I - A acção de petição de herança envolve os pedidos de reconhecimento da qualidade de herdeiro e a restituição dos bens hereditários.
II - O pedido de reconhecimento da qualidade de herdeiro pode resultar de forma implícita.
III - Para que o unido de facto sobrevivo possa ser encabeçado nos direitos previstos no art.5.º da Lei 7/2001, de 11 de maio, é necessário, também, que o falecido seja titular exclusivo do direito de propriedade sobre o imóvel em que se situava a casa de morada de família e dos bens móveis que integram o respectivo recheio.
IV - Não bastará, por isso, que o unido de facto seja co-herdeiro da herança indivisa em que a casa de morada de família dos unidos de facto se integra.
V - O direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegalmente tem fundamento no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
AA, contribuinte ...41, solteira, maior, com residência na Rua ... - ... ... e BB, contribuinte ...05, casada, com residência na Rua ..., nº 1055- ..., ... ..., instauraram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra CC, residente na Rua ... – ..., Porto,
Formulam[1] os seguintes pedidos:
a) Reconhecimento do respectivo direito de propriedade sobre a fração descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ..., sob o nº ...96..., e inscrita na matriz predial urbana sob o artº ...90..., da freguesia ... e vista a qualidade de únicas e legítimas herdeiras;
b) Condenação da R. a entregar-lhes a fração atrás identificada, com os bens móveis que pertencem à herança dos seus pais nomeadamente desde o casamento dos seus pais e bens próprios do seu pai adquiridos e por serem as suas únicas e legítimas herdeiras;
c) A condenação da R. a pagar-lhes a título de indemnização pelos danos patrimoniais pela ocupação ilícita da fração no valor mensal de €1.000,00 (mil euros), desde a data do início da ocupação da fração, fevereiro do ano de 2023, até à entrega da fração livre de pessoas, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Sumariamente e em síntese, alegam que são as únicas herdeiras por óbito dos seus pais, tendo a mãe falecido em ../../2001 e o pai em ../../2023.
Da herança por óbito dos seus pais e ainda não partilhada, faz parte o imóvel atrás identificado, imóvel que era a casa de morada de família e onde o pai das autoras continuou a residir após o óbito da sua esposa, até à data do óbito do próprio.
Durante o tempo em que habitou no imóvel e após o óbito da mãe das autoras, tiveram conhecimento de que o seu pai teve uma relação com a ré, mas em que cada um tinha uma vida autónoma, partilhando cada um as festas de Natal e Ano Novo e aniversários com as respectivas famílias.
Mais referem que foram muito poucas as vezes que a ré foi a casa da segunda autora e no meio familiar e no grupo de amigos do seu pai, a ré era considerada como uma amiga e não alguém com quem o seu falecido pai vivesse uma relação de união de facto.
Após o óbito do seu pai, a ré não desocupou o imóvel e foi interpelada pelas autoras por diversas vezes para o fazer.
A recusa da ré em desocupar o imóvel e consequente perturbação do direito das autoras aos bens da herança, para além de abusiva, está a causar danos, devendo a ré indemnizar as autoras pelo valor locativo do imóvel, desde a morte do seu pai até efectiva entrega do bem.
Concluem pela procedência da acção.
Devidamente citada a ré apresentou contestação, defendendo-se por excepção, por impugnação e deduzindo pedido reconvencional.
Por excepção alega que, ao contrário do que as autoras sempre se recusaram a aceitar, a ré, desde Setembro de 2002, iniciou uma relação com o falecido pai das autoras, passando desde então a residir com o mesmo no imóvel identificado na petição inicial, como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de vida, leito e habitação, tendo a ré cuidado do seu companheiro até ao óbito do mesmo.
A relação de união de facto era assumida publicamente e conhecida no meio onde residiam, nos cafés e restaurantes que frequentavam e também pelas autoras.
A relação de união de facto está reconhecida pelo documento emitido pela Junta de Freguesia da área onde residiam e após o óbito do seu companheiro a ré passou a auferir a pensão de sobrevivência reconhecida pela lei que regula a União de Facto.
A mesma lei, no seu artigo 5º, confere à ré um direito real de habitação pelo menos durante um período de cinco anos ou, sendo a união de facto superior a esse período, pelo tempo igual ao da duração da união de facto.
Sem prescindir e por mera cautela, no caso de improcedência da excepção, alega que após o óbito do pai das autoras a casa estava a necessitar de obras, que a ré realizou e que são benfeitorias que integram o bem e não podem ser separadas.
Deduz reconvenção peticionado a condenação das autoras no pagamento do valor das benfeitorias realizadas e que quantifica em € 5.000,00 (cinco mil euros).
As autoras apresentaram réplica, respondendo à reconvenção, excepcionando a ilegitimidade processual da ré e a nulidade da reconvenção, por ineptidão. Sem prescindir impugnam toda a factualidade alegada e concluem pela improcedência da reconvenção.
Em requerimento autónomo a R. pronunciou-se em relação às excepções levantadas pelas AA. na réplica, considerando-as totalmente improcedentes.
Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, que julgando improcedentes as exceções levantadas pelas AA na réplica e em face da reconvenção, admitindo esta, fixou o objecto do processo e os temas da prova.
Agendada e realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se a final:
1.º Reconhecer as autoras como únicas e universais herdeiras por óbito de seus pais e que do acervo hereditário dos mesmos faz parte o imóvel identificado no artigo 2º dos factos provados;
2.º Condenar a ré a entregar o imóvel identificado no ponto anterior às autoras, com o recheio pertencente à herança aberta por óbito dos seus pais e os bens próprios do pai das autoras;
3.º Condenar a ré a indemnizar as autoras, pela ocupação da fracção, desde a data do óbito do seu pai até à efectiva entrada do imóvel, pelo valor mensal correspondente ao valor locativo a liquidar em incidente de liquidação nos termos previstos pelo artigo 609º, n.º 2 do C.P.C.
4.º Julgar totalmente o pedido reconvencional absolvendo do mesmo as autoras.
Do assim decidido interpôs a R. recurso de apelação oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. A recorrente viveu em comunhão de vida, mesa e leito, durante mais de 20 anos com DD, dele cuidando, até à morte, o que conduz ao conceito de união de facto (13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º);
B. Sempre viveram no mesmo local, uma casa modesta, na Rua ...);
C. A casa onde moraram era pertença do companheiro da recorrente, que a adquiriu em 1991, no estado de casado em comunhão geral de bens, com a sua falecida mulher (2º e 3º);
D. Aberta a sucessão por óbito da falecida mulher do companheiro da recorrente, à mesma foram chamadas as recorridas e o companheiro da recorrente (1º);
E. A herança da mãe das recorridas não foi objecto de partilha até à data;
F. A recorrente opõem-se ao pedido de entrega do imóvel, considerando ter direito a habita-lo, nos termos previstos no artigo 5º, n.º 1 e 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio, tendo para o efeito pedido o certificado de residência na sua junta de freguesia e comprovando junto da Segurança Social a união de facto o que aliás lhe permitiu receber uma pensão (21);
G. A sentença do tribunal a quo considerou que a proteção jurídica conferida pelo artigo 5º, n.s 1 e 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio, não se aplica, apesar da recorrente e do seu companheiro terem vivido em situação análoga à dos cônjuges, porque, a casa que este comprou, e onde viveram ambos, era também, pertencente à herança aberta por óbito da sua falecida mulher.
H. Considera o tribunal a quo, mal, que o imóvel onde viveram a recorrida e o seu companheiro durante mais de 20 anos era património de uma herança e que as recorridas, o que pretendiam era deduzir uma petição à herança, para a ela fazerem regressar o imóvel, concluindo que “Os direitos reais de propriedade e compropriedade não se confundem com o direito do herdeiro à herança, nem com o direito do cônjuge meeiro”;
I. A questão em causa, é pois, saber se o direito que o companheiro da recorrente tinha, à data da sua morte, sobre o imóvel em causa, permite ou não a aplicação do disposto no artigo 5º, n.º 1 e 2 da Lei 7/2001, isto é a atribuição do direito real de habitação como proteção da união de facto.
J. Há uma diferença entre a qualidade de herdeiro - aquele que sucede nas relações patrimoniais do de cujus e o cônjuge meeiro - aquele que tem a propriedade de metade do património comum do dissolvido casal;
K. O direito que aqui está em causa e sobre o qual se consolidou o direito real de habitação, é o direito de propriedade do companheiro da recorrente, que só agora pertence à sua herança.
L. A recorrente nunca pôs em causa, nem a qualidade de sucessoras das recorridas, nem o seu direito de propriedade sobre o imóvel, que advém do facto de serem herdeiras universais dos seus pais, tenham ou não partilhado as heranças.
M. Em causa a aplicação das normas dos artigos 1688º, 1689º, n.º 1 e artigo 5º, n. 1 e 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio, entre outros.
N. Considerou a sentença recorrida que a recorrente não era possuidora “nem de boa nem de má fé” porém e mais uma vez discordamos do entendimento. De facto a recorrente agiu no exercício de um direito, o de possuidora do direito real de habitação consagrado para proteção dos unidos de facto, uma vez dissolvida a relação e verificados os pressupostos de que a mesma depende.
O. Não há pois qualquer ilicitude na conduta da recorrente nem culpa, pelo que não se verificam os pressupostos da responsabilidade que conduzem à condenação em indemnização.
P. Assim, mais uma vez, a sentença peca no que concerne à aplicação do direito, desta, a norma do artigo 483º do CC e mais uma vez do regime jurídico previsto no artigo 5º da Lei 7/2001.
Q. A convicção da recorrente, o título sob a égide do qual ela possui e os actos que demonstram tal intenção e que resultam amplamente da matéria provada, só podem conduzir à responsabilização das recorridas no pagamento das benfeitorias, em caso de procedência da ação e à procedência do pedido reconvencional.
R. Em causa as normas dos artigos 1251º e ss, conjugados com o artigo 5º, n.º 1 e 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II.
O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
1.ºAs autoras são as únicas e universais herdeiras por decesso dos seus pais, EE, cujo óbito ocorreu a 4 de julho do ano de 2001 e de DD, cujo óbito ocorreu em 16 de fevereiro do ano de 2023. Os pais das autoras casaram sob o regime da comunhão geral de bens. (habilitações de herdeiros juntas com a PI como documentos n.ºs 1 e 2)
2.º Do acervo patrimonial por decesso dos pais das autoras faz parte o imóvel constituído por uma fração autónoma no rés-do-chão direito, destinada habitação, do prédio constituído em propriedade horizontal, sita na Rua ... – Porto, fração descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ..., sob o nº ...96... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...90..., da freguesia ... (certidão predial junta como documento n.º 3)
3º Pela Ap. ...2 de 1991-03-04 foi registada a aquisição do direito de propriedade em favor dos pais da autora, por compra. (certidão predial junta como documento n.º 3)
4.º À data do decesso da mãe das autoras, ficou acordado entre o pai e as autoras que não iam requerer a partilha por decesso da mãe, permanecendo o pai a habitar a casa, sendo também herdeiro e meeiro, tendo o pai das autoras residido na fracção até ao seu óbito;
5º O pai das autoras durante a sua vida, após a morte da sua esposa, teve um relacionamento com a ré;
6.º No entanto, a maioria das festas de aniversário, de Natal e passagem do ano novo, eram frequentadas com as famílias de cada um.
7.º Após a morte do pai das autoras a ré permaneceu a habitar a fração identificada, contra a vontade das autoras, que se opõem a esse facto;
8º Após o óbito do pai das autoras, a ré realizou obras na fracção de alteração, sem pedir consentimento às autoras;
9.º No interior da fracção mantêm-se bens que pertenciam ao casal constituído pelos pais das autoras;
10.º A ré sabia que a fracção tinha sido adquirida pelos pais das autoras;
11º As autoras solicitaram à ré, após a morte do seu pai, que entregasse a fracção, o que a ré não fez;
12º O imóvel tem um valor locativo não concretamente apurado e um valor de venda não concretamente apurado;
13º. O relacionamento do pai das autoras com a ré, já no estado de viúvo, iniciou-se em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde ../../2003 que a ré passou a residir com o pai das autoras na fracção identificada no ponto 2º.
14º. A ré, do estado de divorciada, vivou com o pai das autoras na fracção, desde a data referida no ponto anterior, até à data do óbito do mesmo, em ../../2023, mantendo-se depois a habitar o mesmo local.
15º. Durante esse período temporal a ré e o pai das autoras viveram como se de marido e mulher se tratassem, partilhando a mesma cama, mesa e habitação;
16.º A ré não trabalhava e dedicava-se ao serviço doméstico, cuidava do pai das autoras, acompanhava-o, frequentemente almoçavam juntos e frequentavam juntos locais públicos;
17º. Em 2011 o pai das autoras adoeceu, teve um cancro oral que voltou em 2021, de forma mais grave, conduzindo posterior ao seu óbito.
18º. A R. cuidou do pai das autoras, executou as tarefas domésticas e preparava as refeições, tendo também passado a fazer as compras para a casa, quando a situação clínica do pai das autoras se agravou;
19º Acompanhava o seu companheiro nas consultas médicas e nos internamentos.
20º. Em 2021 a ré e o pai das autoras passaram a véspera de Natal em casa da segunda autora e família, a pedido desta, porque é médica e estávamos em plena pandemia;
21. Após o óbito, a ré comprovou junto do Instituto da Segurança Social a relação de união de facto, entregando o atestado da Junta de Freguesia da área de residência, junto como doc. 8 e passou a receber a pensão de reforma prevista pelo artigo 6º n.º 1 da Lei 7/2001.
22º. A ré desde que passou a viver em casa do pai das autoras nunca teve qualquer outra residência e não tem outros imóveis;
23º. Após o óbito do pai das autoras a ré realizou obras no imóvel;
24º. Substituiu janelas, algumas tinham vidros partidos, tábuas em mau estado e estavam empenadas, não se conseguiam abrir;
25º. Pintou paredes e tectos que estavam cheios de humidade e bolor;
26º. Substituiu os equipamentos de casa de banho, que estavam degradados e avariados;
27º. Nas obras a ré gastou um valor não concretamente determinado, sendo possível quantificar apenas as quantias indicadas nos documentos com os n.ºs 28 e 29 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;
28.º As obras realizadas incorporam-se na fracção;
29.º A ré não deu conhecimento prévio às autoras das obras que fez, nem lhes pediu autorização.
6.º (..) que as autoras e o seu pai tivessem acordado que não permitiam que terceiros habitasse a casa.
7.º[2]
12.º (…) que cada um fazia a sua vida autónoma;
29.º: (…) o valor locativo do imóvel correspondia a mil euros por mês e um valor de venda de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros)
Contestação/reconvenção:
8.º: (…) a ré tenha deixado de trabalhar por imposição do pai das autoras;
15º. As AA visitavam o pai de tempos a tempos, a filha mais velha menos frequentemente.
16. A R chegou a ligar à 2ª A para que esta fosse visitar o pai, preocupavam-na o sofrimento que a ausência provocava no companheiro.
21. À excepção de uma verba de 100 euros que o companheiro da R lhe entregava mensalmente nos últimos anos, para ajudar nas despesas pessoais desta e deste pagar as compras de supermercado, a R nunca recebeu mais nada do seu companheiro de vida com quem viveu mais de 20 anos.
38.º Provado apenas o que consta no ponto 27º dos factos provados.
Réplica:
17º:
III.
É consabido que resulta dos arts.635º, n.ºs3 a 5 e 639º, n.ºs1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[3], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar as seguintes questões:
a) - assiste à R. o direito real de habitação e uso do respectivo recheio decorrente do art.5 da Lei 7/2001, de 11 de Maio em relação à fração identificada atrás?
b) - assiste-lhe o direito a receber das AA., na qualidade de únicas proprietárias da fracção, o que despendeu em obras e arranjos?
c) - estão observados os requisitos que justifiquem que a R. suporte o pagamento do que em sede de execução e sentença se liquidar a título de valor pela ocupação do imóvel desde o decesso do seu companheiro, pai das AA., até à entrega efectiva?
1ª nota prévia.
Temos como intocada por não ter sido impugnada e não se antolhar qualquer motivo para que, oficiosamente, se altere a mesma, a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo.
Certo que, na motivação, num primeiro momento, se abalança em afirmação que indicaria a vontade de impugnar o facto 4º, afirmando-se que o seu assentamento surge sem prova.
Não obstante, logo a seguir, afirma-se que não se apresentará alegações sobre essa matéria de facto, sendo as conclusões, a propósito dessa eventual vontade de impugnar, completamente omissas[4], assim se desobrigando esta Relação de a propósito decidir.
De todo o modo, sempre se dirá que não se observa na motivação, e como exigência para que se releve a impugnação da matéria de facto, de alguns aspectos enunciados no art. 640.º do CPC.
Dispõe o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
(1)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
(2)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);
(3)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
(4) Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Resulta, pois, de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, tratando-se de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
A R. nada observou a propósito.
Por conseguinte, ainda que resultasse expressa a vontade de impugnar o assentamento do facto 4º, ainda que tal constasse igualmente das conclusões, em face da inobservância do referido, sempre estaria este Tribunal desobrigado de conhecer tal matéria.
Em face do exposto, por não se ter impugnado a matéria de facto, ao abrigo do art. 663.º, nº6 do CPC, releva-se a matéria de facto decidida pelo Tribunal a quo.
2ª nota prévia.
A acção, a que diz respeito este recurso, foi conformada como a acção de reivindicação.
Entendeu o Tribunal a quo, bem, que nada obstava a que se relevasse a mesma como acção de petição de herança, tendo por referência o «fim pretendido» pelas autoras e a viabilizada qualificação jurídica do pedido.
Visitamos esta questão e como questão prévia, porque a R., não sendo clara, parece não concordar com tal interpretação.
Não obstante, é correcta.
Sabemos que o pedido é o efeito jurídico pretendido[5].
Esse efeito jurídico traduz-se, ao fim ao cabo, na afirmação do efeito jurídico substantivo potenciado pela estatuição da norma aplicável ao caso singular. Consiste, portanto, na afirmação, feita pelo peticionante, de pretender um certo aproveitamento prático, concreto, a coberto de uma determinada posição juridicamente tutelada
Todavia, e no que concerne a este efeito jurídico pretendido, suscita-se a questão de saber qual o critério para a sua aferição.
O tribunal deve ater-se ao efeito tal qual vem qualificado juridicamente pelo peticionante, ou, pelo contrário, deverá atender ao efeito empírico pretendido? Na interpretação do pedido, o tribunal deverá cingir-se à qualificação jurídica do autor ou apelar ao fim prático visado, convolando, se necessário, essa qualificação?
Como refere o Prof. Anselmo de Castro, “o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendam alcançar”, pertencendo ao juiz a respectiva “qualificação jurídica (...) que a fará com plena liberdade, adoptando ou rejeitando a qualificação jurídica fornecida pelas partes”[6]
O julgador deve “descortinar o sentido efectivo do pedido, socorrendo-se para tanto de todos os elementos vertidos na petição inicial”, desde que o seu alcance assim obtido tenha um mínimo de correspondência verbal, não se bastando, por conseguinte, com os seus dizeres expressos, e por outro lado, desde que, evidentemente, esse sentido tenha sido perfeitamente entendido e compreendido pelos Réus, de modo a possibilitar-lhes defesa plena e eficiente.[7]
O Tribunal a quo, correctamente, perscrutando que da petição resultava a alegação, não propriamente da propriedade da fração de que fossem as autoras titulares, mas do direito que sobre ela tinham face à respectiva qualidade de herdeiras de seus pais (estes sim, proprietários do imóvel e seu recheio), convolou o pedido típico de uma acção de reivindicação para um pedido típico de uma acção de petição de herança.
É disso que de facto se trata por resultar da peça inicial, e confirmou-se após assentamento dos factos, que as autoras, na qualidade de únicas, legítimas e universais herdeiras dos seus pais, possuem apenas um direito à herança, ou seja, a certa universalidade de bens, um direito à herança por elas aceites mas não partilhada, e de cujo acervo pertence a fração.
Mas vejamos.
Nos termos do n.º 1 do art. 2075.º do C.C., “o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”, assim se definindo a denominada acção de petição de herança.
O direito de petição de herança é a faculdade que o herdeiro tem de pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles contra quem a está a possuir. A petição de herança tem cabimento, pois, sempre que alguém pretende ser reconhecido como herdeiro e a esse título reclama a entrega de bens.
Mas continuando.
Cunha Gonçalves, no domínio do Código Civil de Seabra, ao tratar da natureza da acção de petição de herança, opinava que a mesma era mista: “(…) a acção é pessoal quanto ao reconhecimento da qualidade de herdeiro; é real quanto à entrega do quinhão da herança pertencente a esse herdeiro.” [8]
No mesmo sentido se exprimiu Inocêncio Galvão Teles ao referir que “o autor formula dois pedidos. Pede em primeiro lugar que seja declarado herdeiro do falecido; e pede em segundo lugar que o réu seja condenado a entregar-lhe os bens da herança em seu poder. Através do primeiro pedido, o autor visa fazer valer uma qualidade pessoal, um status, o título de herdeiro: pretende que essa sua qualidade seja reconhecida ou certificada pelo tribunal. Através do segundo pedido, visa fazer valer direitos patrimoniais, de que a referida qualidade é pressuposto, solicitando a condenação do réu no cumprimento do dever de lhe fazer entrega dos bens hereditários que possui. (…) Neste segundo aspecto, a petição de herança cifra-se numa reivindicação tendente a fazer valer o direito de propriedade sobre os bens ou, mais concretamente, uma pretensão real, a obrigação, para o possuidor, de os restituir”[9]
Desta forma, a causa de pedir desta acção é complexa, na medida em que, englobando a alegação da sucessão “mortis causa” como facto essencial, impõe-se ainda, a quem dela lança mão, a alegação de factos típicos de uma acção de reivindicação[10], atenta a sua afinidade com esta, muito embora não se confunda com ela[11].
Na verdade, ao pedir-se a restituição dos bens está-se a pressupor que seja reconhecido que os mesmos pertencem à herança por terem pertencido ao autor da sucessão.
No caso em apreço, se analisarmos o conteúdo da petição, facilmente se alcança a invocação pelas autoras da respectiva qualidade de herdeiras de seus pais, nessa medida, da titularidade da herança por eles deixada.
Do próprio pedido resulta também isso mesmo, resulta, digamos, implícita[12], apesar da errada formatação do mesmo quando se pede o reconhecimento da propriedade da fracção (e acervo).
Veja-se o pedido:
a) Reconhecer o direito de propriedade das AA da fração identificada no artº 4º desta peça, que faz parte do acervo patrimonial da herança dos seus pais, sendo aa A.A. as únicas herdeiras e legitimas para defender a posse e a propriedade;
b) Entregar a fração identificada no artº 4º deste articulado, com os bens móveis que pertence à herança dos seus pais nomeadamente desde o casamento dos seus pais e bens próprios do seu pai adquiridos;
(…)
É, pois, legal, a convolação do pedido feita pelo Tribunal a quo, que se louva, e por as AA. terem classificado, e tão só por isso, a presente acção como de reivindicação:
AÇÃO DECLARATIVA SOB A FORMA DE PROCESSO COMUM DE REIVINDICAÇÃO DA FRAÇÃO AUTÓNOMA
Legal também porque estamos, em ambas as situações, na acção de petição de herança e na de reivindicação, perante o mesmo tipo de processo: processo comum de declaração.
Isto posto, abalancemo-nos para a apreciação do objecto do recurso propriamente dito.
Começando pela primeira questão (a), abrangendo as conclusões de A) a M).
Foi pelo Tribunal a quo decidido que à R. não assiste qualquer direito real de habitação sobre a fracção em disputa (e uso do respectivo recheio), incluída que está no acervo da herança deixada pelos pais da AA., e não obstante ter sido reconhecido que, com DD, pai daquelas, vivia em união de facto, reconhecimento este ao abrigo da Lei 7/2001, de 11 de Maio, lei que adopta medidas de protecção das uniões de facto[13].
E para assim decidir laborou na natureza jurídica da herança: fazendo a fracção parte da herança da mãe das AA., de que eram herdeiras conjuntamente com o pai, este também titular de meação da propriedade conjugal que possuía com a sua esposa falecida, concluiu que, em rigor, à data do seu falecimento não era o companheiro da R. titular de qualquer direito de propriedade ou compropriedade em relação à fração, de resto também em relação ao que nela se deixou como recheio.
E se assim se laborou, fê-lo o tribunal a quo com rigor por a LUnFac exigir, expressamente, nos termos do seu art.5.º, n.º1, que o falecido, membro da união de facto, seja proprietário da casa de morada de família à data do seu decesso: «Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.»[14]
Convoquem-se os seguintes factos assentes:
1.ºAs autoras são as únicas e universais herdeiras por decesso dos seus pais, EE, cujo óbito ocorreu a 4 de julho do ano de 2001 e de DD, cujo óbito ocorreu em 16 de fevereiro do ano de 2023. Os pais das autoras casaram sob o regime da comunhão geral de bens. (habilitações de herdeiros juntas com a PI como documentos n.ºs 1 e 2)
2.º Do acervo patrimonial por decesso dos pais das autoras faz parte o imóvel constituído por uma fração autónoma no rés-do-chão direito, destinada habitação, do prédio constituído em propriedade horizontal, sita na Rua ... – Porto, fração descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ..., sob o nº ...96... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...90..., da freguesia ... (certidão predial junta como documento n.º 3)
3º Pela Ap. ...2 de 1991-03-04 foi registada a aquisição do direito de propriedade em favor dos pais das autoras, por compra. (certidão predial junta como documento n.º 3)
4.º À data do decesso da mãe das autoras, ficou acordado entre o pai e as autoras que não iam requerer a partilha por decesso da mãe, permanecendo o pai a habitar a casa, sendo também herdeiro e meeiro, tendo o pai sas autoras residido na fracção até ao seu óbito;
(…)
9.º No interior da fracção mantêm-se bens que pertenciam ao casal constituído pelos pais das autoras.
(…)
Em face destes factos não há, nem pode haver, dúvidas que o pai das autoras[15], DD, com quem a R. vivia reconhecidamente em união de facto, tendo sido proprietário (propriedade conjugal[16]) conjuntamente com a sua falecida esposa, EE, da fracção em causa[17], com a morte desta ocorrida em 2001, e por se manter por partilhar a herança por ela deixada, passou o imóvel a pertencer à herança por si deixada, e assim se mantendo.
Sobre essa herança, por não partilhada[18] até à morte de DD, companheiro da R. e pai das AA, tinham estas e aquele, um direito que não se confunde com o direito de propriedade ou compropriedade sobre os elementos que compõem o seu acervo.
Como correctamente se refere na sentença posta em crise, com citação de doutrina pertinente, os direitos reais de propriedade e compropriedade não se confundem com o direito à herança, igualmente com outro elemento que sempre teria de entrar na aritmética da partilha se a mesma tivesse ocorrido: a circunstância de DD ser igualmente meeiro no património conjugal que, após a morte de EE, passou a constituir o acervo hereditário.
«É sabido, que a morte de uma pessoa física produz diversas consequências jurídicas que carecem de resolução (…) – o que tem lugar através do fenómeno sucessório.
Com efeito, em consonância com o que se dispõe no art. 2024º do Código Civil, através da sucessão, as situações jurídicas patrimoniais (ativas e passivas) que compunham a esfera jurídica do falecido no momento do seu óbito serão transmitidas aos seus sucessores, caso estes aceitem a herança.
O fenómeno sucessório assume, pois, uma função simultaneamente individual e coletiva – ao proteger a propriedade privada, ampara também os direitos dos credores do falecido oferecendo-lhes, tanto quanto possível, a mesma garantia patrimonial que tinham anteriormente.
Este objetivo, tal como enfatiza OLIVEIRA ASCENSÃO, In Direito Civil. Sucessões, 5ª edição, págs. 402 e seguinte, é alcançado pelo “ingresso do herdeiro na posição jurídica do de cuius”, sendo a herança constituída pelas situações jurídicas de natureza patrimonial que se encontravam na titularidade do falecido no momento da morte e não devam extinguir-se por efeito desta (cfr. arts. 2024º e 2025º).
A herança identifica-se, por conseguinte, com a noção de património global (rectius, de património coletivo), já que entre nós se admite a sucessibilidade não apenas dos bens, mas das situações jurídicas patrimoniais ativas e passivas que compunham a esfera patrimonial do falecido aquando da sua morte.»[19]
Por seu turno, do art. 2032.º do CC retira-se que com a abertura da sucessão verifica-se uma perda relativa das relações jurídicas de que era sujeito o de cujus, sendo chamado a ela aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis.
A herança, aceite, apenas deixa de ter autonomia quando partilhada.
Nesse momento os herdeiros chamados, em função da partilha, passarão a deter direito concretos, nomeadamente de propriedade ou compropriedade, sobre cada elemento que componha a herança.
Só com a «(…) «aquisição» é que se encerra o fenómeno sucessório como tal (…), decorrendo «um período (…) até a definitiva confusão dos bens no património do herdeiro ou herdeiros.
Nesta fase manifesta-se, no aspecto subjectivo, a qualidade de herdeiro adquirida por uma ou mais pessoas, e, no aspecto objectivo, uma vida própria da herança, mesmo dentro da esfera jurídica do sucessor – (vide Oliveira Ascensão, obra citada, pag.435)»[20]
Temos para nós, pois, indubitável, que o companheiro da R., pai das AA., desde a morte da sua esposa em 2001, e até ao seu decesso, não era, pois, proprietário ou comproprietário da fracção, bem como do seu recheio enquanto acervo da herança deixada pela EE.
Apenas era titular de um direito a exigir a partilha dos bens integrantes do património hereditário.
A LUnFac, no seu art.º 5. n.º1, de forma indiscutível, garante ao unido de facto sobrevivo o direito real de habitação e uso do recheio[21]/[22] tão só e apenas se o falecido unido de facto tiver sido proprietário da casa de morada de família de ambos.[23]
Refere Rosana Martingo Cruz que «os efeitos sucessórios da união de facto são muito limitados quando comparados ao casamento. Ao contrário do cônjuge, o unido de facto não é herdeiro legal – cfr. arts.2133.º e 2157.º do Código Civil. O cônjuge sobrevivo terá ainda direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respectivo recheio, nos termos previstos no art.2103.º-A.
Não existindo paralelo nesta matéria entre casamento e a união de facto, tal não significa que exista alguma preocupação legislativa com o unido de facto sobrevivo. O legislador entendeu que a comunhão de vida entre as partes motivava uma protecção do espaço comum que partilhavam. Daí que o art. 5.º da lei 7/2001, de 11 de maio, proteja a casa de morada de família em caso de morte do unido de facto proprietário ou comproprietário da mesma[24]
Guilherme de Oliveira, entre aspas, fala em «casa própria», ou seja, para «bom entendedor», proprietário exclusivo da casa: «Tratando-se de «casa própria», a LUnFac concede ao sobrevivo o direito real de habitação da casa de morada da família pelo prazo de cinco anos (arts.3.º, al.a), e 5.º, nº1), ainda que ao falecido sobrevivam descendentes com menos de um ano ou que com ele vivam há mais de um ano e pretendam continuar a viver na casa, ou ainda que haja disposição testamentária em contrário.» [25]
Rute Teixeira Pedro refere «(…) que para que o unido de facto sobrevivo possa ser encabeçado nos direitos referidos, é necessário, também, que o falecido fosse titular exclusivo do direito de propriedade sobre o imóvel em que se situava a casa de morada de família e do bens móveis que integram o respectivo recheio», referindo ainda, expressamente e em nota de roda pé, que «[n]ão bastará, por isso, para o reconhecimento dos direitos previstos no art.5.º da Lei 7/2001, de 11 de maio na versão vigente, que o unido de facto seja co-herdeiro da herança indivisa em que a casa de morada de família dos unidos de facto se integra. Como sabemos, o herdeiro de herança não partilhada é apenas titular de um direito a exigir a partilha dos bens integrantes do património hereditário e de, consequentemente, obter o preenchimento do respectivo quinhão hereditário através da adjudicação de bens da herança, ou do valor pecuniário correspondente à sua quota. Nesse sentido se pronunciou, o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 12 de maio de 2015 (in www.dgsi.pt), a propósito da protecção que era prevista no nº1 do art.4.º da redacção original da Lei 7/2001, de 11 de maio.»[26]
Pelo exposto, decidiu bem quanto ao segmento em causa o tribunal a quo, por isso, nesta parte, se devendo manter a decisão.
Não assiste à R. quaisquer dos direitos referidos no art. 5.º, n.º1, da LUnFac, ou seja, o direito real de habitação sobre a fracção em disputa e o direito de uso do respectivo recheio.
Volvendo-nos ao que se verteu nas conclusões N a P, correspondendo à questão c).
Insurge-se a R. contra a decisão por a ter condenado a indemnizar as autoras, pela ocupação da fracção, desde a data do óbito do seu pai até à efectiva entrega do imóvel, pelo valor mensal correspondente ao valor locativo a liquidar em incidente de liquidação nos termos previstos pelo artigo 609º, n.º 2 do C.P.C.
Do recurso resulta surgir esta pretensão no pressuposto de se ver reconhecido à R os direitos que lhe foram negados pelo tribunal a quo.
É o que se topa do seguinte segmento da motivação: «(…) A recorrente agiu no campo do direito de proteção da norma do artigo 5º da Lei 7/2001, que aliás determina a sua aplicação sem necessidade de qualquer reconhecimento judicial. Qualquer sentença que se oponha a este direito, justificando outra solução, constituirá uma realidade jurídica nova, que não permitirá responsabilizar a recorrente, por falta de culpa e de facto ilícito (…).»
Tais direitos, o direito real de habitação sobre a fracção em disputa e o direito de uso do respectivo recheio, foram correctamente negados à recorrente
Assim, refirmada que está a ilegalidade da ocupação da fracção pela R, fica prejudicado o conhecimento deste segmento do recurso[27], confirmando-se também nesta parte a decisão.
De todo modo dizer que, não fosse ajustado o instituto da responsabilidade civil extracontratual previsto no art.483.º do CC, porque, por exemplo, não se apurou prejuízo susceptível de fundar a obrigação de indemnizar, sempre se imporia a responsabilização da R. pelo pagamento do que foi reclamado e em face da ocupação, ilegal, do espaço das AA.
Funcionaria sempre, subsidiariamente como deve funcionar, o instituto do enriquecimento sem causa.
Transcreve-se o Ac. do STJ de 3 de maio de 2019[28]/[29] e face à sua ajustada pertinência ao caso: «[p]artilhamos o entendimento daqueles que defendem que o direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegitimamente pode encontrar respaldo no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.
No caso, impondo-se a este tribunal acatar o concluído pela 1ª instância quanto à inexistência de prejuízo susceptível de fundar a obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil, não fica excluída a possibilidade de a situação assumir cabimento no instituto do enriquecimento sem causa desde que verificados os respectivos pressupostos.
O enriquecimento sem causa, enquanto fonte autónoma de obrigações, encontra-se previsto no artigo 473, n.º1, do Código Civil, onde se dispõe: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
De acordo com o referido preceito, constituem pressupostos (cumulativos) do instituto: existência de um enriquecimento; que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem; ausência de causa justificativa.
O enriquecimento traduz-se na vantagem ou valorização de ordem patrimonial, podendo ser alcançado por várias formas (aumento do activo, diminuição do passivo, poupança de despesas).
Quanto à ausência de causa justificativa, não definindo a lei o conceito de causa do enriquecimento, há que ter em conta o estatuído no n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil, segundo o qual “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
Embora tendo presente que a noção de causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte, é possível formular uma linha directriz quanto à noção de enriquecimento injusto. Assim e conforme refere Antunes Varela, o enriquecimento é injusto porque, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro.
É sobre o autor que impende o ónus de alegar e demonstrar a falta de causa do enriquecimento enquanto requisito do direito à restituição, não bastando para o efeito que se não prove a existência de uma causa de atribuição patrimonial.
Se a delimitação dos conceitos de enriquecimento e de ausência de causa justificativa não tem suscitado especial controvérsia na doutrina e na jurisprudência, a determinação do sentido de obtenção do enriquecimento à custa de outrem, entendido enquanto exigência de empobrecimento, não é pacífica.
Independentemente das concepções doutrinais que pretendem explicar o instituto em referência, é possível afirmar que, tradicionalmente, o empobrecimento como requisito do enriquecimento sem causa é identificado com o conceito de diminuição patrimonial (dano em sentido próprio).
Nesta concepção, o enriquecimento de alguém era causal de uma desvantagem patrimonial de outrem, pelo que se impunha a demonstração da deslocação patrimonial, ou seja, a exigência da prova da efectiva diminuição patrimonial como elemento indispensável da obrigação de restituição.
Nas situações de uso e fruição de bens alheios o entendimento da deslocação patrimonial em sentido estrito reconduzindo, na prática, à inaplicabilidade do instituto, passou a ser entendido com um alcance paralelo ao do lucro cessante exigindo-se, como requisito da obrigação de restituição, a verificação de uma “ausência de ganho” na esfera do empobrecido.
Ainda assim tal concepção era limitativa pois que não poderia abranger todas as situações que urgia contemplar, designadamente as denominadas de enriquecimento por intervenção e enriquecimento por prestação, sendo que, ao socorrer-se da noção de dano (na modalidade de lucro cessante) do domínio da responsabilidade civil, determinava o esvaziamento do conteúdo do instituto, desvirtuando a sua própria função.
A evolução da doutrina e da jurisprudência apontaram, por isso e necessariamente, para a omissão do dano do âmbito do enriquecimento sem causa na medida em que a sua finalidade tem por relevo central reprimir o enriquecimento injustificado e não o de compensar danos sofridos.
Assim, o requisito legal à custa de outrem não pode assumir o conceito de diminuição patrimonial, ainda que sob a forma de lucro cessante, enquanto exigência de um empobrecimento causal ao enriquecimento, antes deverá ser definido, conforme refere Menezes Leitão, como a imputação do enriquecimento à esfera de outra pessoa, sendo essa imputação que justifica que alguém tenha de restituir o enriquecimento que se gerou no seu património.
Uma vez que tal imputação pode resultar de diversas formas, não está em causa um conceito unitário, tendo configuração e relevância diversas nas várias categorias de enriquecimento sem causa, podendo mesmo ser dispensado no enriquecimento por prestação (...) não se podendo continuar a apresentá-lo como um pressuposto unitário deste instituto (...) o que leva a reconhecer que é precisamente o conceito de enriquecimento o facto aglutinador deste instituto.
Nesta mesma linha de pensamento se insere o entendimento defendido por Antunes Varela ao reportar-se às situações de uso e fruição de direitos reais, designadamente ao caso de permanência ilegítima em casa alheia, levando-o a concluir que tudo quanto estes bens sejam capazes de render ou produzir pertence, em princípio (...) ao respectivo titular. A pessoa que, intrometendo-se nos bens jurídicos alheios, consegue vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular do respectivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos donde a vantagem procede].
Por conseguinte, há que interpretar o conceito legal enriquecimento à custa de outrem com o alcance de vantagem patrimonial (reservada ao titular do direito segundo o conteúdo da destinação desse direito) obtida com meios ou instrumentos pertencentes a outrem.»
Independentemente da designação que se dê às situações de enriquecimento em que não ocorre deslocação patrimonial, é esta modalidade de enriquecimento sem causa explicada por Júlio Gomes pela teoria do conteúdo da destinação[30], «segundo a qual os direitos absolutos, máxime os reais, definem um círculo de utilidades que cabem exclusivamente aos respetivo titular e do qual são excluídos todos os outros sujeitos; porque as vantagens decorrentes do exercício desses direito estão destinadas ao titular dele, se outrem se aproveita delas, fá-lo à custa daquele e tem de restituir-lhe aquilo com que enriqueceu com o seu ato ou atuação.»[31]
É, pois, patente, o ajuste do conteúdo do excerto do acórdão que atrás reproduziu, ao caso concreto, igualmente na conclusão a que chega no caso em que se debruçou.
Com ele diremos:
«Na situação dos autos, na sequência do concluído, a ocupação do imóvel pela Ré mostra-se ilegítima, pelo menos desde (…), sendo que a utilização não autorizada e gratuita que a mesma dele faz consubstancia uma vantagem patrimonial, ainda que sob a forma de poupança de despesa, com expressão económica demonstrada nos autos (valor locativo do imóvel (….)).
Encontra-se, pois, provado o enriquecimento da Ré.»
No que se refere ao requisito do enriquecimento à custa de outrem, sabendo-se que o seu alcance não se identifica necessariamente com a noção de empobrecimento, no sentido de desvantagem patrimonial há também que concluir pela sua verificação.
Com efeito, na sequência do posicionamento assumido no que se reporta à interpretação do conceito legal à custa de outrem, estando em causa a utilização de um bem alheio, propriedade dos Autores AA e CC, não obstante não ter sido apurada nos autos uma diminuição do património destes ou mesmo uma privação de aumento do respectivo património através da rentabilização do imóvel em causa, há que considerar que a vantagem patrimonial da Ré foi obtida à custa do proprietário do imóvel, neste caso, dos referidos Autores.
Conclui-se, pois, que ocorreu por parte da Ré uma vantagem patrimonial (decorrente do uso e fruição do imóvel que, segundo o conteúdo da destinação do direito de propriedade, estava reservada aos Autores proprietários do imóvel) obtida com meios ou instrumentos pertencentes a outrem, ou seja, à custa destes.
Tal vantagem patrimonial decorrente do uso feito pela Ré tem expressão pecuniária tendo em conta o valor locativo (..).
Em face do exposto, por um ou outro fundamento, responsabilidade civil extracontratual ou enriquecimento sem causa, sempre a R. teria de ser condenada nos termos em que foi.
Confirma-se, por conseguinte, a sentença também no segmento acabado de se analisar.
Sobeja a análise de uma última questão (b), a que dizem respeito as conclusões Q e R, correspondendo ao pedido reconvencional deduzido pela R.
Nesta questão, a R.., se na motivação se faz uma residual referência[32] ao enriquecimento sem causa como instituto que, a sua óptica, sempre justificaria a condenação das AA no pagamento do que despendeu em arranjos em casa alheia, na conformação das conclusões ignora de todo este instituto.
Não nos sentimos, pois, vinculados a sindicar nesta parte os argumentos produzidos pelo Tribunal a quo.
De todo o modo, e porque já deixámos a propósito da questão anterior escalpelizado o instituto, importa tão só dizer que, desde logo não resulta provado que a casa das AA., com o que foi feito pela R, de resto alegado de forma muito vaga[33], assim trazido para os factos, ficou valorizada, e com isso enriqueceu o património das AA.
De facto, com o que está provado, ou seja, a substituição de janelas, equipamentos de casa de banho e pinturas, vago como se disse, fica-se sem saber se, na verdade, se verificou com elas alguma valorização do imóvel, desta sorte o enriquecimento da AA.
Refere-se que foram pintadas paredes que estavam cheias de humidade: estará eliminada a causa da humidade[34] ou a inovação de nada servirá porque tal causa se mantém?
Não sabemos, e à R. cabia alegá-lo e prová-lo. – art.342.º nº1 do CC.
As janelas, essa questão tão delicada no contexto da recuperação de imóveis, nomeadamente os mais antigos, especialmente em contexto de centro histórico das cidades.
Quantas janelas e quais foram arranjadas, de que arranjo se tratou, resultou algum acréscimo estético com valorização da fracção ou depreciou-a?
É que, de facto, um arranjo pode não significar uma valorização, pelo contrário, como nos diz a experiência, muitas vezes deprecia o imóvel.
Veja-se a troca de janelas de madeira por alumínio (solução muito mais barata, ainda que com corte térmico): pode corresponder a acto a que ulteriormente imporá a necessidade da retirada da inovação, quer por exigência das regras do urbanismo – apertadas em certos contextos -, quer porque os donos do imóvel podem não apreciar a inovação por falta de harmonia com o demais.
Ou seja, está por apurar desde logo que as AA tenham enriquecido com as obras realizadas pela R.
Pode, de resto, inclusivamente, até ter acontecido que tenham empobrecido por terem de alterar (veja-se o caso das janelas) o que pela R. foi feito.
«O enriquecimento sem causa é fonte de obrigação porque o enriquecido fica obrigado a entregar ao outro sujeito o valor do benefício alcançado. (…) O enriquecimento representa uma vantagem patrimonial.»[35]
Não se provando o enriquecimento das AA, falha o primeiro dos requisitos atrás enunciado do instituto em causa[36].
Afastada qualquer censura à decisão nesta parte, importa conhecer do que de facto se levou, a propósito, às conclusões.
Não obstante dizer que se trata de questão nova que nunca foi alegada na acção, nunca se invocou na contestação/reconvenção factualidade ou argumento jurídico que sustentasse o que ora se invoca sem sede de recurso.
Apenas surge porque o Tribunal se abalançou na sua análise para, assim, a afastar como fundamento da pretensão indemnizatória da R..
Estaríamos, pois, também aqui, desonerados de analisar a questão, nova.
Não obstante ….
Apoia-se a R., na motivação do seu recurso, assim o concentrando nas conclusões, na sua alegada posse, justificativa na sua óptica, e à luz dos arts.1251.º e ss. do CC (como conclui), para ver reconhecido o direito a ser compensada por benfeitorias feitas em casa alheia.
Vejam-se as conclusões:
Q. A convicção da recorrente, o título sob a égide do qual ela possui e os actos que demonstram tal intenção e que resultam amplamente da matéria provada, só podem conduzir à responsabilização das recorridas no pagamento das benfeitorias, em caso de procedência da ação e à procedência do pedido reconvencional.
R. Em causa as normas dos artigos 1251º e ss, conjugados com o artigo 5º, n.º 1 e 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio.
Dizer lapidarmente que a única coisa que factualmente suportaria a verificação de uma situação de posse seria a ocupação da casa em disputa.
Manifestamente pouco, sabemos disso.
Nos termos do art. 1251.º do CC a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como titular desse direito (animus).
A factualidade provada não permite concluir pela existência da posse pela R., concretamente por falta de elementos factuais que permitam chegar ao animus.
Certo que este pode ser inferido a partir dos actos materiais (e jurídicos) praticados sobre a coisa (corpus)[37]. Todavia esse exercício surgiria com normalidade numa situação em que não se discutisse o direito que assistiria à R. em viver na fracção: no caso resultando negado.
Acresce que este mecanismo, partindo de um facto verificado para, à luz das regras da vida, chegar a outro desconhecido (presunção judicial)[38] pressupunha a invocação do animus na sua tradução factual.
Nada se alegou a propósito.
Em face disto, estamos, pois, apenas perante mera detenção não autorizada.
Pressupondo[39] o art.1273.º do CC a posse para que pelas mesmas fosse a R. indemnizada pelas alegadas benfeitorias[40] realizadas na fracção, não resultando reconhecida a mesma, ajuizou bem a sentença em negar a indemnização pretendida pela R..
IV.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pela R., assim mantendo a decisão recorrida.
As custas ficarão a cargo da R. e sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que beneficie.
Sumário
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Porto, 23/1/2025.
Carlos Cunha Rodrigues de Carvalho
Ana Luísa Loureiro
Judite Pires
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[1] Segue-se, com pequenas modificações, o relatório constante da sentença posta em crise.
[2] Não se enunciou o facto, o mesmo em relação ao 17º da réplica.
[3] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[4] Dizer que a exigência imposta no art.639.º, n.º1, do CPC, tem inteira aplicação quando o recurso verse, ou também verse, sobre matéria de facto que se considera erradamente decidida. – Cfr. Abrante Geraldes, Recurso em Processo Civil, 8º ed., pág.228.
Na motivação do AUJ n-12/23 resulta isso mesmo, como refere Abrantes Geraldes na op. e loc. cit.: «(…) em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (…)».
[5] Como é entendimento generalizado, o pedido deve ser entendido como o efeito jurídico pretendido, o efeito que com a acção se pretende obter. - Cfr. Ac. RP., de 11.06.92, CJ ano XVII, t.VII, pag. 308.
[6] Cfr. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, V.I, pag.203.
[7] Cfr. Ac. RP., de 11.06.92, CJ ano XVII, t.VII, pag. 310 . Cfr. ainda, Ac. STJ, de 8.2.94, CJ - Ac. do STJ, ano II - t.I, pag.97 / Ac. STJ de 23.5.89, BMJ 387º, pag.565 / Varela, Antunes. RLJ ano 122, pag. 565.
[8] Cfr. Tratado de Direito Civil, Vol. X, p. 479, Coimbra Editora, 1935.
[9] Cfr. Prescrição da Petição de Herança, in “O Direito, ano 94, pp.165-166.
[10] «Na acção de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide” - Cfr. Rodrigues, Manuel. RLJ, ano 57º, pág. 144.[11] A forma típica de preenchimento factual da causa de pedir da reivindicação ocorre com a invocação de factos reportáveis à usucapião e uma vez que, como é sabido, as formas de aquisição derivada, na medida em que o direito adquirido se funda ou filia na existência de um direito na titularidade de outra pessoa, não são susceptíveis de, por si só, gerarem qualquer direito real. Serão estes apenas um meio de transmiti-lo. - Cfr. Salvador, Manuel. Causa de Pedir na Acção de Reivindicação, in R.M.P., ano 8, Janeiro / Março, 1987, nº29, p. 75 e segts / Mesquita, Henrique. in RLJ, ano 125, p. 95.
Contudo, para além da usucapião, a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade.
Além da presunção da titularidade do direito de propriedade derivada da posse - cfr. artigo 1193º, nº1 do C.C. -, o C.R. Predial, no seu artigo 7º, estabelece que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito - Cfr. Ac. STJ de 16 de Junho de 1983, BMJ n.º 328º.
[12] Ac. da Relação de Coimbra de 19.5.98, na Col. Jur. 98-III-116)I - A acção de petição de herança envolve os pedidos de reconhecimento da qualidade de herdeiro e a restituição dos bens hereditários.
II - O pedido de reconhecimento da qualidade de herdeiro pode resultar de forma implícita.
(…)
[13] Está resolvida esta questão, não sendo objecto de discussão em face do decidido e da ausência de recurso pelas AA, ainda que subordinado, sequer se operando a ampliação a que se refere o art. 636.º, n.º1 e 2 do CPC. Está igualmente resolvida a questão de a fração em disputa ter sido a casa de morada de família do casal composto pelo pai das AA e a R.
[14] Igualmente não há que equacionar a aplicação do n.º3 do art.5.º da LUnFAc por a R. não se comproprietária, conjuntamente com o pai das AA., da fracção.
[15] Casados que foram em comunhão geral de bens – art. 1732.º do CC.: «O património comum e constituído por todos os bens presentes e futuros do cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.»
[16] O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre (…). – Cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, pág. 397.
[17] Facto que se chega por via da presunção a que alude o art. 7.º do CRP e visto o registo provado em nome dos pais da AA.: «3º Pela Ap. ...2 de 1991-03-04 foi registada a aquisição do direito de propriedade em favor dos pais da autora, por compra. (certidão predial junta como documento n.º 3)»
[18] Como decorre do facto 4º, dele também se podendo retirar a aceitação, ainda que tácita, da herança – art.2050.ºn1 / 2056.º do CC.
[19]Ac. do TRG de 8.10.2015, processo 743/13.0TBPRG.G1
[20] José Fonseca Martins. Herança indivisa: sua natureza Jurídica. Responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da Herança, ROA, Set.1986, p.571./ https://mail.google.com/mail/u/0/?hl=pt_PT#inbox?projector=1
[21] O direito real de habitação da casa de morada de família e o direito de uso do recheio são o direito de habitação e o direito de uso previstos nos artigos 1484 a 1490 do Código Civil.
[22] «Esta norma, com a redação dada pela Lei nº 23/2010, de 30.8, veio reforçar a proteção do membro sobrevivo da união de facto, atribuindo-lhe o que a doutrina classifica como um legado legitimário ao direito de habitação à casa de morada de família (cfr. Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5ª ed., p. 569 - ou colocando-o na posição sucessível forçoso não legitimário (cf. Rute Teixeira Pedro, “Breves reflexões sobre a proteção do unido de facto quanto à casa de morada de família propriedade do companheiro falecido» - Ac.TRL de 8.3.22. proc. 5508/19.1T8LRS.L1-/
[23] Sequer se concedendo tais direitos nas situações em que o falecido unido de facto seja comproprietário com outros, que não com a sobreviva, da casa de morada de família. Sendo ambos comproprietários da casa de morada, regerá, então, o n.º3 do citado art.º5: «Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo.»
[24] União de Facto vs Casamento, questões pessoais e patrimoniais, Rosana Martingo Cruz, 2. E. Gestlegal. P.713
[25] Manual de Direito Família, 2º Ed., pág.417 .
[26] Breves reflexões sobre a protecção do unido de Facto quanto à casa de morada de família propriedade do companheiro falecido, Textos de Direito de Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág.322 - acessível através de https://ucdigitalis.uc.pt/pombalina/item/69297
[27] Art.608.º nº1 do CPC, ex vi 663.º, n.º 2, do mesmo diploma
[28] Proc.14/14.3T8CSC.L1.S1, remetendo-se para a sua consulta as citações doutrinarias que se fazem no aresto.
[29] Com o seguinte sumário: VI - O direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegitimamente encontra respaldo no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual. VII – A utilização não autorizada e gratuita do imóvel pela Ré após a extinção do direito real de habitação consubstancia uma vantagem patrimonial, ainda que sob a forma de poupança de despesa, com expressão económica no valor locativo do imóvel provado nos autos, enriquecimento obtido com meios ou instrumentos pertencentes a outrem (os autores proprietários).
[30] Júlio M. Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Porto, U.C.P., 1998, pág.228.
[31] Código Civil Anotado, VI, 2º Ed., coordenação Ana Prata, Almedina, pág.648.
[32] Tão só isto: «É evidente que, também o instituto do enriquecimento sem causa, levaria a tal resultado e é evidente que a recorrente agiu e age na convicção da titularidade do direito real de habitação, como aliás resulta de todo o exposto.»
[33] . Contestação:
33. Após o óbito do pai das AA a R realizou obras na casa que é agora propriedade da herança.
34. Substituiu as janelas, que além de terem vidros partidos tinha tábuas podres, empenadas e pouca eficiência energética, tornando o ambiente desconfortável durante o Inverno, Doc.º 10 a 13.
35. Além disso a R nem sequer as podia abrir, porque não tinha força para isso, tal era a resistência que as mesmas ofereciam.
36. Pintou paredes e tectos que estavam cheios de humidade e bolor, Doc 14 a 22; e
37. Substituiu os equipamentos de casa de banho, degradados e avariados, Doc 23 a 27
[34] Nada se refere a propósito, se de patologia estrutural ou de fácil eliminação, sequer donde vinham as humidades.
[35] Inocêncio Galvão Telles. Direito das Obrigações, 6º Ed., Coimbra Ed., págs. 180 /182.
[36] «De acordo com o referido preceito, constituem pressupostos (cumulativos) do instituto: existência de um enriquecimento; que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem; ausência de causa justificativa.»
[37] - “A intenção de domínio em sentido amplo, não tem que explicitar-se, e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização (latu sensu). Na dúvida quanto aos termos em que se processa, ao direito em termos do qual se possui - sabido que é em termos de direito real (...) -, deve entender-se que é em termos de direito de propriedade, já que esta envolve no seu licere, toda a “lógica da coisa” e, por isso, qualquer tipo de manifestação empírica”. Orlando Carvalho. RLJ, ano 122, pág. 105
[38] Arts.349.º, 351.º do CPC.
[39] Note-se que não há norma que permita aplicar de modo indirecto o regime que emerge do art.º1273 do CC, como, de resto, ocorre noutras situações. Este regime aplica-se de modo directo à posse propriamente dita; e, indirectamente, também, em relação a situações que não são de posse verdadeira e própria: credor pignoratício - 670º, b) - locatário, considerado possuidor de má fé - 1046º, comodatário, idem - 1138º, 1, usufrutuário, considerado possuidor de boa fé - 1450º, 2 e 1459º, 2.
[40] No tocante a benfeitorias necessárias e úteis, rege o art. 1273º: tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento da coisa benfeitorizada. Se ocorrer tal detrimento - a apreciar objectivamente - tem o possuidor direito ao valor das benfeitorias (úteis, claro), calculado esse valor segundo as regras do enriquecimento sem causa - 479º: A medida da restituição tem como limites o custo das benfeitorias - empobrecimento - e o do enriquecimento do titular da coisa.