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PROCEDIMENTO CAUTELAR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
Sumário
I - O não cumprimento do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, pode constituir, segundo vários entendimentos, comportamento tradutor dos seguintes vícios: - a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no artº. 195º, do Cód. de Processo Civil ; - causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil ; - a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva. II - temos entendido que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa ; III - Entende-se, assim, que a ocorrência daquele vício como que se reflecte na decisão proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação ; IV - Donde se conclui pela verificação da nulidade decorrente da omissão do exercício e observância do princípio do contraditório, o que determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal omissão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, a decisão proferida relativamente à superveniente injustificação da presente providência cautelar, conducente a juízo da sua extinção ; V - relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, prima facie, tal determinaria, na presente fase, decisão a determinar (nesta instância de recurso, ou com prévia baixa dos autos à 1ª instância) dar efectivo conhecimento às partes do pretendido enquadramento jurídico, suscitando a sua intervenção e pronúncia, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade ; VI - todavia, nas situações em que as partes, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações e contra-alegações, já emitiram pronúncia acerca de tal matéria, ou seja, já enunciaram os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente ao enquadramento jurídico efectuado – in casu, o alegado desvanecer ou cessar de um dos requisitos do procedimento cautelar, conducente a um juízo de extinção deste -, temos concluído no sentido de resultar que o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações, e sua resposta, apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia ; VII - e, assim sendo, assegurado aquele exercício e a pronúncia das partes, concluiríamos pela aplicabilidade da regra da substituição, nos termos do nº. 1, do artº. 665º, do Cód. de Processo Civil, surgindo igualmente injustificada a necessidade de se proceder à prévia audição inscrita no nº. 3 do mesmo normativo, a qual sempre se configuraria, neste enquadramento, como a prática de acto inútil e, como tal, legalmente ilícito – cf., artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ; VIII – admitindo-se a aplicabilidade da regra da substituição, enunciada no citado artº. 665º, do Cód. de Processo Civil, esta deve depender sempre da existência de uma adequada e expressa pronúncia das partes (nomeadamente em sede alegações recursórias e resposta) sobre a questão omitida ao contraditório, e que fundamentou a decisão sob apelo, não bastando, para tal, uma referência ou alusão concisa ou en passant, em termos de simples acessoriedade relativamente á invocação do vício de omissão de observância do princípio do contraditório e consequente prolação de decisão surpresa ; IX - in casu, em sede de alegações, as Apelantes apresentaram efectiva e completa pronúncia sobre a aludida questão apreciada no despacho recorrido e, no que se reporta às Recorridas Rés, foi-lhes dada a oportunidade de também efectivarem a sua pronúncia, em sede contra-alegacional, o que entenderam não dever fazer, pois não apresentaram contra-alegações; X - o que evidencia, com concludência, estarmos, no que às Recorrentes invocantes concerne, perante uma densificada alegação acerca da questão de direito tratada na decisão apelada, assim se podendo concluir por uma efectiva pronúncia por parte das Autoras/Requerentes, determinando que, deste modo, o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia ; XI - juízo que, concomitantemente, temos que julgar extensível às Recorridas Rés, atenta a oportunidade processual que lhes foi concedida para se pronunciarem, e que as mesmas, de forma totalmente legítima, decidiram não acolher ; XII - o acto processual de comunicação de impedimento por parte dos Mandatários, previsto no nº. 2, do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil, nada tem a ver com pedidos de adiamento da data designada para a audiência/inquirição, nem resulta, por outro lado, que tal norma de marcação das diligências se deva ter por inaplicável na tipologia procedimental cautelar ; XIII - não deve o mero decurso de um determinado lapso temporal, e muito menos o ultrapassar dos prazos processualmente previstos no nº. 2, do artº. 363º, do Cód. de Processo Civil, que têm fundamentalmente por destinatários o julgador e funcionários judiciais, determinar que o requisito do periculum in mora se deva ter por necessariamente, e supervenientemente, afectado, em termos de considerá-lo como desvanecido ou cessado ; XIV - efectivamente, caso o Tribunal a quo entendesse que tal desvanecimento ou cessação havia ocorrido, e resultava supervenientemente do desenrolar processual, deveria justificá-lo e fundamentá-lo, explicitando as razões de facto e de direito para tal conclusão. Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Texto Integral
ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
I – RELATÓRIO
1 – A … residente na Rua …, nº. …, … Direito, Coimbra, e
B …, residente na Rua …, nº. …, … andar, Lisboa,
Intentaram o presente procedimento cautelar comum contra:
- C …, residente na Rua …, nº. …, Guarda ;
- D …, LDA., com sede na Rua …, nº. …, Lisboa,
deduzindo o seguinte petitório:
- deve a “presente providência cautelar ser julgada procedente e, em consequência, as Requeridas condenadas a adotar medidas tendentes a impedir a infiltração de águas no prédio das requerentes, bem como reparar os danos existentes no interior do quadro elétrico”.
Alegaram, em suma, o seguinte:
- As requerentes são donas e legitimas proprietárias do prédio urbano sito na Rua …, nº …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, freguesia de Penhora de França e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. nº …, da freguesia de Penha de França ;
- A 1ª requerida é dona e legitima proprietária da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés do chão e estabelecimento com entrada pela Rua …, nºs … e …, do prédio urbano sito na Rua …, nºs …, … e … e Rua …, nºs …, … e …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, freguesia de Penhora de França e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. nº …, da freguesia de Penha de França ;
· A 2ª requerida é dona e legitima proprietária da fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao rés-do-chão direito, do prédio urbano sito na Rua …, nºs …, … e … e Rua …, nºs …, … e …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, freguesia de Penhora de França e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. nº …, da freguesia de Penha de França ;
· Os prédios das requerentes e requeridas são contíguos e localizam-se no bairro histórico da Penha de França ;
· No ano de 2018, a 1ª requerida levou a cabo obras na fração autónoma supra identificada de forma a transformar a mesma em casa de habitação, pois até então a mesma destinava-se a loja ;
· Em 2018/2019, começaram a surgir infiltrações na parede do lado esquerdo do átrio de entrada do prédio das requerentes, ao nível do rés-do-chão, e que, ao longo do tempo, se foram estendendo para o quadro elétrico geral do prédio, e que provêm das frações das requeridas ;
· Durante o ano de 2020, apesar de a situação se ter agravado, não foi possível tomar quaisquer providências decorrente dos sucessivos confinamentos decretados pelo Governo, em razão da pandemia Covid-19 ;
· Em 21/01/2021, o quadro elétrico do prédio das requerentes disparou e, consequentemente, o prédio deixou de ter eletricidade nas partes comuns, designadamente, elevador e escadas ;
· A requerente B …, com receio dos danos que pudessem advir de tal ocorrência, uma vez que as infiltrações na zona do quadro elétrico, eram visíveis, contactou imediatamente E …, engenheiro eletrotécnico, por ser pessoa da sua confiança ;
· Nesse mesmo dia, entre as 18h00m e as 20h00m, o referido E … deslocou-se ao local com o Sr. F …, eletricista, que à época exercia a sua atividade profissional para a empresa G …, Lda. ;
· Quando foi iniciada a verificação do problema no quadro elétrico, e ainda com a porta de acesso ao mesmo fechada, um fusível estoirou em curto-circuito ;
· A requerente B … foi então informada que a causa da avaria era a água infiltrada nas paredes e tubagens elétricas e ordenou a imediata reparação, que ascendeu a 388,63 € ;
· Entre 03/03/2021 a 09/03/2021, as requerentes levaram a cabo uma intervenção no prédio, com alpinistas, a fim de garantir que fossem reparadas quaisquer rachas e fosse confirmando que não havia entradas de água pluviais, pelo telhado, paredes exteriores ou juntas de dilatação com o prédio do lado ;
· As requerentes, em função da reparação e diligências levadas a cabo, optaram por esperar a chegada do outono/inverno para verificar se as águas teriam deixado de correr para a parede e quadro do átrio de entrada do prédio e se, consequentemente, poderiam descartar as águas pluviais como origem das infiltrações, uma vez que a água provinha de uma altura inferior ao teto do rés-do-chão ;
· No final do ano de 2021, e porque a infiltração e escorrimento de água continuava a agravar-se, a requerente B … entrou em contacto com a H …, Lda. – empresa gestora do condomínio do prédio onde se situam as frações das requeridas – pedindo que agilizassem um contacto por parte da 1ª requerida, no que não teve sucesso ;
· A requerente B …, perante o constante agravamento das infiltrações, deixou um recado debaixo da porta da fração da 1ª requerida ;
· No dia 11/02/2022, a requerente B … foi contactada pela Sra. J …, que se identificou com sendo prima da 1ª requerida e que, de imediato, se prontificou a deslocar-se à sua fracção ;
· Tendo ambas constatado, no local, que havia água acumulada na parede confinante da fração da 1ª requerida. com o prédio das requerentes - onde se situa o quadro elétrico - ao nível da kitchenette, por baixo do WC ;
· Tendo ainda verificado que não havia fuga na canalização de água e decidiram fechar a torneira do contador da água da fração da 1ª requerida ;
· Nos dias seguintes, a requerente B … foi-se apercebendo que a quantidade de água acumulada na parede diminuiu ;
· Após inúmeras deslocações da 1ª requerida, ou pessoa por si indicada, ao prédio das requerentes, foi possível concluir que, apesar de a linha de água indicar claramente que a água vinha de cima, não provinha do primeiro andar do prédio das requerentes, por duas ordens de razão: por um lado, porque na zona das infiltrações não existe qualquer coluna de água; e, por outro lado, porque o escorrimento de água pela parede diminuiu quando a 1ª requerida fechou o seu contador da água ;
· A 1ª requerida contactou a empresa I …, Lda., com sede na Rua …, Loja nº …, em Lisboa, que, numa deslocação a 17/02/2022, concluiu que a causa da infiltração provinha de uma alteração ao poliban na casa de banho da fração da 1ª requerida, uma vez que não havia qualquer isolamento entre o ralo do poliban e o cano do esgoto, tampouco nenhuma camada isolante entre o poliban e o chão da mezzanine ;
· Sem prejuízo, a requerente B … decidiu acionar o seguro do seu prédio, sendo que a respetiva companhia de seguros concluiu que “… a causa do sinistro é exterior aolocal de risco, decorrente de uma rotura/anomalia nas redes de águas doprédio/fração contígua (nº 88)” ;
· Entre 17/02/2022 e maio de 2022, a requerente B … informou a 1ª requerida que as infiltrações persistiam ;
· Em 18/05/2022, a 1ª requerida informou a requerente B … que, ao instalarem a kitchenette no R/C, tinha ocorrido um furo num cano, mas que já estava resolvido ;
· A requerente B … e a 1ª requerida acordaram então que se aguardasse algum tempo de modo à parede secar e verificar se o problema se encontrava resolvido definitivamente ;
· Em 29/07/2022, e porque continuava a aparecer água na parede, a 1ª requerida informou a requerente B … que tinha acionado a sua apólice seguro nº … da Zurich ;
· Em 22/09/2022 foi realizada a peritagem pela referida companhia de seguros, sendo que no decurso da mesma a requerente B … foi informada pelo perito que o seguro era apenas de responsabilidade familiar e não cobria danos causados a terceiros resultantes da fração da 1ª requerida ;
· Após aquela data, a 1ª requerida decidiu recorrer aos serviços de técnicos e solicitar uma peritagem para determinar a origem das infiltrações no quadro elétrico do prédio das requerentes, bem como das infiltrações que começaram a surgir na sua própria fração autónoma ;
· Apesar das insistências da requerente B …, a 1ª requerida ia sempre justificando a ausência da tomada de quaisquer medidas com o facto de não ter recebido o relatório de peritagem ;
· Considerando a demora na produção do referido relatório pericial, a requerente B … e a 1ª requerida acordaram que deveria ser contactada outra empresa que foi sugerida pela primeira, sendo que a segunda iria suportar os encargos com a mesma ;
· Tendo tal peritagem ocorrido em 23/11/2023 ;
· Com tal peritagem foi possível concluir que as infiltrações, para além de terem origem na fração da 1ª requerida, podem ainda ter origem na fração da segunda requerida ;
· Em 05/01/2024, e a pedido da requerente B …, foi realizada nova avaliação do quadro elétrico, tendo-se concluído pela “resolução urgente da situação que provoca asinfiltrações na parede onde se localiza o quadro” ;
· Actualmente, os danos existentes no prédio das requerentes são os seguintes:
a. Infiltrações na zona do quadro elétrico (interior e exterior);
b. infiltrações na parede do lado esquerdo do hall de entrada;
c. danos da pintura do hall de entrada;
d. chão empolado e que impede a abertura completa da porta do R/C, bem como do elevador;
e. danos da moldura de parede do hall de entrada ;
· Sendo certo que, apesar de as providências cautelares não poderem ser decretadas quando a lesão do direito, que se destinou acautelar, já se tenha consumado, poderão sê-lo se a lesão, embora já produzida, indicie ou faça recear a produção de novas e futuras lesões ;
· apesar de as infiltrações já ocorrerem há algum tempo, o risco e receio de lesão é iminente, pois a qualquer momento pode ocorrer um curto de circuito ou incêndio que coloque em causa quer o prédio das requerentes quer a segurança de todos os que nele habitam, bem como dos prédios contíguos ;
· sendo pois forçoso concluir que, em consequência das infiltrações, o estado do quadro elétrico do prédio das requerentes é suscetível de piorar, de forma a fazer perigar quer os bens nele existentes, quer principalmente a situação de segurança dos que nele habitam.
A Requerente juntou documentos e prova testemunhal, por declarações de parte e depoimento de parte, tendo o procedimento cautelar sido instaurado em 22/05/2024.
2 – Ordenou-se a citação das Requeridas, para, querendo, deduzirem oposição, nos termos do nº. 2, do artº. 366º, do Cód. de Processo Civil.
3 – Em resposta, veio a Requerida C … apresentar oposição, datada de 17/06/2024, alegando, em resumo, que:
§ estando a lesão consumada, e existindo inércia das Requerentes, jamais tais lesões poderão fundamentar a presente providência cautelar ;
§ tal inércia na propositura da providência cautelar é elucidativa do carácter de urgência que as Requerentes conferiram ao assunto ;
§ pelo que não se verifica o enunciado periculum in mora ;
§ foi efectuada uma peritagem conjunta, a qual concluiu que as infiltrações não resultavam do seu imóvel, mas sim do imóvel propriedade da 2ª Requerida ;
§ tudo tendo feito a 1ª Requerida para verificar a origem das infiltrações e, desta forma, impedir quaisquer danos nos imóveis das Requerentes ;
§ bem sabendo as Requerentes que a origem do problema das infiltrações não está no imóvel da 1ª Requerida, não podendo assim ser responsabilizada por tal.
Conclui, no sentido da procedência da oposição apresentada e, por via disso, não ser decretada a providência cautelar.
4 – Por sua vez, a Requerida D …, Lda., apresentou igualmente oposição, em 01/07/2024, na qual referenciou, em súmula, o seguinte:
- existe extemporaneidade na apresentação da providência cautelar ;
- é parte ilegítima nos presentes autos ;
- não possui fugas de água na sua fracção ;
- pelo que não deu causa às infiltrações alegadas pelas Requerentes, nem aos danos daí decorrentes.
Conclui, no sentido da:
a) procedência da excepção peremptória de extemporaneidade, nos termos do artº. 363º, nº. 1, do CPC e, consequentemente, ser absolvida do pedido ; caso assim não se considere,
b) procedência da excepção da sua ilegitimidade, sendo, consequentemente, absolvida da instância ; caso também assim não se considere,
c) improcedência do presente procedimento cautelar, com a sua consequente absolvição do pedido.
5 – Mediante requerimento de 15/07/2024, vieram as Requerentes pronunciar-se acerca das excepções deduzidas.
6 – Por despacho de 16/07/2024, determinou-se a notificação das Requerentes e da 1ª Requerida no sentido de esclarecerem, no prazo de 5 dias, se as testemunhas arroladas, não residentes em Lisboa, deveriam ser notificadas para estarem presencialmente presentes, ou se seriam antes ouvidas por videoconferência.
7 – As Requerentes responderam por requerimento de 20/07/2024, indicando que a testemunha arrolada, residente fora da comarca de Lisboa, deveria ser notificada para prestar declarações, por videoconferência.
8 – Por sua vez, a 1ª Requerida respondeu por requerimento de 22/07/2024, informando que as testemunhas por si arroladas deveriam ser notificadas para prestar declarações, apresentando-se no Tribunal no dia e hora designado para a diligência.
9 – Por despachos de 13/08/2024, foram apreciados os requerimentos probatórios e designada data para a realização da audiência final.
10 – Mediante requerimento de 21/08/2024, veio a Ilustre Mandatária das Requerentes informar acerca da sua impossibilidade de comparecimento na data designada, em virtude de estar impedida em diligência de continuação de inquirição de testemunhas, no âmbito de processo que identificou, informando acerca de datas alternativas, concertada com uma das Ilustres Mandatárias intervenientes, atenta a impossibilidade de contactar a demais.
11 – Por despacho de 23/08/2024, foi determinada a desconvocatória das testemunhas notificadas, e que oportunamente fosse aberta conclusão a fim de se designar nova data para a determinada audiência.
12 – Em 04/09/2024, foi proferido despacho a determinar a notificação das partes das devoluções de notificação das testemunhas juntas aos autos, de forma a pronunciarem-se no prazo de 5 dias.
13 – Em resposta, as Requerentes, em 06/09/2024, vieram informar que a testemunha identificada não recebeu a notificação por se encontrar em período de férias e, como tal, ausente do seu domicílio.
14 – Por sua vez, a 1ª Requerida veio informar, em 17/09/2024, que uma das testemunhas, devidamente identificada, embora não tenha recebido a respectiva notificação, deve considerar-se notificada, estando presente na data que vier a ser designada para a audiência de julgamento, e que a demais não reclamou a notificação em virtude de se encontrar ausente no Brasil, donde regressará no dia 29/09.
15 – Por despacho de 23/09/2024, foi determinada a notificação das partes para, no prazo de 5 dias, se pronunciarem-se sobre as datas prováveis, de forma a salvaguardar a notificação das testemunhas, e evitar nova devolução das convocatórias, “decorridos que estão quase 4 meses sobre a data da instauração dos presentes autos”.
16 – Mediante requerimento de 02/10/2024, vieram as Requerentes informar que a sua identificada testemunha já regressou ao domicílio, após as férias de verão, mas que tinha cirurgia marcada para o dia 17/10/2024, com previsível baixa médica de cerca de 8 dias.
17 – Por sua vez, veio a 1ª Requerida, igualmente em 02/10/2024, informar que uma das testemunhas deve considerar-se notificada, estando presente na data que vier a ser designada, enquanto que a demais já se encontra em Portugal, requerendo a sua notificação.
18 – Por despacho de 08/10/2024, foi designado o dia 24/10/2024 para audição das testemunhas arroladas.
19 – Mediante requerimento de 18/10/2024, veio a Ilustre Mandatária da 1ª Requerida comunicar a sua impossibilidade em comparecer na data designada, em virtude de ter que comparecer em diligência judicial anteriormente designada (que identificou). Solicitou a designação de nova data, indicando, mediante prévia concertação com os demais Ilustres Mandatários, 10 dias alternativas.
20 – Em 22/10/2024, foi prolatada a seguinte DECISÃO:
“Os presentes autos deram entrada em juízo a 22-5-2024.
*
A sua natureza é urgente, uma vez que se trata de uma Providência Cautelar.
*
Ambas as partes já vieram requerer por diversas vezes o adiamento da Audiência de julgamento, quer pela não notificação das testemunhas, com inúmeras devoluções ocorridas, quer por algumas das testemunhas se encontrarem em férias, quer por necessidade de intervenção clinica de uma delas, quer pela existência de outras diligências judiciais, por parte de ilustre Mandatária.
*
Mais uma vez e com a concordância de ambas as partes vieram agora as requeridas requerer novo Adiamento, para datas do mês de novembro e dezembro.
* Dá-se sem efeito a data designada.
*
Nos termos do disposto no art. 382º do CPC:
2 - Os procedimentos instaurados perante o tribunal competente devem ser decididos, em 1.ª instância, no prazo máximo de dois meses ou, se o requerido não tiver sido citado, de 15 dias.
*
A natureza urgente atento o” periculum in mora” invocado e que deve presidir a toda as Providências cautelares deixou de estar presente no caso em apreço considerando os sucessivos adiamentos requeridos e o decurso do tempo que vai já em 5 meses.
*
Nestes termos e constatando que um dos requisitos da Providência o “periculum in mora” se desvaneceu ou cessou, julga-se como injustificada a presente Providência Cautelar, ao abrigo do disposto no art. 362º -nº4ºdo CPC e em consequência, determina-se a sua extinção.
Custas pelas requerentes.
Notifique.
Registe”.
21 – Inconformadas com o decidido, as Requerentes interpuseram recurso de apelação, por referência à decisão prolatada.
Apresentaram, em conformidade, as Recorrentes as seguintes CONCLUSÕES:
“I. A sentença recorrida é, desde logo, uma decisão precipitada e que constitui uma verdadeira decisão surpresa, pois o Tribunal a quo conheceu oficiosamente do não preenchimento de um dos requisitos da providência cautelar, com fundamento no decurso do tempo após a propositura da providência cautelar, sem dar oportunidade às ora recorrentes de se pronunciarem sobre o mesmo.
II. Tendo em consideração que nem a recorrente, nem as recorridas, vieram invocar que, na pendência dos autos o requisito do periculum in mora se desvaneceu ou cessou com o mero decurso do tempo, impunha-se que o Tribunal a quo notificasse as partes para se pronunciarem sobre tanto e, consequentemente, não as surpreendesse com uma decisão que nunca foi prevista por nenhuma delas, designadamente, pelas recorrentes, pelo que se trata de uma decisão surpresa, ofensiva do art. 3º, nº 3 do CPC e, consequentemente, nula nos termos do disposto no art. 195º, nº 1 do mesmo código.
III. O Tribunal a quo ao dar sem efeito a diligência de inquirição de testemunha agendada para o dia 24/10/2024 violou claramente o art. 155º nºs 1, 2, 3 e 5 do CPC e, bem assim, do princípio da cooperação estabelecido no art. 7, nº 1, do mesmo Código, incumprindo o que legalmente se lhe impunha.
IV. Conforme decorre da mera análise da sentença, a indevida qualificação e, consequentemente, indeferimento do requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária da requerida C … determinou que o Tribunal a quo considerasse que se desvaneceu ou cessou o periculum in mora.
V. A inobservância do art. 151º do CPC e a violação do dever de cooperação redundou na prática de uma nulidade com evidente influência no exame e decisão da causa, nos termos do disposto no art. 195º nº 1 do CPC, pois impediu as recorrentes de produzirem prova sobre a matéria alegada em sede de requerimento inicial e que são essenciais à boa decisão da causa.
VI. É, pois, nulo todo o processado após o requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária da requerida C …, em 18/10/2024, por preterição de formalidade que a lei prescreve, nos termos do disposto no art. 195º nº 1 do CPC.
VII. A sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615º, nº 1, alínea b) do CPC, porque conforme resulta da análise da sentença, o Tribunal a quo não elencou, nem sequer indicou (ainda que de forma não discriminada) qualquer facto que suporte a decisão tomada, tampouco porque é que no caso em concreto o mero decurso do prazo fez cessar o periculum in mora…
VIII. Apesar de as providências cautelares não poderem ser decretadas quando a lesão do direito, que se destinou acautelar, já se tenha consumado, poderão sê-lo se a lesão, embora já produzida, indicie ou faça recear a produção de novas e futuras lesões.
IX. Ora, conforme foi alegado pelas recorrentes em sede de requerimento inicial, sem prejuízo de a lesão já ter sido iniciada a verdade é que há fortes indícios e receio da produção de continuação da lesão, bem como novas e futuras lesões.
X. O Tribunal a quo, em clara violação da Lei, por um lado, fez tábua rasa da prova documental carreadas para os outros; e, por outro lado, impediu que as recorrentes produzissem prova testemunhal sobre os factos alegados.
XI. E, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, o mero decurso do prazo não faz desvanecer ou cessar o periculum in mora, se as condições de risco do direito continuarem a subsistir. A verdade é que a ameaça dos direitos das recorrentes se mantém atual e iminente indecentemente do tempo decorrido, uma vez que não houve qualquer alteração fatual que permitisse afastar o risco de lesão, bem pelo contrário.
XII. Da análise atenta dos factos alegados pelas recorrentes resulta as infiltrações que advêm das frações autónomas das requeridas agravam-se em razão de condições atmosféricas adversas, tipicamente existente no Inverno, como o frio, a humidade e a chuva…
XIII. Mas, mais grave do que considerar que o mero decurso do prazo faz desvanecer ou cessar o periculum in mora, é considerar que tal é imputável às partes “considerando ossucessivos adiamentos requeridos”. Nenhuma das partes requereu o adiamento das diligências agendadas, tendo antes os seus mandatários feito uso de um direito processual que visa evitar a sobreposição de agenda e plasmado no art. 151º nº 2 do CPC.
XIV. O presente procedimento cautelar deu entrada em 22/05/2024 e a inquirição de testemunhas foi marcada, pela primeira vez, por despacho de 13/08/2024, ou seja, mais depois de ultrapassado o prazo de dois meses para decisão. Tal não decorre certamente de nenhum alegado pedido de adiamento das diligências, uma vez que as partes deram sempre cumprimento tempestivo às notificações do Tribunal.
XV. A verdade é que as partes nunca pediram qualquer adiamento das diligências agendadas com base em impedimento das testemunhas, quer porque se encontrassem de férias, quer por necessidade de intervenção cirúrgica. As partes, após notificação do Tribunal a quo, limitaram-se a justificar a razão pela qual as testemunhas não receberam as cartas para notificação da data designada para a inquirição de testemunhas, bem como a informar datas em que previsivelmente estariam impedidas de comparecer em Tribunal afim de prestar o seu depoimento.
XVI. A perfilhar-se o entendimento do Tribunal a quo estaria aberto o caminho para as partes conseguirem, por meros expedientes dilatórios, a extinção da instância pelo mero decurso do prazo.
XVII. A sentença recorra viola os artºs 3º, 151º, 195º, 362º e seguintes e o art. 615º do CPC”.
Conclui, no sentido da procedência da apelação e consequente revogação da decisão proferida, que deverá ser substituída por outra que determine que seja designada data para a inquirição das testemunhas, com observância do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil.
22 – As Recorridas/Requeridas não apresentaram contra-alegações.
23 – O recurso foi admitido por despacho datado de 05/12/2024, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
24 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas ; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação das Recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina apurar o seguinte:
1. Da nulidade de sentença por violação do princípio do contraditório, em virtude de ter sido prolatada decisão-surpresa, em contraposição do disposto nos artigos 3º, nº. 3 e 195º, ambos do Cód. de Processo Civil – Conclusões I e II ;
2. Da nulidade de sentença por inobservância do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil e preterição do dever de cooperação inscrito no artº. 7º, nº. 1, do mesmo diploma - Conclusões III a VI ;
3. Da nulidade de sentença por falta de fundamentação, nos quadros do artº. 615º, nº. 1, alín. b), do Cód. de Processo Civil – Conclusão VII ;
4. Da alegada cessação do periculum in mora- Conclusões VIII a XVI.
Na apreciação deste último item, conhecer-se-á, ainda:
· Do regime jurídico do procedimento cautelar/providência cautelar não especificado(a) ;
· Dos requisitos/pressupostos de tal procedimento cautelar comum.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade a considerar é a que resulta do relatório supra exposto.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) DA NULIDADE de SENTENÇA POR VIOLAÇÃO do PRINCÍPIO do CONTRADITÓRIO e PROLAÇÃO de DECISÃO-SURPRESA
Referenciam as Recorrentes Autoras ser a decisão apelada precipitada e constituir uma decisão-surpresa, em virtude do Tribunal a quo ter conhecido “oficiosamente do não preenchimento de um dos requisitos da providência cautelar, com fundamento no decurso do tempo após a propositura da providência cautelar, sem dar oportunidade às ora recorrentes de se pronunciarem sobre o mesmo”.
Acrescentam que, na consideração de que nem as Recorrentes, nem as Recorridas, invocaram que, “na pendência dos autos o requisito do periculum in mora se desvaneceu ou cessou com o mero decurso do tempo, impunha-se que o Tribunal a quo notificasse as partes para se pronunciarem sobre tanto e, consequentemente, não as surpreendesse com uma decisão que nunca foi prevista por nenhuma delas (….), pelo que se trata de uma decisão surpresa, ofensiva do art. 3º, nº 3 do CPC e, consequentemente, nula nos termos do disposto no art. 195º, nº 1 do mesmo código”.
Analisemos.
De forma a analisarmos acerca do ocorrido nos presentes autos, apreciemos, em súmula, cronologicamente e nos seus traços principais, os actos processuais praticados, nos quais a decisão apelada fundou o juízo de desvanecimento ou cessação de um dos requisitos do presente procedimento cautelar – periculum in mora.
Assim, temos que:
- data da instauração do procedimento cautelar =» 22/05/2024 ;
- datas de apresentação das oposições =» 17/06/2024 e 01/07/2024 ;
- pronúncia das Requerentes sobre as excepções =» 15/07/2024 ;
- 1ª marcação da audiência final (despacho) =» 13/08/2024 ;
- requerimento da Ilustre Mandatária das Requerentes a comunicar impedimento, cumprindo o disposto no nº. 2, do artº. 155º, do Cód. de Processo Civil =» 21/08/2024 ;
- notificações e requerimentos das partes a pronunciarem-se sobre a notificação das testemunhas, atentas as devoluções de notificação ocorridas =» entre 04/09/2024 e 02/10/2024 ;
- 2ª marcação da audiência final (audição das testemunhas arroladas para 24/10/2024) =» 08/10/2024 ;
- requerimento da Ilustre Mandatária da 1ª Requerida a comunicar a impossibilidade de comparência, nos termos do nº. 2, do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil, indicando datas alternativas, mediante prévia concertação com os demais Mandatários =» 18/10/2024 ;
- prolacção da decisão recorrida =» 22/10/2024.
Por sua vez, a decisão apelada/recorrida, ajuizou, em resumo, nos seguintes termos:
a. Os presentes autos tiveram o seu início em 22/05/2024, e têm natureza urgente, tratando-se de providência cautelar ;
b. As partes (ambas) já requereram, por diversas vezes, o adiamento da audiência de julgamento, quer:
- Pela não notificação das testemunhas, com inúmeras devoluções ocorridas ;
- Por algumas das testemunhas se encontrarem de férias ;
- Por necessidade de intervenção clínica de uma das testemunhas ;
- Pela existência de outras diligências judiciais, por parte de Ilustre Mandatária ;
c. Mais uma vez, com concordância de ambas as partes, vieram as Requeridas requerer novo adiamento, para datas dos meses de Novembro e Dezembro ;
d. Dá-se sem efeito a data designada (24/10/2024) ;
e. Procedeu à invocação e transcrição do nº. 2, do artº. 382º, do Cód. de Processo Civil (de forma errónea, pois trata-se presentemente do artº. 363º, nº. 2, do mesmo diploma) ;
f. A natureza urgente, atento o periculum in mora invocado, e que deve presidir a todas as providências cautelares, deixou de estar presente in casu, considerando os sucessivos adiamentos requeridos e o decurso do tempo que já vai em 5 meses ;
g. pelo que, constatando-se que um dos requisitos da providência – o periculum in mora – desvaneceu-se ou cessou, julga-se injustificada a presente providência cautelar, nos termos do nº. 4, do artº. 362º, do Cód. de Processo Civil e, consequentemente, determina-se a sua extinção.
Estatui o artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da necessidade do pedido e da contradição, que: “1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”.
Ajuizando acerca do princípio do contraditório, refere Lebre de Freitas [2] vigorar no presente uma noção lata de contraditoriedade, “entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.
Pelo que, o desiderato ou escopo principal de tal princípio “deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
E, concretizando a operacionalidade de tal princípio no plano das questões de direito, acrescenta ser exigível que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”.
Acrescenta que a “proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3-3)” (sublinhado nosso).
Especificando e concretizando, entende ser necessário tal convite, exemplificativamente, na situação em que o Tribunal, ainda que concordando com a qualificação jurídica que as partes atribuíram a um contrato, “se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respectivo regime (…) que as partes durante o processo não tiveram em conta”. E, a falta de tal convite, quando deva ter lugar, determina ou gera nulidade, nos quadros do artigo 195º, do Cód. de Processo Civil.
Deste forma, não basta, para o assegurar do cumprimento desta vertente do contraditório, que “às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito (…)”, sendo ainda exigível que “mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, isto é, ainda não discutidas no processo” [3][4].
Subjaz, deste modo, ao princípio do contraditório a ideia “de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas á revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”.
Com efeito, “a liberdade de aplicação das regras do direito (art. 5º, nº 3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas exceções sem outras condicionantes potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa”, pretendendo-se, assim, com a regra enunciada no nº. 3, “impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão” (sublinhado nosso).
Por outro lado, a legal solução “propicia ao juiz melhores condições para uma ponderação serena dos argumentos”, pelo que a audição das partes apenas “pode ser dispensada em casos de «manifesta desnecessidade» (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), de indeferimento de nulidades (art. 201º) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências” [5].
A dispensa da observância do princípio do contraditório tem, deste modo, natureza excepcional, apenas se justificando “quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final”.
Donde, estando-se perante uma diferenciada qualificação jurídica dos factos, legítima de acordo com o nº. 3, do artº. 5º, do Cód. de Processo Civil, não está dispensada “a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma delas adotou no processo, interferindo na tutela dos respectivos interesses” [6].
Jurisprudencialmente, em termos exemplificativos, afiramos o juízo expedido no douto Acórdão do STJ de 19/12/2018 - Relator: Roque Nogueira, Processo nº. 543/05.0TBNZR.C1.S1, in www.dgsi.pt -, do qual consta que “o que se quis impedir, com o aludido preceito, foi, precisamente, que a coberto do princípio «jus novit curia», emergente do art.5º, nº3, e do princípio da oficiosidade no conhecimento da generalidade das excepções dilatórias e das excepções peremptórias, constantes dos arts.578º e 579º, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objecto de discussão no processo” (sublinhado nosso).
Acrescenta, citando Abrantes Geraldes - Temas da Reforma do Processo Civil, 1º vol., 2ª ed., pág.77 -, que “a liberdade de aplicação das regras de direito adequadas ao caso e a oficiosidade no conhecimento de excepções, conduziam, com alguma frequência, a decisões que, embora tecnicamente correctas, surgiam contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso. Eram as chamadas «decisões-surpresa» legitimadas pelo regime jurídico-processual anterior, que nenhumas limitações colocava ao poder imediato de integração da matéria de facto nas normas aplicáveis” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o douto aresto do mesmo Alto Tribunal de 12/07/2018 - Relator: Hélder Roque, Processo nº. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, in www.dgsi.pt - defende decorrer do princípio do contraditório a “a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”.
Todavia, acrescenta, ressalvando e balizando a amplitude da aplicabilidade de tal princípio, que “a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento” (sublinhado nosso).
Por fim, analisando o princípio contraditório em termos constitucionais, pode referenciar-se o douto aresto do Tribunal Constitucional nº. 330/2001 - Relator: Conselheiro Messias Bento, Processo nº. 102/2001, Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in www.dgsi.pt -, no qual se menciona que “o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório [cf. o acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e seguintes)].
Tal como se sublinhou no acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão n.º 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos"”.
Acrescenta, então, que “a ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 153 e seguintes) sublinhou-se que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório "possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito".
As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas "mediante um processo equitativo" (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), o que – tal como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) – exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acaso será justa.
O processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica: ele reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), sendo o juiz uma instância passiva. Nele – insiste-se –, o juiz não pode tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja ouvida. E mais: essa audição tem, em regra, que preceder o decretamento da providência. Só excepcionalmente, quando haja razões de eficácia e de celeridade que imponham o seu diferimento e que este não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa, ela pode ser diferida para momento ulterior, pois só então se justifica que a audição da parte não seja prévia”.
E, no que concerne ao alcance do contraditório exigível no campo das decisões surpresa, consignou-se no douto aresto do Tribunal Constitucional de 10/07/2019 – nº. 426/19, Relatora: Joana Fernandes Costa – que “têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional, as condições para que assim seja. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros: «Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)”.
Cotejados os expostos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, articulemo-los com o caso sub júdice.
Resulta evidente nos presentes autos que o conhecimento do invocado desvanecimento ou cessação de um dos requisitos do presente procedimento cautelar, alegadamente ocorrido na pendência da causa, por circunstancialismo imputável às partes, foi concretizado mediante juízo oficioso do Tribunal.
Oficiosidade que, relativamente a tal matéria, nada faria prever naquele momento processual, em que apenas se equacionava a manutenção ou alteração da data designada para a diligência judicial, decorrente da apresentação de impedimento, por parte da Ilustre Mandatária de uma das partes, em virtude de serviço judicial anteriormente designado para a mesma data, colidente com o designado nos presentes autos.
Donde decorre, necessariamente, não ter o Tribunal a quo, de alguma forma, mas necessariamente explícita ou indicativa, comunicado às partes (nomeadamente às Requerentes/Apelantes) a eventualidade de a vir a conhecer acerca da aludida cessação, mitigação ou desvanecimento do invocado requisito, por ocorrências na pendência da causa, de forma a concretizar a sua prévia audição.
Ou seja, não consta dos autos a tomada de qualquer atitude ou a prática de qualquer diligência, conducente a que as partes pudessem, em juízo prévio, pronunciar-se acerca daquele alegado desvanecimento ou cessação do periculum in mora, decorrente da imputada conduta processual e do lapso temporal entretanto ocorrido. Omitiu, deste modo, o Tribunal a prática de um acto ou formalidade legalmente imposta, tradutora do cumprimento do vinculativo princípio do contraditório, ao não permitir às partes uma activa participação na equacionada questão, conducente ao afirmado juízo de superveniente injustificação do presente procedimento cautelar e, consequentemente, o determinado comando de extinção da providência cautelar.
Pois, impunha-se ao Tribunal a quo, que, perfilhando o entendimento feito consignar, previamente a tal conhecimento suscitasse perante as partes aquela questão decidenda, de forma a conceder-lhe ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar, valorar e ajuizar.
Efectivamente, conforme sumariado no douto aresto desta Relação de 18/12/2012 - Relator: Eurico Reis, Processo nº. 2400/08.9YXLSB.L1-1, in www.dgsi.pt -, “o direito a ser ouvido (right to be heard) constitui um elemento essencial do direito a um julgamento leal e mediante processo equitativo que a todos está constitucionalmente garantido, não podendo ser decretada, sob pena de nulidade da decisão, a condenação de alguém como litigante de má fé sem prévia notificação do mesmo para que se pronuncie, querendo, quanto a tal matéria”.
Ora, aqui chegados, questiona-se: qual o vício concretamente em equação ?
A prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no artº. 195º, do Cód. de Processo Civil (o que parece corresponder ao entendimento das Apelantes, apesar de a referenciarem como nulidade de sentença) ?
Ou, conforme diferenciado entendimento, a causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento) ?
Temos entendido que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa[7][8].
Em idêntica trilha, defendeu o douto Acórdão do STJ de 11/09/2012 - Relator: Fonseca Ramos, Processo nº. 2326/11.09TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt - que “ao não ter sido dada ao recorrente, prévia oportunidade de se pronunciar sobre a intenção dos julgadores de o sancionarem como litigante de má fé em multa e indemnização (sobre esta foi ouvido depois da condenação no incidente de quantificação – nº2 do art. 457ºdo Código de Processo Civil), cometeu-se uma nulidade – art. 201º, nº1, daquele Código – já que estando em causa a omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa, sendo ilegal a proibição da indefesa, sempre tal omissão tem influência na decisão deste concreto aspecto da causa.
A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, violaria os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental “.
No mesmo sentido, pronunciou-se recentemente o douto Acórdão do STJ de 29/02/2024 – Relator: Emídio Francisco Santos, Processo nº. 19406/19.5T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt -, o qual começou por equacionar se a nulidade decorrente da prolação de decisão sem observância do princípio do contraditório estaria sujeita ao regime das nulidades de sentença (inscrito no artº. 615º, do Cód. de Processo Civil) ou ao das nulidades previstas no nº. 1, do artº. 195º, do mesmo diploma.
Reconhece que a questão é controvertida, pois, segundo um dos entendimentos, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório está ferida pela nulidade prevista na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do CPC (excesso de pronúncia), enquanto que o outro entendimento entende que tal decisão está ferida da nulidade prevista no nº. 1, do artº. 195º, do mesmo diploma.
No dirimir destas alternativas, aduz que, no entender de tal Tribunal, “a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula, mas a nulidade de que padece não está prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (decisão que conhece de questão de que não podia tomar conhecimento); está prevista n.º 1 do artigo 195.º do CPC. Vejamos.
A decisão (sentença ou despacho) que conhece de questões de que não podia tomar conhecimento viola – e viola directamente - o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que proíbe ao juiz conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e que a lei lhe não permita conhecer, ao passo que a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é tomada com violação do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. E diz-se que ela é tomada com violação deste preceito porque tal violação ocorreu em momento anterior à prolação do despacho. Com efeito, não era no momento da decisão que devia ser observado o princípio do contraditório, era antes de ela ser proferida que o juiz tinha o dever de dar à parte a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que iria decidir.
Logo, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, como prescreve o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pode tomar conhecimento. (….) Quando decide sem cumprimento do princípio do contraditório, o que o tribunal está a fazer é a omitir, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Socorrendo-nos das palavras de Manual de Andrade, estamos perante um desvio do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei [Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 176].
Visto que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade, aplica-se-lhe a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão”.
Ainda a favor do entendimento adoptado, acrescenta que “se, na realidade, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório configurasse um caso de excesso de pronúncia, sujeito ao regime das nulidades da sentença, o que faria sentido é que a nulidade fosse suprida nos mesmos termos em que é suprida a nulidade causada por excesso de pronúncia, o que não acontece.
Com efeito, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito da supressão da nulidade por excesso de pronúncia: “O juiz deve declarar sem efeito o que tenha escrito na sentença em relação à questão ou questões de que não podia tomar conhecimento” [Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, página 150]. Não é este o caminho que se segue para suprir a nulidade causada pela inobservância do princípio do contraditório. Embora se anule a decisão recorrida, esta anulação tem por objectivo fazer cumprir o formalismo que foi omitido e proferir nova decisão sobre a questão. Daí que a declaração de nulidade implique a notificação da parte para exercer o direito ao contraditório e a prolação de nova decisão sobre a mesma questão que tinha sido decidida anteriormente, embora precedida de um processo irregular.
Em segundo lugar, o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o douto aresto desta Relação de Lisboa de 26/09/2023 – Relator: Diogo Ravara, Processo nº. 7165/22.9T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt -, transcrevendo o nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, começou por referenciar constituir este a expressa consagração “do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litigio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
Como bem se aponta no ac. STJ 17-06-2014 (Mª Clara Sottomayor), p. 233/2000.C2.S1, “deve esclarecer-se, (…), que se tem entendido que o art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.
O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana, e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos».
Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao §139 da ZPO (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-06-2009, processo n.º 09B0523, relatado pelo Conselheiro João Bernardo).
A doutrina aceita, contudo, o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado. Neste sentido, antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra”.
Acrescenta, citando Lebre de Freitas – ob. cit., pág. 126 e 127 – que “por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que; a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorras da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes.
A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do principio do contraditório deixou assim de ser a defesa. no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”.
Aduz, ainda, que a propósito desta matéria de proibição das decisões-surpresa, Miguel Teixeira de Sousa – Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária in Blog do IPPC, disponível no seguinte endereço: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html -, em comentário ao Acórdão do STJ de 02/06/2020 – Relator: Lima Gonçalves, Processo nº. 496/13.0TVLSB.L1.S1 – referenciou que “o CPC trata das nulidades processuais nos art.ºs 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art.º 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?
A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite. Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art.º 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é.
A nulidade processual decorrente do disposto no art.º 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art.º 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art.º 195.º, n.º 1, CPC.
Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art.º 615.º, n.º 1, CPC.
O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art.ºs 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC”.
Acrescenta-se, em citação do mesmo Autor, que “assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC?
Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer. A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).
Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.
Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.[…]
Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa.
Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio”.
Seguidamente, após referenciar as várias soluções que têm sido jurisprudencialmente adoptadas, conclui mencionando que “a prolação de decisão de rejeição da execução com fundamento em vício que nenhuma das partes invocou e sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar configura uma nulidade simultaneamente do processo (art. 195º, nº 1 do CPC) e daquela decisão ((art. 615º, nº 1 al. d) do mesmo Código).
Em consequência, deve a decisão apelada ser anulada”.
Conducente a que se sumariasse que “quando o Tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art. 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, conhece de matéria que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar” (sublinhado nosso).
Aludamos, ainda, ao douto Acórdão da RP de 05/02/2024 – Relator: José Eusébio Almeida, Processo nº. 489/22.7T8VCD-A.P1, in www.dgsi.pt -, no qual se começou por consignar que “a invocação da violação do contraditório, depois de proferida a sentença ou despacho que consubstancia essa (invocada) violação, suscita-se em via de recurso, como exatamente sucede no caso presente.
Por outro lado, e muito em síntese, por não termos dúvidas de estarmos perante um entendimento consensual, o princípio do contraditório é um princípio jurídico fundamental e estrutural de qualquer processo judicial moderno, impondo a garantia, com assento constitucional, de ninguém poder ser atingido pelos efeitos de uma decisão judicial sem ter tido a possibilidade de intervir na sua formação, ou seja, impõe-se sempre ouvir a outra parte (Audiatur et altera pars) antes da decisão, desde que se esteja perante uma decisão que não seja de mero expediente ou inócua ao direito da parte. Importa, pois, saber qual a consequência de não ter sido dada ao recorrente a possibilidade de pronúncia, antes da decisão (realidade que os autos revelam de modo claro, como se disse) que decidiu a questão de particular importância, suscitada pela requerente, mãe da criança.
Ainda que a violação do princípio do contraditório, consubstanciando a prolação de uma decisão surpresa seja entendido por alguma doutrina e jurisprudência como correspondendo à nulidade (da sentença) por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615, n.º 1, alínea d), segunda parte, do CPC] , entendemos, com todo o respeito por outra opinião, que tal violação corresponde a uma ilegalidade, ou seja, corresponde a violação da lei (que impõe o contraditório) a qual torna a decisão ilegal, nula. Como refere Rui Pinto, “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378). A decisão não pode deixar de ser nula.”
Em consequência do que acaba de ser dito, e independentemente da natureza dos autos, temos forçosamente de concluir que a sentença recorrida, porque ilegal, é nula. Efetivamente, e repetimos, não resulta minimamente dos autos, pelo contrário, que ao requerido haja sido dada a oportunidade de se pronunciar, de alegar, de requerer o tido por conveniente, a respeito da questão que o tribunal apreciou”.
Por fim, no que jurisprudencialmente concerne, referenciamos o igualmente recente douto Acórdão do STJ de 19/03/2024 – Relator: Luís Correia de Mendonça, Processo nº. 86/22.7T8PTL.G1.S1, in www.dgsi.pt -, o qual, indagando acerca das consequências a retirar da violação do contraditório, consignou expressamente que “os artigos 186.º a 202.º e 615.º não esgotam o regime das nulidades dos actos processuais”.
Acrescenta configurar-se o contraditório como “um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental”, decorrendo esta sua natureza “da consagração constitucional nos artigos 20.º, 1 e 202.º, 2 CRP, enquanto direito de defesa, e no artigo 32.º, 5, mas ainda do artigo 6.º da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e do artigo 47.º da Carta dos direitos fundamentais da união europeia”.
Concretiza, referenciando que o direito ao contraditório “está ínsito no direito de defesa e o direito de defesa requer que o processo se estruture nas várias fases, de acordo com o princípio do contraditório. Nesta tautologia se realiza a elementar concretização da garantia do processo equitativo.
Com a audiência prévia dos interessados pretende o legislador que o tribunal e as partes discutam as questões relevantes, de facto e de direito, em função de uma decisão melhor, superando a concepção meramente subjectiva-defensiva-retórica do dever de actuação do contraditório. Como refere a doutrina, «uma questão discutida será sempre melhor decidida do que uma questão não discutida»”.
Desta forma, “a falta de actuação do contraditório concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, que se traduz na impossibilidade para as partes de exercerem os respectivos poderes processuais”.
Pelo que, naquilo que poderemos designar como um tertium genus quanto aos efeitos de tal violação, “a decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais”.
Assim, tratando-se de vício da decisão final, “este deve ser feito valer em sede de recurso, não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada.
Tal influência deriva, em sim mesma, da circunstância de o juiz, ao decidir uma questão de direito ou de facto de conhecimento oficioso, ter violado o contraditório” (sublinhado nosso).
Verifica-se, assim, que o não cumprimento do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, pode constituir, segundo os enunciados entendimentos, comportamento tradutor dos seguintes vícios:
- a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no artº. 195º, do Cód. de Processo Civil ;
- causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil ;
- a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva.
Como já supra referenciámos, temos entendido que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa.
E, apesar de reconhecermos intrínseco mérito ou validade nas posições diferenciadas, não descortinamos argumentário totalmente pertinente para alterarmos tal posição.
Entende-se, assim, que a ocorrência daquele vício como que se reflecte na decisão proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação.
Donde se conclui pela verificação da nulidade decorrente da omissão do exercício e observância do princípio do contraditório, o que determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal omissão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, a decisão proferida relativamente à superveniente injustificação da presente providência cautelar, conducente a juízo da sua extinção.
Relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, temos defendido a posição de que, prima facie, tal determinaria, na presente fase, decisão a determinar (nesta instância de recurso, ou com prévia baixa dos autos à 1ª instância) dar efectivoconhecimento às partes do pretendido enquadramento jurídico, suscitando a sua intervenção e pronúncia, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade.
Todavia, nas situações em que as partes, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações e contra-alegações, já emitiram pronúncia acerca de tal matéria, ou seja, já enunciaram os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente ao enquadramento jurídico efectuado – in casu, o alegado desvanecer ou cessar de um dos requisitos do procedimento cautelar, conducente a um juízo de extinção deste -, temos concluído no sentido de resultar que o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações, e sua resposta, apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia.
E, assim sendo, assegurado aquele exercício e a pronúncia das partes, concluiríamos pela aplicabilidade da regra da substituição, nos termos do nº. 1, do artº. 665º, do Cód. de Processo Civil, surgindo igualmente injustificada a necessidade de se proceder à prévia audição inscrita no nº. 3 do mesmo normativo, a qual sempre se configuraria, neste enquadramento, como a prática de acto inútil e, como tal, legalmente ilícito – cf., artº. 130º, do Cód. de Processo Civil.
Acrescente-se que, a entender-se que estaríamos perante efectiva causa de nulidade da sentença, por verificação de excesso de pronúncia, pelo facto do Tribunal recorrido ter conhecido de questão – superveniente injustificação do procedimento cautelar – de que, pela forma como se efectivou, não podia tomar conhecimento, os efeitos práticos em equação não seriam diferenciados.
Com efeito, tal sempre determinaria reconhecimento de nulidade da sentença, com consequente eventual juízo de substituição – igualmente nos quadros do mesmo artº. 665º, do Cód. de Processo Civil -, no conhecimento da (im)pertinência do juízo que considerou desvanecido ou cessado o aludido requisito enformador do juízo cautelar, determinante da sua consequente extinção.
Ora, tal juízo, reconhecemo-lo, não parece pacífico.
Nas palavras do citado douto aresto desta Relação de 26/09/2023, no caso de violação do princípio do contraditório “não se coloca a questão do o Tribunal da Relação se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art. 665º do CPC, visto que a anulação dos efeitos de uma decisão surpresa pressupõe que todas as partes se possam vir a pronunciar sobre a questão, antes de a mesma ser apreciada.
Nesta conformidade, cumpre anular a decisão apelada, e anular a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra na qual o Tribunal a quo exponha a sua posição relativamente à eventual (i)legitimidade ativa, e determine o convite do exequente e dos executados para, querendo, se pronunciarem sobre a questão, após o que deve ser proferida nova decisão sobre a matéria” (sublinhado nosso).
Perfilhando posição semelhante, consignou-se no citado douto Acórdão da RP de 05/02/2024, que “esta nulidade, no entanto, não implica, nem justifica, a substituição ao tribunal recorrido. Com efeito, o disposto no artigo 665, n.º 1 do CPC só tem cabimento nos casos de nulidade (de sentença/despacho) pelos fundamentos constantes do artigo 615 do mesmo diploma legal. Diversamente, no caso em apreço, a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, determinam a revogação e substituição desta pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais atos incompatíveis praticados em primeira instância” (vimos seguindo, de perto, o Acórdão desta Relação e Secção, prolatado pelo mesmo Relator em 09/05/2024 – Processo nº. 16858/22.0T8SNT-A.L1).
Assim, independentemente da posição que se adopte, o que parece claro e evidente é que, mesmo a admitir-se a aplicabilidade da regra da substituição, enunciada no citado artº. 665º, do Cód. de Processo Civil, esta deve depender sempre da existência de uma adequada e expressa pronúncia das partes (nomeadamente em sede alegações recursórias e resposta) sobre a questão omitida ao contraditório, e que fundamentou a decisão sob apelo. Não bastando, para tal, uma referência ou alusão concisa ou en passant, em termos de simples acessoriedade relativamente á invocação do vício de omissão de observância do princípio do contraditório e consequente prolação de decisão surpresa.
Ora, in casu, em sede de alegações, as Apelantes apresentaram efectiva e completa pronúncia sobre a aludida questão apreciada no despacho recorrido.
E, no que se reporta às Recorridas Rés, foi-lhes dada a oportunidade de também efectivarem a sua pronúncia, em sede contra-alegacional, o que entenderam não dever fazer, pois não apresentaram contra-alegações.
O que evidencia, com concludência, estarmos, no que às Recorrentes invocantes concerne, perante uma densificada alegação acerca da questão de direito tratada na decisão apelada, assim se podendo concluir por uma efectiva pronúncia por parte das Autoras/Requerentes, determinando que, deste modo, o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia.
Juízo que, concomitantemente, temos que julgar extensível às Recorridas Rés, atenta a oportunidade processual que lhes foi concedida para se pronunciarem, e que as mesmas, de forma totalmente legítima, decidiram não acolher.
No sentido ora pugnado, pode referenciar-se, entre outros, os recentes doutos Acórdãos deste Relação e Secção, respectivamente, de 10/10/2024 – Processo nº. 5765/24, Relator: João Paulo Vasconcelos Raposo, no qual figurou como Adjunto o ora Relator -, e de 21/11/2024 – Processo nº. nº 5751/24.1T8SNT.L1, Relator: António Moreira, no qual figura como 1º Adjunto o ora Relator -, tendo-se sumariado no primeiro que “a decisão-surpresa de rejeição da execução ao abrigo do art.º 734.º do CPC sem contraditório prévio das partes constitui uma nulidade processual, conforme disposto no art.º 195.º do CPC, traduzida na prática de ato em momento processualmente indevido;
II. Concluindo-se com absoluta segurança que foi apresentada em sede de recursória toda a argumentação da parte vencida relativa aos fundamentos da decisão de rejeição da execução, a repetição da prática do ato omitido traduziria ato inútil, ficando sanado qualquer vício processual”.
Referenciando-se no segundo dos arestos que “na medida em que se apreenda que na sua alegação de recurso a exequente apresentou os seus argumentos, a partir dos quais conclui pelo erro de julgamento do tribunal recorrido quanto à questão da falta de exequibilidade do requerimento de injunção apresentado como título executivo, e impondo-se ao tribunal de recurso conhecer do objecto da apelação, ainda que declare a nulidade da decisão recorrida (por força do art.º 665º, nº 1, do Código de Processo Civil), não mais há que extrair as consequências do referido vício processual da omissão do exercício do contraditório, correspondentes à destruição de todo o processado tendo em vista a prática do acto omitido, exactamente porque esse contraditório foi, entretanto, garantido e exercido.
E como no caso concreto é exactamente isto que se verifica, na medida em que a exequente apresenta os seus argumentos através dos quais conclui pela exequibilidade (ainda que parcial) do título dado à execução, revela-se desnecessário extrair as consequências próprias da violação do disposto no art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, assim improcedendo a conclusão 1. do recurso da exequente”.
Donde, sem outras delongas, improcede o presente fundamento recursório.
II) DA NULIDADE de SENTENÇA por INOBSERVÂNCIA do ARTº. 151º, do CÓD. de PROCESSO CIVIL e PRETERIÇÃO do DEVER de COOPERAÇÃO INSCRITO no ARTº. 7º, nº. 1, do MESMO DIPLOMA
Referenciam, ainda, as Apelantes que o Tribunal a quo, “ao dar sem efeito a diligência de inquirição de testemunha agendada para o dia 24/10/2024 violou claramente o art. 155º nºs 1, 2, 3 e 5 do CPC e, bem assim, do princípio da cooperação estabelecido no art. 7, nº 1, do mesmo Código, incumprindo o que legalmente se lhe impunha”.
Efectivamente, conforme decorre da decisão sob apelo, “a indevida qualificação e, consequentemente, indeferimento do requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária da requerida C … determinou que o Tribunal a quo considerasse que se desvaneceu ou cessou o periculum in mora”, pelo que, a inobservância do prescrito no artº. 151º, do Cód. de Processo Civil, e a violação do dever de cooperação, “redundou na prática de uma nulidade com evidente influência no exame e decisão da causa, nos termos do disposto no art. 195º nº 1 do CPC, pois impediu as recorrentes de produzirem prova sobre a matéria alegada em sede de requerimento inicial e que são essenciais à boa decisão da causa”.
Donde, aditam, deve entender-se “nulo todo o processado após o requerimento apresentado pela Ilustre Mandatária da requerida C …, em 18/10/2024, por preterição de formalidade que a lei prescreve, nos termos do disposto no art. 195º nº 1 do CPC”. Apreciando:
Sob a epígrafe marcação e início pontual das diligências, prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil, que: “1 - A fim de prevenir o risco de sobreposição de datas de diligências a que devam comparecer os mandatários judiciais, deve o juiz providenciar pela marcação do dia e hora da sua realização mediante prévio acordo com aqueles, podendo encarregar a secretaria de realizar, por forma expedita, os contactos prévios necessários. 2 - Quando a marcação não possa ser feita nos termos do número anterior, devem os mandatários impedidos em consequência de outro serviço judicial já marcado comunicar o facto ao tribunal e identificar expressamente a diligência e o processo a que respeita, no prazo de cinco dias, propondo datas alternativas, após contacto com os restantes mandatários interessados”.
Entendem as Recorrentes ter ocorrido inobservância desta norma, bem como do dever de cooperação que lhe subjaz, conducente à prolacção da decisão apelada, o que consideram traduzir a prática de uma nulidade secundária (que indevidamente apelidam como nulidade de sentença), nos termos previstos no nº. 1, do artº. 195º, do Cód, de Processo Civil, impeditiva da produção de prova sobre a matéria alegada em sede de requerimento inicial, essencial à adequada e correcta decisão da causa.
Ora, a concluir-se pelo efectivo desrespeito daquele normativo, nomeadamente das regras legalmente previstas quanto à marcação das diligências e indicação dos impedimentos por parte dos mandatários judiciais, tal não redundará, contrariamente ao aduzido, na prática de qualquer nulidade, mas antes de um efectivo erro decisório ou de direito relativamente àquele regime e matéria legalmente reguladora.
Ou seja, nos termos equacionados pelas Recorrentes, tendo o Tribunal a quo decidido em contravenção com as regras legais de marcação de diligências, em caso de indicação de impedimento por parte dos mandatários, tendo daí retirado conclusões sem acolhimento legal, não estamos propriamente perante a prática de qualquer desvio ao enunciado formal legalmente estipulado, mas antes perante um verdadeiro erro de apreciação quanto aos efeitos jurídicos ou de direito daí decorrentes.
O que, prima facie, merecerá a devida apreciação infra, aquando do eventual conhecimento da (im)pertinência dos efeitos daí decorrentes. Improcedendo, assim, neste segmento, as afirmadas conclusões recursórias.
III) Da NULIDADE de SENTENÇA por FALTA de FUNDAMENTAÇÃO – o ARTº. 615º, nº. 1, alín. b), do CÓD. de PROCESSO CIVIL
Defendem, ainda, as Apelantes ser nula a sentença por falta de fundamentação, aduzindo não ter o Tribunal a quo elencado, e nem sequer indicado, ainda que de forma não discriminada, qualquer facto que suporte a decisão tomada, nem referenciado por que é que entendia que no caso concreto o mero decurso do prazo fez cessar o periculum in mora. Conhecendo:
Prescreve a citada alínea b), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil, ser nula a sentença quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, sendo tal regime igualmente aplicável aos despachos por força do prescrito no nº. 3, do artº. 613º, do mesmo diploma.
No regime jurídico das nulidades dos actos decisórios releva “a divergência entre o que é objectivamente praticado ou declarado pelo juiz, e o que a lei determina ou o que resultou demonstrado da produção de prova”. Estamos no campo do error in procedendo, que se traduz “na violação de uma disposição reguladora da forma (em sentido amplo) do ato processual: o ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto. Aqui não se discute se a questão foi bem julgada, refletindo a decisão este julgamento acertado – por exemplo, é irrelevante que a sentença (à qual falte a fundamentação) reconheça a cada parte o que lhe pertence (suum cuique tribuere)” [9][10].
Assim, nas situações ou manifestações mais graves, o error in procedendo fere o acto de nulidade, estando-se perante vícios do acto processual formais, pois os “vícios substanciais, como por ex., os cometidos na apreciação da matéria de fundo, ou na tramitação do processo, são objecto de recurso, não se inserindo na previsão normativa das nulidades” [11].
A diferenciação ocorre, assim, por referência ao error in judicando, que “é um vício de julgamento do thema decidendum (seja este de direito, processual ou material ou de facto). O juiz falha na escolha da norma pertinente ou na sua interpretação, não aplicando apropriadamente o direito – dito de outro modo, não subsume correctamente os factos fundamento da decisão à realidade normativa vigente (questão de direito) -; ou falha na afirmação ou na negação dos factos ocorridos (positivos ou negativos), tal como a realidade histórica resultou demonstrada da prova produzida, havendo uma divergência entre esta demonstração e o conteúdo da decisão de facto (questão de facto). Não está aqui em causa a regularidade formal do ato decisório, isto é, se este satisfaz ou não as disposições da lei processual que regulam a forma dos atos. A questão não foi bem julgada, embora a decisão – isto é, o ato processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada.
A decisão (ato decisório) que exteriorize um error in judicando não é, com este fundamento, inválida. O meio adequado à sua impugnação é o recurso, sendo o objecto deste o julgamento em que assenta a pronúncia. Confirmando-se o julgamento, a decisão é mantida; no caso oposto, é, por consequência, cassada, ou revogada e substituída – dependendo do sistema de recursos vigente” [12].
O vício de fundamentação em equação – alínea b), do citado nº. 1 do artº. 615º do Cód. de Processo Civil -, a apreciar no campo do error in procedendo, concretiza-se na omissão da especificação dos fundamentos de direito ou na omissão de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão.
Todavia, “só a absoluta falta de fundamentação da sentença gera a nulidade. O vício de fundamentação deficiente constitui uma irregularidade da sentença, mas não gera a sua nulidade” [13][14][15].
Donde decorre que “a falta de motivação da decisão de facto (art. 607º, nº. 4), considerada isoladamente, não gera a nulidade da sentença por falta de fundamentação, desde que esta contenha a discriminação dos factos que o juiz considera provados e a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes (art. 607º, nº. 3). Este vício pode ser eliminado, sanando-se a sentença irregular, em caso de recurso (art. 662º, nºs. 2, al. d), e 3, al. d)), por haver nisso utilidade processual, pois permite uma impugnação pelo vencido e uma reapreciação da decisão pelo tribunal ad quem mais esclarecidas.
A absoluta falta de motivação da decisão de facto pode contribuir, no limite, para tornar a decisão final (art. 607º, nº. 3) ininteligível, gerando, por esta via, a nulidade da sentença (nº. 1, al. c). Sendo a sentença anulada com este fundamento, valerá a regra da substituição da Relação ao tribunal recorrido (art. 665º, nº. 1)” [16].
A necessidade/dever de fundamentação de qualquer decisão judicial encontra-se plasmada no artº. 154º do Cód. de Processo Civil, o qual prescreve que:
“1 – as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Possui inclusive tal dever legal consagração constitucional, conforme decorre do previsto no artº. 205º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa , ao prescrever que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O dever de fundamentação tem por objectivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e reagir contra a mesma.
Nas palavras do douto aresto desta Relação, datado de 07/11/2013 [17], “é, assim, manifesta a existência de um dever de fundamentação das decisões judiciais, dever esse com consagração constitucional e que se justifica pela necessidade das partes de conhecer a sua base fáctico-jurídica, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação.
Com efeito, há que ter em conta os destinatários da sentença que aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade. Para que umas e outra entendam as decisões judiciais e as não sintam como um acto autoritário, importa que as sentenças e decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre a força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça” O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito” [citando Pessoa Vaz, Direito Processual Civil – Do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, p.211.].
E, acrescenta, “conforme decorre do n.º2 do art.º 154.º do CPC a fundamentação das decisões não pode ser meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de adesão às razões invocadas por uma das partes, o preceito legal exige antes, uma “fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma” [citando José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol.1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, p.302-303].
Tal, não se verifica, claramente, no caso em apreço. Não se trata de uma fundamentação parca ou deficiente. Trata-se de ausência de fundamentação.
Consequentemente, por não se encontrarem especificados os fundamentos de facto e de direito que determinaram a convicção do julgador e o levaram a decidir como decidiu, há que concluir pela falta de fundamentação e por consequência, pela nulidade da decisão recorrida nos termos do art.º 668.º n.º b) (actual art.º 615.º n.º 1 b)) do CPC”.
Ora, na reversão do exposto ao caso concreto, já supra enunciámos, em súmula, o teor da decisão sob apelo.
Conforme resulta da mesma, e longe de ser exemplar, existe um mínimo de manancial fáctico alegado, ainda que de forma não delimitada ou estruturada, conducente ao afirmado juízo de superveniente desvanecimento ou cessação de um dos requisitos necessariamente enformadores da presente tutela cautelar. É o que sucede com a alegação, em termos avulsos e sem quaisquer cuidados de balizamento, das partes já terem requerido, por diversas vezes, o adiamento da audiência de julgamento por não notificação das testemunhas, pelo facto de outras estarem de férias, e uma delas ter tido necessidade de intervenção clínica, bem como pela circunstância de existência de outras diligências judiciais, por parte de Ilustre Mandatária ; bem como pela circunstância de, entretanto, ter sido requerido novo adiamento.
Donde decorre, aparentemente sem equívocos, existir, na decisão prolatada, um mínimo de especificação dos fundamentos de facto ou de direito em que assentou tal juízo de superveniente injustificação do procedimento cautelar, conducente à sua afirmada extinção.
Assim, é certo descortinar-se no teor de tal decisão uma fundamentação deficiente, incompleta, medíocre, e mesmo tecnicamente censurável, capaz de potencialmente afectar o valor do despacho sob sindicância recursória, nomeadamente no sentido da sua revogação ou alteração.
Todavia, não é reconhecível na mesma uma absoluta falta de fundamentação, nos termos em que esta se impõe com as vestes enunciadas nos nºs. 3 e 4, do artº. 607º, do Cód. de Processo Civil, o que determina, sem outras delongas, juízo de não reconhecimento da verificação da invocada nulidade de falta ou omissão de fundamentação, prevista na alín. b), do nº. 1, do artº. 615º, do Cód. de Processo Civil, conducente, nesta parte, a um juízo de improcedência daconclusão recursória em equação.
IV) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA – da ALEGADA SUPERVENIENTE CESSAÇÃO do PERICULUM IN MORA
- Do regime jurídico, requisitos e pressupostos do procedimento cautelar/providência cautelar não especificado(a) ou comum ; do alegado erro de julgamento
Enformando a sua pretensão recursória, enunciam, ainda, as Recorrentes que apesar das providências cautelares não poderem ser decretadas quando a lesão do direito, que se destinou acautelar, já se tenha consumado, “poderão sê-lo se a lesão, embora já produzida, indicie ou faça recear a produção de novas e futuras lesões”.
Ora, conforme aduziram em sede de requerimento inicial, “sem prejuízo de a lesão já ter sido iniciada a verdade é que há fortes indícios e receio da produção de continuação da lesão, bem como novas e futuras lesões”, sendo que o Tribunal recorrido, em contravenção legal, “fez tábua rasa da prova documental carreadas para os outros; e, por outro lado, impediu que as recorrentes produzissem prova testemunhal sobre os factos alegados”.
Acrescentam, ainda, que contrariamente ao decidido, “o mero decurso do prazo não faz desvanecer ou cessar o periculum in mora, se as condições de risco do direito continuarem a subsistir. A verdade é que a ameaça dos direitos das recorrentes se mantém atual e iminente independentemente do tempo decorrido, uma vez que não houve qualquer alteração fatual que permitisse afastar o risco de lesão, bem pelo contrário”. Ou seja, e concretizando, da “análise atenta dos factos alegados pelas recorrentes resulta as infiltrações que advêm das frações autónomas das requeridas agravam-se em razão de condições atmosféricas adversas, tipicamente existente no Inverno, como o frio, a humidade e a chuva…”.
Aduzem, ainda, que mais grave do que “considerar que o mero decurso do prazo faz desvanecer ou cessar o periculum in mora, é considerar que tal é imputável às partes “considerando os sucessivos adiamentos requeridos””, pois nenhuma das partes “requereu o adiamento das diligências agendadas, tendo antes os seus mandatários feito uso de um direito processual que visa evitar a sobreposição de agenda e plasmado no art. 151º nº 2 do CPC”.
Assim, o presente procedimento cautelar foi instaurado “em 22/05/2024 e a inquirição de testemunhas foi marcada, pela primeira vez, por despacho de 13/08/2024, ou seja, mais depois de ultrapassado o prazo de dois meses para decisão”, mas tal não decorreu “de nenhum alegado pedido de adiamento das diligências, uma vez que as partes deram sempre cumprimento tempestivo às notificações do Tribunal”.
Efectivamente, as partes “nunca pediram qualquer adiamento das diligências agendadas com base em impedimento das testemunhas, quer porque se encontrassem de férias, quer por necessidade de intervenção cirúrgica. As partes, após notificação do Tribunal a quo, limitaram-se a justificar a razão pela qual as testemunhas não receberam as cartas para notificação da data designada para a inquirição de testemunhas, bem como a informar datas em que previsivelmente estariam impedidas de comparecer em Tribunal afim de prestar o seu depoimento”.
Assim, caso se viesse a perfilhar o entendimento do Tribunal a quo, “estaria aberto o caminho para as partes conseguirem, por meros expedientes dilatórios, a extinção da instância pelo mero decurso do prazo”.
Analisemos.
A natureza da presente providência não especificada depende, fundamentalmente, do preenchimento dos seguintes pressupostos:
- A probabilidade séria de existência do direito invocado ;
- O fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na sua pendência, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito ;
- A adequação da providência requerida à situação de lesão iminente ;
- Não ser o prejuízo resultante do decretamento da providência superior ao dano que com a mesma se pretende evitar ;
- A inexistência de providência específica que acautele o mesmo direito [18][19].
O enunciado requisito ou pressuposto do “fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável constitui, nas medidas cautelares atípicas, a manifestação do requisito comum a todas as providências: o «periculum in mora»” [20].
Todavia, ressalva-se, “não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte”, pois, “só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão” (sublinhado nosso).
Deste modo, adita-se, “não é qualquer lesão que justifica a intromissão na esfera privada do requerido, com a intimação para se abster de determinada conduta ou com a necessidade de adoptar determinado comportamento ou de sofrer um prejuízo imediato e relativamente ao qual pode não ser compensado em caso de injustificado recurso à providência cautelar”, pelo que o julgador “deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis” [21].
Resulta, assim, que “a gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado”, sendo que, “especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva” (sublinhado nosso).
Donde, acrescenta-se, devem ficar “afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões graves, mas facilmente reparáveis”.
Neste sentido, acrescentam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [22] que “ainda que não devam excluir-se da tutela cautelar as situações em que a situação de periculum in mora se reflete na provável ocorrência de danos patrimoniais, o critério a usar nestes casos deve ser mais restrito do que o aplicado quando estejam em causa danos não patrimoniais (…)”.
Em consonância, acrescentam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [23] que, se relativamente ao pressuposto de existência do direito ameaçado basta ao requerente efectuar uma prova sumária, esta já não basta “no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção ; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito” (sublinhado nosso).
Pelo que, o receio invocado deve ser “fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo”.
Donde, não bastam “simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade (…)”, pelo que “as circunstâncias em que o juiz deve ter por justificado o receio de lesões futuras, devem ser apreciadas objectivamente pelo juiz que, para o efeito, terá em conta o interesse do requerente que promove a medida e o do requerido, que com ela é afectada, as condições económicas de um e outro, a conduta anterior e a sua projecção nos comportamentos posteriores” [24] (sublinhado nosso).
Desta forma, nas providências inominadas de tipo ou natureza antecipatória [25] (como a ora em apreciação) exige-se “que dos factos alegados resulte, em termos claros e inequívocos, a lesão grave e dificilmente reparável dum direito, em consequência da postura injustificada e censurável da requerida”, devendo, ainda, o recurso às mesmas constituir “a única alternativa que resta ao requerente, no sentido de obstar aos poderosos prejuízos que lhe são, por esta via, provocados” [26].
Nas palavras de Rui Pinto [27], “central na causa de pedir da providência cautelar não especificada é o conceito de «lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito»”.
No que concerne à gravidade, foi jurisprudencialmente decidido “que «apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida»”.
Todavia, “não basta a gravidade ; exige-se também a difícil reparabilidade, pelo que «são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis” (sublinhado nosso) [28].
Ressalva, ainda, que apesar da adopção de uma noção relativa de irreparabilidade, pois “a lesão deve ser grave e dificilmente reparável, não tendo que ser um dano absolutamente irreparável”, vem a jurisprudência efectuando “uma aplicação diferenciada do conceito, consoante se trate de danos patrimoniais ou de danos não patrimoniais (…)”.
Assim, “no caso dos danos não patrimoniais o conceito de irreparabilidade surge desligado do sucesso da acionabilidade do direito à respectiva indemnização: basta demonstrar que não são reparáveis in natura, apesar de reparáveis por indemnização”.
Porém, no que concerne aos “danos patrimoniais tende entender-se que, salvo se o devedor estiver em situação económica difícil, insolvência iminente ou atual, em regra não são dificilmente reparáveis, porquanto, mesmo que irreparáveis in natura, são sempre indemnizáveis. A circunstância de poderem ser graves, em nada tange essa avaliação da suscetibilidade concreta de indemnização” [29].
Jurisprudencialmente, e a título meramente exemplificativo, referencie-se o sumariado:
- no douto Acórdão do STJ de 14/12/1995 [30], no sentido de que “requisito primordial das chamadas providências cautelares não especificadas é um fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente. Nisso consiste o "periculum in mora", que terá de ser provado, em termos de convencer o tribunal de que a demora de uma decisão - a obter através da acção competente - acarreta um prejuízo a que se pretende obviar com o procedimento cautelar” (sublinhado nosso) ;
- no douto aresto do mesmo STJ de 29/06/1999 [31], onde se escreveu que “se a requerida sociedade comercial - em providência cautelar contra si deduzida para retirada imediata de todas as montras, expositores, reclamos e anúncios luminosos afixados no respectivo estabelecimento - havia tomado de arrendamento a fracção em causa há mais de 25 anos, não se descortina qualquer subjacente "periculum in mora" que importe recorrer com carácter de urgência.
Os prejuízos resultantes do deferimento de tal providência poderiam, de resto, exceder, em medida considerável, os danos que com esta se pretendia evitar já que equivaleria ao encerramento do estabelecimento, o qual, mesmo, a título provisório, equivaleria na prática à sua morte” ;
- no douto Acórdão de 25/11/1999 [32], realçando que “o receio deve ser fundado, isto é objectivamente fundamentado em factos concretos, que não em circunstâncias de carácter meramente eventual, hipotético ou conjectural”.
E, a propósito do ónus probatório, aduz impender “sobre o requerente o encargo de satisfazer no requerimento inicial o ónus de alegação de matéria de facto reveladora do direito de que é titular, a par de outros de onde possa concluir-se pela existência do "periculum in mora, funcionando assim, nesta sede, o princípio geral segundo o qual aquele que alega um direito, deve fazer prova dos factos constitutivos desse direito - artigo 342 n. 1 do CCIV66”.
Sob a epígrafe de urgência do procedimento cautelar, estatui o artº. 363º, do Cód. de Processo Civil, que: “1 - Os procedimentos cautelares revestem sempre caráter urgente, precedendo os respetivos atos qualquer outro serviço judicial não urgente. 2 - Os procedimentos instaurados perante o tribunal competente devem ser decididos, em 1.ª instância, no prazo máximo de dois meses ou, se o requerido não tiver sido citado, de 15 dias”.
Referencia Abrantes Geraldes – ob. cit., pág. 105 a 107 -, que a resposta adequada do sistema “aos interesses cuja tutela se busca através do recurso aos tribunais exige uma decisão carregada das características próprias da soberania, coercibilidade ou imparcialidade, só produzindo os efeitos almejados se, a par da segurança jurídica, houver uma resposta em tempo útil, isto é, em «prazo razoável»”, sendo que qualquer destes factores “contribui para a legitimação externa do poder soberano que a Constituição atribui aos Tribunais (…)”.
Assim, “o realce que o processo civil deve dar ao princípio da celeridade processual e à eficácia do sistema mais não é do que uma resposta a preceitos ou princípios constitucionais (o acesso aos tribunais, nos termos que ficaram definidos na última reforma constitucional – artº. 20º da C.R.P. -, envolve explicitamente o direito de obter uma resposta pronta que, anteriormente, apenas aí encontrava assento implícito) ou a normas inseridas em Convenções Internacionais subscritas por Portugal («máxime», o artº. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que se refere á necessidade de qualquer Estado assumir a obrigação de proceder à regulação dos litígios, por via judicial, em tempo razoável)”.
Todavia, ressalva, não dever confundir “o objectivo da celeridade e o cumprimento dos prazos máximos referidos na lei com o tratamento superficial e descuidado das questões de facto ou de direito que também nos procedimentos cautelares se suscitam, do mesmo modo que aquele objectivo não deve determinar o desrespeito de normas de carácter inderrogável, nomeadamente, as que se reportam à necessidade de se praticar um determinado acto processual”.
Assim, as providências ou procedimentos cautelares foram entendidas pelo legislador, e assim devem ser encaradas pelo julgador, “como meios simples e rápidos que permitam, sem delongas, acautelar os prejuízos que naturalmente decorrem da demora na obtenção de uma decisão definitiva favorável”.
Porém, por um lado, “a protecção dos direitos só será eficaz se o órgão de soberania chamado a intervir para dirimir o litígio proferir a decisão em tempo razoável, mais curto ou mais extenso, consoante a urgência, a natureza e a dificuldade da questão de facto ou de direito.
Mas, por outro lado, qualquer decisão judicial deve fundar-se num determinado grau de certeza ou, pelo menos de verosimilhança, que lhe confira segurança, o que implica o cumprimento de um determinado formalismo dentro do qual se pode inserir um espaço destinado ao prévio exercício do direito de defesa”.
Ora, nos procedimentos cautelares, apesar da sua especial natureza e finalidade, “não deixam de coexistir estes dois valores que o legislador procurou conciliar e que o aplicador não pode deixar de atender, sob pena de insegurança jurídica, quando a celeridade é colocada em posição prioritária, ou de ineficácia da providência cautelar, quando, porventura, o juiz coloque o valor da certeza jurídica num patamar excessivamente elevado e desproporcionado” (sublinhado nosso).
Acrescenta o mesmo Autor – idem, pág. 112 a 116 – que a norma injuntiva em que se traduz o transcrito nº. 2, do artº. 363º, do Cód. de Processo Civil, “dirige-se especialmente ao juiz e aos funcionários, não se prevendo, para os casos em que tais prazos sejam excedidos, quaisquer efeitos processuais. Por isso, resta apelar ao cumprimento dos deveres que devem orientar o exercício das respectivas funções e alertar para o facto de o desrespeito injustificado daquela norma poder acarretar responsabilidade de ordem disciplinar” (sublinhado nosso).
Ou seja, do enunciado regime jurídico-processual resulta a obrigatoriedade do “juiz conduzir o processo de modo a ser respeitado o prazo máximo previsto (…): 15 dias seguidos, em caso de procedimento cautelar sem audiência contraditória ; 2 meses, quando o requerido tenha de ser ouvido previamente”, impondo-se que na adopção de tais comportamentos processuais deva sempre ter-se “presente que, embora a lei não contenha qualquer sancionamento para a ultrapassagem dos mencionados prazos, eles constituem um sinal que, colocado na linha do horizonte do processo, deve guiar todos os intervenientes”.
Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – ob. cit., pág. 421 -, nos procedimentos cautelares, “a celeridade e a urgência são ainda impostas pela própria natureza dos interesses em causa, sendo potenciadas pelo facto da decisão do tribunal se basear, em regra, num juízo de verosimilhança. O juiz deve procurar o ponto de equilíbrio entre uma decisão demasiado apressada, mas injusta, e uma decisão mais segura, mas ineficaz para acautelar ou interesses carecidos de proteção” (sublinhado nosso).
De retorno ao caso concreto, constata-se, desde logo, que a decisão recorrida contém afirmações inexactas e não conformes com a realidade processual.
Com efeito, conforme resulta da cronologia processual que já supra consignámos, não existiu nos autos, por qualquer das partes, qualquer pedido de adiamento da audiência final ou de julgamento, e muito menos que tal tenha sido requerido “por diversas vezes”, conducente a “sucessivos adiamentos requeridos”.
O que sucedeu, por duas vezes (numa primeira vez, por parte da Ilustre Mandatária das Requerentes, e uma segunda vez por parte da Ilustre Mandatária da 1ª Requerida), foi o legal exercitar, por parte das Mandatárias legalmente constituídas, da comunicação enunciada no nº. 2, do artº. 151º, do Cód. de Processo Civil, informando os autos que se encontravam impedidas noutra diligência processual previamente marcada, vindo, consequentemente, propor a designação de datas alternativas, após prévia articulação com os demais mandatários.
Ora, tal acto processual nada tem a ver com pedidos de adiamento da data designada para a audiência/inquirição, nem resulta, por outro lado, que tal norma de marcação das diligências se deva ter por inaplicável na tipologia procedimental cautelar.
Por outro lado, decorridos precisamente 5 meses após a instauração da acção cautelar, vir considerar que o requisito de procedência do procedimento cautelar, em que se traduz o periculum in mora, se desvaneceu ou extinguiu na situação concreta cautelar apresentada pelas Requerentes, sem explicitar como tal ocorreu ou sucedeu, ou seja, sem fundamentar como logrou o Tribunal a quo chegar a tal conclusão, para além do que decorre do mero decurso do tempo, é solução que se nos afigura desprovida de qualquer acerto jurídico.
Com efeito, não deve o mero decurso de um determinado lapso temporal, e muito menos o ultrapassar dos prazos processualmente previstos no nº. 2, do artº. 363º, do Cód. de Processo Civil, que, conforme vimos, têm fundamentalmente por destinatários o julgador e funcionários judiciais, determinar que aquele requisito se deva ter por necessariamente, e supervenientemente, afectado, em termos de considerá-lo como desvanecido ou cessado.
Efectivamente, caso o Tribunal a quo entendesse que tal desvanecimento ou cessação havia ocorrido, e resultava supervenientemente do desenrolar processual, deveria justificá-lo e fundamentá-lo, explicitando as razões de facto e de direito para tal conclusão. O que não fez.
Ademais, resulta da mesma cronologia processual não ter qualquer das partes (e, nomeadamente as Requerentes) contribuído, por qualquer forma, para a ultrapassagem daquele prazo injuntivo.
Conforme referenciámos, para além das duas comunicações de impedimento das Mandatárias, legalmente justificadas e acolhidas, limitaram-se as mesmas a prestar nos autos as informações solicitadas relativamente a testemunhas não notificadas, no que concerne às suas temporárias ausências ou impedimentos, o que sempre cumpriram nos prazos fixados, sem vislumbre de qualquer conduta dilatória ou de falta de cooperação com o Tribunal.
Pelo exposto, para além de dificilmente compreensível, a decisão sob apelo não pode subsistir antes se impondo claro juízo de revogação.
Donde, num juízo de acolhimento/procedência, neste segmento, da pretensão recursória suscitada, determina-se o seguinte:
- a revogação da decisão recorrida/apelada ;
- a qual se substitui por decisão que determina o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, com designação de data para a audiência final.
*
Relativamente à tributação, obtendo vencimento as Recorrentes/Apelantes Autoras, e não tendo as Recorridas/Apeladas Rés apresentado quaisquer contra-alegações, nem sustentado o juízo oficioso revogado, as custas da presente apelação serão suportadas, a final, pela(s) parte(s) vencida(s).
***
IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar procedente o recurso de apelação interposto pelas Apelantes/Recorrentes/Requerentes/Autoras A … e B …, no qual figuram como Apeladas/Recorridas/Requeridas/Rés C … e D …, LDA. ;
b) Em consequência, decide-se:
- Revogar a decisão recorrida/apelada ;
- Que se substitui por decisão que determina o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, com designação de data para a audiência final ;
c) Relativamente à tributação, obtendo vencimento as Recorrentes/Apelantes Autoras, e não tendo as Recorridas/Apeladas Rés apresentado quaisquer contra-alegações, nem sustentado o juízo oficioso revogado, as custas da presente apelação serão suportadas, a final, pela(s) parte(s) vencida(s).
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Lisboa, 16 de Janeiro de 2025
Arlindo Crua
Rute Sobral
Laurinda Gemas
_______________________________________________________ [1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original. [2]Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, Gestlegal, 2017, pág. 126 e 127. [3]Idem, pág. 135 a 137. [4] Referem, ainda, o mesmo Autor e obra – fls. 138, nota 27 -, que os tribunais franceses vêm recusando a aplicação do princípio do contraditório “nos casos em que o tribunal se limita a retificar a qualificação feita pelas partes”. Acrescenta, porém, que tal só é de aceitar na medida em que “não acarrete a aplicação duma norma jurídica diversa ou, acarretando-a, os efeitos desta norma não sejam substancialmente diversos dos da norma precedentemente considerada, caso em que é indiscutível que nos encontramos perante uma nova questão de direito”. [5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 19 e 20. [6]Idem, pág. 20. [7] A nulidade processual cometida está a coberto de decisão judicial “que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação, podendo o vício em causa ser objecto de recurso e ser declarado por esta Relação” – assim, o douto aresto da RP de 24/09/2015 - Relatora: Judite Pires, Processo nº. 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt -, o qual cita jurisprudência e doutrina neste sentido. [8] Doutrinariamente, no mesmo sentido, referencia Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 183 - que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.
Referenciava, igualmente, Antunes Varela - Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p. 393 - que, “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Ainda perfilhando idêntica posição, defendia Anselmo de Castro - Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, p. 134 - que, “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”. [9] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 599. [10] Traduzem estas nulidades da sentença a “violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal) prolator de alguma decisão”, pertencendo ao género das nulidades judiciais ou adjectivas – cf., Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 368. [11] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, Vol. III, pág. 102. [12] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit, pág. 600 e 601. [13]Idem, pág. 603, citando doutrina de Alberto dos Reis, bem como o sustentado no douto aresto da RP de 28/10/2013, Processo nº. 3429/09.5TBGDM-A, no sentido de que “só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do nº. 1 do citado art. 615º do Novo Código Processo Civil. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”. [14] Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 370, especifica traduzir-se o presente vício na “falta de externação dos fundamentos de facto e de direito que os nºs. 3 e 4 do artº 607º impõem ao julgador. Só integra este vício, nos termos da doutrina e da jurisprudência correntes, a falta absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação simplesmente escassa, deficiente, medíocre ou mesmo errada ; [esta última pode afectar a consistência doutrinal da sentença, sujeitando-a a ser revogada ou alterada pelo tribunal superior, não gerando, contudo nulidade]”, citando Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, pág. 140. [15] Neste sentido, cf, entre outros, o douto aresto do STJ de 06/07/2017, Relator: Nunes Ribeiro, Processo nº. 121/11.4TVLSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf . [16] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit, pág. 603. [17] Relatora: Maria de Deus Correia, Processo nº. 7598/12.9TBCSC-A.L1-6, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf , citado pelo Apelante. [18] Assim, o douto Acórdão da RE de 16/05/1991, in CJ, Tomo III, pág. 287. [19] Acerca dos requisitos da concessão da tutela cautelar comum, cf., ainda, a elencagem definida por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 419. [20] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, Procedimento Cautelar Comum, Almedina, 1998, pág. 83 a 85. [21] O mesmo Autor cita M. Rodrigues, referenciado por M. de Almeida – Prov. Caut. Não Especificadas, pág. 22 -, segundo o qual, “para justificar o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de gerar uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito”. [22]Ob. cit., pág. 420, citando Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, ´págs. 155 e 156. [23]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 7 e 8. [24] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 88. [25] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – ob. cit., pág. 10 -, define-a como “aquela que antecipa a decisão ou uma providência executiva futura, sem prejuízo de, no primeiro caso, poder também antecipar, de outro modo, a realização do direito acautelado”. [26] Assim, o douto Acórdão da RP de 17/12/2008 – Relator: Luís Espírito Santo, Processo nº. 0837667 -, citado por José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – ob. cit., pág. 11. [27]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, Almedina, pág. 556 a 558. [28] Citando o Acórdão da RC de 22/11/2005, Processo nº. 3025/05, Relator: Barateiro Martins. [29] Cf., neste sentido, o citado douto Acórdão da RC de 19/10/2010, Processo nº. 358/10.3T2ILH.C1, Relator: Fonte Ramos. [30] Relator: Metello de Nápoles, Processo nº. 087455, in www.dgsi.pt . [31] Relator: Tomé de Carvalho, Processo nº. 99ª367, in www.dgsi.pt . [32] Relator: Ferreira de Almeida, Processo nº. 99B964, in www.dgsi.pt .