor e que o mesmo deve ser alterado por violar a força probatória plena de documentos autênticos – as escrituras públicas de compra e venda dos lotes antes mencionados –, a qual abrange tanto a autoria das declarações aí vertidas, nos termos do disposto no artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil (CC), como a sua veracidade, na medida em que traduzem declarações confessórias extrajudiciais, nos termos do disposto nos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC. Concluem, assim, que «[e]m resultado desta força probatória plena, os factos confessados – os valores/preços de todos e cada um dos imoveis a que aludem tais escrituras publicas – têm de se considerar como provados, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal – artigo 393º, nº 2, e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais – artigo 351º, nº 1, do C.C.), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade dos aludidos documentos autênticos ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração “confessória” (artigos 372º, nº 1 e 359º do C.C.), o que a ré, todavia, nem sequer tentou».
Mas as próprias recorrentes assumem posições contrárias e inconciliáveis com a argumentação assim esgrimida.
Desde logo na medida em que apenas invocam a força probatória plena dos documentos autênticos a título subsidiário, pedindo a título principal que se julgue provado um valor – 291.528,00 € – distinto do que resultaria da suposta força probatória plena das escrituras públicas juntas aos autos e mencionadas nos pontos 2 e 6 dos factos provados. Ora, como é consabido, a prova vinculada, designadamente a força probatória plena de algum documento autêntico, prevalece sempre sobre a livre apreciação da prova, pelo que não pode ser invocada apenas no caso de o tribunal não adoptar a apreciação da prova que as recorrentes consideram mais correcta.
Mas também na medida em que fazem acrescer ao valor do lote ... declarado na escritura pública de 21.12.2016 (18.265,58 € - cfr. ponto 2 dos factos provados) o valor da construção aí existente (80.000,00 € - cfr. pontos 5 e 49), o qual não é mencionado nas declarações negociais que as recorrentes consideram dotadas de força probatória plena.
Em todo o caso, afigura-se de linear clareza que a força probatória plena das escrituras públicas referidas nos pontos 2 e 6 dos factos provados não tem o alcance que as recorrentes lhe pretendem conferir.
Não tendo sido arguida nem demonstrada a falsidade desses documentos (cfr. artigo 372.º do CC), é inquestionável que os mesmos estão dotados da força probatória plena prevista no artigo 371.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Tal força probatória foi integralmente respeitada pelo tribunal quando julgou provados, com base nesses documentos, os pontos 2 e 6 dos factos provados (com a rectificação acima efectuada), ou seja, quando julgou provadas as declarações prestadas pelos outorgantes C..., Lda. e B..., Lda. perante a notária DD.
Mas, como se esclarece no ac. do STJ, de 06.12.2011, citado pelas próprias recorrentes na sua alegação (proc. n.º 2916/06.1TACB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde também pode ser consultada a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), «o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele».
Porém, citando este mesmo acórdão, as recorrentes consideram que as escrituras em causa contêm verdadeiras confissões extrajudiciais, feita à parte contrária, que gozam de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 358.º do CC.
Mas não têm razão.
De harmonia com o disposto no artigo 352.º do CC, confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. O facto objecto de confissão tem, portanto, uma «natureza bifronte: é desfavorável ao declarante e favorável ao beneficiado» (Luís Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2021, 2.ª ed., p. 91).
Segundo este mesmo autor, «[a] aferição o caráter desfavorável da declaração pode, em tese, situar-se em dos momentos: ou quando o juiz valora a prova ou reportado ao momento da formalização da declaração de ciência, reconhecendo o facto desfavorável. Deve prevalecer esta posição porquanto o animus confitendi centra a questão na vontade do declarante, independentemente das consequências legais assinaladas para a mesma». No mesmo sentido se pronuncia Rita Cruz, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, p. 1016.
A força probatória da confissão, regulada no artigo 358.º do CC, «assenta no princípio da autorresponsabilidade das partes e na regra da experiência segundo a qual ninguém reconhece um facto desfavorável, salvo se o mesmo for verdadeiro (ob. cit., p. 92).
Nos termos do disposto no n.º 2, daquele artigo 358.º, a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
Perante o regime legal assim exposto, é inquestionável que a declaração do vendedor, feita na escritura pública de compra e venda, de que recebeu o preço acordado constitui uma confissão extrajudicial dotada de força probatória plena, nos termos do artigo 358.º, n.º 2, do CC. É essa a conclusão a que chega o acórdão do STJ de 06.12.2011, citado pelas recorrentes, bem como o ac. do mesmo Tribunal, de 15.05.2013, citado por Luís Pires de Sousa na obra antes mencionada (cit., p. 101).
Mas não é esta a questão suscitada neste recurso.
A declaração de quitação também foi proferida nas duas escrituras públicas em causa nestes autos, mas ambas as partes reconheceram, desde o primeiro momento, que tais declarações não correspondiam à verdade, como decorre das alíneas C), D), G) e H) dos factos dados por assentes logo na fase de saneamento e transpostos para os pontos 3, 4, 7 e 8 dos factos julgados provados na sentença recorrida.
As declarações que as recorrentes agora invocam não dizem respeito ao recebimento do preço, mas sim ao valor do preço acordado entre as partes – tendo estas declarado que o prédio descrito na conservatória do registo predial sob o nº ..., da freguesia ..., era vendido pelo preço de 18.265.58 € e que os prédios descritos sob os n.ºs ..., ..., ..., ..., ... e ..., todos da freguesia ..., eram vendidos pelo preço global de 169.416,77 €, num total de 187.682,35 €, conforme consta dos pontos 2 e 6 dos factos provados, mas tendo o tribunal a quo julgado provado que estes prédios foram entregues como pagamento de parte do preço devido pela construção de duas moradias, mais concretamente de 206.000,00 €, correspondendo 80.000,00 € ao prédio descrito na conservatória do registo predial sob o nº ..., da freguesia ..., incluindo a construção aí existente, e os restantes 126.000,00 € aos demais prédios, como decorre dos pontos 28, 29, 49 e 50 dos factos provados.
Sem prejuízo do alcance que o “preço” da transferência da propriedade dos referidos imóveis possa ter na solução deste litígio, afigura-se claro que os valores declarados nas escrituras públicas de compra e venda celebrados pelas partes não assumem a natureza bifronte que a declaração confessória pressupõe, não se vislumbrando em que medida tais declarações pudessem traduzir, no momento em que foram proferidas, a vontade da adquirente dos imóveis de reconhecer a verdade de um facto que lhe era desfavorável e que era favorável à alienante dos mesmos. Ainda que os valores declarados pelas partes nas escrituras públicas pudessem conduzir a um desfecho desta acção menos favorável para a ré, por força de vicissitudes posteriores e/ou do enquadramento legal dos factos, tais declarações não correspondiam, na altura em que foram proferidas, à admissão de um facto que desfavorecia a compradora e favorecia a vendedora. De resto, tendo as partes declarado um valor global mais baixo do que o acordado, apenas poderíamos equacionar se estávamos perante um facto favorável à adquirente dos imóveis (fosse porque o preço a pagar por esta era menor do que o acordado, fosse porque o valor recebido como pagamento das moradias que se comprometeu a construir era superior ao contabilizado pelas partes).
No sentido de que o valor do preço declarado pelas partes não traduz um facto desfavorável passível de confissão, escreve-se o seguinte no ac. do STJ, de 03.97.2018 (proc. n.º 3057/11.5TBPVZ-C.P1.S3, rel. José Raínho):
«Sem dúvida que, como observa Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª ed., p. 232), os factos que são objeto das declarações de ciência exaradas em documento autêntico podem ficar provadas em consequência de confissão feita (nº 2 do art. 358º do CCivil). Neste caso, saímos fora da órbita da força probatória do documento, para entrar na órbita da força probatória da confissão.
Simplesmente, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art. 352º do CCivil), e isto não tem o sentido que lhe está a emprestar a Recorrente, não se ajustando de forma alguma à situação em discussão. Como nos diz Lebre de Freitas (ob. cit., p. 255), o reconhecimento do declarante é o reconhecimento dum facto passado (ou presente duradoiro), isto é, “dum facto constitutivo dum seu dever de sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse”.
Ora, no caso vertente a compradora não reconheceu qualquer facto passado (ou presente, mas duradoiro) constitutivo dum seu dever de sujeição relativamente aos vendedores, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse. E muito menos procedeu à negação da realidade dum facto que lhe fosse favorável (facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse). Pura e simplesmente, nada reconheceu. Na realidade, do que se tratou foi de uma declaração negocial recíproca e atual de ambas as partes, assunto que se refere à formação do próprio contrato e não ao reconhecimento do que quer que seja. A única declaração confessória (esta sim, impeditiva de prova testemunhal em contrário) que foi exarada na escritura foi a de que o preço declarado já havia sido recebido pelos vendedores, mas esta é uma declaração confessória dos vendedores e nada tem a ver com o que estamos a discutir.
Donde, não está plenamente provado, seja por documento autêntico (a escritura) seja por declaração confessória da compradora, que o preço da venda foi o declarado na escritura. O que significa que, contrariamente ao que defende a Recorrente, não tem aplicação ao caso o nº 2 do art. 393º do CCivil. O que significa também que nada impedia que se averiguasse a questão do preço que foi efetivamente convencionado e pago pela compradora aos vendedores».
Pelas razões expostas, também no caso dos autos não foi violada a força probatória plena da confissão constante de documento autêntico ou qualquer outra prova vinculada.
Também não têm razão as recorrentes quando afirmam que a Sra. Juíza a quo não revelou como logrou alcançar este valor. A Sra. Juíza fê-lo longamente, explicando o iter cognoscitivo que conduziu a essa decisão, assim dando cumprimento às exigências constitucionais e infra-constitucionais de fundamentação das decisões judiciais.
Na verdade, pode ler-se o seguinte na motivação esgrimida na decisão recorrida:
«No que se refere aos factos descritos nos pontos 28 a 30 dos factos provados, a prova produzida em julgamento comporta divergências, designadamente, e com relevância primordial, não existiu coincidência entre o afirmado pela autora AA nas suas declarações de parte e a testemunha EE, por um lado, e as declarações de parte prestadas por JJ e II e o depoimento da testemunha KK, por outro lado.
Porém, concatenando a realidade afirmada pelo segundo lote de pessoas enunciado com toda a documentação junta aos autos (à providência cautelar apensa e ao processo principal), designadamente a troca de correspondência havida entre as partes e todos os documentos juntos com a oposição e contestação da ré, respectivamente, da providência cautelar e do processo principal, tudo contextualizado pela referida prova oral, e bem assim com o relatório pericial apresentado naquela providência, adquirimos a firme convicção que a versão apresentada pela ré é aquela que, no contexto de toda a restante prova produzida, se assume como a única credível e plausível, considerando, ainda, as regras da experiência comum e critérios de normalidade.
Ao invés, a versão da autora, aparentemente suportada pelo primeiro lote de pessoas enunciado, não tem qualquer aderência às regras da experiência comum e critérios de normalidade, não sendo verosímil a ideia ventilada de que, por um lado, o valor dos prédios vendidos e dados em pagamento era aquele que constava das escrituras e não outro, e bem assim que o pagamento do preço da construção das duas moradias seria feita exclusivamente pela entrega daqueles imóveis e mais 14.000,00 em numerário, alegadamente revisto para 20.000,00.
Com efeito, é evidente que a construção das moradias em questão não implicava apenas um custo equivalente à soma do valor feito constar nas respectivas escrituras de vendas dos imóveis, sendo estes claramente valores correspondentes aos seus valores patrimoniais fiscais (valores não redondos, mas que vão aos cêntimos) e não aos negociados entre as partes – são valores simulados -. Ao que acresce não fazer qualquer sentido que não tivesse sido orçamentado e acordado um valor para cada uma das moradias, na medida em que se tratam de valores fundamentais para que qualquer homem médio consiga negociar e concretizar um qualquer negócio.
De resto, apesar das divergências, a testemunha EE acaba por admitir um valor de construção para cada moradia, já com IVA incluído, que é consentâneo com a versão da ré e já não com a versão das autoras.
A tudo isto acresce ser absolutamente inverosímil que a casa incorporada no lote ..., realidade já existente aquando da respectiva escritura de compra e venda, não estivesse abrangida já na venda formalizada nessa escritura e no preço real que as partes acordaram para este lote e que, de acordo com a prova produzida, foi claramente superior ao preço declarado naquela escritura, tal como nas restantes vendas.
…».
Ora, para além da já analisada força probatória das escrituras públicas juntas aos autos, as recorrentes não alegaram, nem se vislumbram, outros argumentos ou elementos que imponham decisão diversa sobre o ponto 29 agora em apreço, pelo que improcede a impugnação subsidiária deste ponto.
g. Por conseguinte, improcede igualmente a impugnação do ponto 30 dos factos provados, que se baseou exclusivamente na circunstância de decorrer da pretendida alteração do ponto 29 que inexistia qualquer remanescente a entregar e que, por essa razão, o facto provado 30 devia ser eliminado.
h. No que concerne aos pontos 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 47, 48 e 50 dos factos provados, as recorrentes afirmam que os mesmos encerram meras conclusões ou afirmações de direito, pelo que não devem constar do elenco dos factos provados, em obediência ao disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
Recordemos o teor desses pontos:
33. Existiram divergências de áreas entre os projectos e as obras efectivamente realizadas, que são as que constam do relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
35. Já numa fase posterior, ao acordo do ponto antecedente, a autora AA, em representação da 2ª autora, solicitou várias alterações em obra.
36. Alterações, essas, que implicaram um acréscimo ao valor de cada moradia de 16.151,52 €, num total de 32.303,04 €.
38. No momento em que a Ré deixou de trabalhar na obra, a primeira moradia encontrava-se no estado de construção melhor descrito no relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
39. Quanto à segunda moradia, a mesma encontrava-se, nesse momento, no estado de construção melhor descrito no relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos, estando tudo encaminhado para que fossem cumpridos os prazos de entrega acordados.
40. Esta segunda habitação foi iniciada antes do prazo previsto e acordado.
41. Estes factos foram comunicados à 2ª Autora e a AA que sabiam dos custos e acertos que iam surgindo.
42. As Autoras, por não concordarem com o valor dos acertos propostos pela Ré, recusaram-se a fazer, nos moldes que inicialmente as partes tinham acordado, as entregas por conta do valor que teriam que suportar.
43. E por essa razão, e após várias interpelações, a Ré comunicou por carta enviada à Autora a intenção de não continuar com as obras, tudo nos moldes já descritos no anterior ponto 25.
47. A ré, ao não realizar esses trabalhos, ou seja, a totalidade dos trabalhos acordados, deixou de auferir uma vantagem patrimonial de pelo menos 15.000,00 € por cada moradia, que se reflectiria no preço a suportar na aquisição dos lotes de terreno.
48. Posteriormente à celebração das respectivas escrituras o preço acordado para as vendas foi liquidado parcialmente pela Ré através do valor das obras realizadas até à interrupção dos trabalhos, nos moldes supra descritos, valor esse mencionado no anterior ponto.
50. Todas as construções foram contabilizadas para pagamento do preço das construções realizadas pela Ré nas habitações a seu cargo.
A impugnação destes pontos tem subjacente o entendimento, em si mesmo correcto, de que só os factos materiais são susceptíveis de prova e, por conseguinte, só eles se podem considerar provados; as meras conclusões, quer envolvam um juízo de valor jurídico ou não jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova (cfr. ac. do TRP, de 27.09.2023, proc. n.º 9028/21.6T8VNG.P1, rel. Jerónimo Freitas, e a demais jurisprudência aí citada).
É certo que, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (cit., pp. 24 e 25) em anotação ao artigo 5.º do CPC, «[o] preceituado no n.º 3, associado à eliminação no actual CPC do que se previa no n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”), implica que deva ser moderada a ideia tradicionalmente arreigada, posto que formalmente excessiva, de se estabelecer uma rígida delimitação entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito».
Mas, reconhecendo a persistência no nosso ordenamento jurídico da distinção entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, bem como a existência de conceitos ambivalentes e, por isso, de frequentes dúvidas quanto ao estabelecimento de linhas de demarcação entre as questões de facto e as questões de direito, os mesmos autores acrescentam que «sem dogmatismos que já nem sequer encontravam apoio numa norma como a do n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que não transitou para o CPC de 2013) e tendo em consideração o modo como em simultâneo na sentença final serão abordadas as questões de facto e as questões de direito, podemos já antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se este, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente do significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, pois o significado a atribuir-lhes será determinante para o desfecho da causa. Se, pelo contrário, o objecto da acção não estiver directamente associado ao significado a conferir a certas afirmações das partes, as expressões assim utilizadas (arrendamento, renda, hóspede, e outras de cariz semelhante) poderão ser tomadas no âmbito da matéria de facto, sendo passíveis de apuramento por via da prova e de pronúncia em sede de julgamento, sempre encaradas com o significado vulgar e corrente, não já com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais».
No caso concreto, apesar de os pontos acima transcritos conterem repetições de alguns factos e de descreverem outros por remissão para o relatório pericial junto aos autos de providência cautelar, afigura-se inquestionável que, ressalvada parte do ponto 39, aqueles não traduzem meras conclusões ou juízos valorativos que decorram dos demais factos provados ou que, por si só, determinem a solução do caso.
Pelo contrário, a generalidade destes pontos contém a descrição de factos concretos, despida de qualquer valoração. Mesmo os pontos em que se divisa uma componente conclusiva, como sucede com os pontos 33, 36 e 47, é inquestionável que os mesmos encerram um substracto relevante para o acervo dos factos que importam para a justa decisão da causa, pois não se limitam a extrair conclusões ou a fazer valorações da demais factualidade julgada provada, antes expressando o resultado ou a consequência de outros elementos de facto não explicitamente descritos, mas continuando tal resultado ou consequência a integrar a premissa menor do silogismo judiciário (o facto) e não a sua premissa maior (a norma jurídica) ou a respectiva conclusão.
De resto, como vem afirmando o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. ac. de 13.11.2007. proc. n.º 07A3060, rel. Nuno Cameira, citado no ac. de 14.07.2021, proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1, rel. Júlio Gomes), «o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. (…) não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas».
Assim, como se conclui no ac. do TRP, de 28.09.2023 (proc. n.º 2873/19.4T8MAI.P1, rel. Paulo Dias da Silva), «os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum» ou – acrescentamos nós – se configurarem «juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência», como dizem Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, citados pelas recorrentes nas suas alegações.
No caso vertente, isto apenas sucede quanto à parte final do ponto 39 («estando tudo encaminhado para que fossem cumpridos os prazos de entrega acordados«), que encerra um puro juízo valorativo de prognose, extraído do estado de construção da segunda moradia aludido na primeira parte do mesmo ponto, juízo que, de resto, se mostra totalmente irrelevante para a decisão da causa, pelo que aquele segmento do ponto 39 deve ser eliminado do elenco dos factos provados.
Quanto à restante matéria vertida nos pontos impugnados, por corresponder a factos relevantes para a apreciação da causa, improcede a impugnação deduzida pelas recorrentes.
i. As recorrentes esgrimem exactamente a mesma argumentação relativamente ao ponto 45 dos factos provados (Acrescem a estes valores, os respectivos impostos que serão suportados pela 2ª Autora, seja o IVA debitado directamente ou por meio de autoliquidação), pugnando igualmente pela sua eliminação, acrescentando ainda que, estando em causa um contrato de permuta, não é devido IVA (mas antes IMT sobre a diferença entre os valores declarados ou entre ou valores patrimoniais tributários, consoante a que for maior), que a taxa de IVA aplicável sempre seria de 6%, que não foi emitida qualquer factura, pelo que o IVA não pode ser exigido das autoras por ausência de uma formalidade ad substanciam, e que compete à 2.ª autora a autoliquidação desse imposto, visto que a regra da inversão do sujeito passivo é de aplicação obrigatória na transação em causa, pelo que não pode haver lugar ao desconto do IVA nas “contas” entre as autoras e a ré, pois tal significaria uma duplicação de pagamento.
Discutindo as partes os termos do contrato em causa nestes autos e sendo essa discussão susceptível de condicionar a definição e o modo de cumprimento das responsabilidades tributárias inerentes ao mesmo, é manifesto que o imposto devido pela 2.ª autora e o respectivo montante configuram questões de direito, atento o critério antes exposto, ou seja, questões que não são passíveis de apuramento no âmbito da matéria facto, por via da prova, apenas podendo ser apreciadas e decididas no âmbito do enquadramento legal dos factos apurados.
Por conseguinte, a impugnação deduzida pelas recorrentes procede nesta parte, impondo-se a eliminação do ponto 45 dos factos provados.
j. Quanto ao ponto 44 dos factos provados (Mas as obras realizadas pela Ré à 2ª Autora ascenderam, àquela data, ao seguinte: moradia Um: 84.501,88 € além de impostos que fossem devidos; moradia Dois: 57.626,40 € além de impostos que fossem devidos), as recorrentes alegam que o tribunal a quo «ofende o dispositivo do n.º 4 do artigo 607.º do CPC ao consignar nesse ponto os valores apurados pelo representante da ré no documento de “perícia” junto ao procedimento cautelar, ignorando o valor final obtido por negociação e acordo das partes nestes autos e concretamente no procedimento cautelar, que são aqueles exarados pelo perito que as partes escolheram, pelo que a resposta ao ponto provado 44 deve ser modificada/alterada por forma a que dele passem a constar os valores apurados pelo perito que as partes escolheram, valores esses que as partes aceitaram por acordo».
Dispõe assim a norma invocada pelas recorrentes: «Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
Desta norma resulta que «os factos que estão admitidos por acordo» não se confundem com os factos «provados (…) por confissão reduzida a escrito», mencionados no segmento seguinte do mesmo dispositivo. Enquanto este último segmento nos remete para o regime legal da confissão previsto nos artigos 352.º e seguintes do CC e, quanto à confissão judicial, nos artigos 452.º e seguintes do CPC, o primeiro remete-nos, sem equívocos, para a norma do artigo 574.º, n.º 2, do CPC (que dispõe assim: Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior), que consagra a usualmente denominada confissão tácita ou ficta (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, cit., p. 647), mas que alguns autores preferem situar a montante do direito probatório, na fase da delimitação da controvérsia (cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., Almedina, 2014, p. 491).
Seja como for, o facto em causa não foi admitido por acordo nestes autos principais, como é corroborado pela circunstância de não constar dos factos assentes elencados na fase de saneamento (note-se que embora a lei não preveja uma peça processual que concentre e antecipe a matéria assente, ainda que com efeitos não definitivos, como sucedia antes da reforma do CPC de 2013, no caso concreto o Tribunal a quo procedeu a essa antecipação em moldes idênticos aos previstos no regime legal pregresso) e de ter sido incluído nos temas da prova (cuja concreta formulação se assemelha aos quesitos que o anterior CPC mandava formular), mais concretamente nos n.ºs 47 e 53.
Tal admissão por acordo também não ocorreu nos autos de arresto em apenso, como decorre da conjugação dos artigos 27.º do requerimento inicial e 55.º da oposição, o que, de resto, sempre seria desprovido de efeitos nestes autos principais.
Do mesmo modo, aquele facto também não foi alvo de confissão no procedimento cautelar ou nestes autos principais, sendo certo que aquele procedimento findou por transacção, tendo as partes declarado expressamente na respectiva cláusula 2.ª que nenhuma delas «se vincula ou confessa qualquer uma das matérias dos autos, remetendo-se a matéria em causa para a decisão da acção principal».
O que as recorrentes agora apelidam de “aceitação por acordo” não corresponde à aceitação por acordo das partes do valor das obras efectuadas pela ré, mas apenas ao acordo das mesmas em proceder a avaliação dessas obras.
Conforme resulta da acta da diligência realizada em 17.01.2020, as partes comunicaram ao tribunal que estavam de acordo em proceder à avaliação extrajudicial das obras, por 3 peritos a indicar por si, tendo em vista a eventual composição amigável do litígio, e solicitaram a suspensão da instância durante o período que consideraram necessário para realizar aquela avaliação e concluir as negociações. Na mesma diligência, tendo igualmente em vista a referida avaliação, as partes aceitaram os valores unitários dos documentos de fls. 122 verso.
Não tendo chegado a acordo quanto aos peritos a nomear, as partes aceitaram a sugestão do tribunal de ser solicitada à Ordem dos Engenheiros a indicação de um único perito, conforme resulta da acta da diligência realizada no dia 02.06.2020, o que veio a suceder.
Contudo, afigura-se de linear clareza que o acordo quanto à realização da perícia, quanto à indicação do respectivo perito e, mesmo, quanto a alguma premissa da mesma (no caso, os valores unitários a atender na avaliação a realizar) não significa qualquer acordo quanto ao facto controvertido e a cuja prova se destina a perícia. Recorde-se que a avaliação em causa começou por ser anunciada pelas partes como uma diligência extrajudicial que visava a eventual composição amigável do litígio, e não a fixação de qualquer matéria de facto por acordo. Em todo o caso, a referida avaliação acabou por ser tramitada no âmbito da instrução do processo, estando naturalmente sujeita à livre apreciação do julgador. E tal apreciação foi devidamente fundamentada na decisão recorrida nos seguintes termos:
Uma nota mais para explicar que os valores dados como provados no ponto 44 dos factos provados baseiam-se na perícia realizada e no depoimento da já citada testemunha LL, sendo que quer o senhor perito quer a referida testemunha apuraram a mesma quantidade de obra, resultando a diferença, ainda que pequena, dos valores unitários aplicados.
Ora, os valores do senhor perito resultam de uma solução de compromisso face às divergências existentes entre os “assessores” indicados pelas partes, enquanto que os valores encontrados pela testemunha tiveram por base o acordo existente entre as partes.
Assim, face à análise crítica da prova já exposta e tendo, no contexto da mesma, a versão relatada pela ré merecido credibilidade, o tribunal convenceu-se da veracidade dos referidos valores.
Ora, para além de invocarem uma inexistente aceitação por acordo do facto (valor) que pretendem ver julgado provado, as recorrentes não fundaram a sua impugnação do ponto 44 na análise crítica de qualquer meio probatório (e, nessa medida, não cumpriram de forma cabal o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC), nem aduziram quaisquer fundamentos para afastar a apreciação crítica feita pelo Tribunal a quo.
De resto, esta apreciação acaba por se revelar mais consonante com o entendimento das partes que esteve na origem da realização da avaliação, isto é, com a aceitação pelas partes dos valores unitários dos documentos de fls. 122 verso (cfr. acta de 17.01.2020).
Pelo exposto, improcede a impugnação do ponto 44 dos factos provados.
k. No que respeito ao ponto 49 dos factos provados (O valor atribuído por acordo das partes ao lote ..., incluindo terreno e construção, foi de 80.000,00 €, nunca questionado pelas partes), as recorrentes afirmam não ser verdade que as partes tenham acordado nesse valor de 80000,00 €, acrescentando que a Sra. Juíza a quo não evidencia em que meio probatório se funda para afirmar que as autoras deram o seu acordo a esse valor.
Contudo, ainda que de modo pouco explícito, a decisão recorrida contém a motivação da decisão sobre este ponto 49.
Por um lado, afirma-se aí o seguinte:
«O apuramento dos factos descritos em 33, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 49 e 50, resulta das declarações prestadas JJ e II, do depoimento das testemunhas KK e LL, este engenheiro civil, funcionário da D... há 19 anos, mas que acompanhou a perícia realizada na providência cautelar, tendo efectuado um apuramento da obra feita nas duas moradias de Lousada, da troca de correspondência existente entre as partes e junta aos autos, dos documentos n.º 18 a 21, 23 a 35 juntos na providência cautelar apensa com a oposição, dos documentos nºs. 1 e 2 juntos ao processo principal com a contestação, e bem assim e de forma primordial da perícia realizada no apenso da providência cautelar e respectivo relatório.
Este acervo probatório corroborou a versão dos factos em causa apresentada pela ré, infirmou a versão relatada pelas autoras e foi de molde a nos convencer dos factos agora em análise nos moldes dados como provados, com a consequente não prova dos factos alegados pelas autoras e contrários à realidade em causa dada como provada.
Por outro lado, parte desta prova, mais concretamente os depoimentos/declarações dos legais representantes da ré, JJ e II, e da testemunha KK, bem como a troca de correspondência havia entre as partes, já havia sido antes invocada para fundamentar a decisão sobre os pontos 28 a 30 dos factos provados, sendo certo que o ponto 29 está intimamente ligado ao ponto 49, não podendo cindir-se a análise destes dois pontos, na medida em que o valor referido naquele abarca o valor referido neste, como decorre do ponto 50 (e, por isso mesmo, para os efeitos deste recurso, a decisão do ponto 29 torna praticamente inócua a decisão do ponto 49, como veremos melhor infra).
Ora, como já ficou referido a respeito da impugnação dos pontos 28 a 30, o tribunal a quo destacou a relevância da prova documental, maxime da troca de correspondência, e das regras da experiência comum, para dar maior credibilidade aos depoimentos/declarações antes mencionados do que aos depoimentos/declarações da autora AA e da testemunha EE.
E a verdade é que a matéria de facto vertida no ponto 49 dos factos provados foi negada por estes, mas foi corroborada pela prova valorada positivamente pelo tribunal a quo.
Não é, assim, correcta a afirmação de que a Sra. Juíza a quo não evidenciou em que meio probatório se fundou para afirmar que as autoras deram o seu acordo ao valor referido no ponto 49.
Para contrariar a apreciação do tribunal a quo, as recorrentes invocaram o depoimento da testemunha CC, que transcreveram parcialmente.
Ouvida a gravação integral desse depoimento, verifica-se que o mesmo confirma a tese apresentada pela autora AA e pelo seu companheiro, a testemunha EE, segundo a qual as partes teriam atribuído à construção existente no lote ... o valor de 120 mil euros, ao que acrescia o valor do terreno declarado na escritura pública de compra e venda do prédio em causa.
Sucede que esta testemunha revelou nada saber a respeito do acordo celebrado entre a partes, limitando-se a esclarecer que procedeu à avaliação do lote n.º ... e da construção aí existente, pois tinha um cliente interessado em adquirir o prédio no estado em que se encontrava, que este apresentou à autora AA uma proposta de compra por 120 mil euros e que esta não aceitou, por pretender mais 20 mil euros. Mais referiu ter a autora afirmado, mais tarde, que tinha conseguido vender o prédio em causa pelo valor que pretendia.
Para além de nada se poder extrair deste depoimento acerca do acordo celebrado entre as partes, o mesmo revelou-se inverosímil a respeito dos montantes em que a testemunha avaliou o prédio em causa e as obras que faltava realizar para terminar a construção.
Tendo-se apurado que, no ano de 2023, o preço corrente de mercado da mencionada edificação, uma vez concluídas as obras de construção civil, ascendia a quantia não inferior a €185.000,00 (cfr. ponto 14 dos factos provados), mas não tendo ficado demonstrado que este já fosse o seu valor nos anos de 2016 e 2017 (cfr. ponto 6 dos factos não provados), tendo também em conta que em 09.01.2023 a ré vendeu o referido lote com a construção lá existente já concluída a suas expensas pelo valor de 195.000,00 € (cfr. ponto 51 dos factos provados), tendo ainda em conta o estado da construção antes 21.12.2016 (data da sua aquisição pela ré) descrito pela própria testemunha, é totalmente inverosímil que nesta data o seu valor ascendesse a 120 mil euros e que o valor dos trabalhos em falta ascendesse apenas a cerca de 25/27 mil euros. Conforme foi referido pelo gerente da ré, II, e é corroborado pela experiência comum, por regra, o custo da estrutura de uma moradia corresponde sensivelmente a 1/3 do custo total, correspondendo as especialidades e os acabamentos aos restantes 2/3. Naturalmente não será assim nos casos em que a estrutura demande soluções de engenharia especialmente dispendiosas ou nos casos em que os acabamentos sejam especialmente luxuosos. No caso dos autos, de acordo com o próprio depoimento da testemunha CC, faltava a maioria dos trabalhos das especialidades e acabamentos, sendo certo que nada na prova produzida permite supor um custo anormalmente alto para a estrutura da casa, pelo que a proporção entre o custo do que estava feito e o custo do que faltava fazer decorrente dos factos julgados provados pelo tribunal a quo se revela muito mais verosímil do que a proporção referida pela testemunha CC ou pela autora AA e pela testemunha EE. Dito de outro modo, o valor que a ré alega ter sido atribuído pelas partes ao lote ..., com a construção ali existente, revela-se mais verosímil do que o valor alegado pelas recorrentes.
De resto, embora tenham impugnado o ponto 49 dos factos provados, as recorrentes não impugnaram a decisão proferida sobre os pontos 4 e 5 dos factos não provados (onde se mencionam os valores por si afirmados), tal como não impugnaram o ponto 51 dos factos provados, cuja primeira parte corrobora o teor do ponto 49.
Pelo exposto, julga-se também improcedente a impugnação do ponto 49.
l. No que respeita aos factos julgados não provados, as recorrentes começam por impugnar a decisão relativa ao ponto 1 (A dissolução e liquidação aprovadas e descritas em 11 dos factos provados tivessem sido formalizadas por escritura pública ou documento equivalente, e bem assim que tivessem sido registadas, na respectiva certidão de matrícula da sociedade C..., Lda.), alegando que o mesmo se encontra indiciariamente demonstrado pelo documento n.º 3, do requerimento de 23.02.2017, razão pela qual a Sra. Juíza a quo deveria ter assumido uma atitude proactiva na realização das diligências necessárias ao apuramento da verdade, requisitando oficiosamente a certidão comprovativa do registo em causa, ao abrigo do disposto no artigo 411.º do CPC.
Porém, é patente a irrelevância deste facto para a decisão do recurso. Na verdade, a demonstração da dissolução e do encerramento da liquidação da sociedade C..., Lda. visava apenas assegurar a legitimidade substantiva da 1.ª autora para exigir da ré o pagamento do preço do lote n.º ..., mencionado na escritura pública de compra e venda de 21.12.2016, e de uma indemnização pelas benfeitorias consistentes na construção que aquela sociedade havia realizado nesse mesmo lote. Porém, como veremos melhor quando apreciarmos as questões de direito suscitadas neste recurso, dos pontos 29, 49 e 50 dos factos julgados provados decorre que a referida construção, juntamente com o lote de terreno onde foi implantada e os demais lotes de terreno objecto da escritura pública de 04.01.2017 (referida no ponto 6 dos factos provados), constituíram a contrapartida das duas moradias que a ré se comprometeu a construir e entregar à 2.ª autora, nada sendo devido à sociedade C..., Lda. e, por conseguinte, à 1.ª autora AA.
É certo que as recorrentes impugnaram os pontos 29, 49 e 50 dos factos provados. Porém, limitaram-se a discordar dos valores mencionados nos pontos 29 e 49, indicando outros em alternativa, e a alegar a natureza conclusiva, não factual, do ponto 50, em termos que não contendem com a conclusão de que o lote n.º ... e a construção nele existente integraram a contrapartida negociada pela construção das moradias.
Ora, é jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida for inócua para a decisão da causa, ou seja, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inconsequente e inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (artigo 130.º do CPC). Neste sentido, a título de mero exemplo, vide os acórdãos do TRC de 16.02.2017 (proc. n.º 52/12.0TBMBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde pode ser consultada a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), do TRL de 26.09.2019 (proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2) e do STJ de 14.07.2021 (proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1).
Pelas razões expostas, está prejudicado o conhecimento da impugnação da decisão sobre o ponto 1 dos factos não provados.
m. Entendem as recorrentes que os pontos 17 a 20 dos factos não provados devem ser julgados provados, com fundamento no depoimento prestado pela testemunha FF e nas facturas correspondentes aos documentos n.ºs 5 a 8 do requerimento de 21.11.023.
A este respeito, diz-se o seguinte na sentença recorrida:
«A não prova dos factos descritos em 17 a 22 dos factos não provados resulta da circunstância de entendermos que a prova produzida é insuficiente e não concludente.
Na verdade, as declarações de parte da AA e os depoimentos das testemunhas EE e FF, conjugados com os documentos n.º 5 a 8 juntos aos autos em 21/11/2023 através do requerimento com a referência n.º 47197049, são contrariados pelas declarações dos legais representantes da ré e pelo depoimento da testemunha GG, sendo que, aceitando-se que a empresa daquela testemunha andou a concluir as obras das moradias, a mesma não discriminou nas facturas que apresentou os valores da conclusão e os valores da alegada reparação dos invocados defeitos.
Ora, perante tais divergências probatórias, face à ausência de qualquer correspondência trocada entre as partes onde se fizesse alusão aos factos agora em análise, resultando até da correspondência junta que tal assunto nunca foi abordado na mesma, e face à ausência de prova pericial sobre esta matéria, entendeu-se que a prova produzida não era concludente e suficiente para a formação de uma convicção segura sobre a verificação dos factos agora em análise, razão pela qual os mesmos foram dados como não provados.
Não vemos qualquer razão para dissentir desta apreciação.
Tal como refere a Sra. Juíza a quo, foi feita prova de que a sociedade representada pela testemunha FF executou trabalhos nas moradias que a ré se havia comprometido e construir.
Ouvido na íntegra o depoimento desta testemunha, o mesmo não permite concluir, como fazem as recorrentes, que somente efetuou reparações e não obra nova.
Pelo contrário, da descrição que esta testemunha fez resulta com clareza que pelo menos parte dos serviços prestados pela sociedade de que é gerente consistiram na execução/conclusão de trabalhos que não tinham sido realizados/terminados pela ré. Embora no final do seu depoimento, a instâncias do mandatário das autoras, a testemunha tivesse afirmado que tudo o que fez foi reparar a má execução anterior, já antes havia aludido, por diversas vezes, à execução/conclusão de trabalhos em falta/por acabar.
Mas dessa descrição também parece resultar que prestou serviços de correcção de defeitos nos trabalhos já executados.
Menos claro é se estes defeitos, ou parte dos mesmos, se deveram a uma execução incorrecta dos trabalhos por parte da ré ou, simplesmente, ao facto de estes terem ficado incompletos.
Por outro lado, embora a Sra. Juíza a quo não o tenha afirmado na motivação da decisão da matéria de facto, não deixou de assinalar verbalmente a diferente atitude da testemunha durante a instância conduzida pelo mandatário das autoras e durante a contra instância conduzida pelo mandatário da ré, bem como a animosidade que revelou relativamente ao segundo, reveladora de uma atitude parcial.
Pelo exposto, entendemos que este depoimento não se mostra suficiente para ultrapassar a inconcludência, assinalada pelo tribunal a quo, da demais prova produzida a respeito dos pontos 17 a 20 dos factos não provados.
Improcede, assim, a impugnação da decisão sobre estes pontos.
*
Em conclusão, na procedência parcial da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, decide-se eliminar o ponto 45 dos factos provados e alterar a redacção dos pontos 6 e 39 dos factos provados, nos seguintes termos:
6. Por escritura lavrada no dia 4 de Janeiro de 2017, no Cartório Notarial a cargo da notária DD, a ré declarou comprar à C..., Lda., acima já identificada, que declarou vender, os imóveis descritos na competente Conservatória do Registo Predial sob os números ...- ... pelo preço de €29.247,47, ...-... pelo preço de €27.465,25, ...-... pelo preço de €27.603,15, ...- ... pelo preço de €27.762,29, ...- ... pelo preço de €27.900,19 e ...-... pelo preço de € 29.438,42, nos moldes vertidos no doc. 3 junto na providência cautelar apensa e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea F) dos factos assentes).
39. Quanto à segunda moradia, a mesma encontrava-se, nesse momento, no estado de construção melhor descrito no relatório pericial junto aos autos de providência cautelar e que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
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B. O Direito
1. A primeira questão de direito suscitada pelas recorrentes prende-se com a qualificação do acordo celebrado entre as partes, que as apelantes entendem configurar um contrato de permuta, atento o teor do ponto 17 dos factos julgados provados, não obstante terem sido formalizados através das escrituras, intituladas de compra e venda, descritas nos pontos 2 e 6 dos factos provados, invocando o regime legal da simulação relativa previsto no artigo 241.º do CC para fundamentar a sua validade.
Por sua vez, a sentença recorrida identifica três contratos de compra e venda celebrados entre C..., Lda. e a ré (um celebrado em 21.12.2016, e os outros dois celebrados em 20.12.2016 e em 04.01.2017), por força dos quais a referida sociedade ficou com um crédito de 206.000,00 € sobre a ré, posteriormente transmitido para 2.ª autora, em virtude dos acordos descritos nos pontos 15 e 16 dos factos provados. Porém, já vimos que, mesmo de um ponto de vista puramente formal, apenas foram celebrados dois contratos de compra e venda, com datas de 21.12.2016 e 04.01.2017 (cfr. pontos 2 e 6 dos factos provados).
Identifica ainda um contrato de empreitada celebrado entre a 2.ª autora e a ré, relativo à construção de duas moradias, pelo preço de 121.000,00 € cada, invocando os pontos 17 a 19 e 28 dos factos provados.
Por fim, afirma haver uma conexão entre este contato de empreitada e aqueles contratos de compra e venda, visto ter sido acordado que:
- Para pagamento parcial do preço da empreitada, a 2.ª autora teria de pagar à ré antecipadamente 206.000,00 €, mediante a entrega dos lotes de terreno objecto dos contratos de compra e venda, sendo o restante valor do preço pago através da entrega à ré pela 2.ª autora da quantia de 36.000,00 €;
- A ré pagaria os preços daquelas compras e vendas com a entrega das habitações construídas na sua totalidade.
Analisados os factos julgados provados, consideramos que os mesmos não permitem aderir a nenhuma destas posições.
Dos pontos 17 e 18 dos factos provados decorre que, antes de 20.12.2016, a 1.ª autora acordou com a ré que o pagamento do preço dos imóveis que a primeira iria vender à segunda seria efectuado pela entrega de duas moradias unifamiliares que esta se obrigava a construir, à exceção do projeto da especialidade de eletricidade e telefones, ficando a cargo da ré o fornecimento de todos os materiais e a mão-de-obra para a construção das moradias, à excepção do fornecimento e pagamento do material cerâmico de revestimento das cozinhas e casas de banho.
Do ponto 19 decorre que em 21.12.2016 a 1.ª autora comunicou à ré que a venda antes referida seria celebrada pela sociedade C..., Lda., proprietária dos imóveis em causa, mais comunicando que a obrigação que a ré havia assumido perante a 1.ª autora, de construir duas moradias, seria agora assumida perante a 2.ª autora, a quem pertenciam os terrenos onde iriam ser construídas tais moradias, passando a ser desta a obrigação de fornecer e pagar o material cerâmico de revestimento das cozinhas e casas de banho, o que a ré aceitou.
Dos pontos 2 a 4 e 6 a 9 decorre que a sociedade C..., Lda. declarou vender à ré, e esta declarou comprar, os imóveis antes aludidos, mediante o pagamento dos preços discriminados nas respectivas escrituras públicas, datadas de 21.12.2016 e 04.01.2017, mais resultando que, diferentemente do que também foi declarado pelas partes, esses preços não foram pagos, o que sucedeu com o conhecimento e anuência das partes contratantes, mas a ré recebeu os imóveis em causa.
Em contrapartida, consta do ponto 48 dos factos provados que, já depois da realização destas escrituras, o preço acordado para as vendas foi liquidado parcialmente pela Ré através do valor das obras realizadas até à interrupção dos trabalhos, mencionado no anterior ponto (querendo obviamente referir-se ao ponto 44 e não ao ponto 47).
Por sua vez, decorre dos pontos 15 e 16, que em 05.01.2017 a sociedade C..., Lda. declarou dar em pagamento a BB o crédito que detinha sobre a ré, relativo ao preço dos imóveis antes mencionados, e que em e 01.02.2017 a referida BB transmitiu esse crédito para a 2.ª autora, para esta compensar o preço da empreitada que celebrou com a ré com esse crédito.
Por fim, decorre dos factos apurados que esta empreitada corresponde ao acordo aludido nos pontos 17 a 19, já antes mencionados, e melhor descrito nos pontos 28 a 32, 34 e 48 a 50 dos factos provados.
Os termos essenciais desse acordo constam dos pontos 28 a 30, 49 e 50: a ré comprometeu-se perante a 2.ª autora a construir duas habitações, pelo valor de 121.000,00 € cada; para pagamento parcial do preço a 2.ª autora teria que pagar à ré a quantia de 206.000,00 € com a entrega dos imóveis objecto das escrituras públicas de 21.12.2016 e 04.01.2017 – correspondendo 80.000,00 € ao prédio objecto da primeira escritura, incluindo o terreno e a construção aí existente, e 126.000,00 € aos prédios objecto da segunda escritura – e 36.000,00 € em numerário.
Perante esta factualidade, não cremos que se possa afirmar a celebração de dois contratos de compra e venda, ainda que conexionados com um contrato de empreitada.
Nos termos do disposto no artigo 874.º do CC, compra e venda é contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. Esta noção legal é inteiramente consonante com os efeitos essenciais do contrato de compra e venda previstos no artigo 879.º do mesmo código: a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa; c) A obrigação de pagar o preço.
Assim, no contrato de compra e venda, a transferência do direito de propriedade ou de outro direito nunca é gratuita, ao contrário do que sucede no contato de doação. A transmissão de direitos mediante o pagamento de um preço é, nas palavras de Pedro Romano Martinez (Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 2.ª ed., p. 22), «um dos aspectos, senão o principal, pelo qual se distingue o contrato de compra e venda da doação (art. 940.º CC)».
Mas o uso da expressão “preço” significa que o legislador foi mais longe, impondo uma correspectividade em dinheiro, visto que «o preço é o valor dos bens expresso em unidades monetárias, é a expressão monetária do valor dos bens» (Soares Martinez, Economia Política, 5.ª ed., Coimbra 1991, p. 616, apud Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 104). Assim, a transmissão de direitos mediante o pagamento de um preço permite igualmente distinguir o contrato de compra e venda do contrato de permuta, troca ou escambo.
Como escreve João Calvão da Silva (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, Almedina, 2002, p. 119), «a transferência do direito de propriedade ou de outro direito não é, pois, gratuita, como na doação (art. 940.º): tem uma correspectividade em dinheiro – o pagamento de um preço –, no que se distingue da troca ou escambo em que a transmissão da titularidade se dá por contrapartida não monetária, a transferência da propriedade de outra coisa ou de outro direito, conquanto em princípio e no essencial sujeita às regras da compra e venda, arquétipo dos contratos onerosos».
No caso concreto, embora os outorgantes das escrituras públicas referidas nos pontos 2 e 6 dos factos provados tenham aí declarado a vontade de transmitir o direito de propriedade sobre determinados imóveis mediante o pagamento de determinadas quantias em dinheiro, decorre dos pontos 3, 4, 7, 8 e, sobretudo, 17 a 19, 28 a 30, 49 e 50 dos factos provados que as partes nunca acordaram tal correspectividade e que aquela transmissão da propriedade é que constituiu, ela própria, a par da entrega de determinada quantia em dinheiro, a contrapartida acordada (inicialmente entre a 1.ª autora e a ré e depois entre a 2.ª autora e a ré) pelos serviços de construção civil que a ré se comprometeu a prestar (inicialmente à 1.ª e depois 2.ª autora).
Não obstante a aparente falta de sincronia entre os pontos 17, 19 e 48 (que se referem à construção e entrega das duas moradias como o preço dos imóveis “vendidos”) e os pontos 28 a 29, 49 e 50 (que se referem à entrega destes imóveis como parte do preço da construção das moradias), os factos apurados conduzem com segurança à conclusão de que a referida transmissão da propriedade dos imóveis para a ré integrou parte da contrapartida acordada pela construção das moradias. Para além do teor literal do ponto 29, esta conclusão é corroborada pelo teor dos acordos de “dação em pagamento” e de “transmissão de crédito” descritos nos pontos 15 e 16 dos factos provados. Na verdade, por via desses acordos, a alienante C..., Lda. transmitiu para BB que, por sua vez, transmitiu para a 2.ª autora um crédito pecuniário que, na verdade, nunca existiu, pois nunca foi acordado pelas partes o pagamento dos quantias monetárias mencionadas nas escrituras públicas, como decorre com toda a clareza dos pontos 17 e 19. Simultaneamente, deixaram claro que as referidas transmissões tinham como propósito permitir à 2.ª autora compensar o valor que devia à ré pela construção das moradias. Assim, em vez de habilitar a 2.ª autora a exigir da ré o pagamento do “preço” devido pela “compra” dos imóveis, como sucederia numa verdadeira cessão de créditos, os referidos negócios destinaram-se formalizar o pagamento de parte do preço das obras a realizar pela ré, correspondente ao valor atribuído aos imóveis que já lhe haviam sido entregues com esse propósito ao abrigo das aludidas escrituras de compra e venda.
Em suma, não restam dúvidas de que a entrega (antecipada) dos imóveis foi desde sempre considerada por todos os intervenientes nos acordos celebrados parte da contrapartida da construção das duas moradias.
Do exposto resulta que, apesar da vontade declarada pelas partes nas escrituras públicas e do nomen juris dado a estes negócios, os acordos em causa não podem qualificar-se como contratos de compra e venda, ainda que em conexão com um contrato de empreitada, pois os factos apurados não demonstram que tenha sido acordada a transmissão da propriedade dos imóveis em causa mediante um preço.
Mas os factos provados também não permitem concluir, como pretendem as recorrentes, que as partes celebraram um contrato de troca ou permuta – que é actualmente um contrato atípico, visto não estar especificamente regulado na lei, ao contrário do que sucedia na vigência do Código Civil de 1867, ao qual se aplicam adaptadamente as normas legais que regem o contrato de compra e venda, por força do disposto no artigo 939.º do CC.
Ao contrário do que afirmam as recorrentes, o acordo celebrado entre as partes não traduz uma correspectividade entre duas coisas, mais concretamente entre os imóveis entregues pela sociedade C..., Lda. à ré, por um lado, e as moradias que esta se obrigou a construir e entregar à 2.ª autora, por outro lado, até porque estas moradias nunca pertenceram à ré.
Quando muito poderíamos equacionar a correspectividade entre aqueles imóveis e a prestação de serviços de construção a que a ré se obrigou. Poder-se-ia, então, discutir se, neste caso, ainda estamos perante um contrato de troca regulável pelas normas da compra e venda. No sentido negativo parecem pronunciar-se Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra 1986, p. 166) quando afirmam que, no contato de escambo ou troca regulado no código de 1867, «à transmissão dum direito de propriedade correspondia a transmissão doutro direito da mesma natureza, ou à transmissão de uma moeda a transmissão de outra espécie dela (cfr. art. 1592º)». No sentido afirmativo pronunciou-se o ac. deste TRP, de 09.10.2018 (proc. n.º 1644/16.4T8PVZ.P1, rel. Maria Cecília Agante).
Seja como for, não cremos que, no caso concreto, as partes tenham estipulado uma troca ou permuta entre os imóveis entregues à ré pela sociedade C..., Lda. e os serviços de construção que esta se comprometeu a prestar à 2.ª autora. Como já expusemos, o que as partes estipularam foi o pagamento de parte do preço destes serviços de construção de duas moradias (mais concretamente de 206.000,00 €) por via da entrega dos imóveis antes referidos, sendo a parte restante (36.000,00 €) paga em numerário.
Mas se é assim, não vemos como se possa falar de um contrato atípico de permuta, afigurando-se que o complexo acordo em que intervieram sucessivamente a 1.ª autora, a ré, a sociedade C..., Lda., a 2.ª autora e BB, configura um contrato de empreitada.
Neste mesmo sentido se pronunciou o ac. do TRG, de 01.10.2009 (proc. n.º 2688/07.2TBVCT.G1, rel. Manso Raínho), onde se pode ler o seguinte a respeito de uma situação com claras afinidades com a do presente caso: «o que sempre esteve na mente das partes foi que a contrapartida (o preço) do serviço da primeira ré era satisfeita pelos autores mediante a entrega à segunda ré de um prédio. Isto não representa um propósito de permuta (ou, dentro da mesma linha, de compra e venda) seja lá do que for, mas sim uma forma convencionada e específica de pagamento do preço diversa da espécie corrente (que é o dinheiro ou pecunia, o comum intermediário geral das trocas). Como é sabido, contrato de permuta, troca ou escambo (figura jurídica não contemplada na lei civil actual, mas que o princípio da liberdade contratual leva a admitir na sua plenitude) é o contrato pelo qual se dá uma coisa por outra, isto é, é o contrato pelo qual os contraentes se atribuem reciprocamente coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspectivamente a propriedade sobre elas (v. a propósito o art. 1592º do CCivil de 1867), e nisto se consumando o contrato. Se a atribuição da coisa à contraparte é para pagar um preço, óbvio é que não há uma permuta ou troca. De resto, estar a ver in casu tal pagamento como uma permuta (a permuta seria entre a construção feita pela primeira ré e um prédio dos autores) seria o mesmo que denegar a figura da empreitada que as partes entendem, e bem, ter sido o contrato visado. Pois que se se ler o nº 2 do art. 1212º do CCivil ver-se-á que as rés nada teriam para dar em permuta, por isso que a obra (a moradia a construir) nunca lhes pertenceria mas sim e desde sempre aos donos da obra, os autores».
Também no nosso caso, como vimos, com a entrega dos imóveis à ré as partes tiveram em mente satisfazer parte do preço dos serviços de construção de duas moradias que esta se comprometeu a prestar à 2.ª autora, pelo que as relações negociais em discussão se reconduzem à figura do contrato de empreitada, em que a 2.ª autora assumiu a posição de dona da obra e a ré a posição de empreiteira, ainda que parte do preço tivesse sido antecipadamente satisfeito pela referida C..., Lda. e a obra se destinasse à 1.ª e não à 2.ª autora.
O artigo 1207.º do CC define empreitada como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço». Daqui se depreende serem três os elementos essenciais deste contrato: os sujeitos, a realização de uma obra e o pagamento do preço.
Os sujeitos assumem a denominação legal de empreiteiro e de dono da obra. Estas expressões devem ser entendidas no seu sentido técnico e não vulgar; o dono da obra, por exemplo, não é necessariamente o proprietário dela.
O objecto da empreitada é sempre a realização de uma obra e não a prestação de trabalho (não compreende o vínculo de subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho) ou de um serviço pessoal. Neste último caso estamos perante um contrato de prestação de serviços, tal como na empreitada, mas que se submete às regras do mandato, por força do artigo 1156.º do CC, e não às regras da empreitada.
Tem-se discutido qual o preciso alcance do conceito de obra. Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra 1986, p. 788), adoptando uma interpretação que podemos apelidar de restrita, ensinam que «[p]or realização de uma obra deve entender-se não só a construção ou criação, como a reparação, a modificação ou a demolição de uma coisa. Do que não pode prescindir-se é de um resultado material, por ser esse o sentido usual, normal do vocábulo obra e tudo indicar que é esse o sentido visado no artigo 1207.º». Esta interpretação é também defendida por Pedro Romano Martinez (Contrato de Empreitada, Coimbra 1994, p. 102), ao afirmar que «perante a definição restrita do artigo 1207.º, o contrato de empreitada poderá ter por objecto a realização de coisas corpóreas, materiais (p. ex., construir uma casa) ou imateriais (p. ex., reparar um automóvel), mas não de coisas incorpóreas, mesmo que materializáveis». No mesmo sentido, na jurisprudência, vide o Ac. RP, de 29/7/82, CJ, VIII, 4, 227.
Uma outra corrente preconiza uma interpretação mais ampla do conceito de obra, onde inclui também a produção de coisas incorpóreas. Vide, na doutrina, Ferrer Correia e M. Mesquita, Revista da Ordem dos Advogados, 45, 129, e, na jurisprudência, Ac. STJ, de 3/11/83, BMJ, 331, 489.
No caso sub judice não se suscitam quaisquer dúvidas a este respeito, pois a obra em questão refere-se a uma coisa corpórea – a construção de duas moradias unifamiliares.
Por fim, é elemento essencial do contrato de empreitada a fixação de um preço. Isto significa, desde logo, que nossa lei desconhece contratos de empreitada gratuitos. Mas, mais do que isso, ao usar a expressão preço, o legislador quer referir-se a uma quantia em dinheiro, como já dissemos a respeito do contato de compra e venda.
O preço pode ser fixado das formas mais diversas: a forfait, a corpo ou per aversionem; por artigo ou unidade a executar; por medida; por tempo de trabalho; etc. E nada impede que se combinem duas ou mais destas modalidades num mesmo contrato.
O preço diz-se fixado a forfait, a corpo ou per aversionem, quando é fixado um preço global para toda a obra. «Nas obras de maior vulto é frequente a preexistência de um projecto, pormenorizado e completo, de todo o trabalho a realizar, com a fixação de respectivo preço. Esta forma de determinação do preço apresenta-se, em princípio, como mais vantajosa para o dono da obra, porque fica, de antemão, conhecedor do montante que lhe será exigido; em contrapartida, o empreiteiro corre mais riscos, porquanto terá de suportar eventuais maiores despesas se a sua previsão, quanto à realização de toda a obra, não estava correcta.
Diferentemente, as partes podem estabelecer que o preço da obra seja determinado por cada artigo, por unidade a executar. Por exemplo, o empreiteiro obriga-se a fazer vinte cadeiras a X por objecto, ou a plantar mil eucaliptos a Y por unidade. A determinação do preço por unidades implica a perfeita diferenciação e divisão das partes que integram a obra, com respeito ao todo a obter.
Da mesma forma, se as partes estabelecerem um preço por medida, o preço total da obra vai depender da dimensão que esta tiver depois de concluída. Será o caso de o empreiteiro se obrigar a rasgar uma estrada a X por quilómetro, ou a desinfectar uma seara de trigo a Y por hectare, ou a alcatifar um apartamento a Z por metro quadrado. As obras cujo preço for determinado por medida não se concebem sem uma absoluta identidade e continuidade qualitativa do todo, mas com parte quantitativamente determinada em razão da sua extensão.
Nestes dois casos, a remuneração do empreiteiro resulta da aplicação dos preços unitários, previstos no contrato para cada espécie de trabalho a realizar, às quantidades desses trabalhos efectivamente executados» (Romano Martinez, Pedro, Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos, 2.ª edição, Coimbra, 2001, p. 395-396).
No caso em análise, não restam quaisquer dúvidas de que o preço foi fixado a forfait, numa quantia em dinheiro: 242.000,00 € (cfr. ponto 28 dos factos provados). É certo que os contraentes logo acordaram que parte deste preço seria satisfeito pela entrega dos imóveis objecto das escrituras públicas referidas nos pontos 2 e 6 dos factos provados (cfr. ponto 29). Mas este acordo não desvirtua a natureza pecuniária da contrapartida estipulada, apenas dizendo respeito à forma de pagamento de parte do preço.
Em conclusão, verificados todos os elementos previstos no artigo 1207.º do CC, confirmamos que as relações negociais em apreço nestes autos se enquadram na figura contratual da empreitada.
2. Sem prejuízo da diferente qualificação das relações jurídicas em apreço nestes autos, tanto o tribunal a quo como as recorrentes consideram que a ré deve ser condenada no pagamento de uma quantia correspondente à diferença entre o valor da construção que executou e entregou à 2.ª autora e o valor dos imóveis que lhe foram entregues, embora as recorrentes discordem dos valores parcelares apurados na sentença recorrida.
Acresce que, ao contrário do decidido pela primeira instância, as recorrentes entendem que àquela quantia deve acrescer o valor gasto na eliminação dos vícios/defeitos das moradias inacabadas e que o pagamento deve ser feito a ambas as autoras e não apenas à segunda.
A este respeito, a sentença recorrida fundamenta assim a sua decisão:
Com relevo para a questão em análise, provou-se ainda que: as obras realizadas pela Ré à 2ª Autora ascenderam, àquela data, ao seguinte: moradia Um: 84.501,88 € além de impostos que fossem devidos; moradia Dois: 57.626,40 € além de impostos que fossem devidos; e acrescem a estes valores, os respectivos impostos que serão suportados pela 2ª Autora, seja o IVA debitado directamente ou por meio de autoliquidação.
Assim, à data da resolução – 31 de Outubro de 2017 – a obra realizada pela ré no quadro do mencionado contrato de empreitada totalizava o valor de € 174.817,78, com IVA já incluído (€ 84.501,88 + € 57.626,40 = 142.128,28 x 23%).
Face ao acordo existente entre a 2ª autora e a ré, o referido valor deverá ser abatido ao valor em dívida da ré e respeitante ao valor global do preço das já referidas compras e vendas, ou seja, ao valor de € 206.000,00, extinguindo-se, assim, parcialmente o referido crédito das vendas, ficando, então, um valor remanescente em dívida de € 31.182,22, sendo a ré devedora deste valor à 2ª autora.
No que concerne aos valores parcelares a ter em conta nesta operação, já vimos que não teve sucesso a impugnação dos montantes julgados provados pelo tribunal a quo, maxime o valor de 206.000,00 € referido no ponto 29 e os valores de 84.501,88 € e 57.626,40 € referidos no ponto 44, tendo sido igualmente improcedente a impugnação dos pontos 49 e 50, não sendo assim de acolher o entendimento de que o valor da construção existente no lote ... não foi considerado no pagamento previsto no ponto 29.
Ainda no que concerne a estes valores parcelares, as recorrentes consideram que aos valores discriminados no ponto 44 não pode acrescer o IVA, alegando que, estando em causa um contrato de permuta, não é devido IVA, mas antes IMT (sobre a diferença entre os valores declarados ou entre ou valores patrimoniais tributários, consoante a que for maior), nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IVA (CIVA), e nos artigos 2.º, 4.º, al. c), e 5.º, do Código do IMT (CIMT), visto que a permuta não consubstancia uma transferência onerosa de bens passível de IVA, mas sim uma transmissão, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional.
Já vimos, porém, que o contrato por via do qual a 2.ª autora recebeu as duas moradias inacabadas construídas pela ré não configura um contrato de permuta, mas sim um contrato de empreitada.
Em todo o caso, mesmo que admitíssemos tratar-se de um contrato de troca ou permuta, do ponto de vista do direito civil, este nunca poderia consubstanciar um contrato de permuta para efeitos do CIMT, expressamente cingido à «troca ou permuta de bens imóveis». Neste sentido, conclui-se assim no ac. do TCA Sul, de 14.11.2019 (proc. n.º 134/12.9BEBJA, rel. Cristina Flora): «I. A permuta de um bem imóvel por um bem móvel ou por uma qualquer prestação de serviços, não integra o conceito de troca ou permuta que seja subsumível ao disposto no art. 4.º, alínea c) do CIMT; II. Não consubstancia contrato de permuta para efeitos do CIMT a troca da propriedade de lotes de terreno por obras de construção efectuadas por uma das partes no âmbito do exercício da sua actividade (construção)».
Em contrapartida, não suscita dúvidas a incidência do IVA sobre os serviços prestados no âmbito de um contrato de empreitada. Na verdade, o IVA é um imposto sobre o consumo, estando a ele sujeitas as prestações de serviços e transmissão de bens efectuadas em território nacional (artigos 1.º, nº 1, a), e 4.º, n.º 1, do CIVA). O contrato de empreitada, enquanto modalidade do contrato de prestação de serviços (artigos 1154.º, 1155.º e 1207.º e ss. do CC), está sujeito a IVA.
Prosseguem as recorrentes afirmando que, a ser devido IVA, a taxa aplicável é de 6% e não de 23%, sem esclarecer em que norma ou normas baseiam esta afirmação, alegando apenas que está em causa a construção para habitação no interior de uma área de reabilitação urbana (ARU), tal como definida no Aviso n.º 9316/2017, publicado a páginas 17562 do D.R. II Série n.º 156, de 14.08.2017.
As taxas do IVA são as previstas no artigo 18.º do CIVA. Nos termos do da al. a), do seu n.º 1, a taxa de é de 6% para «as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa a este diploma», relativa aos bens e serviços sujeitos a taxa reduzida.
Desta lista I, dizem respeito a empreitadas os seguintes pontos: 2.18, 2.19 e 2.23 a 2.27.
A argumentação das recorrentes remete-nos para o ponto 2.23, relativo às empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.
Este ponto remete-nos para o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, estabelecido no Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro (RJRU), no qual se definem, entre outros, os conceitos de reabilitação urbana e área de reabilitação urbana que o mesmo convoca.
Tais conceitos estão definidos nas alíneas b) e j), do artigo 2.º, daquele regime jurídico, nos seguintes termos:
b) «Área de reabilitação urbana» a área territorialmente delimitada que, em virtude da insuficiência, degradação ou obsolescência dos edifícios, das infraestruturas, dos equipamentos de utilização coletiva e dos espaços urbanos e verdes de utilização coletiva, designadamente no que se refere às suas condições de uso, solidez, segurança, estética ou salubridade, justifique uma intervenção integrada, através de uma operação de reabilitação urbana aprovada em instrumento próprio ou em plano de pormenor de reabilitação urbana;
j) «Reabilitação urbana» a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra-estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios.
Nos termos do artigo 13.º do RJRU, a delimitação das áreas de reabilitação urbana é da competência da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal (n.º 1), sendo o acto de aprovação dessa delimitação publicado através de aviso na 2.ª série do Diário da República e divulgado na página eletrónica do município (n.º 4).
Decorre do exposto que a aplicação da taxa reduzida de IVA (6%) depende da verificação cumulativa de dois requisitos: (i) estar em causa uma empreitada de reabilitação urbana, tal como definida no RJRU, maxime no seu artigo 2.º, al. j), (ii) realizada em imóvel ou espaço público localizado em área de reabilitação urbana, delimitada nos termos dos artigos 2.º, al. b), e 13.º do mesmo diploma legal (ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional, o que não está em equação nestes autos).
Por conseguinte, não basta que a obra em causa seja executada numa área de reabilitação urbana, sendo ainda necessário que a Câmara Municipal competente certifique que as obras realizadas constituíram uma intervenção de reabilitação urbana, ao abrigo do disposto no citado artigo 2.º, al. j), do RJRU. Neste sentido, vide o ac. do TRL, de 21.03.2024 (proc. n.º 16415/21.8YIPRT.L1-2, rel. Vaz Gomes), que cita o ac. do Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa, de 08.05.2023, proferido no processo n.º 603/2022-T.
Voltando ao caso concreto, nada na matéria de facto nos permite afirmar que as obras de construção das duas moradias em causa constituíram uma intervenção de reabilitação urbana, para os efeitos do RJRU, pois não foi apresentada ou, mesmo, invocada a existência de certificação camarária desse facto, não tendo sido, sequer, alegados quaisquer factos de onde se possa retirar que as obras de construção das duas moradias correspondessem a uma intervenção integrada sobre o tecido urbano nos moldes e com os objectivos previstos no RJRU, maxime no citado artigo 2.º, al. j).
Nestes termos, impõe-se concluir que a aplicação da taxa reduzida de IVA não encontra base de sustentação no ponto 2.23, da Lista I, anexo ao CIVA.
Tal aplicação também não pode basear-se nos demais pontos dessa lista acima discriminados, inclusivamente no ponto 2.27 (relativo às empreitadas de beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de imóveis ou partes autónomas destes afectos à habitação, com excepção dos trabalhos de limpeza, de manutenção dos espaços verdes e das empreitadas sobre bens imóveis que abranjam a totalidade ou uma parte dos elementos constitutivos de piscinas, saunas, campos de ténis, golfe ou minigolfe ou instalações similares, casos em que a taxa reduzida não abrange os materiais incorporados, salvo se o respectivo valor não exceder 20% do valor global da prestação de serviços), visto estar em causa a construção de raiz de duas moradias e não a beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de habitações anteriormente existentes.
Pelas razões expostas, não tendo as recorrentes demonstrado os pressupostos legais da aplicação da taxa de IVA reduzida, impõe-se concluir que a taxa aplicável é a residual de 23%, prevista no artigo 18.º, n.º 1, al. c), do CIVA.
Alegam ainda as recorrentes que, não tendo a ré emitido qualquer factura, «o IVA não pode ser exigido das autoras, em virtude da inexistência nos autos do documento, formalidade ad substanciam, exigível para a prova do facto (o IVA)».
Compreende-se mal esta alegação, que trata uma questão de direito – a possibilidade de o empreiteiro exigir o pagamento do IVA ao dono da obra – como uma questão de prova, ou seja, uma questão de facto, confusão que terá sido potenciada pelo teor do ponto 45 dos factos provados.
A questão de facto assim suscitada encontra-se ultrapassada, visto que já foi ordenada a eliminação daquele ponto 45.
Porém, mantém-se a questão da impossibilidade de o empreiteiro exigir o pagamento do IVA ao dono da obra em virtude de não ter sido emitida a respectiva factura (ou, pelo menos, não estar demonstrada nos autos essa emissão).
Já vimos que o contrato de empreitada, enquanto modalidade do contrato de prestação de serviços (artigos 1154.º, 1155.º e 1207.º e ss. do CC), está sujeito a IVA.
Por regra, é sujeito passivo desse imposto o empreiteiro, enquanto pessoa que se dedica a essa actividade de prestação de serviços (artigo 2.º, n.º 1, al. a), do CIVA).
O imposto devido é exigível, em regra, no momento em que o serviço é prestado (artigo 7.º, n.º 1, al. b), do CIVA). Estando o referido sujeito passivo do imposto – o empreiteiro – obrigado a emitir uma factura, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. b) do CIVA, o respectivo imposto é devido, isto é, torna-se exigível pelo Estado, no momento daquela emissão, no momento em que a mesma devia ter ocorrido ou no momento do recebimento do ou dos pagamentos ou adiantamentos eventualmente feitos antes da emissão da factura (artigo 8.º, n.º 1, al. a), b) e c), do CIVA).
A importância do imposto liquidado pelo empreiteiro, na medida em que a repercussão é obrigatória (cfr. artigo 37.º, n.º 3, a contrario), deve ser adicionada ao valor da factura «para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços» - cfr. artigo 36.º, n.º 5, al. d), do CIVA.
Do exposto já decorre que o consumidor final também é responsável pelo pagamento do IVA devido ao Estado, gozando inclusivamente do direito de elaborar as facturas em nome e por conta do sujeito passivo (artigo 29.º, n.º 14, e 79.º do CIVA), sendo certo, porém, que o não uso desta faculdade não lhe pode acarretar qualquer consequência, já que a responsabilidade pela emissão das facturas, pela veracidade do seu conteúdo e pelo pagamento do respectivo imposto cabe ao fornecedor, sem prejuízo da responsabilidade solidária pelo pagamento do fornecedor e do adquirente (artigo 79º, nº 3 do CIVA).
Assim, cabe aos sujeitos passivos a liquidação e a entrega do IVA nos serviços de Finanças; mas, por força do disposto no artigo 37.º do CIVA, tal imposto repercute-se no preço a pagar pelo adquirente dos bens e dos serviços, dispondo o n.º 1 daquele inciso legal que «[a] importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da fatura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços».
Porque se trata de um imposto, a vontade do consumidor (adquirente das mercadorias ou utilizador dos serviços) quanto à aceitação do seu pagamento é irrelevante, desde que tenha havido transmissão de bens materiais ou prestação serviços para esse adquirente, que não estejam isentos de IVA.
Por sua vez, o empreiteiro apenas poderá obter o pagamento do valor correspondente ao imposto, por cujo pagamento é em primeira linha responsável perante a administração fiscal, logo que emita a respectiva factura nos termos da lei, funcionando a emissão da factura como condição de exigibilidade legal do valor desse mesmo imposto. Neste sentido, entre outros, veja-se o aresto do STJ de 22.04.2004, disponível no mesmo sítio informático.
Em suma, como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.02.2015 (proc. n.º 1142/12.5TBVCT.G1) o dono da obra é sujeito passivo e contribuinte de facto do IVA, ao passo que o empreiteiro se apresenta como sujeito passivo e contribuinte de direito do mesmo imposto, encontrando-se obrigado à sua liquidação e entrega ao Estado.
Decorre com clareza do regime legal antes exposto que a emissão da factura não é uma condição sine qua non para que o IVA seja devido, ou seja, para que o Estado o possa exigir. Como vimos, estando o sujeito passivo deste imposto obrigado a emitir uma factura, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. b) do CIVA, o mesmo torna-se exigível pelo Estado nos momentos definidos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 8.º do mesmo código:
a) Se o prazo previsto para a emissão da fatura for respeitado, no momento da sua emissão;
b) Se o prazo previsto para a emissão não for respeitado, no momento em que termina;
c) Se a transmissão de bens ou a prestação de serviços derem lugar ao pagamento, ainda que parcial, anteriormente à emissão da fatura, no momento do recebimento desse pagamento, pelo montante recebido, sem prejuízo do disposto na alínea anterior.
Mas a emissão da factura é condição sine qua non para que o prestador dos serviços, contribuinte de direito do imposto, o possa exigir do adquirente, contribuinte de facto do mesmo.
Ora, tal emissão não ficou demonstrada nestes autos, pelo que assiste razão às recorrentes quando afirmam que a ré não pode deduzir o respectivo valor ao montante que está obrigada a restituir, pois tal dedução traduzir-se-ia na repercussão do imposto sem a emissão da competente factura.
As recorrentes fundamentaram ainda a inexigibilidade do IVA na circunstância de competir à 2.ª autora a autoliquidação desse imposto, visto ser de aplicação obrigatória na prestação de serviços de construção civil a regra da inversão do sujeito passivo, razão pela qual não pode haver lugar ao desconto do IVA nas “contas” entre as autoras e a ré, pois tal significaria uma duplicação de pagamento.
Mas esta argumentação não pode proceder.
Dissemos que, por regra, o empreiteiro é sujeito passivo desse imposto enquanto pessoa que se dedica à actividade de prestação de serviços, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 1, al. a), do CIVA.
Porém, por força da revisão do CIVA operada Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de Janeiro, a al. j), do n.º 1, do artigo 2.º, daquele código, passou a incluir entre os sujeitos passivos de IVA «as pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada».
A este propósito diz-se o seguinte no preâmbulo do referido Decreto-Lei n.º 21/2007:
«Fora do âmbito das operações previstas nos n.ºs 30 e 31 do artigo 9.º do Código do IVA, mas ainda no domínio de algumas prestações de serviços relativas a bens imóveis, nomeadamente nos trabalhos de construção civil realizados por empreiteiros e subempreiteiros, o presente decreto-lei vem adoptar, de igual modo, uma outra faculdade conferida pela Directiva n.º 2006/69/CE, do Conselho, de 24 de Julho. Assim, por via da inversão do sujeito passivo, passa a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objecto de dedução nos termos gerais. Com esta medida, visam acautelar-se algumas situações que redundam em prejuízo do erário público, actualmente decorrentes do nascimento do direito à dedução do IVA suportado, sem que esse imposto chegue a ser entregue nos cofres do Estado».
Mediante o Ofício-Circulado n.º ..., de 24.05.2007, que revogou o ofício circulado n.º ... de 28.03.2007, a Direcção de Serviços do IVA, da Direcção-Geral dos Impostos – DGCI, veio esclarecer, para além do mais, o seguinte: nos casos previstos no artigo 2.º, n.º 1, al. j), do CIVA, há a inversão do sujeito passivo, cabendo ao adquirente a liquidação e entrega do imposto que se mostre devido, sem prejuízo do direito à dedução, nos termos gerais do CIVA, designadamente do previsto nos seus artigos 19.º a 25.º; as facturas emitidas pelos prestadores dos referidos serviços deverão conter a expressão “IVA devido pelo adquirente”; o IVA devido pelo adquirente deve ser liquidado na própria factura recebida do prestador ou em documento interno que, para o efeito, deverá fazer menção da factura original (n.º, data e identificação do prestador); no caso de não recebimento da factura, subsiste a obrigação de autoliquidação, devendo a mesma fazer-se em documento interno e mantendo-se o direito à dedução nos termos gerais do CIVA.
É, assim, claro que nas situações previstas no artigo 2.º, n.º 1, al. j), do CIVA, a inversão do sujeito passivo é obrigatória.
Mas não se integram naquelas situações e, por conseguinte, como se esclarece no mesmo ofício circulado, «não há lugar à inversão, cabendo ao prestador de serviços liquidar o IVA que se mostre devido, quando o adquirente é:
a) não sujeito passivo;
b) sujeito passivo que pratica exclusivamente operações isentas que não se encontram previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA (vulgo sujeitos passivos abrangidos pelo artigo 9.º ou pelo artigo 53.º do Código) considerando-se, como tais, os que constem, nessa situação, no registo informático da DGCI, incluindo aqueles que se encontram com enquadramento pendente por força do n.º 4 do artigo 28.º do CIVA;
c) sujeito passivo que apenas o é porque efectua aquisições intracomunitárias, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias - RITI (Estado e demais pessoas colectivas de direito público abrangidas pelo disposto no n.º 2 do artigo 2.º do CIVA e qualquer outra pessoa colectiva não sujeito passivo nos termos do CIVA).
(…)
Cabe ao adquirente dos serviços, no caso de dúvidas por parte do sujeito passivo prestador, esclarecer e confirmar em que situação (enquadramento) se encontra perante o IVA. No caso de subsistirem dúvidas e sem prejuízo do que se refere no ponto 6, qualquer das partes poderá solicitar informação à Direcção de Serviços do IVA sobre o enquadramento em vigor».
Sucede que os elementos constantes destes autos não nos permitem afirmar a verificação dos requisitos enunciados no artigo 2.º, n.º 1, al. j), do CIVA, designadamente que a 2.ª autora pratique operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do IVA.
Em todo o caso, já vimos que não estão verificados os requisitos para que a ré possa exigir à autora o pagamento do IVA, sem prejuízo do mesmo ser devido ao Estado, pelo que o respectivo valor não deverá ser deduzido do valor que a ré está obrigado a restituir, procedendo nesta parte o recurso interposto.
Nestes termos, ao valor de 206.000,00 € referido no ponto 29 importa apenas deduzir o valor de 142.128,28 € (84.501,88 € + 57.626,40 €) referido no ponto 44, ambos dos factos provados, pelo que o valor a restituir pela ré à 2.ª autora perfaz 63.871,72 €.
Mas porque as obrigações fiscais inerentes ao negócio em apreço não se mostram cumpridas, a situação será comunicação à Autoridade Tributária e Aduaneira para os fins tidos por convenientes.
3. As recorrentes vieram pugnar pela condenação da ré recorrida no pagamento de uma indemnização no valor de 18.951,03 €, com fundamento nas despesas em que a 2.ª autora incorreu para reparar os defeitos de que padeciam as moradias que a ré lhe entregou, invocando o regime legal da compra e venda de coisas defeituosas e as regras gerais da responsabilidade contratual. Porém, as autoras não lograram demonstrar a ocorrência dos alegados vícios ou defeitos, como vimos quando apreciamos a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime sobre os pontos 17 a 20 dos factos não provados.
Por conseguinte, a sua pretensão indemnizatória não pode proceder, independentemente do regime legal que seria aplicável ao caso, pelo que o recurso improcede também nesta parte.
4. Por fim, as recorrentes vieram insurgir-se contra a improcedência do primeiro dos pedidos deduzidos nesta acção, alegando que dos factos provados, mais concretamente os descritos nos pontos 2, 3, 4, 5, 12, 13 e 14, resulta que a escritura pública de 21.12.2016 apenas transmitiu para a ré uma parcela de terreno, identificada como lote n.º ..., não mencionando a construção que ali já existia. Mas porque essa construção importou uma alteração da composição do prédio, que passou de parcela de terreno para construção para edifício em construção, conclui-se que a venda deste prédio em construção é nula por falta de forma.
É patente a artificialidade da argumentação assim desenvolvida, que parece defender a existência de dois negócios: uma compra e venda de um prédio rústico que já não existia como tal, celebrada por escritura pública, e uma compra e venda de um prédio urbano, que não obedeceu à forma escrita.
Como já dissemos anteriormente, o que os factos provados revelam é uma realidade muito distinta desta: a transmissão da propriedade do prédio constituído pelo lote de terreno e pela construção nele existente, por meio de escritura pública (que as partes denominaram de compra e venda mas que, na verdade, não se integra nessa figura negocial), ainda que na mesma não se descreva a composição deste prédio de forma actualizada, por não se mencionar a construção nele existente, descrevendo-o como «prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Lousada, composto de parcela de terreno para construção – lote n.º ... inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... … descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº ... da freguesia ...», certamente porque esta descrição era consonante com a inscrição matricial (como é confirmando pelo documento n.º 5 da petição inicial) e com a descrição predial desse prédio que, como vemos, já tinha natureza urbana mesmo antes da construção nele edificada.
Em todo o caso, a alienação do terreno sempre teria de abranger a construção nele existente, por força do princípio superficies solo cedit consagrado no artigo 1344.º do CC.
Sob a epígrafe Limites materiais, esta disposição legal preceitua, no seu n.º 1, que a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e que não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico, com os limites enunciados no n.º 2.
Exprime, assim, a ideia da inexistência de outros limites materiais da propriedade sobre coisas imóveis para além das suas estremas horizontais, ressalvando apenas os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse do proprietário em impedir. Sobre esta questão vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., Coimbra, 1987, pp. 172-175.
No caso vertente, não sendo questionada pelas partes a transmissão do direito de propriedade sobre o terreno onde estava implantada a construção agora em discussão e não tendo ficado demonstrada, pois nem sequer foi alegada, a constituição de qualquer direito real que permitisse à alienante manter na sua esfera jurídica a referida construção, maxime a constituição de um direito de superfície, nos termos previstos nos artigos 1524.º e seguintes do CC, impõe-se concluir que o direito transmitido incidia igualmente sobre esta construção, por força do princípio superficies solo cedit consagrado na norma do artigo 1344.º do CC.
Atento o exposto e o que ficou anteriormente dito a propósito das diversas declarações negociais apuradas e da sua qualificação jurídica – de onde resulta que a transmissão da propriedade do lote ... e da construção aí existente para a ré visou liquidar parte do preço devido pela construção das duas moradias que a ré se comprometeu a executar – é manifesto que nunca caberia à sociedade C..., Lda. e, por conseguinte, à 1.ª autora o direito ao recebimento do preço mencionado na escritura pública de 21.12.2015 ou a uma indemnização por quaisquer benfeitorias.
Deste modo, bem andou o tribunal a quo ao não atender ao 1.º pedido, deduzido pela autora AA.
Em conclusão, a apelação procede apenas no que respeita ao montante que a ré está obrigada a restituir à 2.ª autora, ao qual deve acrescer o valor do IVA descontado pelo tribunal a quo, mantendo-se o demais decidido.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência parcial da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto condenam a ré a pagar à autora A..., Lda. a quantia de 63.871,72 € (sessenta e três mil oitocentos e setenta e um euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de juros comerciais que vigorar no período temporal em referência, vencidos e vincendos desde a citação para a presente acção e até integral pagamento daquele valor, assim alterando a al. a) e mantendo a restante parte da decisão.
Custas da apelação por ambas as partes, na proporção de ¾ para as recorrentes e de ¼ para a recorrida.
Registe e notifique.
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Remeta cópia deste acórdão à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos e para os efeitos mencionados na parte final do ponto 2 da fundamentação de direito.
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Porto, 14 de Janeiro de 2025
Artur Dionísio Oliveira
João Diogo Rodrigues
Rodrigues Pires