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DANOS CAUSADOS POR IMÓVEL
PRESUNÇÃO DE CULPA
ARRENDATÁRIO
Sumário
I – A presunção de culpa prevista no artº 493º, nº 1, do C. Civil, não incide necessária e obrigatoriamente sobre o proprietário do imóvel, ela pode incidir sobre aquele que tiver a seu cargo o dever de vigiar, tiver em seu poder o imóvel, ou seja, o responsável não é (apenas), necessariamente, o proprietário da coisa, podendo ser um comodatário, ou um depositário, ou um credor pignoratício, ou um arrendatário, já que, também neste caso, o dever de vigilância, em tal caso, decorre necessariamente do seu dever de restituir a coisa findo o contrato, conforme artº 1038.º, do CC. II – Encontra-se afastada a presunção de culpa do proprietário do imóvel, prevista no artº 493º, nº 1, do C. Civil quando o imóvel se encontrava arrendado na data dos factos, provindo os danos do entupimento do sifão por actuação da arrendatária, por não ser exigível imputar ao senhorio falta de controlo, monitorização, supervisão, aferido este comportamento num plano do pater bonus familiae, ou seja, de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares para evitar a produção e eclosão do evento, porquanto não era exigível que adoptasse qualquer acção e comportamento susceptível de prever e prevenir o não entupimento do sifão.
Texto Integral
Proc. nº 84/23.3T8ILH.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Local Competência Genérica de Ílhavo - Juiz 1
I - Relatório:
AA e mulher BB, intentaram a presente ação de condenação, sob a forma de processo comum contra A..., S. A. peticionando a condenação desta:
i. a reconhecer que a fração identificada no artigo 1º da petição inicial, propriedade dos Autores, apresenta os danos descritos de 24º a 29º, além daqueles que se vierem apurar no decurso desta ação;
ii. a proceder, ou mandar proceder, à sua custa e por sua conta e risco às obras necessárias à eliminação dos danos verificados na fracção identificada em 1º, da propriedade dos Autores, descritos de 24º a 29º, bem como aqueles que se vierem a apurar no decurso desta ação; com início no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da decisão proferida por este Tribunal, e conclusão no prazo de três meses;
iii. caso a Ré não inicie as obras acima mencionadas no prazo descrito deverá ser condenada a pagar aos Autores a quantia necessária para estes levarem a efeito as reparações dos ditos danos, que fixa em valor não inferior a 2.865,00€. (dois mil oitocentos e sessenta e cinco euros).
Subsidiariamente, peticiona só os pedidos descritos em i. e ii..
Subsidiariamente, peticiona a condenação da ré nos pedidos formulados em i., iii..
Por fim, os autores peticionam a condenação da ré no pagamento aos autores da quantia de €2.200,00 (dois mil e duzentos euros) a título de danos não patrimoniais.
Para tanto, alegam, em síntese, que os autores são donos e legítimos possuidores da fração autónoma designada pela letra J, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., concelho de Ílhavo, distrito de Aveiro, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º ..., onde ocorreu uma inundação, proveniente da fração L do mesmo prédio, correspondente ao segundo andar esquerdo, pertença dos réus.
Mais, alegam que a ré deveria ter adotado todos os cuidados necessários para evitar o descrito infortúnio acontecesse na sua fração, o que não sucedeu, após o que identifica, descreve e quantifica todos os danos sofridos.
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Regularmente citada, a ré, apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação.
A ré impugnou a generalidade dos factos alegados pelos autores, invocando que à data em que se verificou a alegada infiltração que a sua fração se encontrava arrendada; que não lhes foi comunicado qualquer sinistro; e que apenas tiveram conhecimento do alegado pelos autores com a sua citação para os termos desta ação.
Com o objetivo de apurar o sucedido, a ré contactou a, então, sua arrendatária que lhe transmitiu ter havido um entupimento no tubo da fração designada pela letra L, da sua inteira responsabilidade, que foi resolvido no próprio dia; razão pela qual impugnam os danos alegadamente sofridos pelos autores e respetivo nexo de causalidade.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde, além do mais, se fixou o valor da ação.
Foi fixado o objeto do litígio, os temas sujeitos a prova e definida a prova a produzir nestes autos em conformidade com os respetivos requerimentos probatórios apresentados pelas partes.
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Antes do início da audiência final, os autores, com fundamento no agravamento do custo de reparação do imóvel, requereram a ampliação do pedido para o montante de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros), a que acrescerá o IVA devido, o que foi admitido, por observância dos respetivos pressupostos.
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Instruída a causa, procedeu-se à realização de audiência final, seguindo-se as formalidades legais.
Realizou-se a audiência final com observância das formalidades legais.
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Após foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente:
a. condenar a ré A..., S. A. a proceder, à sua custa e por sua conta e risco, às obras necessárias à eliminação dos danos verificados na fracção autónoma designada pela letra J, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., e melhor descritos no artigo 8º da matéria provada, com início nos trinta dias seguintes ao trânsito em julgado da presente sentença e términus nos 90 dias seguintes a esse mesmo trânsito.
b. decorrido o prazo descrito em a), sem que a ré A..., S. A. dê início às obras descritas, desde já, condeno-a a pagar aos autores AA e BB a quantia de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros), a que acrescerá o valor do IVA em vigor, para que, diretamente, satisfaçam os custos de reparação dos danos melhor descritos no artigo 8º da matéria de facto.
c. condenar a ré A..., S. A. a pagar a AA e BB a quantia de 1.250,00€ (mil, duzentos e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.
d. absolver a ré A..., S. A. do demais contra si
e. condenar os autores e a ré no pagamento das custas processuais, na proporção do respetivo decaimento.
Notifique e registe.
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É desta decisão que, inconformada, a Ré interpõe recurso, terminando as suas alegações com as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A Recorrente é proprietária da fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao 2º andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., concelho de Ílhavo, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n. ...-L;
2. Por sua vez, os Recorridos são proprietários da fração autónoma designada pela letra J, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., concelho de Ílhavo, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº ...-J;
3. No dia 06/05/2022 ocorreu um sinistro na fração “J” propriedade dos Recorridos, de infiltrações, tudo indicando tratar-se de alguma anomalia proveniente da fração “L” existente no piso superior àquela, propriedade da Recorrente.
2. Sinistro esse que o filho e nora dos Recorridos ao deslocarem-se à fração “L” propriedade da Recorrente, à qual lhe foi dado o acesso pela arrendatária da Recorrente de nome CC, tendo verificado que a cozinha se encontrava inundada, resultante de entupimento de um sifão existente na cozinha.
3. A arrendatária resolveu tal sinistro, como lhe competia e a isso estava obrigada por força das obrigações e deveres decorrentes do contrato de arrendamento celebrado com a Recorrente e, que o filho e nora dos Recorridos depois de terem ido à fração da Recorrente, iniciaram a limpeza da cozinha da fração dos Recorridos, tendo as escorrências de água durado até às 02h00.
4. Ora, nos termos dos artigos 1022 e 1023 ambos do Código Civil, a noção legal de arrendamento, configura a existência de um contrato mediante o qual nascem na esfera jurídica das duas partes intervenientes - senhorio e arrendatário-direitos e obrigações recíprocas.
5. Por um lado, na esfera do senhorio, nasce a obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo temporário de bem imóvel, sem limitações ou perturbações.
6. Por outro, na esfera do arrendatário nasce a obrigação de pagar o montante acordado como retribuição do uso e fruição do locado e de o cuidar de forma diligente, e no fim do contrato a obrigação de restituição do imóvel, tal como o recebeu.
7. Dúvidas não existem que à data dos factos e, ficou provado na douta sentença, que a fração propriedade da Recorrente estava arrendada.
8. Ou seja, por força do contrato de arrendamento, a arrendatária usa e frui o gozo do locado, usando-o na sua plenitude, inclusive, deitando para banca da cozinha todas as gorduras ou restos de gorduras que por sua vez são escoadas pelas canalizações ou o que quer que seja e, que no caso concreto terá causado o entupimento do sifão existente na cozinha, e que terá sido essa situação que terá dado origem às infiltrações na fração propriedade dos Recorridos.
9. Ora, manifestamente demonstrado e provado fica, que o referido entupimento de um tubo na fração L propriedade da Recorrente não teve em momento algum qualquer intervenção ou participação da Recorrente, nem por acção, nem por omissão, tendo sido sim, provocado, unicamente pela arrendatária.
10. Entupimento que a arrendatária, como lhe competia e a isso estava obrigada, resolveu no próprio dia, foram os Recorridos que o confessaram, ficando provado que depois de se deslocarem à fração da Recorrente, deram inicio à limpeza da sua fração e que as infiltrações cessaram pelas 2h00m (ex vi pontos 9 e 10 da matéria de facto provada)
11. Pelo que o Tribunal a quo ao dar como provada que a fração propriedade da Recorrente estava arrendada à data dos factos, como efetivamente estava, não pode de forma alguma decidir a existência de prática de facto ilícito, da autoria e com culpa da Recorrente.
12. Como é que a Recorrente pode ter culpa por ato praticado ou omitido por terceiro, no caso sub-judice a arrendatária que por força do contrato de arrendamento tem o uso, a fruição e o controle sobre a fração em que habita e pela qual paga renda?
13. Como é que a Recorrente podia prever e evitar o entupimento do sifão unicamente provocado pelo uso ou melhor atrevemo-nos a dizer, pelo mau uso da fração por parte da arrendatária?
14. Pelo que desde logo, entende-se não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a ilicitude do ato e bem assim, a culpa por parte da Recorrente.
15. Acresce ainda que tendo o sinistro ocorrido em 06/05/22, a Recorrente continua a não entender, a razão dos Recorridos não terem participado o sinistro ocorrido à Companhia de Seguros e, só em 31/01/2023 é que decidem interpor a ação contra a Recorrente, o que é elucidativo da falta de diligência daqueles, que se estavam tristes, como alegam, não se importaram de estar tanto tempo com essa alegada tristeza, que tudo indica que a cozinha estará na mesma.
16. Havendo aqui, isso sim, parece-nos um aproveitamento da situação e pretenderem locupletar-se à custa do património da Recorrente, para renovar uma cozinha instalada em 2014.
17. A razão de os Recorridos não terem participado o sinistro à Seguradora, só eles saberão, mas é no mínimo estranho que não o tenham feito, tudo parecendo indicar, esta iria declinar qualquer responsabilidade da Recorrente e, em momento algum concordariam com os valores peticionados, relativamente a móveis e exaustor colocados em 2014, que naturalmente estavam usados, gastos e com ferrugem e, não por força das infiltrações provocadas pelo entupimento do sifão por parte da arrendatária.
18. Por outro lado, a Recorrente nunca, em momento algum, foi interpelada pelos Recorridos, para o quer que seja.
19. A carta que a ilustre mandatária dos Recorridos refere ter enviado à Recorrente, em 28/12/22, mas que sempre se dirá, como se disse na contestação, que foi endereçada para uma morada que não a sede da Recorrente, mas igualmente não foi feita qualquer prova de que a mesma tenha chegado ao conhecimento da destinatária, sido recebida, ou devolvida sequer, pelo que a factualidade do ponto 19 da douta sentença, deveria ter sido considerada não provada.
20. No que respeita aos factos julgados não provados, entende-se salvo o devido respeito, não lograram os Recorridos provar que a Recorrente tenha recebido o escrito, enviado a 28/12/22, pelo que deveria ter sido considerado facto provado na douta sentença, o alegado pela Recorrente.
21. Não tendo os Recorridos logrado provar factos que lhe incumbiam, como o recebimento pela Recorrente da missiva enviada em 28/12/22 pela ilustre mandatária, deviam terem sido considerados julgados como provados os factos alegados pela Recorrente de que nunca foi interpelada pelos Recorridos.
22. Pelo que a douta sentença não podia decidir, como decidiu, por não provado, pois competia aos Recorridos fazer prova de que a carta tinha chegado à sua destinatária a Recorrente, o que não o fez, pelo que deveria ter sido como dado provado que a Recorrente só teve conhecimento do sinistro ao ser citada para a ação.
23. Além de que junto ao processo, o valor das alegadas reparações, é apenas um orçamento que foi impugnado pela Recorrente e que todos bem sabemos que um tal orçamento é insuficiente para corporizar um pedido que deverá radicar na sequente e efetiva reparação com a menção do preço ou do custo do que foi realmente executado e aplicado, traduzida em adequada “documentação de suporte” (v. g., “folha de obra” e subsequente fatura ou fatura-recibo).
24. As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artº 341º do CC).
25. Acresce ainda, que se a lei confere o direito ao ressarcimento de todos os danos emergentes do evento (art.ºs 562º e seguintes do CC), a parte contrária sempre deverá ter a possibilidade de se pronunciar sobre todos os factos que fundamentem a responsabilidade civil extracontratual (cf. art.ºs 483º do CC e 3º do CPC).
26. A prova documental é uma prova real que põe o juiz em presença dum objeto material que lhe representa o facto a averiguar.
27. Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém, importando indemnizar os prejuízos causados por esse facto (art.º 483º do CC).
28. Pelo que a douta sentença deveria ter dado como não provado o alegado valor dos danos inseridos num simples orçamento.
29. Como é que tendo sido resolvida a situação pela arrendatária no próprio dia 06/05/22 e o filho e nora dos Recorridos depois de terem falado com a arrendatária e, após terem-se deslocado à fração da Recorrente, deram início à limpeza da cozinha da fração dos Recorridos, e as escorrências cessaram, pelas 02h00m, (factos provados nos pontos 9 e 10) como é resultam danos como os contidos no alegado orçamento?
30. E é no mínimo estranho e contraditório que o filho e a nora dos Recorridos tenham iniciado a limpeza da cozinha, quando referem que as escorrências cessaram nesse dia pelas 02h00m.
31. Aliás na douta sentença, no ponto 5 foi dado como provado que “No dia 06.05.2022, ao final da tarde, alertado por DD e EE, o autor constatou que a cozinha da fração descrita em 1) apresentava sinais evidentes de infiltrações de água…..”
32. Como é que podia o Recorrido constatar o que quer que seja, sem que se tenha deslocado nesse dia ao imóvel, tendo apenas tido conhecimento da situação pelo que lhe foi relatado pelo filho dos Recorridos, pelo que a douta sentença, também aqui não podia dar como provado que o Recorrido marido constatou o que quer que seja, pois nem sequer se encontrava no imóvel.
33. Por outro lado, ficou provado que os Recorridos contactaram a procuradora da Recorrente e que aquela, logo de imediato, diligenciou para que se deslocasse ao local um técnico para aferir o que realmente se passou e ou que se passava, e concluiu pela não verificação dos danos alegados pelos Recorridos e ainda, que o assunto tinha sido resolvido pela arrendatária, como lhe competia e estava obrigada.
34. No entanto, apesar do testemunho prestado pelo referido perito, o Tribunal a quo desvalorizou tal prova factual, fazendo tábua rasa da atuação diligente da procuradora da Recorrente em pretender apurar o que realmente se tinha passado.
35. Aliás. a matéria do ponto 21 da douta sentença não devia ter sido dado como provado, uma vez que no ponto 13 da mesma sentença, ficou provado que a procuradora da Recorrente respondeu em 08/06/22 ao mail dos Recorridos.
36. E no ponto 15, foi dado como provado, que à fração dos Recorridos se deslocou um perito, a mando da procuradora e não da Recorrente, dizemos nós, para verificar a existência dos danos no imóvel.
37. No domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade (que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar): a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
38. Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado, a não ser que beneficie de uma presunção legal, o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de elidir essa presunção.
39. Entre as situações que, no domínio dessa responsabilidade, invertem tal ónus de prova, estabelecendo uma presunção de culpa contra o lesante encontra-se aquela prevista no artº. 493º, nº. 1, do C. Civil.
40. A responsabilidade delitual prevista no art. 493º, nº 1, do CC, assenta na omissão de um dever de vigilância a cargo do proprietário-detentor com poder sobre coisa imóvel ou móvel na qual tem origem os danos causados na esfera jurídica alheia.
41. Mas estando o imóvel arrendado, como provado ficou, quem detinha o imóvel era arrendatária e não a Recorrente, pelo que era a arrendatária que tinha a seu cargo por força do contrato de arrendamento o poder sobre o imóvel e o dever de o vigiar.
42. Logo, a Recorrente não praticou qualquer ato ilícito, nem por ação, nem por omissão, pelo que afastado fica desde logo o primeiro pressuposto da responsabilidade civil.
43. Mas, também, afastado fica o segundo elemento, a culpa, pois a Recorrente, não tendo na sua posse o imóvel, não tinha, nem o dever de o vigiar, nem como prever que a arrendatária por mau uso ou falta de cuidado desta, ou seja, ato de terceiro, tenha provocado o entupimento do sifão existente na cozinha.
44. O Tribunal a quo subsumiu a factualidade no regime predisposto pelo art. 493º do CCiv. (responsabilidade civil subjectiva por «danos causados por coisas, animais ou atividades») para concluir pela responsabilidade e condenação da Recorrente, que na senda da douta sentença, teve uma conduta ilícita e culposa e causadora de danos por coisas em seu poder e relativamente às quais era de exigir ao eventual responsável um dever de vigilância cuja violação foi causalmente adequada a produzir os danos indemnizáveis.
45. Voltamos a repetir, que só a verificação simultânea de todos estes elementos da responsabilidade civil, poderá constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado, apenas desta forma surgindo o correspondente direito de crédito deste último, ou seja, o direito a ser reparado, o que no caso sub-judice não se verificam.
46. O Tribunal de 1ªa Instância fez errada apreciação e interpretação do artigo 493º, nº 1 do Código Civil, ao decidir pela condenação da Recorrente dos pedidos, com base em presunção de culpa e, na apreciação da prova que só podia conduzir à absolvição da Recorrente, por falta da verificação cumulativa de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do artigo 483º do citado diploma.
47. Compete ao lesado provar todos os pressupostos da responsabilidade, designadamente a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa, e o referido nexo causal (art.ºs 342º, nº 1 e 487º, nº 1, do Código Civil).
48. A violação do direito de outrem traduz-se na infração de um direito subjetivo de outra pessoa.
49. Aqui se abrangem as ofensas aos direitos absolutos, nomeadamente os direitos reais (direitos sobre as coisas), os direitos de personalidade, a propriedade intelectual (direitos de autor e propriedade industrial) e os direitos familiares de eficácia absoluta.
50. Tem-se entendido que “o facto é ilícito quando viola um direito subjectivo de outrem, de natureza absoluta, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como acontece, nesta última situação, quando a norma violada protege interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo, dependendo, então, a indemnização a arbitrar que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
51. Na verdade, no nº 1 do artigo 493º do Código Civil, estabelece-se uma presunção legal de culpa contra quem detém coisa imóvel, com a correspondente inversão do ónus de prova, tendo apenas a parte a favor de quem é estabelecida tal presunção o ónus de provar o facto que serve de base à mesma.
52. Ora, tendo resultado provado, que a fração propriedade da Recorrente se encontrava arrendada à data da ocorrência dos factos, tendo a situação sido resolvida pela própria arrendatária no dia 06/05/22, como lhe competia e a isso estava obrigada por força dos deveres de arrendatária, pois era ela que utilizava e detinha a posse do imóvel, foi a arrendatária, com a sua utilização, que provocou o entupimento do sifão da cozinha.
53. Fica demonstrado e provado que a Recorrente, nenhuma culpa teve ou houve da sua parte na produção do evento, não tinha como os prever, pois só a arrendatária detém a posse do imóvel e o cuidado de o usar de forma diligente, apontando sim, para o facto, de que os alegados danos ocorridos na fração dos Recorridos, se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
54. Decorre do disposto no art.º 483º do Código Civil que a obrigação de indemnizar com origem na responsabilidade civil subjetiva depende da verificação cumulativa de determinados pressupostos, a saber: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
55. O primeiro dos enunciados pressupostos é a existência de um comportamento -que não tem de consistir necessariamente numa ação, podendo traduzir-se numa omissão - posto que seja dominável pela vontade.
56. Todavia, no caso das omissões, e como resulta do disposto no art.º 486º, a imputação ao agente da conduta omissiva exige que sobre ele recaia o dever de praticar o ato omitido, uma vez que inexiste um dever genérico de evitar a ocorrência de danos.
57. “Daí que para alguém ser responsável por omissão pelos danos sofridos por outrem se exija, para além dos outros pressupostos da responsabilidade delitual, um dever específico, que torne um particular sujeito garante da não ocorrência desses danos”.
58. Tal específico dever pode resultar de contrato ou ser imposto por lei, como ocorre na previsão dos art.ºs 491º, 492º e 493º, havendo que ter em consideração, neste domínio, os denominados deveres de prevenção do perigo (ou, noutra terminologia, deveres de segurança no tráfico), cujo acolhimento permite estender a responsabilidade delitual por omissão a todo aquele que, exercendo o domínio de facto sobre uma coisa, móvel ou imóvel, ou determinada atividade, sendo aquela e esta suscetíveis de causar danos a terceiro, não tome as providências destinadas a evitá-los.
59. A existência de um dever genérico de prevenção impede assim ao criador ou mantenedor de uma situação especial de perigo que proceda à sua remoção, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão.
60. Do nº 1 do art.º 483º extraem-se portanto com clareza as modalidades que a ilicitude pode revestir: violação de direitos subjetivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, incluindo os assinalados deveres de segurança no tráfico, que terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos fatores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de “uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa”.
61. A culpa exprime-se através de um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de modo a evitar o facto ilícito, e a sua apreciação, na ausência de outro critério legal, afere-se pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, por força do princípio consagrado no art.º 487.º, n.º 2, do CC.
66. Finalmente, é necessário que do facto ilícito e culposo resulte um dano – o prejuízo, a perda “in natura” que o lesado sofreu, como consequência do facto, nos seus interesses (materiais, espirituais ou morais) – e que interceda um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
67. No presente caso, ficou demonstrado que no dia 06/05/22 ocorreu uma inundação na fração propriedade da Recorrente, que à data se encontrava arrendada, tendo sido a arrendatária a permitir o acesso ao imóvel ao filho e nora dos Recorridos, e que tal inundação resultou de entupimento de sifão existente na cozinha.
68. Todavia, entende-se que não ficou demonstrado e, muito menos provado, antes pelo contrário, que o entupimento do sifão, causado pela arrendatária, cujo problema foi igualmente resolvido por esta, tenha sido causado por conduta ilícita e culposa por parte da Recorrente, conforme alegado pelos Recorridos e que a douta sentença veio dar como provados. (sublinhado e negrito nosso).
69. Ora, conforme referido, não existe obrigação de indemnizar sem a imputação ao agente de um ato ou omissão ilícitos, recaindo sobre os Recorridos o ónus da prova respetiva.
70. Assim, entende-se, que não foi demonstrada e, nem provada, que a causa das infiltrações, é ou deva ser imputável à Recorrente, pelo que deveria ter sido considerado como não provado a ilicitude e a culpa da Recorrente e, por conseguinte, não ser condenada a pagar qualquer valor indemnizatório aos Recorridos seja por danos patrimoniais, seja por danos não patrimoniais.
71. É inolvidável que nos encontramos no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, também conhecida por responsabilidade subjetiva ou delitual (prevista no artº. 483º e seguintes, do Cód. Civil, ficando assim patente, que não se mostram, desde logo, preenchidos os pressupostos legais do facto (no caso, por omissão de conduta), da ilicitude, da culpa e do nexo de causalidade entre esse facto e os danos, que pressupunham a imposição à Recorrente da obrigação de indemnizar os Recorridos.
72. Faltando deste logo o facto ilícito e a culpa da Recorrente, afastada fica a responsabilidade da Recorrente e, por conseguinte, devia ter sido improcedente por não provada a ação e em consequência ser absolvida de todos os pedidos.
73. E mais estranho é, que se tenha deslocado à fração dos Recorridos, a pedido da procuradora da Recorrente, perito que constatou que o assunto estava resolvido pela arrendatária e que a fração dos Recorridos não apresentava os danos que vieram alegar e, que o tribunal a quo, tenha desvalorizado tal prova documental, testemunhal e por confissão dos Recorridos.
74. Aliás, estão muito tristes com o estado da cozinha, mas demoraram quase um ano a interpor a ação contra a Recorrente, desconhecendo esta se os Recorridos não atuaram de forma a agravar os alegados danos.
75. O que a ser assim, teríamos de ter em conta o previsto no art. 570º do Código Civil:
“1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”
76. Decorre deste normativo legal que o comportamento censurável do lesado pode eliminar ou atenuar a responsabilidade do lesante, sendo essencial que essa atuação censurável seja adequada à produção do dano.
77. Resulta da lei, nos termos dos art.ºs 562º, n.º 1 e 566º, n.º 1 do Código Civil, que a indemnização se rege pelo princípio da reconstituição natural, pelo que aquela só será fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
78. É verdade que, quer a Recorrente, quer os Recorridos na qualidade de proprietários das suas respetivas frações, têm a obrigação de vigiar o seu prédio, a qual constitui «uma manifestação do conteúdo do direito de propriedade (cfr. artigo 1305.º do CC) e ainda do disposto no artigo 128º do RGEU, que impõe aos donos de edificações a obrigação de manterem permanentemente essas edificações em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos»
79. Ora, conforme os Recorridos confessaram e ficou provado, o filho e a nora dos Recorridos deslocaram-se à fração propriedade da Recorrente, tendo falado com a arrendatária.
80. Tendo sido a referida arrendatária, que causou o entupimento do cano/sifão, que alegadamente terá dado origem a uma pequena inundação na cozinha da fração, propriedade da Recorrente, não tendo esta, em momento algum tido qualquer intervenção, nem por ação, nem por omissão em toda a situação.
81. Pelo que, e conforme se disse, a Recorrente, na qualidade de proprietária do prédio de onde alegadamente terá ocorrido a infiltração para a fração dos Recorridos, não teve culpa da sua parte na produção do alegado evento e/ou que não havia modo de evitar os alegados danos, por força das presunções de culpa que a oneram extraídas dos artigos 492.º e 493.º do CC
82. Pelo que, a haver culpa presumida da Recorrente, que não há e não se admite, elidida fica, porque não teve qualquer intervenção, nem por ação, nem por omissão na produção do alegado sinistro.
88. Como se disse, a Recorrente nunca foi interpelada pelos Recorridos, seja para o que for e, estes, não atuaram de forma diligente, a acautelar o não agravamento dos alegados danos, pois só depois de terem passados 10 (dez) meses, é que resolvem interpor a ação, com o único objetivo de se locupletarem com o dinheiro da Recorrente e assim obterem uma cozinha remodelada ao fim de oito anos.
89. Por fim, não tem igualmente qualquer fundamento legal o pedido dos Recorridos relativo nem à indemnização por danos patrimoniais, nem por danos não patrimoniais, que o Tribunal a quo devia ter decidido pela sua improcedência, pela falta de verificação cumulativa de todos os pressupostos da responsabilidade civil e, por conseguinte, por não serem devidos quaisquer valores a esses títulos.
90. Não estão preenchidos os requisitos legais, designadamente a culpa do agente, o nexo de causalidade e a ilicitude, geradores de responsabilidade civil extracontratual nos termos dos artigos 483º e 562º do C. Civil, e, por conseguinte, a douta decisão deveria ter sido no sentido de absolvição da Recorrente de todos os pedidos e, concretamente na indemnização civil, por danos patrimoniais e danos não patrimoniais.
91. Ora, a decisão recorrida não explica o salto lógico de que tendo sido dado como provado que a fração propriedade da Recorrente à data dos factos estava arrendada, de que forma pode a Recorrente ser responsabilizada por atos ou omissões de terceiros, que em momento algum podia prever que da conduta da arrendatária, iria resultar no entupimento do sifão da cozinha e que este iria causar infiltrações na fração propriedade dos Recorridos.
92. E dizemos nós, de que forma pode ser responsabilizada como tendo atuado por atos ou omissões com dolo ou com culpa, quando a situação foi causada por terceiro e não tinha como prever tal situação e ou consequências?
91. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso." (n°2 do artigo 9° do Código Civil).
92. Delimitando o “thema Decidendum” tem o presente recurso como fundamento a interpretação a dar ao art.493º nº 1 do Código Civil (CC) e bem assim, a verificação da existência cumulativa de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
93. Ora, dispõe o art.493º, nº 1 do CC que: “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar,…, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, por seu turno o nº 2 do mesmo artigo diz: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de o prevenir”.
94. A distinção entre o nº 1 e o nº 2 do art.493º reside em que no nº 1 se pressupõe a detenção material da coisa causadora do dano ou um dever de vigilância da parte do imputado responsável, no nº 2 é o carácter perigoso da atividade exercida que produz só por si a responsabilidade de quem a exerce.
95. Em qualquer dos casos, como ensina o Prof Antunes Varela, (in Das Obrigações em Geral, vol. I, pag.488 e segs) “as pessoas atingidas pela obrigação de indemnizar não respondem por facto de outrem, mas por facto próprio, visto a lei presumir que houve falta (omissão) de vigilância adequada” (Sublinhado nosso)
96. A responsabilidade a que se refere o art.493º do CC assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano, “a presunção recai em cheio (diz o mesmo mestre) sobre a pessoa que detém a coisa com o dever de a vigiar”.
97. No caso vertente não restam dúvidas que é a arrendatária a única e principal responsável pelo sinistro, porque lhe incumbia um especial dever de vigilância sobre o correto uso e utilização da banca da cozinha, logo pela não colocação de substâncias e ou gorduras, que podiam levar ao entupimento do sifão existente na cozinha, como veio a acontecer.
98. As disposições do art.493º do CC não são subsumíveis, face à configuração do sinistro e ao facto de o imóvel estar na posse e detenção da arrendatária, que por força do contrato de arrendamento usa e usufrui o locado.
99. Não é à Recorrente que compete vigiar de que forma a arrendatária usa a banca da cozinha, o que é que coloca ou despeja pelo tubo da referida banca, que vai depois para o sifão da cozinha.
100. A Recorrente celebrou com a arrendatária um contrato de arrendamento, cabendo a arrendatária usar e gozar o locado de forma cuidada e diligente, conforme lho entregou, no início do contrato, sem quaisquer vícios ou defeitos.
101. E na celebração desse contrato de arrendamento, não há qualquer nexo de causalidade entre essa ação de celebrar um contrato e o sinistro ocorrido, de entupimento do sifão da cozinha.
102. O sinistro não foi provocado por ação ou omissão da Recorrente e, muito menos por culpa desta, como está demonstrado e provado, pelo que afastada fica também a presunção legal de culpa prevista no artigo 493º nº 1 do Código Civil.
103. Como se disse, e provado está, o sinistro ocorreu porque a arrendatária da Recorrente não exerceu a vigilância devida na utilização dos cuidados a ter na colocação de gorduras ou outras substâncias, na banca da cozinha, que causaram o entupimento do sifão da cozinha.
104. Ainda que no art.486º do CC se reconheça a existência de um dever genérico de prevenção do perigo ou um dever de segurança relativamente aos donos de coisas privadas, este dever não se estende à prevenção de perigos ou deveres de segurança que estejam a cargo de outros, como é o caso, no contrato de arrendamento, a obrigação da arrendatária que goza de autonomia no uso e gozo do imóvel arrendado, pelo qual paga uma renda.
105. A culpa da Recorrente não se presume ao nível do disposto no nº1 do art.493º do citado diploma, na medida em que a causadora dos alegados danos ocorridos não foi a Recorrente, mas quem usava, cuidava e vigiava o imóvel, ou seja, a arrendatária.
106. Entende a Recorrente que o Tribunal “a quo” fez indevida interpretação do artigo 493º nº 1 do Código Civil.
107. Mas igualmente, o Tribunal a quo fez errado julgamento na apreciação da existência cumulativa de todos os elementos da responsabilidade civil, tal como preconiza o artigo 483º, nº 1 do Código Civil, que como já explanado, não existem, pois faltam desde logo a prática do facto ilícito e a culpa da Recorrente.
108. Da existência do dever de vigilância sobre a coisa, imposto ao proprietário, locatário ou detentor de facto, resulta em relação aos danos por ela provocados, uma presunção de culpa (culpa in vigilando), da qual decorre, nos termos dos artºs 487, nº 1 e 350, nº1, do C.C., a inversão do ónus da prova, cabendo ao onerado com o dever a prova de que não existiu culpa ou os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
109. No entanto, esta responsabilidade fundada na existência de um especial dever de vigilância e cuidado da coisa móvel ou imóvel, não constitui um caso de responsabilidade civil objetiva, mas tão só uma presunção de que os obrigados à vigilância de coisa móvel ou imóvel, por lei ou negócio jurídico, respondem pelos danos provocados pela coisa, presunção juris tantum, nos termos do nº2 do artº 350 do C.C., afastada pela prova da falta de culpa ou de que os danos se teriam igualmente produzido ainda que sem culpa sua.
110. Por outro lado, embora se possa considerar como refere o Ac, do STJ de 10/12/13[8] que esta norma encerra igualmente uma presunção de ilicitude, de tal modo que face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar”, não se prescinde da imputação do facto ao agente nem do nexo de causalidade, ou seja que o dano haja sido causado pela coisa, pelos perigos particulares que ela implique como resultado da omissão deste dever de vigilância sobre o qual incide a presunção de culpa consagrada no artº 493º, nº 1, do C.C.
111. Nestes termos, como decorre à saciedade deste preceito, a presunção tem como pressuposto essencial a existência de um dever de vigilância por parte daquele que tem em seu poder a coisa, bem como a prova, esta a efetuar pelo lesado de que a coisa sujeita a vigilância, lhe causou danos.
112. O disposto no artº 493 do C.C. assenta numa presunção de culpa e igualmente de ilicitude que decorre da assunção de que quem tem o bem à sua guarda (proprietário ou possuidor) tem igualmente o dever de a vigiar, adotando como refere VAZ SERRA[10], as “medidas necessárias a evitar o dano (…) está (o obrigado à vigilância) em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda”.
113. Esta presunção de culpa deveria ter resultado ilidida, desde logo, pelo facto de que ficou manifestamente provado que o imóvel, propriedade da Recorrente, estava arrendado, situação confirmada pelo filho e nora dos Recorridos.
114. A decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9° e, consequentemente, os artigos 483º e 493º nº 1, todos do Código Civil.
Conclui para que seja revogada a decisão que julgou parcialmente procedente a ação, com a condenação da Recorrente, sendo a mesma substituída por outra que verifique a não existência cumulativa dos pressupostos da responsabilidade civil, previstos no artigo 483º e bem assim a não verificação da presunção de culpa do artigo 493º nº 1 ambos do Código Civil, e, consequentemente absolva a Recorrente dos pedidos formulados.
*
Os Autores apresentaram contra-alegações pugnando pela rejeição do recurso, pelo não cumprimento por parte da Recorrente do ónus vertido no art.640º do CPC.
Em primeiro lugar, cumpre referir que entende o Recorrido de que o Recurso a que se responde viola o disposto no art.640º, nº 1, b) e nº2 a) do CPC.
Da leitura e análise do recurso interposto pela Recorrente, na verdade, não se consegue entender se esta pretende apenas recorrer da matéria de direito ou, também, da matéria de facto.
Não indica os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, limitando-se a fazer considerações gerais sobre a matéria de facto que impugna de uma forma geral.
Conclui ainda pela improcedência do recurso.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (C. P. Civil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pelos Apelantes, as questões a decidir no presente recurso, são as seguintes:
a) Erro notório na apreciação da prova, concretamente, contradição entre o facto 21) e 13) dos factos provados (artº 35 das conclusões).
c) Erro de julgamento, por má interpretação a dar ao art.493º nº 1 do Código Civil (CC) e bem assim, a verificação da existência cumulativa de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por erro na interpretação e aplicação do disposto nos artºs 913º, 914º, 799º do C.C.
d) Se se justifica a alteração da solução jurídica dada ao caso pela 1.ª instância;
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1. OS FACTOS
1.1. Factos provados
O tribunal de que vem o recurso julgou provados os seguintes factos:
1. A fração autónoma designada pela letra J, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., concelho de Ílhavo, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º ...-J, da freguesia ..., concelho de Ílhavo, a favor dos autores AA e de BB.
2. A fração autónoma designada pela letra L, correspondente ao 2º andar/ esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., e Travessa ..., ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ..., concelho de Ílhavo, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º ...-L, conforme caderneta predial e certidão da Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, a favor da ré A..., S. A..
3. À data dos factos que infra se descreverão a fração descrita em 1) encontrava-se arrendada a DD e EE – filho e nora dos autores –, e a fração descrita em 2) encontrava-se arrendada.
4. A fração descrita em 2) posiciona-se imediatamente no piso acima da fração descrita em 1), apresentando igual configuração e localização nas diferentes divisões, concretamente a cozinha de ambas as frações.
5. No dia 06.05.2022, ao final da tarde, alertado por DD e EE, o autor constatou que a cozinha da fração descrita em 1) apresentava sinais evidentes de infiltrações de água, caindo água provinda do teto de tal compartimento, que escorria pela parede onde se encontram fixados os móveis de cozinha, bem como pelo interior do exaustor aí fixado.
6. Tal água apresentava um cheiro nauseabundo.
7. De seguida, DD e EE, a mando do autor, deslocou-se à fração descrita em 2), onde foram recebidos por uma pessoa de nome “FF” que se identificou como arrendatária dessa fração, que autorizando o acesso ao interior dessa fração, permitiu que se deslocassem até à sua cozinha.
8. Nesse momento, DD e EE verificaram que o chão da cozinha da fração descrita em 2), se encontrava inundada de água, que surgia por baixo dos móveis de cozinha, proveniente do entupimento do sifão que se localizava por baixo do fogão aí existente, que se infiltrou na placa, perpassando para o teto da cozinha da fração descrita em 1), por aí escorrendo, atingindo as paredes, os móveis e exaustor nos termos que infra se descreverão, até chegar ao chão, inundando-o.
9. Depois de solicitarem a resolução urgente dessa infiltração, regressaram à fração descrita em 1), e deram início à limpeza da sua cozinha, como forma a minimizar os prejuízos que já se evidenciavam.
10. As escorrências de águas provenientes da fração descrita em 2) apenas cessaram pelas 2h00m.
11. Como consequência do descrito em 8), resultaram estragos da fração dos autores identificada em 1), concretamente, estragos nos móveis da cozinha – com madeiras empoladas, inchadas e empenadas – e no exaustor aí instalado – que deixou de funcionar, apresentando sinais de ferrugem.
12. Os referidos móveis e o exaustor haviam sido adquiridos no ano de 2014.
13. Em face da ocorrência descrita, os Autores, através do seu filho DD, obtiveram junto Administração do Condomínio do prédio a identificação do proprietário da fração identificada em 2), e, no dia 29.05.2022, os autores enviaram um email, à sociedade B... S.A., (B...), comunicando-lhes a ocorrência dos mencionados danos, solicitando a resolução de tal situação, peticionando o ressarcimento dos prejuízos sofridos.
14. No dia 08.06.2022, a sociedade B..., também via email, solicitou aos autores o seu contacto telefónico, sob pena de não ser possível resolver o problema que lhes havia sido apresentado, com a brevidade que o mesmo exigia, tendo os autores acedido nesse mesmo dia.
15. Em dia que não conseguem precisar, mas posteriormente, deslocou-se à fração descrita em 1) uma pessoa, a mando da aqui Ré, que se identificou como sendo perito, a fim de verificar a existência de danos no imóvel em causa.
16. O que determinou que os autores ficassem a aguardem resposta da ré, o que não veio a suceder, mesmo depois de voltarem a contactar a ré, sem sucesso, permanecendo tais danos por reparar.
17. A reparação dos danos descritos em 11), cifra-se na quantia de 3.500,00€, à qual acrescerá a incidência do IVA em vigor, que incluirá:
- a substituição de parte dos móveis de cozinha em termolaminado em cor cinza-claro com orla em alumínio, e ainda à desmontagem e reciclagem dos móveis antigos e respetiva montagem dos móveis novos; e
- a substituição do exaustor.
18. No dia 03.10.2022, os autores, representados por advogado, remeteram à referida sociedade B... uma carta exigindo o pagamento da quantia à data suficiente para a reparação dos referidos estragos, que, então, se cifrava em 2.865,00€ (dois mil, oitocentos e sessenta e cinco euros), já com incidência de IVA, conferindo-lhe o prazo até ao dia 10.10.2022, sob pena de reação judicial, sem que fosse obtida qualquer resposta.
19. No dia 28.12.2022, os autores, representados por advogado, remeteram à ré uma carta exigindo o pagamento da quantia à data suficiente para a reparação dos referidos estragos, que, então, se cifrava em 2.865,00€ (dois mil, oitocentos e sessenta e cinco euros), já com incidência de IVA, conferindo-lhe o prazo até ao dia 15.01.2023, sob pena de reação judicial, ao que a ré não acedeu, nem sequer respondeu.
20. Os autores haviam remodelado a cozinha da fração descrita em 1), na data descrita em 12), e com isso gasto as suas economias.
21. A ocorrência descrita e a inércia da ré tendente à sua resolução, vem-se repercutindo no ânimo doas autores, que se encontram impedidos de utilizar plenamente a cozinha da fração, ou de permitir essa utilização, causando-lhe tristeza, desânimo e revolta, exacerbado pela falta de qualquer responsabilidade ou domínio naquela.
*
1.2. Dos factos não provados:
Com relevância para a boa discussão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a. Só com a sua citação para os termos desta ação, a ré teve conhecimento da ocorrência descrita de 8) a 11).
*
1.3. A Apelante pretende que este Tribunal reaprecie a decisão em relação a certos pontos da factualidade julgada provada, não indicando qualquer meio de prova.
Dispõe o art. 662.º, n.º 1 do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do C. P. Civil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
A modificabilidade da decisão de facto é ainda susceptível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do C. P. Civil.
A prova é “a actividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”, tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do C. Civil) – a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido, vide Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.
Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”, vide Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por Henriques Gaspar no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira, vide LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
Para o citado autor “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”
Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”, encontram no Código Civil os seguintes tipos:
- a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º);
- a prova pericial (arts. 388.º e 389.º);
- a prova por inspecção (arts. 390.º e 391.º);
- e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º).
Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do C. P. Civil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O citado normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.
Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do C. Civil e arts. 495.º a 526.º do C. P. Civil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do C. P. Civil, excepto na parte em que constituam confissão; a prova por inspecção (art. 391.º do C. Civil e arts. 490.º a 494.º do C.P. Civil); a prova pericial (art. 389.º do C. Civil e arts. 467.º a 489.º do C. P. Civil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do C. Civil.
Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do C. Civil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do C. P. Civil).
O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”, vide Castro Mendes, Do conceito de prova em processo civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do C. Civil).
Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do C. Civil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do C. Civil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do C. Civil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil).
Por último, a prova bastante carateriza-se por bastar a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do C. Civil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto, vide Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
*
1.4 Do invocado erro de julgamento.
A Ré/Recorrente invoca no ponto 35 das alegações:
“Aliás. a matéria do ponto 21 da douta sentença não devia ter sido dado como provado, uma vez que no ponto 13 da mesma sentença, ficou provado que a procuradora da Recorrente respondeu em 08/06/22 ao mail dos Recorridos.
36. E no ponto 15, foi dado como provado, que à fração dos Recorridos se deslocou um perito, a mando da procuradora e não da Recorrente, dizemos nós, para verificar a existência dos danos no imóvel.
O ponto 21 dos factos provados é:
A ocorrência descrita e a inércia da ré tendente à sua resolução, vem-se repercutindo no ânimo doas autores, que se encontram impedidos de utilizar plenamente a cozinha da fração, ou de permitir essa utilização, causando-lhe tristeza, desânimo e revolta, exacerbado pela falta de qualquer responsabilidade ou domínio naquela.
13. Em face da ocorrência descrita, os Autores, através do seu filho DD, obtiveram junto Administração do Condomínio do prédio a identificação do proprietário da fração identificada em 2), e, no dia 29.05.2022, os autores enviaram um email, à sociedade B... S.A., (B...), comunicando-lhes a ocorrência dos mencionados danos, solicitando a resolução de tal situação, peticionando o ressarcimento dos prejuízos sofridos.
15. Em dia que não conseguem precisar, mas posteriormente, deslocou-se à fração descrita em 1) uma pessoa, a mando da aqui Ré, que se identificou como sendo perito, a fim de verificar a existência de danos no imóvel em causa.
Compulsada tal factualidade não se vislumbra a existência de qualquer contradição na matéria de facto dada por provada em 21), 13) e 15).
Com efeito, está em causa em 21) que a contínua impossibilidade de utilização plena da cozinha da fracção, desde que ocorreram os factos causa aos autores tristeza, desânimo e revolta.
Em suma, as diligências retratadas em 13) e 15) não estão em oposição ao expresso em 21).
Assim sendo, improcede a impugnação da matéria de facto.
*
1.5 Síntese conclusiva:
Improcede totalmente a pretensão da Apelante em alterar a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
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2 - OS FACTOS E O DIREITO.
A Apelante invoca haver erro de julgamento, por má interpretação dada ao art.493º nº 1 do Código Civil (CC) pela não verificação cumulativa de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, bem como haver erro na interpretação e aplicação do disposto quanto aos pressupostos da responsabilidade civil, previstos no artigo 483º e bem assim a não verificação da presunção de culpa do artigo 493º nº 1 ambos do Código Civil.
Invoca que o apartamento de que é proprietária se encontrava arrendado e que foi por acção do arrendatário que entupiu o sifão, não podendo ser responsabilizada pela actuação do arrendatário.
A presente acção encontra-se no âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, resultante da violação de direitos absolutos, conforme artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil.
Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação - artº 483º, nº 1, do C. Civil, diploma referido sempre que não haja alusão a outro.
São, destarte, pressupostos do dever indemnizatório:
a) Violação de um direito ou interesse alheio;
b) Ilicitude;
c) Vínculo de imputação do facto ao agente;
d) Dano;
e) Nexo de causalidade entre o facto e o dano - Cfr. Prof. A. Varela, apud., Obrigações, 356.
Que houve violação do direito dos Autores, os quais sofreram um dano é apodíctico, pelo que tal não merecerá análise mais detalhada.
Atente-se que as águas que se infiltraram sobre as paredes, os móveis e o exaustor da fracção dos Autores, provieram da fração descrita em 2), propriedade da Ré/recorrente.
Assim, nesta rubrica, curaremos, assim e apenas, da ilicitude e do nexo de imputação do facto ao agente, ou seja, da infracção e da culpa.
Encontra-se provado que o imóvel se encontrava arrendado e verificou-se que o chão da cozinha da fracção descrita em 2), se encontrava inundada de água, que surgia por baixo dos móveis de cozinha, proveniente do entupimento do sifão que se localizava por baixo do fogão aí existente, que se infiltrou na placa, perpassando para o teto da cozinha da fracção dos Autores, por aí escorrendo, atingindo as paredes, os móveis e exaustor até chegar ao chão, inundando, assim, o prédio dos Autores.
Inexistindo outra factualidade provada susceptível de imputação de responsabilidade civil à Ré/recorrente no âmbito do artº 483º do CC ter-se-á de recorrer ao disposto no artigo 493º, nº 1, CC.
Dispõe o artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil:
Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua, daqui se extraindo uma verdadeira presunção de culpa que recai sobre o proprietário da coisa.
Decorre deste preceito a existência de uma presunção de culpa, a qual pode ser afastada caso se prove que nenhuma culpa houve da parte de quem tiver em seu poder o imóvel.
Cabe ainda dizer que esta presunção não incide necessária e obrigatoriamente sobre o proprietário do imóvel, ela pode incidir sobre aquele que tiver a seu cargo o dever de vigiar, tiver em seu poder o imóvel, ou seja, o responsável não é (apenas), necessariamente, o proprietário da coisa, podendo ser um comodatário, ou um depositário, ou um credor pignoratício, ou um arrendatário, já que, também neste caso, o dever de vigilância, em tal caso, decorre necessariamente do seu dever de restituir a coisa findo o contrato, conforme artº 1038.º, do CC
“Esse dever de vigilância consiste numa obrigação de supervisão, controlo, monitorização e informação sobre as fontes (nomeadamente se possíveis e/ou previsíveis) de risco de produção e eclosão de prejuízos das coisas detidas, no sentido da prevenção desse especial perigo enquanto origem de danos para terceiros e da precaução necessária para evitar o dano. Afigura-se como dever (de segurança) no tráfico, integrado em norma legal de protecção que visa prevenir um perigo abstracto, e dever instrumental para a decisão e a execução de medidas e providências – mesmo que a realizar por terceiro e a solicitação do vigilante – para evitar essa produção de danos e promover a protecção de terceiros, danos esses relativos ao especial risco da coisa que ultrapassa o “limiar da normalidade”.
Esse dever de vigilância corresponde a uma manifestação de um mais amplo dever de cuidado (na veste de dever de conduta), enquanto obrigação de os proprietários e detentores de coisas, potencialmente munidas de risco na sua fruição ou utilização, cumprirem com diligência as faculdades jurídicas atribuídas pelo título que lhes permite gozar da coisa “arriscada” ou “perigosa”, de acordo com a bitola que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares.”, vide Ac do STJ, de 22.09.2021, processo 19707/18.0T8LSB.L1.S1, Relator: Ricardo Costa, in www.dgsi.pt.
Compulsada a matéria de facto provada é manifesto que a inundação no prédio dos Autores ocorreu na sequência do entupimento do sifão no prédio da Ré, o que levou a água a infiltrar-se na placa, perpassando para o teto da cozinha da fracção dos Autores, por aí escorrendo, atingindo as paredes, os móveis e exaustor até chegar ao chão.
Decorre da matéria de facto provada que o prédio propriedade da Ré se encontrava arrendado à data dos factos, como os próprios Autores verificaram logo no momento subsequente ao eclodir dos factos, porquanto, deslocaram-se à fracção de onde provinha a água e foram recebidos por uma pessoa de nome “FF” que se identificou como arrendatária dessa fracção, que, autorizando o acesso ao interior dessa fração, permitiu que se deslocassem até à sua cozinha, a DD e EE.
Encontrando-se o imóvel arrendado na data dos factos, provindo os danos do entupimento do sifão por actuação da arrendatária, facto que os Autores logo verificaram, porquanto tiveram acesso ao prédio e constataram tal facto, não se vislumbra que controlo, monitorização, supervisão podia ser exigível à Ré/recorrente, aferido este num plano do pater bonus familiae, ou seja, de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares para evitar a produção e eclosão do evento.
Atente-se que o dano não resulta, nem sequer foi alegado, ser decorrente de qualquer ruptura das canalizações, o que aí já podia levar a responsabilidade do Réu/recorrente, caso não tivesse diligenciado pela boa manutenção das canalizações, mas sim pela utilização da arrendatária a qual obstruiu o sifão e provocou a inundação no prédio utilizado pelos Autores.
Serve o exposto para dizer que, em face das circunstâncias concretas dos autos, não se podia exigir à R./recorrente que adoptasse qualquer acção e comportamento susceptível de prever e prevenir o não entupimento do sifão, porquanto o prédio encontrava-se arrendado e foi a conduta da arrendatária que levou ao entupimento do sifão e não qualquer conduta omissiva da Ré/recorrente a provocar o dano, o qual apenas se verificou por acção da arrendatária e não do senhorio, aqui recorrente.
Assim, tem de se concluir encontrar-se afastada a presunção de culpa que incidia sobre a Ré, conforme artº 493º, nº 1, segunda parte, bem como como não haver nexo causal entre os danos e qualquer eventual conduta omissiva da Ré.
Atento o exposto, é de dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.
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IV. – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Em dar provimento ao recurso da Ré/Apelante, revogando-se a sentença recorrida, coma absolvição da ré dos pedidos deduzidos.
Custas pelos AA/Apelados – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 23 de Janeiro de 2024.
Álvaro Monteiro
Paulo Duarte Teixeira
Ana Luísa Loureiro