NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
ARRENDAMENTO
MORA NO PAGAMENTO DAS RENDAS
COMUNICAÇÃO
Sumário


1 – Perante a ausência de oposição, sendo a revelia operante, a não discriminação dos factos provados por confissão não torna a sentença nula, se a factualidade relevante está referida na fundamentação de direito da decisão proferida.
2 – Estando em causa a aplicação do disposto no art.º 15.º - EA do NRAU, se, perante a não dedução de oposição pelo arrendatário, se aplica o disposto nos arts.º 566.º a 568.º do C. P. Civil, tal significa que há que apreciar se o contrato de arrendamento foi validamente resolvido, considerando os factos assentes por confissão ou provados documentalmente.
3 – É aplicável à comunicação escrita a que se reporta o art.º 1083.º, n.º 6, do C. Civil as regras a que se reportam os art.º 9.º e 10.º do NRAU.
4 – Em caso de mora no pagamento das rendas superior a oito dias, o senhorio só pode resolver o contrato de arrendamento depois de cumprir a notificação a que alude o n.º 6 do art.º 1083.º do C. Civil, devendo este normativo ser interpretado no sentido de exigir que exista uma situação de mora posterior a essa notificação, só então, tendo existido aquela notificação, sendo inexigível para o senhorio a manutenção do contrato de arrendamento.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório (elaborado com base no que consta já dos autos):

Herança Indivisa Aberta Por Óbito de AA e Herança Indivisa Aberta Por Óbito de BB, deu entrada no Balcão do Arrendatário e do Senhorio (BAS) de requerimento de despejo contra CC.
Com o requerimento inicial, juntou, para além do mais, o contrato de arrendamento habitacional, notificação judicial avulsa (acompanhada do contrato de arrendamento e de duas missivas), procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e comprovativo do pagamento de imposto de selo.
O Balcão do Arrendatário e do Senhorio, remeteu notificação à requerida CC, nos termos do art.º 15.º-D do NRAU.
A requerida, no prazo legal, não deduziu oposição.
Nessa sequência, o Balcão do Arrendatário e do Senhorio, em 13/06/2024, converteu o requerimento de despejo em título para desocupação do locado (art.º 15.º-E do NRAU).
Remeteu então os autos para o Juízo Local Cível competente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15.º- EA, n.º 1 do NRAU.
A requerente apresentou o requerimento de 04/07/2024, pedindo que seja proferida decisão para entrada imediata no domicílio, nos termos dos arts.º 15.º - EA, n.º 1, alínea a) e 15.º- J, n.º 1 do NRAU.
Nos termos do disposto no art.º 15.º-EA, n.º 2 do NRAU, por despacho de 09/07/2024, foram julgados confessados os factos alegados no requerimento inicial de despejo apresentado pelas requerentes e foi ordenado o cumprimento do disposto no art.º 567.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (doravante C. P. Civil).
As requerentes apresentaram alegações, nas quais alegaram, em síntese, que o contrato de arrendamento, celebrado foi resolvido com o fundamento na mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas, durante o ano de 2023 e, tendo a requerida sido notificada, não entregou o imóvel.
Mais alegaram que depois de ter sido instaurado procedimento de despejo, a requerente ao mesmo não se opôs, tendo sido convertido em título para desocupação do locado, pelo que pugnam que seja proferida decisão para entrada imediata no domicílio e conferida a respetiva autorização, nos termos do disposto nos arts.º 15º - EA, n.º 1, alínea a) e 15º - J, n.º 1 do NRAU.
A requerida, também apresentou alegações, tendo pugnado pelo indeferimento do pedido de entrada imediata no locado. Alegou, para tanto e em síntese, que inexistindo factos alegados pelas requerentes em sede de requerimento de despejo, inexistem factos confessados pela requerida e o contrato de arrendamento continua em vigor, uma vez que as cartas juntas com a notificação judicial avulsa foram enviadas para endereço que não é o que consta do contrato de arrendamento como correspondente ao locado, pois dessas cartas não consta “andar”, pelo que não foram recebidas pela requerida e devolvidas ao remetente.
Termina, alegando que não foi cumprida a condição prevista no nº 6 do art.º 1083.º do C. Civil, pelo que a comunicação para a resolução do contrato de arrendamento não é válida, nem eficaz. 
Foi proferida sentença que considerou que o contrato de arrendamento foi validamente resolvido, autorizando-se a entrada imediata no imóvel.

A ré veio apresentar recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
(…)
Não foram apresentadas contra-alegações.

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Remetidos os autos a este Tribunal, foi determinado que os mesmos regressassem à 1.ª Instância tendo em vista a fixação do valor da ação e a apreciação pela Mm.ª Juiz a quo da nulidade da sentença que havia sido invocada, nos termos do art.º 617.º, n.º5, do C. P. Civil.

A Mm.ª Juiz fixou o valor da ação e entendeu não existir qualquer nulidade.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber se:

1 - a sentença é nula por falta de fundamentação;
2 – se deve manter-se a decisão proferida que julgou válida a resolução do contrato de arrendamento e, assim, confirmou a decisão de despejo e de entrada imediata no imóvel arrendado.
**
III - Do objeto do recurso:

1 - Estabelece o art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do C. P. Civil que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de 25/05/2023, da Juiz Desembargadora Maria João Matos, proc. 2901/21.3T8VCT-C.G1, in www.dgsi.pt, através desta norma reafirma-se “a obrigação imposta pelo arts. 154.º do CPC, e pelo art. 205.º, n.º 1, da CRP, do juiz fundamentar as suas decisões (não o podendo fazer por «simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade», conforme n.º 2, do art. 154.º citado).
Com efeito, visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.
Reconhece-se, deste modo, que é a fundamentação da decisão que assegurará ao cidadão o respetivo controlo e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado: a «motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso» (Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBBVNO-A.C1) (…).
Este esforço, exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida, «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281)”.
É hoje absolutamente claro que apenas a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto e de direito será geradora da nulidade em causa, e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação (veja-se, por todos, as referências doutrinais e jurisprudenciais referidas no Acórdão citado).
O que a lei comina com o vício da nulidade é a falta absoluta de fundamentação, pois que todas as demais irregularidades (insuficiência ou incorreção), afetando a sentença ou o despacho e podendo gerar a sua alteração, não conduzem à sua nulidade.
E, reportando-nos, mais uma vez, ao Acórdão referido e às citações dele constantes “a concreta «medida da fundamentação é, portanto, aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto» (Ac. do STJ, de 11.12.2008, citado pelo Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBVNO-A.C1)”.

Dispõe o art.º 665.º do  C. P. Civil que ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Insurge-se a recorrente quanto à falta de fundamentação de facto da decisão, pois que da mesma é apenas efetuada referência à confissão dos factos alegados no requerimento inicial e, neste, inexistem verdadeiramente factos alegados.
Do requerimento de despejo consta, apenas, como fundamento do despejo “resolução pelo senhorio (nos termos do n.º 4 do art.º 1083 do Código Civil”.
Nenhum facto foi alegado nesse requerimento.
Os factos constam, porém, dos documentos que foram juntos com esse requerimento e a eles se reporta a sentença proferida.

No texto da mesma referiu-se que:
Tendo em conta o alegado pela Requerida, importa a este respeito, referir que ainda que estes factos não constassem alegados no requerimento de despejo, onde foi exarado apenas como fundamento do despejo “Resolução pelo senhorio (Nos termos do nº4 do Artº 1083 do Código Civil)”, tendo em conta que ao mesmo foi junta a notificação judicial avulsa, donde resultam alegados os factos atinentes à mora no pagamento das rendas e às missivas que foram remetidas à Requerida, entendemos que tal documento é suficiente para concretizar a causa de pedir, tal como se defendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.04.2018, disponível in www.dgsi.pt, que “a notificação judicial avulsa enviada pelo Autor à Ré, concretizando o período das rendas em dívida, e junta com o requerimento inicial, pode, neste contexto, coadjuvar a perceção da causa de pedir do Autor”.
No mesmo Acórdão e ainda que a propósito da eventual ineptidão do requerimento, entendeu-se que “Requerido o despejo no BNA, indicando o senhorio como fundamento do mesmo “a resolução pelo senhorio (nos termos do nº 3 do art. 1083º do Código Civil) e juntando notificação judicial avulsa à inquilina na qual, além do mais, indica o período temporal em que vem ocorrendo o não pagamento das rendas, e tendo a inquilina, na sua oposição aceite a existência de mora no pagamento das rendas desde 2014, embora invoque diversas circunstâncias a título de exceção impeditiva do direito do requerente, existem elementos suficientes para o prosseguimento dos autos.”
Ora, no caso em apreço, nem sequer houve oposição, tendo-se verificado a revelia operante, pelo que os factos que resultam da conjugação do requerimento com os documentos juntos, nomeadamente o alegado na notificação judicial avulsa, têm de ser considerar assentes (…)”.
Temos, pois, que a sentença proferida refere os factos que está a considerar – e que resultam da notificação judicial avulsa realizada – que entende estarem confessados pela falta de oposição da requerida.
A sentença proferida não cumpre o disposto no art.º 607.º, n.º 3, do C. P. Civil e deveria cumprir apesar do que dispõe o art.º 567.º, n.º 3, do mesmo diploma.
Em primeiro lugar, porque em momento algum se referiu que a causa se revestia de manifesta simplicidade, que é o pressuposto material para se admitir uma fundamentação sumária do julgado.
Em segundo lugar porque esta fundamentação sumária do julgado não permitiria omitir a indicação dos fundamentos de facto da decisão, numa situação, como a dos autos, em que esses factos não constam sequer do requerimento apresentado pela requerente, mas tão só dos documentos que o acompanham.
A questão de serem ou não considerados – estes factos que constam dos documentos anexos ao requerimento de despejo – é questão diferente daquela que aqui apreciamos por ser objeto de recurso. Quanto àquela questão, entendemos, tal como o Tribunal de 1.ª Instância, que poderiam tais factos ser considerados, pois que a ré não deduziu qualquer oposição ao pedido de despejo e demonstrou nas alegações que apresentou nos termos do art.º 567.º, n.º2, do C. P. Civil, ter percebido exatamente o fundamento da ação, não podendo, assim, afirmar-se qualquer ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, ex vi art.º 186.º, n.º3, do C. P. Civil – veja-se que o conteúdo do requerimento de despejo é necessariamente muito sucinto, como se retira do disposto no art.º 15.º - B do NRAU.
Mas o que aqui está em causa é se esses factos deviam ou não ser descritos na sentença, discriminados, na expressão do art.º 607.º, n.º 3, do C. P. Civil. Ora, havendo ou não revelia da ré, tal discriminação seria, nestas circunstâncias, sempre necessária.
Daqui não se retira, contudo, que a sentença proferida seja nula.
Como se disse supra, só a absoluta falta de fundamentação de facto tornaria a sentença proferida nula. Como resulta da citação supra transcrita, na fundamentação jurídica da decisão, a Mm.ª Juiz titular indicou os factos que considerou – e que resultam da notificação judicial avulsa – e que em seu entender permitiam considerar validamente resolvido o contrato de arrendamento.
Tal como em situação semelhante se concluiu no Acórdão do Tribunal de Lisboa de 24/10/2024, da Juiz Desembargadora Rute Sobral, proc. 681/23.7T8MTA.L1-2, “embora a sentença recorrida não tenha sido elaborada de harmonia com o estatuído no artigo 607º, números 3 e 4, CPC, com expressa discriminação dos factos provados (sendo certo que não tendo considerado quaisquer factos não provados era inviável a sua discriminação), dado que a fundamentação de direito foi elaborada por reporte à factualidade apurada (embora não enunciada de forma expressa), afigura-se não ocorrer o vício mais grave legalmente enquadrado na nulidade do artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC. Efetivamente, da sua leitura, é possível apreender qual o acervo factual que lhe esteve subjacente.
Ao invés, a sentença padece de uma deficiente especificação dos fundamentos de facto, que pode ser suprida pelos poderes de substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 665º, CPC”.
Concluímos assim que a decisão proferida não é nula, embora esteja, no caso concreto, insuficientemente fundamentada em termos de matéria de facto, pois que não discriminou os factos que estavam confessados por falta de oposição da requerida.
Cumpre-nos agora, para que idêntica crítica não seja efetuada ao presente acórdão, discriminar tais factos provados, para, de seguida, apreciar os demais fundamentos da apelação.

2 – Estão, assim, provados, por confissão, os seguintes factos:
2.1. Por documento escrito, datado de 28/01/2020, AA declarou dar de arrendamento a CC, que declarou aceitar tal arrendamento, a fração autónoma situada no “Largo ... andar, ... ...”, destinado à habitação da requerida, com a duração de 3 anos, com início em 01/02/2020, mediante o pagamento da renda mensal de 350,00 euros, a ser paga no primeiro dia útil do mês posterior a que respeitar.
2.2. AA faleceu em ../../2021, tendo sido habilitados como seus herdeiros o viúvo BB e os filhos DD e EE.
2.3. BB faleceu em ../../2021 e foram habilitados como seus herdeiros os filhos DD e EE.
2.4. Por notificação judicial avulsa apresentada em juízo em 23/02/2024, as heranças abertas por morte dos referidos AA e BB requereram a notificação da requerida, indicando como domicílio desta o Largo ..., ..., ..., de que consideravam resolvido o contrato de arrendamento, alegando que esta não procedeu ao pagamento atempado das seguintes rendas:
- em 14/02/2023, pagou as rendas dos meses de janeiro e fevereiro de 2023;
- em 14/03/2023, pagou a renda do mês de março de 2023;
- em 18/04/2023, pagou a renda do mês de abril de 2023;
- em 06/06/2023, pagou as rendas dos meses de maio e junho de 2023;
- em 24/08/2023, pagou as rendas dos meses de julho e agosto de 2023;
- em 18/10/2023, pagou a renda do mês de setembro de 2023;
- em 17/12/2023, pagou as rendas dos meses de outubro e novembro de 2023; e
- em 30/12/2023, pagou a renda do mês de dezembro de 2023.
2.5. A notificação judicial foi realizada em 04/03/2024, ma morada Largo ..., ..., ....
2.6. Com o requerimento inicial da notificação judicial avulsa, as heranças apresentaram carta datada de 06/12/2023 em que comunicam à requerida a sua intenção de colocar fim ao contrato de arrendamento, atenta a existência de mora, superior a oito dias, no pagamento das rendas dos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, julho, agosto e setembro de 2023, alegando então estar ainda em falta as rendas de outubro, novembro e dezembro de 2023.
2.7. Esta carta foi remetida por via postal com aviso de receção, em 07/12/2023, para o Largo ..., ..., ... ....
2.8. A carta não foi recebida pela requerida, tendo sido deixado aviso para o seu levantamento em 11/12/2023, que não se verificou, sendo a carta devolvida com indicação de “objeto não reclamado”.
2.9. Com o requerimento inicial da notificação judicial avulsa, as heranças apresentaram carta datada de 07/01/2024 em que comunicam à requerida a sua intenção de colocar fim ao contrato de arrendamento, atenta a existência de mora, superior a oito dias, no pagamento das rendas dos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, julho, agosto e setembro de 2023, alegando então estar ainda em falta as rendas de outubro, novembro e dezembro de 2023.
2.10. Esta carta foi remetida por via postal com aviso de receção, em 08/01/2024, para o Largo ..., ..., ... ....
2.11. A carta não foi recebida pela requerida, tendo sido deixado aviso para o seu levantamento em 14/01/2024, que não se verificou, sendo a carta devolvida com indicação de “objeto não reclamado”.

3 –Vejamos, agora, se existe fundamento para, considerando estes factos, alterar a decisão proferida.
Começa por deixar-se claro que, considerando o procedimento especial em que nos encontramos, cumpre ao Tribunal aplicar o direito aos factos provados e julgados confessados, tal como foi feito em 1.ª Instância, apreciando-se se foi ou não validamente resolvido o contrato de arrendamento.
Perante o requerimento de despejo e a não apresentação de oposição, determina o art.º 15.º - E do NRAU que o Balcão do Arrendatário e do Senhorio converte o requerimento de despejo em título para a desocupação do arrendado, devendo o processo ser concluso ao juiz para proferir decisão judicial para entrada no domicílio, nos termos do art.º 15.º - EA do mesmo diploma, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos art.º 566.º a 568.º do C. P. Civil.
Deste regime retira-se, com clareza, que se os factos alegados se devem considerar confessados, a decisão judicial que determina a entrada no domicílio arrendado depende da verificação judicial dos fundamentos invocados para a cessação do contrato de arrendamento.
O Tribunal de 1.ª Instância concluiu pela válida resolução do contrato de arrendamento e, assim, que o imóvel deveria ser desocupado, permitindo a entrada imediata no domicílio arrendado.
É esta apreciação que, em sede de mérito da apelação, foi colocada em causa pela arrendatária recorrente.
Alega a recorrente que as cartas que foram remetidas para a requerida não foram enviadas para a exata morada que consta do contrato de arrendamento, não podendo julgar-se validamente resolvido o contrato de arrendamento, pois que não foi cumprido o disposto no n.º 6 do art.º 1083.º do C. Civil.
Começa por dizer-se que só por brincadeira poderá a recorrente afirmar que as cartas remetidas – e agora referidas na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – não foram remetidas para o local do imóvel arrendado (como impõe o art.º 9.º, n.º 2, da Lei 6/2006, de 27/02).
O facto de no contrato de arrendamento se referir a palavra “andar”, sem que exista qualquer referência a qualquer andar específico, que não se sabe sequer se existe porque nem isso foi alegado, não legitima a conclusão de ser, afinal, diferente daquela a morada para a qual o senhorio enviou as duas cartas registadas com aviso de receção.
Não pode, porém, ignorar-se que nesta ação está apenas em causa, como fundamento para a resolução do contrato, o que está previsto no n.º 4 do art.º 1083.º do C. Civil.
É inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento “no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses”.
Nesta situação em concreto, o senhorio apenas pode resolver o contrato, se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de receção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos (n.º 6 da norma citada).
Nos termos dos arts.º 9.º e 10.º do NRAU – Lei 6/2006, de 27/02 – as comunicações legalmente exigíveis entre as partes e relativas à cessação do contrato de arrendamento têm de ser efetuadas por carta registada com aviso de receção, regulando a lei em que termos se considera efetuada a comunicação quando a carta remetida é devolvida por não ter sido levantada no prazo previsto no regulamento de serviços postais.
Reportando-se a comunicação do art.º 1083.º, n.º 6, do C. Civil ao cumprimento de uma formalidade escrita e que se exige seja rececionada pelo destinatário (pois que a lei se reporta à necessidade de ser efetuada por carta registada com aviso de receção, como decorreria sempre do disposto no art.º 224.º do C. Civil), sem a qual não é válida a resolução do contrato de arrendamento, ainda que se verifique a situação prevista no n.º4 daquela norma, não temos dúvidas que aquelas regras do NRAU são aplicáveis para a considerar recebida pela arrendatária, ainda que se saiba que a notificação remetida pelo senhorio não chegou ao seu destinatário.
Neste caso, nos termos do art.º 10.º, n.º 2, alínea c), e n.º 3 do NRAU, o remetente deve enviar nova carta, decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta. Essa segunda carta foi remetida pelo senhorio, como resulta da matéria de facto provada.
Porém, o n.º 4 da norma citada estabelece a data em que se considera esta segunda carta recebida e, assim, a comunicação conhecida do arrendatário: no 10.º dia posterior ao do seu envio, que se verificou em 08/01/2024. Assim, a lei ficciona que a arrendatária tomou conhecimento da intenção do senhorio de fazer cessar o contrato de arrendamento, pela situação de mora superior a oito dias no pagamento das rendas, em 18/01/2024.   
O sentido do art.º 1083.º, n.º 6, do C. Civil é claro.
Ao impor ao senhorio que comunique ao arrendatário, após três situações de mora relevante, que é sua intenção colocar termo ao contrato de arrendamento, com esse fundamento, tal significa que só nesta situação a quarta situação de mora assume o relevo de tornar inexigível para o senhorio a manutenção do contrato de arrendamento, legitimando a resolução do contrato de arrendamento.
É que, de outra forma, entendeu o legislador, tal situação de mora, ainda que reiterada, mas que vai sendo tolerada pelo senhorio, não torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento.
 Ora, na situação em apreço, as heranças que aqui são autoras remeteram uma carta à requerida invocando a mora no pagamento da renda superior a oito dias em grande parte das rendas vencidas no ano de 2023.
Esquecem-se, porém, que, nos termos do contrato de arrendamento celebrado, a renda mensal deveria ser paga no primeiro dia útil do mês posterior a que respeitar.
Assim, a renda de janeiro deveria ser paga no dia primeiro dia útil do mês de fevereiro e assim sucessivamente.
Tal significa que das rendas invocadas, na data em que foi remetida a primeira carta para a requerida, as únicas que foram pagas para além do oitavo dia da mora foram as relativas a janeiro, julho, setembro e outubro de 2023 (e que deveriam ser pagas no primeiro dia útil de fevereiro, agosto, outubro e novembro).
Em relação às demais, nada data do envio da carta, não existe qualquer situação de mora ou esta não ultrapassou os oito dias previstos na lei, como acontecia com a renda de novembro (já que esta renda tinha de ser paga no dia 02/12, primeiro dia útil do mês posterior a que respeitava, estando a carta datada de 06/12).
Não ignora o Tribunal que as requerentes invocaram na notificação judicial avulsa a aplicação do art.º 20.º do NRAU quanto ao momento de vencimento do pagamento de cada renda. Contudo, como aí referem, essa norma tem carater supletivo e, no caso em apreço, o contrato de arrendamento que celebraram – e que juntaram – tem norma expressa sobre o momento de pagamento da renda, sendo, naturalmente, a norma contratual a aplicável. 
Apenas ao senhorio é imputável o envio desta carta quando esta situação de mora se havia verificado já por quatro vezes, sendo que nenhuma outra situação, posterior à data em que se considera que a requerida tomou conhecimento dessa carta (18/01/2024, na sequência do que dispõe o art.º 10.º do NRAU acima citado), revela a existência de mora que, nos termos do n.º 6 do art.º 1083.º do C. Civil, permite a resolução do contrato de arrendamento.
É certo que, nessa data, 18/01/2024, já existia mora superior a oito dias no pagamento da renda de novembro (que, como se disse, deveria ser paga no dia 02/12 e foi paga a 17/12).
Porém, esta situação de mora é anterior à data em que a carta remetida pelo senhorio produziu os seus efeitos (o 10.º dia posterior ao envio da segunda carta), só relevando para tornar inexigível a manutenção do contrato qualquer nova situação de mora da arrendatária após ter sido avisada da intenção do senhorio de fazer cessar o contrato de arrendamento com aquele fundamento.
Consideramos, pois, que a carta remetida pelas aqui autoras apenas poderia surtir o efeito pretendido pela lei se, posteriormente, tivesse existido qualquer nova situação de mora, só assim cumprindo a função de advertência que a lei lhe confere para permitir que se considere legitima a resolução do contrato de arrendamento por inexigibilidade na sua manutenção (a idêntica conclusão chegaríamos, ainda que considerássemos existir mora da arrendatária em relação a todas as rendas referidas na notificação judicial avulsa).
É, afinal, esta última situação de mora da arrendatária, que tem de ser posterior à comunicação que lhe é efetuada pelo senhorio, que torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, permitindo a sua resolução.
Este n.º6 do art.º 1083.º do C. Civil visa que o arrendatário, por um lado, “não seja confrontado por uma decisão-surpresa de cessação justificada do contrato e, por outro, que ao ter conhecimento de que se encontra em incumprimento, possa fazer cessar tal situação antes de atingir o momento em que será tarde demais, assim obstando a uma futura resolução contratual, de todo o modo, indesejável” - Edgar Alexandre Martins Valente, in “Arrendamento Urbano – Comentário às alterações legislativas introduzidas ao regime vigente”, Almedina 2019, pág. 27-28, em comentário ao artigo 1083.º do CC.
Quer isto dizer que, no quadro fáctico trazido aos autos, o senhorio não podia resolver o contrato de arrendamento com fundamento no art.º 1083.º, n.º 4, do C. Civil, pois que não avisou a arrendatária dessa sua intenção antes de ser ter verificado a última situação de mora que reputou de relevante para resolver o contrato de arrendado.
Neste exato sentido, veja-se Código Civil Anotado, 2ª edição revista e atualizada de Ana Prata e outros, em anotação ao referido normativo: “ao prever que o aviso seja emitido ao fim de três atrasos, parece que a Lei quer dar ao arrendatário apenas mais uma oportunidade”.
Note-se que a notificação judicial avulsa foi apresentada em 23/02/2024 e, considerando a data em que a requerida foi notificada da carta remetida para cumprimento do disposto no art.º 1083.º, n.º 6, do C. P. Civil, nesse momento, apenas se colocava a hipótese de ter existido mora superior a oito dias no pagamento da renda de janeiro de 2024 (e que deveria ser paga no primeiro dia útil de fevereiro de 2024), sendo certo que tal mora não foi alegada na comunicação do senhorio que efetivamente declarou a resolução do contrato de arrendamento.  
Não sendo validamente resolvido o contrato de arrendamento, não existe fundamento para a desocupação do arrendado ou para a entrada imediata no mesmo, sendo, assim, a apelação procedente.
As autoras suportarão as custas da ação e do recurso, atento o seu decaimento, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
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IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, revogam a decisão proferida que declarou a válida resolução do contrato de arrendamento e permitiu a imediata entrada no imóvel arrendado, julgando a ação, que visava a concretização do despejo, improcedente.
Custas da ação e do recurso pelas autoras, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
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Guimarães, 23/01/2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)

Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Elisabete Coelho de Moura Alves
2ª Adjunta: Sandra Melo