I - A exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
II - Somente os interesses do Insolvente digno e actuando de boa-fé justificam a aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, em prevalência sobre os direitos dos respectivos credores.
III – A prestação de informações falsas ou incompletas no requerimento inicial apresentado pelo próprio devedor e a falta injustificada de junção dos elementos previstos na lei e/ou a apresentação de documentos com informações falsas ou incompletas deve ser configurada como uma violação do dever de informação, desde que praticada com dolo ou culpa grave.
IV – Uma violação dos deveres de informação com estes contornos afronta diretamente a própria natureza do instituto da exoneração do passivo restante, justificando o indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante.
Comarca: [Juízo de Comércio de Amarante (J2); Comarca do Porto Este]
Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista
Juiz Desembargador Adjunto: Pinto dos Santos
Juiz Desembargador Adjunto: Artur Dionísio Oliveira
SUMÁRIO
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I - RELATÓRIO
A Requerente AA, residente na Avenida ..., n.º ..., 2.º Esq., Penafiel, apresentou-se à insolvência e solicitou a concessão da exoneração do passivo restante.
Alega, em síntese, que se encontra, na presente data, numa situação de incumprimento generalizado das suas obrigações. Bem como que essas obrigações, pelo seu elevado montante, revelam impossibilidade de satisfazer o seu pagamento, o que legitima, a qualificação da situação como de insolvência.
Declara que a origem das dívidas se reporta, primeiramente, a meados de 2010, altura em que ela e seu ex-marido – na altura, casados – eram gerentes de sociedades, não conseguindo sustentar o negócio, criando dívidas.
Diz ter-se apresentado à insolvência há mais de 10 anos, tendo sido declarada insolvente a 03 de julho de 2012, juntamente com o seu ex-marido, em processo que correu termos, na altura, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras (Proc. n.º 751/12.7TBFLG) e que o mesmo foi encerrado, no ano de 2018, por rateio final.
Acrescenta que nessa ocasião não teve acesso à exoneração do passivo aí elencado.
Afirma que, desde então, para além das dívidas anteriores, apresenta dívidas mais recentes, nomeadamente à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Elenca como credores os seguintes: “Banco 1..., S.A.”, com crédito computado no valor de € 23.937,83, com data de vencimento de 8 de novembro de 2007; “Banco 2..., S.A.”, com um crédito de € 16.647,56, com data de vencimento de 5 de fevereiro de 2009; “Autoridade Tributária e Aduaneira”, com créditos computados no valor de € 6.728,60; “Segurança Social, I.P.”, com crédito computado no valor de, sensivelmente, € 6.000,00 – com um passivo global no valor de € 53.313,99.
Afirma ser, atualmente, colaboradora de loja em regime de part time, auferindo o vencimento mensal de € 380,00 e que, em simultâneo, é terapeuta holística, retirando rendimentos esporádicos e com base em recibos verdes.
Alega viver em casa arrendada com as suas filhas BB, com 15 anos de idade, a frequentar o 9.º ano de escolaridade, e CC, com 20 anos de idade, a frequentar a licenciatura de farmácia na Universidade ....
Mais alega ter, atualmente, as seguintes despesas mensais: € 400,00 a título de renda; € 110,00 a título de despesas de luz e de água; € 300,00 a título de despesas de alimentação; € 85,00 a título de despesas de ATL das filhas; € 50,00 a título de transportes; € 215,60 a título de prestação mensal para pagamento de dívida à “Autoridade Tributária e Aduaneira”, € 48,00 a título de prestação mensal para pagamento de dívida à “Segurança Social, I.P.” e € 170,00 a título de despesas pessoais e de higiene.
Alega, por fim, preencher todos os requisitos legais de que depende o deferimento da exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida a 17/04/24, a Requerente foi declarada insolvente, prescindiu-se da realização da Assembleia de Credores e determinou-se a notificação dos credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado.
Entretanto, a Insolvente veio atualizar a lista de credores, acrescentando o crédito de “A..., S. A.”, no valor de € 30.585,22.
O Sr. Administrador Judicial da Insolvência veio, com data de 24/05/24, apresentar o Relatório previsto no art.º 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1], em que propõe o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e declara que “não tem conhecimento de factos que por si só condicionem o indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante.”
Seguidamente, foi proferido despacho judicial, em que se declarou encerrado o processo, por insuficiência da massa insolvente e se determinou a notificação do Administrador da Insolvência para indicar a data de vencimento dos créditos reclamados.
O Sr. Administrador Judicial da Insolvência veio esclarecer serem as seguintes as datas de vencimento dos créditos reclamados: “Fazenda Pública” – 18/02/2012; “B... Unipessoal, Lda.” – 05/04/2016; “Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital do Porto” – 12/2011; “Banco 1..., S.A.” – 22/03/2011; “C..., S.A.” – 26/12/2011; “A..., S. A.” – 12/05/2011 e “D..., Unipessoal LDA.” – 01/04/2011.
Com data de 02/10/2024, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Considerando que todos os créditos reclamados nestes autos já existiam em 3 de julho de 2012, data em que o 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras (Proc. n.º 751/12.7TBFLG) – declarou a ora requerente no estado de insolvente, notifique-a para esclarecer a afirmação que fez no art.º 23.º da petição inicial, a saber: “23.º Mais se declara que parte do passivo ora em questão não existia à data da anterior declaração de insolvência”. Prazo: 10 dias.”
A Insolvente veio responder que o passivo reclamado pela sociedade “B... Unipessoal, Lda.” se venceu posteriormente, designadamente em 05/04/2016.
Com data de 28/10/2024, indeferiu-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com a seguinte fundamentação jurídica resumida: “(…) Nos presentes autos, cremos que a devedora violou o dever de informação a que estava obrigada. Com efeito, e pese embora tenha indicado em sede de petição inicial que já havia sido declarada insolvente, referiu que “parte do passivo ora em questão não existia à data da anterior declaração de insolvência.”. Tal, contudo, não corresponde à verdade.
Com efeito, como decorre da factualidade supra, todo o passivo reclamado nestes autos já existia na data em que a requerente foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 751/12.7TBFLG, que correu termos no Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 2.
De facto, ainda que a devedora, após pedidos de esclarecimentos, tenha vindo afirmar que o crédito da B..., não existia na data em que foi declarada insolvente pela primeira vez, tal não é verdade. Tal crédito já existia desde o ano de 2010, mas o credor era o Banco 3... que em março de 2016 o cedeu à reclamante B....
Tendo em conta o exposto, cremos que pese embora a devedora soubesse que os créditos eram os mesmos do processo onde não obteve a exoneração do passivo restante, alegou que assim não era, a fim de obter aquilo que não lhe foi concedido no âmbito do citado processo. (…)
Do exposto decorre que, se a devedora tivesse prestado as informações corretas a petição inicial de insolvência teria sido indeferida, por existência de exceção de caso julgado, e tal só assim não ocorreu porque, naquela peça processual, a mesma alegou que o passivo não era o mesmo que existia na data da insolvência anterior e onde a exoneração do passivo restante não foi concedida.
Verificando-se, agora, que tal não corresponde à verdade, cremos que é de indeferir liminarmente a exoneração do passivo restante por violação dolosa do dever de informação que cabia à devedora. O que se decide.”
Inconformada com esta decisão, a Insolvente recorreu, pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que decrete a exoneração do passivo, com as demais consequências, tendo formulado as seguintes
CONCLUSÕES:
A. O objeto do presente recurso tem por base a sentença proferida que indeferiu a concessão da exoneração do passivo restante tendo por base a alínea g), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE.
B. Segundo o Tribunal a quo, a Recorrente praticou incumprimento do dever de informação ao indicar ao Tribunal que os créditos agora em débito não coincidiam com os créditos reconhecidos em insolvência decretada anteriormente.
C. Entende o Tribunal a quo que os créditos são exatamente os mesmos, pelo que indeferiu o benefício por existência de dolo por omissão de informação
D. Vem, agora, a Recorrente, insurgir-se sobre tal decisão, atentas todas as circunstâncias modificativas que motivaram a dedução de um segundo pedido de insolvência e novo pedido de exoneração do passivo restante...
E. Alegou a Recorrente, em sede de Petição Inicial, que o teor dos créditos da presente insolvência era diferente dos créditos reconhecidos em insolvência anterior.
F. Requerente já foi declarada insolvente por sentença proferida no processo n.º 751/12.7TBFLG, que correu termos no Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 2, mas não beneficiou da exoneração do passivo restante.
G. Até à dedução de novo pedido de insolvência com exoneração do passivo, foi a Recorrente alvo de muitas tentativas de cobrança sobre os mesmos créditos, sendo certo que, no campo fiscal – AT – a mesma conseguiu firmar acordos de pagamento, e encontra-se a cumprir os mesmos.
H. Entretanto, foi a Recorrente surpreendida por notificação da B..., em relação a um crédito antigo – é certo – mas com mais juros associados, atento o grande hiato temporal decorrido.
I. Porém, entende o Tribunal a quo que o “contrato de mútuo realizado em 17/06/2010, entre Banco 3... SA e a insolvente no montante de € 8.420,25, sendo que o referido montante seria pago em 60 prestações, de capital e juros” é o mesmo que agora é peticionado pelo credor B....
J. Veja-se que: em primeiro lugar, a titularidade do crédito sofreu alteração – existiu uma cessão de créditos, sendo certo que a alteração da titularidade, no entender da Recorrente, é um dos motivos para se constatar a diferença de créditos.
K. Mas, mais do que isso, esse crédito, peticionado extrajudicialmente no ano de 2024, acumulou juros durante todos estes anos, circunstância que enforma a afirmação de que existem créditos que não existiam à data da anterior insolvência.
L. Mais importante para a Recorrente, é demonstrar que nunca, em momento algum existiu dolo da sua parte, acreditando ter tido uma conduta pautada pela boa fé neste momento anterior ao decretamento do benefício de exoneração, sendo certo que não esperava tamanha rejeição do seu pedido, pela existência de dolo.
M. É um absurdo retirar esta nova oportunidade à Recorrente, colocando-a o Tribunal a quo “no mesmo saco” de quem retira frutos insolvenciais, omitindo factos e mentindo ao órgão jurisdicional: não é, de certeza, o caso da aqui Recorrente.
N. Entende a Recorrente que falou verdade quando demonstrou que as circunstâncias entre uma insolvência e outra se alteraram, sendo certo que qualquer entendimento contrário não pode ter por consequência a conclusão da existência de dolo.
O. Mostra-se necessária comprovação da existência de dolo ou culpa grave e que as condutas consubstanciadoras das mesmas tenham sido levadas a cabo com vista a um determinado fim, o que, no caso não se mostra de todo demonstrado.
P. Se a lei permite que quem tenha sido declarada insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, também a insolvente, que assim voltou a ser declarada, há de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.
Q. Inexistem, assim, nos autos, elementos que preencham, nomeadamente, o disposto no art. 238º, nº 1, al. g) do CIRE.
R. O Tribunal a quo proferiu uma decisão incongruente, exagerada, seguindo os formalismos da forma mais restritiva possível, face a uma devedora que não tem outra intenção que não seja respeitar o Tribunal, o Sr. Administrador e demais credores.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a verificação dos pressupostos invocados na decisão recorrida de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
São os seguintes os factos considerados provados na decisão recorrida:
1. O presente processo de insolvência teve início em 15.4.2024 com a apresentação à insolvência por parte da devedora.
2. Foram reconhecidos créditos pelo Sr. AJ no valor de € 158.020,77 €
3. Os credores da requerente são os seguintes:
-Fazenda Pública, com crédito vencido em 18.02.2012;
- B... Unipessoal, Lda, com crédito vencido em 05.04.2016
- Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital do Porto, com crédito vencido em 12.2011;
- Banco 1..., S.A., com crédito vencido em 22.03.2011;
4. O crédito reclamado pela B... Unipessoal, Lda. resultou de contrato de cessão de créditos celebrado em 4.3.2016 entre a credora e o Banco 3..., S.A
5. O crédito cedido através do contrato mencionado em 4) teve a sua origem no contrato de mútuo realizado em 17/06/2010, entre Banco 3... SA e a insolvente no montante de € 8.420,25, sendo que o referido montante seria pago em 60 prestações, de capital e juros;
6. Na data da declaração da insolvência inexistiam quaisquer bens passiveis de serem apreendidos para a massa.
7. Em sede de petição inicial a insolvente declarou que “parte do passivo ora em questão não existia à data da anterior declaração de insolvência.”.
8. A Requerente já foi declarada insolvente por sentença proferida no processo n.º 751/12.7TBFLG, que correu termos no Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 2, mas não beneficiou da exoneração do passivo restante.
A exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, inspirou-se no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
Contrapõem-se dois interesses conflituantes constitucionalmente protegidos: o da protecção dos credores do insolvente e o da concessão desta “segunda oportunidade” concedida ao insolvente, dando-se prevalência a este último desde que verificadas certas circunstâncias.
O art.º 238.º do CIRE traça os casos de indeferimento liminar, revelando que "A concessão da exoneração do passivo restante (...) depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém".[3]
No mesmo sentido, refere Adelaide Menezes Leitão que, “As pré-condições devem ser suficientemente exigentes para indiciarem que a conduta do devedor é objectivamente reveladora de que poderá ser sujeito ao período de cessão do rendimento disponível do fiduciário”, não podendo o incidente de exoneração do passivo restante “redundar num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido”.[4]
Ainda no mesmo sentido refere Cláudia Oliveira Martins[5]: “Todos os requisitos elencados nas alíneas b) a g) manifestam a intenção do legislador, tal como sucede com o período de cessão e as obrigações a estes inerentes, de que a exoneração do passivo restante não passe de um mero e indiscriminado perdão de dívidas (na senda do modelo norte-americano) exigindo antes do devedor uma conduta norteada por princípios éticos presentes no momento anterior e durante todo o período de duração quer do processo de insolvência, quer do incidente (não é, assim, um direito de todo e qualquer devedor mas reservado para aqueles que demonstrem, pela sua conduta, serem merecedores de tal benefício).”
Ou seja, somente os interesses do insolvente digno e atuando de boa-fé justificam a aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, em prevalência sobre os direitos dos respectivos credores.
Os comportamentos passíveis de censura, que são fundamento do indeferimento do pedido de exoneração, dividem-se estruturalmente em três grupos: um respeitante a comportamentos do insolvente que contribuíram ou agravaram a sua situação de insolvência (alíneas b), d) e e)); outro respeitante a situações ligadas ao passado do insolvente relevantes para a concessão do período de cessão (alíneas c) e f)) e um outro relacionado com condutas do devedor que consubstanciam a violação de deveres impostos no decurso do processo de insolvência (alínea g)).
O tribunal recorrido indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Justifica que, pese embora a Insolvente tenha indicado em sede de petição inicial que já havia sido declarada insolvente, referiu que “parte do passivo ora em questão não existia à data da anterior declaração de insolvência.”.
Emite a opinião que, pese embora a devedora soubesse que os créditos eram os mesmos do processo onde não obteve a exoneração do passivo restante, alegou que assim não era, a fim de obter aquilo que não lhe foi concedido no âmbito do citado processo.
Conclui ser de indeferir liminarmente a exoneração do passivo restante por violação dolosa do dever de informação que cabia à devedora.
A Insolvente interpôs o presente recurso pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que decrete a exoneração do passivo.
Sustenta que, até à dedução de novo pedido de insolvência com exoneração do passivo, foi alvo de muitas tentativas de cobrança sobre os créditos, sendo certo que, no campo fiscal – AT – conseguiu firmar acordos de pagamento, e encontra-se a cumprir os mesmos.
Afirma que, entretanto, foi surpreendida por notificação da “B...”, em relação a um crédito antigo – é certo – mas com mais juros associados, atento o grande hiato temporal decorrido.
Acrescenta que, em primeiro lugar, a titularidade do crédito sofreu alteração – existiu uma cessão de créditos, sendo certo que a alteração da titularidade, no seu entender, é um dos motivos para se constatar a diferença de créditos. Mas, mais do que isso, esse crédito, peticionado extrajudicialmente no ano de 2024, acumulou juros durante todos estes anos, circunstância que enforma a afirmação de que existem créditos que não existiam à data da anterior insolvência.
Mais sustenta que nunca, em momento algum, existiu dolo da sua parte, acreditando ter tido uma conduta pautada pela boa fé neste momento anterior ao decretamento do benefício de exoneração, sendo certo que não esperava tamanha rejeição do seu pedido, pela existência de dolo.
Defende ser um absurdo retirar-lhe esta nova oportunidade, colocando-a o Tribunal a quo “no mesmo saco” de quem retira frutos insolvenciais, omitindo factos e mentindo ao órgão jurisdicional: não é, de certeza, o caso da aqui Recorrente.
Advoga que se mostra necessária comprovação da existência de dolo ou culpa grave e que as condutas consubstanciadoras das mesmas tenham sido levadas a cabo com vista a um determinado fim, o que, no caso não se mostra de todo demonstrado.
Conclui que inexistem nos autos, elementos que preencham, nomeadamente, o disposto no art.º 238º, nº 1, al. g) do CIRE.
Cumpre apreciar e decidir.
A disposição legal aplicada pelo tribunal recorrido, do art.º 238.º, n.º 1, alínea g), do CIRE, determina que “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resulta do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”
Esta disposição legal deve ser conjugada com a regra geral consagrada no art.º 83.º do CIRE, de onde decorre que o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo.
Bem como com os princípios acima enunciados inerentes ao instituto da exoneração do passivo restante, em que se exige ao insolvente uma conduta norteada por princípios éticos.
Repete-se: somente os interesses do insolvente digno e atuando de boa-fé justificam a aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, em prevalência sobre os direitos dos respetivos credores.
Assim sendo, a violação dos deveres de informação atenta diretamente contra a própria natureza do instituto da exoneração.
Em interpretação deste art.º 238.º, n.º 1, alínea g), referem Ana Prata; Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[6] que “Está aqui em causa a regra geral, que visa salvaguardar a situação em que o devedor não colabora no processo de insolvência, não devendo ser concedida a vantagem associada à exoneração do passivo restante.”.
Na jurisprudência decidiu-se neste mesmo sentido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/2013, tendo como Relator Hélder Roque[7]: “Os fundamentos que constam das várias alíneas do art.º 238.º, n.º 1, do CIRE, com exceção do disposto na alínea a), não assumem uma feição, estritamente, processual, mas antes têm natureza substantiva, referindo-se a comportamentos do devedor que justificam a não concessão do benefício da exoneração do passivo restante, o que não significa a sua previsão automática como hipóteses de indeferimento liminar, porquanto tem que ser produzida prova desses factos, e a verificação da ausência das situações contempladas nas aludidas alíneas constitui apenas requisito de admissibilidade da exoneração.”
Bem como no Acórdão da Relação de Guimarães de 11/06/2015, tendo como Relatora Helena Melo[8] onde se refere: “Os deveres de informação e colaboração, no âmbito do incidente de exoneração do passivo, revestem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento constitui indício da retidão da conduta do devedor, retidão que não pode deixar de lhe ser exigida tendo em conta que pretende ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante permite.”
Estes deveres de informação impendem sobre o devedor/insolvente desde a apresentação em Juízo do requerimento inicial até à decisão liminar do incidente em causa.
A violação do dever de informação necessita para ser operante de ser praticada com dolo ou culpa grave.
A violação dolosa dos deveres de informação pressupõe uma atuação consciente e intencional de alterar factos ou de, pelo menos, omitir algumas informações (quer o resultado seja pretendido pelo devedor numa situação de dolo direto, quer o resulta seja previsto como consequência necessária da sua conduta numa situação de dolo necessário ou quer este mesmo resultado seja representado como consequência possível da sua conduta, conformando-se com esse resultado numa situação de dolo eventual).
Por seu turno, quanto à violação negligente destes mesmos deveres, explica Assunção Cristas[9]: “De acordo com os ensinamentos tradicionais da doutrina, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou negligência grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria suscetível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, atuando a maioria das pessoas de modo diverso.”
Acrescentamos: o parâmetro a atender será o de um bom pai de família, nos termos do art.º 487.º do Código Civil.
No caso em apreciação, a Recorrente declara – no requerimento inicial - que a origem das dívidas se reporta, primeiramente, a meados de 2010, altura em que ela e seu ex-marido – na altura, casados – eram gerentes de sociedades, não conseguindo sustentar o negócio, criando dívidas.
Diz ter-se apresentado à insolvência há mais de 10 anos, tendo sido declarada insolvente a 03 de julho de 2012, juntamente com o seu ex-marido, em processo que correu termos, na altura, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras (Proc. n.º 751/12.7TBFLG) e que o mesmo foi encerrado, no ano de 2018, por rateio final.
Afirma que, desde então, para além das dívidas anteriores, apresenta dívidas mais recentes, nomeadamente à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Elenca como credores os seguintes: “Banco 1..., S.A.”, com crédito computado no valor de € 23.937,83, com data de vencimento de 8 de novembro de 2007; “Banco 2..., S.A.”, com um crédito de € 16.647,56, com data de vencimento de 5 de fevereiro de 2009; “Autoridade Tributária e Aduaneira”, com créditos computados no valor de € 6.728,60; “Segurança Social, I.P.”, com crédito computado no valor de, sensivelmente, € 6.000,00 – com um passivo global no valor de € 53.313,99.
Nesta alegação a Recorrente não indica, como lhe competia, qual a data de vencimento das dívidas à “Autoridade Tributária e Aduaneira” e à “Segurança Social, I.P.”.
Da mesma forma, veio juntar aos autos a Relação de Credores, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 24.º, do CIRE e, uma vez mais, omite a data de vencimento das dívidas à “Autoridade Tributária e Aduaneira” e à “Segurança Social, I.P.”.
Determina o art.º 23.º, n.º 1, do CIRE que “A apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido.”
Decorre do art.º 24.º, n.º 1, alínea a), do CIRE que com a petição o devedor, quanto seja o requerente deve juntar, entre o mais, “Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respetivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, nos termos do artigo 49.º”
Por aplicação dos princípios acima enunciados, a prestação de informações falsas ou incompletas no requerimento inicial e a falta injustificada de junção dos elementos previstos na lei e/ou a apresentação de documentos com informação falsa deve ser configurada como violação do dever de informação.
Tal violação afronta diretamente a conduta honesta e de boa fé exigível para os beneficiários da exoneração do passivo restante.
Entretanto, notificada para esclarecer a afirmação feita no requerimento inicial no sentido de que parte do passivo não existia à data da anterior declaração de insolvência, a Recorrente já não se reporta aos créditos da “Autoridade Tributária e Aduaneira” e da “Segurança Social, I.P.”.
Diversamente veio responder que o passivo reclamado pela sociedade “B... Unipessoal, Lda.” se venceu posteriormente, designadamente em 05/04/2016.
Qualquer uma destas sucessivas afirmações é falsa.
Com efeito, ficou provado nos autos, por um lado, que os credores da requerente são os seguintes: -Fazenda Pública, com crédito vencido em 18.02.2012; - B... Unipessoal, Lda., com crédito vencido em 05.04.2016; - Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital do Porto, com crédito vencido em 12.2011; - Banco 1..., S.A., com crédito vencido em 22.03.2011.
Mais ficou provado, por outro lado, que o crédito reclamado pela “B... Unipessoal, Lda.” resultou de contrato de cessão de créditos celebrado em 4.3.2016 entre a credora e o Banco 3..., S.A. Bem como que este crédito cedido teve a sua origem no contrato de mútuo realizado em 17/06/2010, entre Banco 3... SA e a insolvente no montante de € 8.420,25, sendo que o referido montante seria pago em 60 prestações, de capital e juros.
Em face destes factos, concordamos com a decisão recorrida ao afirmar que a devedora violou o dever de informação a que estava obrigada nas alegações que produziu no requerimento inicial e relação de créditos anexa e, num segundo momento, na defesa de que o crédito da “B...” é um crédito novo.
A sua alegação no presente recurso de que este último crédito se deve considerar “novo” por ter acumulado juros ao longo dos anos não tem, obviamente, valia jurídica.
Como é por demais evidente, a generalidade dos créditos acumula juros ao longo dos anos e tal circunstância apenas aumento o valor dos mesmos, sem alterar a respetiva data de vencimento.
Da mesma forma, não aceitamos a tese aqui defendida de que teve uma conduta pautada pela boa fé e sem culpa.
Tem que se concluir pela verificação de uma atuação pelo menos sob a forma de negligência grosseira, já que a Recorrente tinha seguramente conhecimento da sua real situação patrimonial.
A sua conduta processual revela precisamente essa negligência grosseia.
Alega, num primeiro momento, que tinha dívidas mais recentes, nomeadamente à Autoridade Tributária e Aduaneira, mas omitiu a data de vencimento das mesmas, o que não justifica.
Notificada pelo tribunal para esclarecer as suas alegações, abandona esta tese inicial e passa a defender, sem qualquer justificação jurídica, que o passivo reclamado pela sociedade “B... Unipessoal, Lda.” se venceu posteriormente, designadamente em 05/04/2016.
Concluímos, pois, como a decisão recorrida no sentido de que, pese embora a devedora soubesse que os créditos eram os mesmos do processo onde não obteve a exoneração do passivo restante, alegou que assim não era, a fim de obter aquilo que não lhe foi concedido no âmbito do citado processo.
A conclusão final é, portanto, a da improcedência do presente recurso.
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso da Recorrente/Insolvente, confirmando-se a decisão recorrida.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 14 de janeiro de 2025
Lina Baptista
Pinto dos Santos
Artur Dionísio Oliveira
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[1] Doravante apenas designado por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda in Coletânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 276.
[4] In Cadernos de Direito Privado, n.º 35, julho/setembro de 2011, pág. 57-65 e 65-68, em anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 28/09/2010.
[5] In “O procedimento de exoneração do passivo restante – controvérsias jurisprudenciais e alguns casos práticos” in Revista do Direito da Insolvência, n.º 0, pág. 220.
[6] In Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, pág. 660.
[7] Proferido no Processo n.º 327/10.0TBSTS-D.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[8] Proferido no Processo n.º 3546/11.1TBGMR-H.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[9] In “Exoneração do Passivo Restante” in Revista Themis, Edição Especial Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 171, nota 6.