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EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE
QUESTÃO NOVA
IRREGULARIDADE
NULIDADE DA SENTENÇA
OBSCURIDADE
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário
SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil): I. Proferido acórdão pelo Tribunal da Relação esgota-se de imediato o poder jurisdicional daquele Tribunal quanto ao objeto de tal acórdão, sem prejuízo da retificação de erros materiais, da possibilidade de suprir nulidades e da reforma do acórdão nos casos legalmente admissíveis. II. No processo especial de tutela da personalidade o réu deve apresentar os seus documentos no início da audiência, salvo impossibilidade da sua apresentação então ou a junção se mostrar necessária em virtude de ocorrência registada em audiência ou em momento posterior. III. Salvo quanto a questões de conhecimento oficioso, a apelação não visa apreciar questões novas, mas tão-só reexaminar questões de facto e/ou de direito já anteriormente suscitadas pelas partes e apreciadas pelo Tribunal recorrido. IV. Não tendo o recorrente se insurgido no decurso da audiência quanto ao modo como foram prestadas as suas declarações de parte, estando então representado por Advogado, têm-se por sanadas eventuais irregularidades então ocorridas, não podendo suscitar em recurso tais irregularidades. V. A sentença deve estar minimamente motivada de facto e de direito, sendo nula aquela em que falte de todo em todo tal motivação ou em que esta seja absolutamente incompreensível, não cumprindo, assim, o dever constitucional e legal de justificação que deve revestir qualquer decisão judicial. VI. A obscuridade corresponde ao que é equívoco, confuso, ao passo que a ambiguidade caracteriza o que se presta a diversas interpretações, o que é duvidoso quanto ao seu significado. VII. Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna. VIII. O direito à integridade pessoal, física e moral, bem como o direito à liberdade de expressão constituem direitos constitucional e legalmente salvaguardados, encontrando-se igualmente consagrados em diplomas internacionais a que Portugal está vinculado. IX. Em situação de colisão de direitos da mesma natureza, como o são o direito à integridade pessoal e o direito à liberdade de expressão, importa proceder à concordância prática de direitos, relevando com efeitos juridicamente operantes, a exigir tutela judicial, tão-só situações abusivas. X. Na densificação daquela concordância prática de direitos, no propósito de coordenação de direitos da mesma espécie, recorre-se a um critério de proporcionalidade, conforme artigo 18.º, n.º 2, da Constituição: as restrições de direitos devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». XI. Numa sociedade de direito democrático, designadamente quanto a figuras públicas, como é o caso, admite-se alguma limitação do direito de personalidade em função do exercício do direito de liberdade de expressão quando este se contém dentro de limites razoáveis, como sucede na situação vertente. XII. O Juiz deve abster-se de conhecer de questões cuja apreciação se mostre desnecessária, escusada, inútil, em função de outras anteriormente abordadas e decididas.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO.
Neste processo especial de tutela da personalidade, fundado em alegada violação dos seus direitos de personalidade, o A., A …, demanda a R., B …, pedindo que:
Seja proferida «desde já decisão provisória urgente sem audiência da parte contrária nos termos do disposto no art.º 879.º, n.º 5, que determine:
Proibição de publicar em redes sociais qualquer referência a assuntos de responsabilidades parentais que refiram o requerente e os menores.
Imposição de retirar todos os conteúdos por si publicados em que sejam referidos temas relacionados com o requerente e responsabilidades parentais.
Imposição de sanção pecuniária compulsória no valor de €2500.00 por cada publicação que fizer com referência a assuntos de responsabilidades parentais que refiram o requerente e os menores.
Ou caso assim não se entenda, seja o presente requerimento recebido, seguindo o processo os seus ulteriores trâmites até final promovendo-se o agendamento da audiência a que alude o art.º 879.º, n.º 1 do Código de Processo Civil».
Por decisão judicial de 18.01.2023 foi designada audiência para 30.01 seguinte.
Citada a R., veio esta apresentar procuração forense em 23.01.2023.
Em 25.01.2023 a R. veio, além do mais, informar que estaria ausente na audiência de instrução e julgamento agendada para o dia 30.01.2023, por então estar ausente em viagem de trabalho.
Em 26.01.2023 o A. juntou um novo articulado, alegando uma nova violação dos seus direitos de personalidade e requerendo o deferimento do pedido de decisão provisória nos termos do artigo 879.º, n.º 5, do CPCivil.
Em 27.01.2023, a R. veio arguir a «incompetência territorial» do Tribunal e uma situação de «litispendência» relativamente a causa que decorre na Justiça Brasileira, termos em que pediu a «extinção do processo», sendo que referiu ainda que:
«Em tempo, reforça a impossibilidade de comparência da Requerida à audiência de instrução e julgamento agendada para o dia 30 de janeiro, em razão de sua ausência por compromissos profissionais, já devidamente comprovado».
Igualmente em 27.01.2023, o A. pronunciou-se pela inexistência da alegada litispendência.
Ainda em 27.01.2023 foi proferida a seguinte decisão judicial:
«(…)
No que se refere ao requerimento hoje entrado em juízo, notifique requerente e requerida para, de imediato ou até à diligência agendada, juntarem certidão da decisão proferida pelo Tribunal Brasileiro. D.N.».
Tal decisão foi notificada às partes por carta expedida em 27.01.2023.
Em 30.01.2023 realizou-se a audiência agendada, sem a presença da R. e da sua Ilustre Mandatária, tendo o Tribunal proferido o seguinte despacho:
«A Requerida e a sua Ilustre Mandatária não compareceram à audiência de discussão e julgamento, apesar da requerida ter sido devidamente citada e ter sido concedido à Ilustre Mandatária da mesma o acesso ao processo logo que esta o pediu.
A Ilustre Mandatária da Requerida não só não compareceu, como não justificou a sua falta, nem substabeleceu em qualquer outro colega e, por assim ser, não apresentou a Contestação que deveria ter apresentado na audiência de discussão e julgamento, tal como resulta da lei e, tal como foi comunicado à Requerida aquando da sua citação».
Após audição das testemunhas do A., o Tribunal proferiu o seguinte despacho:
«Atendendo a que ainda não foi junta a certidão relativa ao processo do Brasil, mas que a Ilustre Mandatária do Requerente referiu já pedido e que a fará juntar logo que a mesma chegue do Brasil, não vou decidir definitivamente do pedido, no entanto e, atendendo a prova produzida, considero ser de formular uma decisão provisória, termos em que ordeno que os autos me sejam conclusos para esse fim.
Notifique».
Em 31.01.2023, fundada na falta justificada da R. e da Sua Ilustre Mandatária à audiência realizada, bem como na incompetência territorial do Tribunal e na invocada litispendência, a R. veio pedir a sua «imediata absolvição da instância, com consequente extinção do processo e anulação da audiência que aconteceu em 30.01.2023, na ausência justificada da Requerida».
Em 01.02.2023, foi proferido despacho judicial do seguinte teor:
«O processo especial da tutela da personalidade tem natureza urgente, sendo que a requerida está devidamente representada por Advogada e, na sua ausência, poderia ter sido representada por esta desde que lhe concedesse poderes especiais para o efeito.
O Tribunal estava ciente de que a requerida não estaria presente uma vez que a mesma comunicou tal facto ao Tribunal, aquilo que não foi comunicado ao Tribunal, num total desrespeito pelo mesmo, foi que a Ilustre Mandatária da requerida não estaria presente, nem foi apresentada qualquer razão para que não representasse a sua constituinte no julgamento marcado, sendo que neste caso, atenta a natureza especial do processo, não havia que dar cumprimento ao disposto no artº 151º do CPC, e, assim sendo, não havia fundamento para que não se procedesse ao julgamento.
Acresce que como resulta da lei, bem como dos despachos proferidos nos autos e devidamente notificados à requerida, nesta espécie processual a contestação deveria ter sido apresentada na audiência de julgamento, daí que as tentativas de apresentação de contestação anteriores tenham obtido do Tribunal despachos de desentranhamento por terem sido apresentadas em momento impróprio, como bem sabe a requerente e, assim sendo, por não assistir razão à requerida, indefiro à requerida anulação do julgamento.
Custas do incidente pela requerida. Notifique».
Após, ainda em 01.02.2023, o Tribunal proferiu «decisão provisória», na qual decidiu:
«ordenar que a requerida B … se abstenha de publicar por qualquer meio, seja por via electrónica ou na imprensa falada ou escrita (incluindo televisões) qualquer notícia relativamente ao requerente A …, sendo que caso não cumpra o ordenado pagará a quantia de €2.500,00, por cada notícia que publicar».
Em 18.02.2023 a R. apresentou articulado que intitulou de «contestação».
No que respeita àquele articulado, em 28.02.2023 o Juízo Local Cível de Cascais proferiu a seguinte decisão:
«Desentranhe a contestação apresentada pela requerida por ser extemporânea, atento o estado dos autos. Notifique.
Notifique o requerente para, em dez dias, juntar aos autos a certidão da decisão do Tribunal Brasileiro que se comprometeu a juntar, a fim de ser proferida decisão definitiva. DN.».
Em 24.03.2023 a R. apresentou recurso daquela decisão que ordenou o desentranhamento da contestação.
Em 13.03.2023 o A. juntou certidão referente ao mencionado processo pendente na Justiça Brasileira.
Em 19.04.2023, o Juízo Local Cível de Cascais proferiu decisão definitiva, na qual, além do mais, referiu que
«I – Relatório
(…)
Foi proferida decisão provisória, uma vez que nos autos foi suscitada a eventual existência de litispendência.
O Tribunal notificou as partes para juntarem certidões do Tribunal Brasileiro que permitisse conhecer dessa eventual litispendência, porém, até à presente data não foram juntos tais elementos, termos em que não pode o Tribunal pronunciar-se quanto a essa questão e, atendendo à natureza urgente dos autos há que proferir decisão definitiva.
II – Pressupostos processuais
O Tribunal é internacionalmente competente, por os factos em causa nestes terem sido cometidos em Portugal, onde a requerida tem actualmente domicílio (cfr. artºs 59º nº 1; 62º -b) e 80º nº 1 do CPC), é também competente em razão da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e não contém nulidades que o invalidem.
As partes têm personalidade jurídica, capacidade judiciária, são legítimas e estão devidamente representadas em juízo.
Não existem outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer ou que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
(…)
V – Decisão
Face ao exposto, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência: ordeno que a requerida B … se abstenha de publicar por qualquer meio, seja por via electrónica ou na imprensa falada ou escrita (incluindo televisões) qualquer notícia relativamente ao requerente A …, sendo que caso não cumpra o ordenado pagará a quantia de €2.500,00, por cada notícia que publicar».
Em 09.05.2023 a R. apresentou recurso da decisão definitiva, sendo que este Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 14.09.2023, concluiu, além do mais:
«(…)
III. Da competência internacional do Tribunal.
(…) serem os Tribunais portugueses os internacionalmente competentes para a demanda (…).
Improcedem, pois, nesta sede os recursos interpostos.
IV. Da litispendência.
(…) a alegada pendência de ação similar à presente ação em Tribunal da República Federativa do Brasil é indiferente ao decurso dos presentes autos, pelo que carece de qualquer fundamento a invocada exceção dilatória de litispendência.
Improcedem também nesta parte os recursos.
V. Do não adiamento da audiência.
(…) atenta a natureza célere do processo especial de tutela da personalidade e o disposto no artigo 879.º, n.º 3 do CPCivil, norma de natureza especial: «[n]a falta de alguma das partes (…) o tribunal ordena a produção de prova e, de seguida, decide, por sentença, sucintamente fundamentada».
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume II, edição de 2020, página 319, «(…) a falta de qualquer das partes não é motivo de adiamento».
(…)
Por outro lado, não se afigura aplicável ao caso o regime decorrente do artigo 603.º, n.º 1, do CPCivil, como alega a Recorrente.
(…)
Improcede assim igualmente nesta parte o recurso.
VI. Da tempestividade da contestação.
(…) A falta atempada daquela peça processual, no caso a não apresentação da mesma na audiência, preclude o direito de apresentá-la mais tarde, termos em que bem andou o Tribunal recorrido ao mandar desentranhar a contestação e os respetivos documentos, sendo que quanto a estes tal decorre do disposto no artigo 423.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil.
(…)
Também nesta sede improcedem, pois, os recursos.
(…)
VIII. Da nulidade por excesso de pronúncia.
(…) no processo especial de tutela da personalidade a audiência termina com as alegações orais dos mandatários forenses presentes, devendo, pois, tal ato processual ocorrer no decurso daquela audiência.
(…) Ora no caso em apreciação não foram prestadas alegações finais.
Produzida a prova pessoal do A., aqui Recorrido, o Tribunal entendeu necessária a junção de «certidão relativa ao processo do Brasil» e encerrou a audiência.
Assim sendo, face ao indicado estado dos autos, era expectável que a audiência se reiniciasse para produção de alegações orais, sendo que as partes, nomeadamente a aqui Recorrente pode «até ao início das alegações orais em 1.ª instância» requerer «a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direito», conforme artigo 466.º, n.º 1, do CPCivil.
Com as alegações orais e a possibilidade de declarações de parte pretende-se salvaguardar o exercício do contraditório, próprio de um Estado de Direito Democrático com tutela jurisdicional efetiva.
Nestes termos, a prolação de sentença sem prévias alegações orais em audiência, conforme regime legal aplicável, constitui indubitavelmente uma decisão surpresa e, por isso, o Tribunal recorrido ao proferir a decisão de 19.04.2023 incorreu um excesso de pronúncia, sendo que, por isso, tal decisão deve ser considerada nula, conforme disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fini, do CPCivil.
(…)
IX. Decisão
Pelo exposto, julga-se:
1. Improcedente o recurso da decisão de 28.03.2023 que ordenou o desentranhamento da contestação e documentos com ela juntos;
2. Procedente o recurso da decisão final de 19.04.2023 que julgou procedente a ação e, em consequência, declara-se aquela decisão nula, devendo os autos prosseguirem seus termos no Tribunal recorrido com a continuação da audiência para alegações orais, sem prejuízo do disposto no artigo 466.º do CPCivil, mantendo-se em todo o caso a decisão provisória constante dos autos».
Devolvidos os autos à primeira instância, foi em 02.11.2023 designada a continuação de audiência nos seguintes termos:
«Para se proceder à continuação do julgamento (alegações orais) designo o próximo dia 13.11.2023, pelas 10 horas. Notifique. D.N.»
Em 10.11.2023 a Ilustre Mandatária do A. veio informar que em 13 seguinte se encontrava fora do país, não tendo quem a substitua em audiência, prescindindo de nela estar presente.
Em 11.11.2023 a R. veio requerer a prestação de declarações de parte, a toda a matéria do requerimento inicial, por dele ter conhecimento pessoal.
Em 13.11.2023 foi proferido o seguinte despacho judicial:
«Atendendo ao teor do requerimento que antecede dou sem efeito a continuação do julgamento que será remarcado em data a combinar com o actual juiz titular do Juízo, uma vez que se mostra necessário compatibilizar a agenda com o mesmo. Notifique».
Em 23.11.2023 a R. veio reclamar daquele despacho, arguindo a respetiva nulidade.
Relativamente àquela matéria, em 23.01.2024 foi proferido o seguinte despacho judicial:
«Atendendo a que a requerida pretende prestar declarações de parte e que a continuação do julgamento tinha sido agendada apenas para se proceder às alegações finais, o Tribunal tinha de agendar nova data para o julgamento, a fim de a parte contrária poder intervir aquando de tais declarações de parte, como é seu direito e, assim sendo, indefiro à reclamação apresentada pela requerida. Notifique.
Em 07.02.2024 a R. requereu, além do mais, a junção de seis documentos:
«3. A Requerida requer a junção aos autos de mensagens trocadas entre o Requerente a esta e print da entrada do documentário (documentos 1, 2 e 3), print de notícia sobre a participação do Requerente no BB (documento 4) e dois ficheiros de áudio trocados entre as partes (documento 5 e 6)».
Quanto àquela junção de documentos, em 24.02.2024 foi proferido o seguinte despacho judicial:
«Indefiro à junção dos documentos apresentados, por extemporâneos. Notifique».
A continuação da audiência decorreu em 18.03.2024, com declarações de parte da R. e alegações finais.
Em 25.03.2024 o Juízo Local Cível de Cascais proferiu sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«V – Decisão
Face ao exposto, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência: ordeno que a requerida B … se abstenha de publicar por qualquer meio, seja por via electrónica ou na imprensa falada ou escrita (incluindo televisões) qualquer notícia relativamente ao requerente A …, sendo que caso não cumpra o ordenado pagará a quantia de €2.500,00, por cada notícia que publicar.
Custas pela requerida».
Inconformada com tal decisão, a R. dela interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Vem a Requerida interpor recurso da sentença, não se conformando com a mesma, que visa reapreciação de matéria de facto e de direito.
B. São vários os vícios apontados à sentença recorrida que vão desde a nulidade do Despacho proferido a 13.11.2023, a incompetência absoluta do Tribunal Português, a violação dos princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade das partes, aa litispendência, a incorreção do relatório da sentença, a falta de fundamentação da sentença, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a inaplicabilidade da revelia, a errónea subsunção dos factos ao direito, a nulidade da sentença por ambiguidade e obscuridade no segmento decisório e condenação ultra petitum, do injustificado valor aplicado a título de sanção pecuniária compulsória e a intempestividade da presente ação.
C. Desde logo, dir-se-á que o tribunal português é incompetente para apreciar este litígio.
D. Incompetência que decorre de a factualidade que sustenta a ação configurar os chamados delitos on-line.
E. A regra principal para aferir a competência do Tribunal nos delitos online é a sede do domicílio de quem intenta a ação, logo, no Brasil, morada indicada na petição inicial.
F. Sendo certo que, como a ilustre Autora Anabela Gonçalves bem explana, “o Tribunal de Justiça considerou que outra jurisdição deveria ter competência para decidir o ressarcimento de todos os danos causados: o tribunal do lugar em que a vítima tem o seu centro de interesses. O centro de interesses da vítima geralmente será o lugar da sua residência habitual (...)” (sublinhado e negrito nossos).
G. Para localizar o facto danoso há que atender a um critério do lugar do centro de interesses do lesado como fator de competência para determinar o lugar do facto ocorrido online.
H. In casu, não subsistem dúvidas que será no Brasil em virtude de o mesmo ter a sua residência no Brasil, onde celebra todos os contratos profissionais, onde recebe os respetivos rendimentos, onde paga os seus impostos e onde tem milhões de seguidores, ou seja, onde o mesmo sentiu todo esse eventual peso de escárnio e tristeza profissional.
I. Sendo a incompetência em razão do território uma exceção dilatória, inclusive de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, implica a absolvição da Recorrente da instância, ao abrigo do disposto nos arts. 576.º n.º 2 e 577.º alínea a).
Se assim não se entender,
J. Também os termos do art. 59.º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts. 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94.º.
K. Os factos em causa dizem respeito a publicações nas redes sociais cujo público recetor é, esmagadoramente, brasileiro, pois que, quer Recorrente, quer Recorrido são consideradas duas figuras públicas brasileiras, com residência habitual no Brasil!. Ambos auferem rendimentos quase exclusivamente naquele país, tendo lá centrada a sua visibilidade.
L. Labora em erro o Tribunal recorrido quando afirma que os factos em causa nestes autos foram cometidos em Portugal pois nenhuma evidência disso foi levada ao processo pelo Requerente, sendo o próprio a declarar que reside no Brasil.
M. A Requerida, apesar de residir legalmente em Portugal, viaja frequentemente, por diversas vezes as publicações são efetuadas nos locais onde esta se encontra, não tendo sido demonstrado no processo onde ela estava.
N. Deste modo, o Tribunal recorrido violou ou não fez a melhor interpretação do art. 7.º n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, 576.º n.º 2, 577.º alínea a), 59.º, 62.º alínea b), 96.º alínea a) e 97.º n.º 1 do CPC, devendo a excepção ser julgada procedente e revogada a sentença recorrida.
Acresce que,
O. Vários são os vícios ocorridos na tramitação dos presentes autos.
P. A Requerida não foi citada pessoalmente para a presente ação, tendo tomado conhecimento por terceira pessoa do teor da mesma em virtude de se encontrar ausente do país por motivos profissionais.
Q. Constituiu mandatária que, em 25 de janeiro apresentou requerimento a justificar antecipadamente a sua falta, dando conta dos compromissos profissionais pré-designados, acompanhado de prova documental do alegado.
R. Requerimento que foi mandado desentranhar através do Despacho datado de 27.01.2023, com a Ref.ª Citius …., tendo a Requerida, a 31.01 junto cópia desse requerimento como anexo da peça processual, assim logrando deixar nos autos o seu teor.
S. Inexiste motivo para desentranhamento do requerimento, pelo que o referido Despacho é ilegal, inquinando a sentença agora recorrida.
T. A justificação antecipada da ausência da Requerida na audiência de julgamento deveria ter sido alvo de despacho de adiamento, pois a sua manifestação equivale à intenção de estar presente, tanto mais que em causa estão direitos de personalidade.
U. O agendamento da audiência de julgamento não foi precedido de acordo prévio com os mandatários pelo que, nos termos do artigo 603.º do CPC a falta do mandatário, tratando-se processo de constituição obrigatória de mandatário (art. 40.º do CPC), implicaria o respetivo adiamento. Tanto mais que o Tribunal teve conhecimento, tendo ficado consignado na própria ata, que esta se encontrava ausente do país.
V. Ocorrendo também nulidade por não ter sido determinado o adiamento da audiência de julgamento.
W. No entanto, no Despacho de 13.11.2023 foi diferente o entendimento do Tribunal a quo que, perante o requerimento apresentado pela mandatária do Requerente a informar a sua ausência na audiência, consentindo que a mesma se realizasse na sua ausência, decidiu adiar a mesma.
X. Este Despacho, por inexistir motivo atendível e norma legal que justificasse o adiamento, é nulo.
Y. Tanto mais que estamos perante um processo de natureza urgente, onde vigorava já uma decisão provisória contra a Requerida, pelo que a realização da audiência final se impunha breve.
Z. O Despacho de 13.11.2023 violou o princípio da igualdade das partes, padece de falta de fundamentação e é contrário à celeridade processual dos processos de tutela da personalidade.
AA. A sentença deve ser revogada porque violou igualmente os princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade das partes.
BB. A audiência realizou-se sem a presença da Requerida, da sua mandatária e das partes.
CC. O Tribunal que inicialmente entendeu não produzir uma decisão provisória, depois da audiência de julgamento, acabou por proferir decisão provisória, cujo conteúdo é quase integralmente igual ao da sentença.
DD. Tendo sido notificada à Requerida a douta decisão provisória em 01/02/2023, e por não ter logrado estar presente e por não ter sido ainda ouvida sobre o teor dos factos alegados pelo Recorrido, em 18/02/2023, nos termos do disposto no artigo 879.º, n.º 6 do CPC, procedeu a Recorrente à apresentação da sua contestação, onde invocou exceções, defendeu-se por impugnação, arrolou testemunhas e apresentou prova documental.
EE. Contestação que o Tribunal, por Despacho de 28/02/2023, mandou desentranhar por considerar extemporânea.
FF. Ora, se a Recorrente e a sua Mandatária não estiveram presentes na audiência de discussão e julgamento, que teve lugar no dia 31/01/2023, não tendo assim, sido ouvida antes da decisão provisória, ao abrigo do disposto no artigo 879.º, n. º6, do CPC, assistia-lhe o direito de contestar, no prazo de 20 dias a contar da notificação da decisão, o que fez, note-se, dentro do respectivo prazo.
GG. Ocorrendo também assim nulidade, o que aqui se argui e pretende ver reconhecido através da interposição do presente recurso.
HH. A decisão recorrida coartou por completo o direito ao exercício do contraditório, consignado como princípio no art. 3.º do CPC, impedindo a Requerida, entre outras coisas, de prestar declarações de parte.
II. E, mesmo que não admitisse a contestação, ao abrigo do mesmo princípio do contraditório, sempre deveria admitir a junção dos documentos que a acompanhavam pois a sua junção pode ocorrer até ao encerramento da audiência de julgamento.
JJ. A Requerida requereu a junção de documentos em requerimento autónomo, a 7 de fevereiro de 2024, e indeferida por ser considerada extemporânea, embora respeitando os prazos do 423.º do CPC.
KK. Pelo que a rejeição da junção dos documentos está ferida de nulidade, com inerente vício da sentença que julga provados factos que tais documentos tinham a virtualidade de contraditar.
LL. O Tribunal recorrido, cumprindo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa reabriu a audiência a fim de a Requerida prestar declarações de parte mas depois, no decorrer da mesma, impediu-a de falar sobre todos os factos do seu conhecimento pessoal.
MM. Coartando em absoluto o direito que a lei lhe atribui, o que equivale a dizer que pela 2.ª vez o Tribunal recorrido impediu a Requerida de prestar declarações de parte num processo que, pelas suas características, assume natureza muitíssimo pessoal.
NN. Desde o início do processo Tribunal a quo, não permitiu que a Requerida prestasse declarações sobre os factos vertidos aos quais tem conhecimento pessoal, nem que apresentasse sua defesa, ou admitisse a junção de documentos relevantes a boa decisão da causa. As provas documentais e testemunhais produzidas pelo Requerente, por si só, não poderiam ou não deveriam ser suficientes para criar a convicção daquele Douto Tribunal de que as publicações realizadas pela Requerida fossem consideradas falsas, e, portanto, não poderia ou não deveria, a Mmª. Juiz, ter pautado a fundamentação da Decisão, apenas com base nessas provas, sem deixar, por nenhum meio, que fosse exercido o direito ao contraditório sobre toda a matéria vertida nos autos.
OO. Trata-se de uma clara violação dos princípios constitucionalmente salvaguardados, designadamente os princípios da igualdade de partes e da ampla defesa, regulados nos arts. 20.º da CRP, e nos arts. 3.º e 4.º do CPP.
PP. Tendo sido invocada pela Requerida a excepção de litispendência, que constitui uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, ao abrigo do disposto no art. 577.º alínea i) do CPC, o Tribunal não deveria ter conhecido do mérito da causa sem antes conhecer da mesma.
QQ. Sendo merecedor de censura a declaração feita no capítulo II da sentença, referente aos pressupostos processuais que “não existem outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer ou que obstem ao conhecimento do mérito da causa”.
RR. Sabendo que sobre o Tribunal recai o ónus de se pronunciar sobre todas as questões que tenham sido suscitadas pelas partes a prolação de sentença, omitindo pronúncia sobre a excepção invocada é, a nosso ver, inaceitável, ferindo de nulidade a sentença recorrida.
SS. O Tribunal a quo não deveria ter iniciado a audiência de julgamento sem antes conhecer desta excepção.
TT. E muito menos encerrar a audiência, como fez, porquanto in casu, já se encontrava junto aos autos um motivo altamente provável para o seu indeferimento liminar.
UU. O Tribunal tinha conhecimento da coexistência de um processo n.º …. a correr termos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, perante o ….º juízo da …ª Vara Cível da Barra da Tijuca, conforme Requerimento datado de 27/01/2023, sob referência CITIUS …, com o mesmo pedido e causa de pedir.
VV. E acabou por proferir a 1.ª sentença dizendo que as partes foram notificadas para o efeito e não juntaram certidões do Tribunal Brasileiro.
WW. Ora, a Requerida nunca foi notificada ao longo dos autos para juntar qualquer documento, sendo por conseguinte falso o consignado na sentença.
XX. Aliás, não se compreende, se a Requerida foi quem suscitou a excepção de litispendência, juntando documento comprovativo do facto que alegou, porque é que o Tribunal ordena ao requerente para juntar a respetiva certidão.
YY. Claramente o Requerente não deu cumprimento ao ordenado pois não tinha qualquer interesse na procedência da excepção invocada pela Requerida.
ZZ. Na audiência realizada a 18.03.2024 a Requerida suscitou esta questão e o Tribunal referiu que o documento em causa foi protestado juntar pelo requerente, o que é falso.
AAA. O mesmo Tribunal que entendeu não poder proferir decisão sem antes se pronunciar e resolver a questão da litispendência, acaba por deixar esquecida de forma encapotada essa questão e proferir não só decisão provisória mas mesmo sentença definitiva.
BBB. Não podia o Tribunal proferir uma sentença sem conhecer da excepção de litispendência a qual, como se sabe, se destina a evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de proferir uma decisão em contradição com outra, estando-lhe subjacente razões de segurança e prestígio dos tribunais.
CCC. Não obedeceu a sentença ao princípio da exaustão, de acordo com o qual o juiz tem de conhecer todos os pedidos deduzidos.
DDD. Estamos perante uma nulidade da sentença em virtude de o Tribunal ter deixado de se pronunciar sobre a suscitada exceção de litispendência.
EEE. Quanto à decisão provisória, ocorre ainda nulidade porque “[n]esta hipótese, e por força do disposto no n.º 6 do art. 879.º, o réu, em vez de ser citado é notificado pessoalmente da decisão, isto é, aplica-se à notificação o preceituado quanto à citação (veja-se o lugar paralelo do art. 366.º, n.º 6, bem como do art. 250.º), designadamente no que tange à modalidade, ao conteúdo, à forma, ao computo de prazos, à pessoa a citar e aos vícios que a podem inquinar (arts 188.º, 189.º, 191.º, 227.º, 228.º e 245.º), em ordem a garantir o direito de defesa do reu”
23 (sublinhado e negrito nossos).
FFF. A decisão provisória apenas foi notificada à sua mandatária, ocorrendo mais uma nulidade.
GGG. Como nos ensina Nuno Andrade Pissarra, “[a] decisão provisória pode ser proferida na fase liminar da ação por razões de urgência ou depois dela.
(...) Com efeito, pode acontecer que a urgência do proferimento da decisão provisória apenas se revele indispensável à vista do juiz depois de admitida liminarmente a causa, ordenada a citação do réu e agendada a audiência final, mas ainda num momento anterior à realização desta, já por virtude da adução intercalar der factos supervenientes, já por virtude de diligências complementares de prova que o juiz entendeu determinar e que se não compadeçam com a brevidade inerente à fase liminar. Sendo esta a situação, uma vez proferida a decisão, ela é notificada nos termos gerais ao réu – já efetivamente citado ou ainda não – e o juiz deve remarcar a audiência para uma data que garanta ao réu o prazo de 20 dias para contestar – art 879.º n.º 6”. (sublinhado e negrito nossos).
HHH. A fundamentação da sentença não é isenta de crítica pois, salvo melhor entendimento, não dá cumprimento ao disposto no art. 154.º do CPC e ao dever consagrado na Constituição da República Portuguesa como princípio geral das decisões dos Tribunais.
III. A fundamentação sucinta deste tipo de processos não dispensa o Tribunal de apresentar a sua própria reflexão, resultante de um exercício ativo de conjugação da prova que efetivamente foi carreada para o processo, não podendo constituir mera adesão ao invocado pelas partes.
JJJ. No caso sub judice, a sentença apenas refere abstratamente que “fundamentou a sua convicção com base nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas apresentadas”, não individualizando ou referindo expressamente o conhecimento que as mesmas tinhas sobre determinados factos, o que equivale à ausência absoluta de fundamentação.
23 Ibidem, p. 91.
KKK. Considerando concretamente os factos provados, onde se inclui uma única publicação feita pela requerida mais de 3 anos antes da instauração da presente ação (que reveste natureza urgente) e que o requerente não logrou demonstrar que tenha factos falsos.
LLL. Logo, inexistem factos provados para sustentar a decisão de condenação.
MMM. Não existe nos autos prova para concluir que esta situação “causa uma grande dor ao requerente por ver a sua imagem e a de outros membros da sua família postas em causa e por ser confrontado com comportamento que não reconhece como verdadeiros”, impondo-se a sua revogação.
NNN. Mais gritante ainda é a ausência de prova quanto à falsidade das publicações feitas pela requerida, o que seria essencial para motivar a sua condenação por ofensa da honra e do bom nome.
OOO. Também não existe prova da data em que as publicações foram efetuadas, nem do local, o que impede o Tribunal as situar e balizar temporalmente.
PPP. Sendo ambos figuras públicas, como afirma o próprio requerente, não logrou este provar ter perdido seguidores (que orgulhosamente diz na p.i. serem 6 milhões), ter pedido patrocinadores e, acima de tudo, ter perdido rendimentos.
QQQ. Prova que a este incumbia por aplicação da regra geral contida no artigo 342.º do Código Civil, contrariamente ao entendimento da sentença recorrida que afirma “neste caso concreto, por não ter sido posto em causa que as notícias publicadas e em análise são falsas, não pode ser considerado que a liberdade de expressão tem de fazer ceder o direito ao bom nome e à honra do A. e, por conseguinte, a ação tem de proceder”.
RRR. Sendo o processo de tutela da personalidade de natureza especial, “(…) a revelia, absoluta ou relativa, é inoperante, não tendo aplicação ao processo especial o efeito cominatório semipleno sancionado pelo artigo 567.º, n.º 1. Também não é extensível ao processo em apreço o disposto no art- 574.º, n.º 1: sendo apresentada contestação, os factos não impugnados continuam controvertidos” (Pissara, 2022).
SSS. Logo, não tendo o Requerente logrado efetuar a prova da falsidade das publicações, impunha-se a improcedência da ação.
TTT. Acresce que, sendo o Requerente uma figura pública, constitui facto notório, e como tal dispensado de alegação de prova (art. 412.º do CPC), que não sofreu qualquer afetação da sua imagem aos olhos do público, continuando a prosperar na sua carreira.
UUU. Os pontos 10 e 11 dos factos provados encontram-se incorretamente julgados, devendo a sentença recorrida ser revogada, eliminando-os.
VVV. Não existe prova documental ou testemunhal dos danos invocados pelo requerente.
WWW. O requerente não apresentou um único documento sobre patrocínios que perdeu.
XXX. E também não apresentou qualquer documento relativo a negociações com patrocínios que tivessem deixado de firmar contrato por via das publicações da Requerida.
YYY. E também não trouxe nenhuma testemunha com conhecimento direto sobre tais factos, sendo que a sua companheira e os seus dois amigos mais não são do que seus confidentes pessoais.
ZZZ. Por contraposição, o próprio requerente juntou documento que atesta ter conquistado novo patrocinador em novembro de 2022.
AAAA. Ora, se as publicações que diz terem início em 2019 tivessem afetado a sua imagem não estaria agora a fechar contratos de patrocínio.
BBBB. Percorrendo a conta de instagram do Requerente, cuja acesso é aberto porque usada para fins comerciais, logo se compreende o teor das afirmações da Requerida pois este percorre inúmeros países em buscas das ondas gigantes. Por esse motivo, naturalmente não convive com os filhos. Uma realidade objetiva que a Requerida narrou na publicação levada ao ponto 13 dos factos provados.
CCCC. Constitui facto notório, que o Tribunal não pode ignorar nos termos do art. 412.º do CPC, o reconhecimento público do requerente, das inúmeras viagens que faz percorrendo o mundo inteiro, as publicações patrocinadas por inúmeras marcas.
DDDD. É o próprio tribunal que o refere “as partes envolvidas são figuras públicas”, realçando o facto de “a jurisprudência portuguesa e do TEDU apontarem para «uma menor esfera de proteção da honra e consideração de figuras públicas, face à de simples particulares, assim como quando estão em causa assuntos de interesse público» - cf. neste sentido Ac. RP de 11.05.2020, relatado pela Sra. Desembargadora Maria José Simões, in www.dgsi.pt.
EEEE. O requerente apresenta-se como surfista de ondas gigantes percorrendo o mundo para as apanhar (logo, não estando presente na vida dos filhos), assume ter decidido participar no programa “Big Brother Brasil”, cujo formato, como sabemos, obriga a um isolamento total, confessa estar a filmar uma série sobre a sua vida, assim aumentando a sua exposição pública.
FFFF. O Requerente expõe ao mais alto nível a sua vida pessoal.
GGGG. Afigurando-se de má-fé vir pedir a proteção e tutela da honra quando, como figura pública, diariamente expõe a sua vida (pessoal, privada, social e profissional), transmitindo a todos em geral que abdicou da sua privacidade de modo voluntário e naturalmente esclarecido.
HHHH. É infundada, e processualmente censurável a conclusão do Tribunal de que tais publicações são ilícitas porque se tratam de notícias falsas.
IIII. Verdade irrefutável é que da prova produzidas nos autos, exaustivamente analisada, não se encontra uma única notícia que comprovadamente seja falsa.
JJJJ. Insólita é a conclusão apresentada na sentença, reportada a atividade política, demonstrativa de que excertos desta decisão foram extraídos de outro processo, onde as partes terão atividade política que, salvo melhor entendimento, nenhuma semelhança têm com a factualidade aqui em apreciação, impondo-se a eliminação da mesma e a revogação da sentença.
KKKK. Finaliza a sentença com o entendimento contrário ao que tem sido a orientação do TEDH e da jurisprudência nacional, dizendo que a liberdade de expressão não se sobrepõe ao direito ao bom nome e à honra do Requerente.
LLLL. Impunha-se decisão diametralmente oposta, julgando improcedente a ação teria sido feita justiça.
MMMM. O sentido do segmento decisório da sentença recorrida, não é perfeitamente claro, porquanto o pensamento decisório da Relação não é facilmente lógico e compreensível através da sua leitura, na medida em que a Mm.ª Juiz a quo não especifica o alcance da expressão “qualquer notícia”, não havendo uma única forma de interpretação e um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer a fundamentação para interpretar.
NNNN. Pelo que, a sentença deverá ser considerada nula, por ambiguidade e obscuridade do segmento decisório, e que tornou a decisão ininteligível, nos termos do art. 615.º n.º 1 al. c) do CPC.
OOOO. A sentença recorrida, ao determinar que a Requerida se abstenha de publicar “qualquer noticia”, claramente viola o princípio do dispositivo, porquanto ultrapassou o limite constante do pedido, tendo o requerido suscitado que fosse determinada a proibição de publicações que se referissem apenas a assuntos de responsabilidades parentais, tendo o Tribunal a quo determinado que a mesma se abstenha de publicar qualquer notícia.
PPPP. Pelo que, deverá ser a sentença nula, por condenação ultra petita, na medida em que o Tribunal recorrido violou ou não fez a melhor interpretação da norma, nomeadamente os arts.º 3.º n.º 1, 609. n.º 1 e art.º 615º n.º 1 alínea e), todos do CPC.
QQQQ. A sentença condenou a Requerida no pagamento de sanção pecuniária compulsória de 2.500,00 € por cada notícia que publicar, exatamente o valor peticionado pelo requerente no art. 169.º da p.i..
RRRR. É omissa de fundamentação a sentença quanto à forma como determinou este valor, limitando-se a condenar exatamente no valor pedido pelo Requerente
SSSS. Não é levada em conta qualquer circunstância de facto para determinação do valor, seja ao nível dos prejuízos do Requerido, seja ao nível das disponibilidades da Requerida.
TTTT. O Tribunal não está vinculado ao pedido formulado pelo requerente pelo que, atenta a natureza da sanção pecuniária compulsória, esta deve ser aplicada com recurso a fatores de equidade, atendendo à gravidade da conduta e o grau de culpa; à importância do direito a acautelar; às consequências do incumprimento, incluindo se ocorreram danos ou lucros cessantes; a importância do incumprimento consoante se trate de um caso isolado ou de um caso reincidente; a duração previsível do incumprimento; as vantagens ou lucros resultantes do incumprimento; as condições económicas do devedor de modo a que a sanção seja proporcional e persuasiva.
UUUU. No caso concreto, o Tribunal não lançou mão de qualquer destes critérios e se o Requerente tivesse peticionado um milhão de euros, neste momento a requerida estaria assim condenada.
VVVV. Na verdade, ocorre também nulidade da sentença porque condena em objeto diverso do pedido porquanto o Requerente peticionou que o Tribunal determinasse a “proibição de publicar em redes sociais qualquer referência a assuntos de responsabilidades parentais que refiram o requerente e os menores” e a sentença condena a requerida a que se abstenha de publicar “qualquer notícia”.
WWWW. Estamos perante uma nulidade por condenação ultra petita.
XXXX. Ainda que assim não se entenda, sempre se impõe concluir, da conjugação da prova produzida, que as circunstâncias de facto que motivaram a distribuição desta ação não têm atualidade, sendo maioritariamente referente a factos ocorridos em 2019.
YYYY. A celeridade e urgência reconhecida ao processo especial de tutela da personalidade reside na atualidade dos seus fundamentos, faltando, no caso em concreto, a atualidade dos factos, o que só por si deveria ter conduzido à improcedência da ação.
ZZZZ. A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação do art. 5.º n.º 3 da Convenção de Bruxelas I, art- 7.º n.º 2 do Regulamento UE 1215/2012 de 12 de dezembro, do art- 20.º da Constituição da República Portuguesa, dos arts. 342.º e 566.º n.º 3 do Código Civil, 3.º, 4.º, 6.º, 40.º, 59.º, 62.º, 63.º, 94.º, 96.º, 97.º, 154.º, 188.º, 189.º, 191.º, 227.º, 228.º, 245.º, 250.º, 366.º n.º 6, 412.º, 466.º n.º 1, 511.º, 552.º, 567.º, n.º 1, 576.º n.º 2, 577.º alínea a) e i), 603.º, 607.º, 608.º, nº 2, 615.º n.º 1 d), 879.º n.º 1, 3, 5 e 6 e 880.ºdo CPC.
AAAAA. Ao abrigo do disposto no art. 267.º TFUE requer-se ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que proceda ao reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia formulando as seguintes questões:
- O conceito de lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso plasmado no art. 7.º n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tratando-se de litígios online, deve ser atendido cum grano salis, através do seu recurso a um elemento teleológico?
- Em caso afirmativo à questão anterior, são internacionalmente competentes os tribunais portugueses para tratar da violação de direitos de personalidade através de publicações feitas online relativamente ao caso de um cidadão que não tem nacionalidade portuguesa, não reside em Portugal, não aufere aqui quaisquer rendimentos de trabalho e os seus seguidores e patrocinadores não se encontram neste país?
Termos em que, dando-se provimento ao recurso, deve proceder-se ao reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º, terceiro parágrafo, do Tratado de Funcionamento da União Europeia formulando as seguintes questões:
- O conceito de residência habitual plasmado no artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25.06 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental deve ser atendido cum grano salis, através do seu recurso a um elemento teleológico?
- Em caso afirmativo à questão anterior, são internacionalmente competentes os Tribunais portugueses para tratar da violação de direitos de personalidade através de publicações feitas online relativamente ao caso de um cidadão que não tem a nacionalidade portuguesa, não reside em Portugal, não aufere aqui quaisquer rendimentos de trabalho e os seus seguidores e patrocinadores se encontram noutro país?
Ou, subsidiariamente,
Julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida, assim se fazendo Justiça!».
O A. não contra-alegou.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir. II. SANEAMENTO DOS AUTOS.
Segundo o disposto no artigo 613.º, n.º 1, do CPCivil, «[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa».
Nos termos do artigo 666.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo CPCivil, tal normativo «[é] aplicável à 2.ª instância», sendo «lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidade e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes».
Ou seja, no que aqui releva, proferido acórdão pelo Tribunal da Relação esgota-se de imediato o poder jurisdicional daquele Tribunal quanto ao objeto de tal acórdão, sem prejuízo da retificação de erros materiais, da possibilidade de suprir nulidades e da reforma do acórdão nos casos legalmente admissíveis.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, páginas760 e 831, em anotação aos referidos preceitos legais, «[d]a extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferir a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar (RC 17-4-12, 116/11)».
«(…) Tal como ocorre com a sentença de 1ª instância, com a prolação do acórdão (…) esgota-se o poder jurisdicional, sem embargo das exceções ligadas à correção de erros materiais e arguição de nulidades, nos termos dos artigos 615.º e 616.º (…)».
Na situação vertente, conforme decorre do relatório do presente acórdão, este Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14.09.2013, já se pronunciou quanto à (i) incompetência do Tribunal, (ii) litispendência, (iii) não adiamento da audiência de 30.10.2013 e (iv) (in)admissibilidade da contestação, sem que se imponha retificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar tal acórdão.
Assim sendo, encontra-se esgotado o poder deste Tribunal da Relação em tais matérias, pelo que as mesmas não podem ser objeto de novo recurso para este Tribunal da Relação e tendo-o sido não podem, nem devem, ser reapreciadas pelo mesmo Tribunal, ficando igualmente prejudicadas as demais questões substancialmente conexas ou decorrentes àquelas matérias entretanto suscitadas, conforme disposto nos artigos 663.º, n.º 2, e 608.º, n.º 2, do CPCivil, termos em que entende-se não constituir objeto do presente recurso o constante das conclusões C. a N. e ZZZZ. a AAAAA., referentes à competência do Tribunal recorrido, conclusões P. a V, relativas ao não adiamento da audiência de 30.01.2023, conclusões BB. a II. e EEE. a GGG., quanto à (in)admissibilidade da contestação, e conclusões PP. a DDD, relativamente à litispendência.
III. OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 663.º, n.º 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, levando em conta o saneamento feito, conforme ponto II. deste acórdão, e atentas as conclusões deduzidas pela Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso a apreciar, nos presentes autos está em causa apreciar e decidir:
· Da nulidade do despacho de 13.11.2023,
· Do indeferimento de documentos da R./Recorrente;
· Da violação de princípios do processo civil,
· Da nulidade por falta de fundamentação,
· Da nulidade por ambiguidade e obscuridade da decisão recorrida,
· Da impugnação da matéria de facto,
· Da nulidade por falta de fundamentação
· Da tutela da personalidade;
· Da sanção pecuniária compulsória.
Assim. IV. DA NULIDADE DO DESPACHO DE 13.11.2023.
(Conclusões A., B., O. e W. a AA. das alegações de recurso).
A Recorrente alega que tal despacho «violou o princípio da igualdade das partes, padece de falta de fundamentação e é contrário à celeridade processual dos processos de tutela da personalidade», devendo «[a] sentença ser revogada».
Vejamos.
A arguida nulidade funda-se num manifesto equívoco: pressupõe que o adiamento da continuação da audiência designada em 02.11.2023 para 13.11 seguinte resultou da comunicada ausência nesta da Ilustre Mandatário do A., quando, na verdade, decorreu antes da circunstância da R., ora Recorrente, ter requerido, entretanto, a prestação de declarações de parte.
Conforme decorre do relatório deste acórdão, as decisões judiciais de 13.11.2023 e 23.01.2024 dão disso conta.
Na primeira daquelas decisões, refere-se expressamente que o adiamento decorre do «teor do requerimento que antecede», sendo que este corresponde ao requerimento de 11.11.2023, no qual a R. pediu a prestação de declarações de parte, não ao requerimento do A. de 10.11.2023, no qual a Ilustre Mandatária do A. informou que não ia comparecer à sessão de julgamento de 13.11 seguinte, prescindindo de aí estar presente.
Aquela referência ao «teor do requerimento que antecede» constitui o fundamento da decisão judicial de adiamento da sessão de julgamento, pelo que esta decisão revela-se fundada, diversamente do alegado pela Recorrente.
A referida decisão judicial de 23.01.2024 torna inequívoca a causa do adiamento: «[a]tendendo a que a requerida pretende prestar declarações de parte e que a continuação do julgamento tinha sido agendada apenas para se proceder às alegações finais, o Tribunal tinha de agendar nova data para o julgamento, a fim de a parte contrária poder intervir aquando de tais declarações de parte, como é seu direito».
Ou seja, também aqui o adiamento resulta tão-só do requerimento para declarações de parte, entretanto, deduzido pela R.
Contrariamente ao alegado pela Recorrente, não se vislumbra que tal procedimento do Tribunal recorrido tenha violado princípios do processo civil, nomeadamente os invocados princípios da igualdade e da celeridade processual.
A situação em causa era substancialmente diversa da ocorrida na sessão de julgamento de 30.01.2023: nesta o objeto estava definido e decorria da lei, ao passo que na sessão de 13.11.2023 tratava-se de alterar o respetivo objeto anteriormente definido, no que era prescindível salvaguardar o princípio do contraditório.
De todo modo, mesmo que assim não fosse, o alegado adiamento da sessão de julgamento de 13.11.2023 não influiu de todo em todo «no exame ou na decisão da causa», conforme artigo 195.º, n.º 1, do CPCivil, nem a Recorrente explícita tal, termos em que inexiste corre nulidade nesta sede.
Improcede, pois, em tal matéria o recurso. V. DO INDEFERIMENTO DE DOCUMENTOS DA R./RECORRENTE.
(Conclusões A., B., JJ. e KK. das alegações de recurso).
Nesta sede a R./Recorrente colocou em causa o despacho judicial de 23.02.2024 que indeferiu a junção de seis documentos apresentados pela R./Recorrente em razão da extemporaneidade dos mesmos.
Vejamos.
Embora tal despacho judicial não indique o normativo aplicável, em causa está a aplicação do disposto nos artigos 879.º, n.º 2, 423.º, n.ºs 1 e 3, do CPCivil.
Segundo aquele último preceito legal, aplicável por força do disposto no artigo 549.º, n.º 1, igualmente do CPCivil, «[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes», sendo que se não forem juntos com o articulado respetivo são ainda «admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior».
Por força do apontado regime legal, no processo especial de tutela da personalidade o réu deve apresentar os seus documentos no início da audiência, salvo impossibilidade da sua apresentação então ou a junção se mostrar necessária em virtude de ocorrência registada em audiência ou em momento posterior.
Ora, na situação vertente,é manifesto que os documentos apresentados pela R. /Recorrente em 07.02.2024 não foram apresentados no início da audiência, sem que tenha sido indicada qualquer justificação para tal, termos em que bem andou o Tribunal recorrido ao indeferir a sua junção.
A audiência final iniciou-se em 30.01.2023, sendo irrelevante na matéria que o termo final da mesma tenha ocorrido em 18.03.2024, pois em função do apontado regime legal releva a data do início da audiência e não a do respetivo termo.
Por outro lado, com a junção dos documentos a R./Recorrente nada disse, designadamente nem referiu a impossibilidade da sua junção em data anterior, nem que a junção se tenha mostrado necessário em virtude de ocorrência posterior à audiência.
Improcede, assim, também nesta parte o recurso. VI. DA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL.
(Conclusões A., B., O. e HH., LL. a OO. das alegações de recurso).
Nesta sede a Recorrente invoca a violação dos «princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade das armas».
No que ora releva, considerando que o demais na matéria em causa já foi saneado, conforme ponto II. deste acórdão e, pois, não constitui objeto aqui em apreciação, alega a Recorrente, em suma, que foi limitada na prestação das suas declarações de parte: o Tribunal recorrido «apenas permitiu que a Recorrente respondesse sobre 4 ou 5 pontos, impedindo-a de falar sobre os outros mais de 50 pontos. De forma encapotada o Tribunal Recorrido uma vez mais coartou o único direito de defesa da Recorrida, as suas declarações de parte».
Apreciemos.
Segundo o disposto no artigo 627.º, n.º 1, do CPCivil, «[a]s decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos».
Nos termos do artigo 644.º do mesmo diploma legal, o recurso de apelação incide sobre decisões proferidas por «tribunal de 1.ª instância».
O recurso de apelação tem, assim, por objeto uma decisão judicial, constituindo um modo de reapreciar esta de facto e/ou de direito.
Salvo quanto a questões de conhecimento oficioso, a apelação não visa, pois, apreciar questões novas, mas tão-só reexaminar questões de facto e/ou de direito já anteriormente suscitadas pelas partes e apreciadas pelo Tribunal recorrido.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, página 31, «[n]a fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou serem apreciadas questões de conhecimento oficioso (…)».
No mesmo sentido, refere Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, edição de 2019, página 463, que “[r]ecursos, «em sentido técnico-jurídico, são meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida»[1]. Meios que visam modificar as decisões recorridas, que não criam decisões sobre matéria nova, não podendo assim neles ser versadas questões que não hajam sido suscitadas perante o tribunal recorrido (isto salvas as questões de natureza adjetivo-processuais e substantivo-material que sejam de conhecimento oficioso)”. In casu.
A Recorrente insurge-se quanto à forma como o Tribunal recorrido limitou as suas declarações de parte na audiência final.
Ora, compulsando a ata daquela audiência dela não resulta que a R., aqui Recorrente, tenha aí se insurgido quanto à alegada limitação das suas declarações de parte e muito menos que no decurso dela o Tribunal recorrido se tenha pronunciado quanto a tal.
Nestes termos, uma vez que a alegada limitação das declarações de parte constitui uma questão nova, não anteriormente suscitada pela R./Recorrente, nem objeto de apreciação e decisão pelo Tribunal recorrido, não pode tal questão ser objeto de dilucidação por este Tribunal de recurso.
De todo o modo, considerando que a R. e a sua Ilustre Mandatária estavam presentes na audiência, onde alegadamente foi cometida a irregularidade, era na audiência que a R. tinha que reclamar quanto a tal irregularidade, conforme artigos 195.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPCivil, termos em que sempre se mostraria sanada a alegada irregularidade.
Na matéria importa também não olvidar os poderes de direção da audiência do juiz, conforme designadamente artigo 602.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CPCivil, cumprindo às partes explicitar os factos concretos pertinentes que têm por omitidos nas declarações prestadas, o que não de todo em todo não foi alegado pela R./Recorrente.
Improcede, pois, o recurso nessa sede. VII. DA NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.
(Conclusões A., B., HHH. a JJJ. das alegações de recurso).
A Recorrente alega, em suma, que a sentença recorrida procede a uma fundamentação abstrata da decisão de facto, «não individualizando ou referindo expressamente o conhecimento que as» testemunhas tinham sobre determinados factos, o que equivale à ausência absoluta de fundamentação.
Analisemos.
Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPCivil, «[é] nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
A sentença deve estar minimamente motivada de facto e de direito, sendo nula aquela em que falte de todo em todo tal motivação ou em que esta seja absolutamente incompreensível, não cumprindo, assim, o dever constitucional e legal de justificação que deve revestir qualquer decisão judicial.
A fundamentação escassa ou deficiente ou incorreta não constituem causas de nulidade da decisão, conforme a apontada disposição legal.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, página 763, no que ora está em causa a sentença é nula quando ocorre «(…) a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (…)».
No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2020, refere que «[q]uanto ao dever de fundamentar as decisões que se impõe ao juiz por imperativo constitucional e legal, mostra-se pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação (fáctica ou jurídica) conduz à nulidade da decisão, não integrando tal vício, uma fundamentação deficiente que apenas pode merecer cabimento em sede de erro de julgamento». In casu.
Após o «Relatório», a decisão recorrida indicou os «Factos provados», referiu inexistirem «Factos não provados», explicitou a «Fundamentação» daqueles e teceu considerações quanto ao «Direito», concluindo com a prolação de uma «Decisão».
Ou seja, a decisão recorrida mostra-se fundamentada, conforme artigo 607.º, n.ºs 2 e 3, do CPCivil.
Designadamente, na fundamentação da decisão de facto, consta da decisão recorrida que:
«O Tribunal fundamentou a sua convicção com base nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas apresentadas pelo requerente[2] que referiram que o mesmo tem sofrido muito com o comportamento da requerida supra descrito, tem sido atacado por internautas, perdeu patrocínios e tem outros patrocínios em suspenso (stand by), por estarem a aguardar que se resolva a situação entre requerente e requerida, uma vez que as marcas não querem os seus nomes envolvidos em questões como a que está em causa nos autos, situação que não só põe em causa os rendimentos do requerente e da sua família (incluindo os filhos que tem da requerida), como causa uma grande dor ao requerente por ver a sua imagem e a de outros membros da sua família postas em causa e por ser confrontado com comportamentos que não reconhece como verdadeiros.
O Tribunal considerou ainda as declarações de parte da requerida, que confirmou que postou nas redes sociais, incluindo o Instagram as declarações referidas em 31 dos factos dados como provados, tendo ainda referido que com tal comportamento visava obrigar o requerente a comportamentos relativamente a responsabilidades parentais e que o fez antes de propor no Tribunal competente (Tribunal de Família e Menores) por considerar que seria mais eficiente fazê-lo antes nas redes sociais, pois que assim, por vergonha, o requerente resolveria os problemas, que a requerida alega existirem à data das publicações em causa nestes autos, o que, no seu entender, aconteceu».
Nestes termos, a decisão de facto mostra-se motivada, não sendo necessário que da mesma conste o referido pelas testemunhas.
Pode discordar-se de tal fundamentação.
Não pode é assacar-se à decisão recorrida o vício da falta de fundamentação ora em causa, tanto mais quanto é certo que o artigo 879.º, n.º 3, parte final, do CPCivil estipula que a «sentença [deve ser] sucintamente fundamentada».
Em suma, improcede igualmente nesta parte o recurso. VIII. DA NULIDADE POR AMBIGUIDADE E OBSCURIDADE DA DECISÃO RECORRIDA.
(Conclusões A., B., MMMM. e NNNN. das alegações de recurso).
Nesta sede a Recorrente alegou que a expressão «qualquer notícia» constante do segmento decisório não tem «um sentido é unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para interpretar».
Apreciemos.
Segundo o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPCivil, no que aqui releva, «[é] nula a sentença quando (…) ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível».
A inteligibilidade de um escrito corresponde à sua compreensibilidade. É inteligível o que se compreende.
Pelo contrário, a obscuridade corresponde ao que é equívoco, confuso, e a ambiguidade caracteriza o que se presta a diversas interpretações, o que é duvidoso quanto ao seu significado.
Ora, vista a decisão recorrida, não se vislumbram os apontados vícios indicados pela Recorrente.
Com efeito, no que aqui releva, a decisão recorrida remata com o seguinte dispositivo:
«(…) ordeno que a requerida B … se abstenha de publicar por qualquer meio, seja por via electrónica ou na imprensa falada ou escrita (incluindo televisões) qualquer notícia relativamente ao requerente A … (…)».
(Negrito da autoria dos aqui subscritores).
O emprego do quantificador universal «qualquer» tem o significado unívoco de «todo ou toda», o qual encontra-se reportado a «notícia», entendida esta no contexto como apontamento, comentário, referência, post.
Pode discordar-se que a interdição em causa assuma um tal alcance.
Pode entender-se que com tal alcance viola-se o princípio dispositivo.
Não pode é duvidar-se que foi atribuído o referido alcance.
Improcede igualmente nesta sede o presente recurso. IX. DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO.
(Conclusões A., B., PPP. e TTT. a FFFF. das alegações de recurso).
Segundo o disposto no artigo 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPCivil,
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Ou seja, sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, páginas 163 e 169, o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente», sendo que as exigências decorrentes do apontado regime legal «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)».
No caso presente.
Na sua motivação do recurso, a Recorrente refere que «os pontos 10, 11 e 12 dos factos provados devem ser julgados como não provados».
Contudo, a Recorrente nada mais alega nesse sentido quanto ao facto provado 12, nem na motivação do recurso, nem nas suas conclusões, pelo que no que respeita a tal facto têm-se, desde logo, por incumprido o apontado ónus de indicação dos concretos meios de prova que justificam a impugnação de tal facto e impõem a decisão diversa pretendida quanto ao mesmo facto, sendo que, de todo o modo, a circunstância da impugnação do facto provado 12 não constituir objeto das conclusões de recurso sempre obstaria à sua dilucidação em sede recursiva, atenta a delimitação objetiva do recurso em função das conclusões, conforme disposto no referido artigo 635.º, n.º 4, do CPCivil.
Importa, pois, manter o facto provado 12 nos precisos termos indicados na decisão recorrida.
Quanto aos factos provados 10 e 11, o alegado pela Recorrente também não impõe uma «decisão diversa» na matéria aí em causa, conforme artigo 662.º, n.º 1, do CPCivil.
Com efeito, diversamente do alegado pela Recorrente, os factos 10 e 11 podem provar-se por testemunhas.
Por outro lado, a circunstância de terem deposto a «atual companheira [do Recorrido] e dois amigos chegados» do mesmo, só por si, não abala a credibilidade dos mesmos enquanto testemunhas nos autos, sendo que a Recorrente nada refere em concreto que assim se deva concluir, o que significa o depoimento de tais testemunhas deve ser considerado nos autos.
Também os excertos transcritos pela Recorrente, analisados em si mesmos e entre si, não impõem uma «decisão diversa» na matéria factual em causa.
Nestes termos, importa manter a decisão de facto constante da decisão recorrida nos seus precisos termos, a qual tem o seguinte teor:
1 - O Requerente é um surfista mundialmente famoso, conhecido por “A …”, sendo um dos maiores “free surfers” de ondas grandes do planeta;
2 - Trata-se de personalidade famosa, que já foi eleito pela revista “Alma” como melhor “free surfer” do ano de 2012, tendo-lhe sido atribuído pela revista “Fluir” o prémio de “melhor tubo” do ano de 2012;
3 - Em 2014 protagonizou a série brasileira “A … Vai para o Mar”, que versa sobre a infância, e percurso profissional do Requerente, a qual foi exibida pelo canal “OFF” que se dedica à transmissão de conteúdos relacionados com desportos radicais;
4 - Atualmente o Requerente encontra-se nomeado e a concorrer para o prémio de “surfista do ano” do Big Wave Awards é ainda o atual vice-campeão da competição “Tudor Nazaré Tow Surfing Challenge”;
5 - O Requerente dispõe de mais 6.000.000 (seis milhões) de seguidores na rede social “instagram”, tendo uma presença bastante ativa nessa rede social, sendo seguido, observado por todas as marcas que o patrocinam, bem como todos os seus amigos, e familiares;
6 - Atualmente o Requerente tem como patrocinadores, entre outras, as marcas “Redbull”, “Corona” e “Hot Buttered”;
7 - A Requerida tem presença ativa na rede social “Instagram” dispondo de mais de 4.500.000 (quatro milhões e quinhentos mil seguidores), tendo uma conta aberta ao público, não utilizando aquela plataforma para fins comerciais, e dispõe ainda de um canal de Youtube como o nome “B … sem freio”, faz vídeos de periodicidade diária ou semanal onde comenta com os seus fãs internautas aquilo que entende, vídeos esses que dispõem de grande visibilidade e que chegam a milhões de pessoas;
8 – Requerente e Requerida tiveram uma relação de união de facto da qual nasceram três filhos, todos eles menores;
9 - Após a separação, a Requerida, conhecendo o mal que podia causar ao Requerente, através da rede social “Instagram”, “Facebook”, “Youtube”, e entrevistas que dá para canais de televisão e para “revistas cor-de-rosa da especialidade”, tem atacado a imagem do Requerente enquanto homem e enquanto pai, situação que atualmente se mantém;
10 - O Requerente em resultado da exposição de aspetos da sua vida privada já perdeu patrocinadores que tinha, e deixou de fechar contratos com novos patrocinadores devido ao tipo de condutas que lhe imputa a Requerida;
11 - Concretamente, o Requerente perdeu o patrocínio da marca “Quiksilver”, que o indagou sobre o tipo de acusações que lhe fazia a Requerida nas redes sociais, informando o Requerente que não queriam, nem podiam ficar associados a um atleta com aquele tipo de imagem;
12 - O Requerente sente-se vítima do designado fenómeno da “política de cancelamento”, fenómeno segundo o qual, uma pessoa é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a acusações de atitudes consideradas questionáveis;
13 - No dia 02-06-2019, a Requerida publicou um vídeo no Youtube e na sua página da rede social “Instagram” no qual verbalizou, de viva voz e imputou ao Requerente o tipo de comportamentos que abaixo se transcrevem:
“B … – “É ele que não convive com os filhos. Então as pessoas falam: Lá está ela cuidando dos filhos. Isso para mim é uma dádiva porque esse tempo não volta. E quem está perdendo é ele. Ele só que vem visitar. Ele é que vai ver e conviver o pouco tempo que tiver”;
B …. – “De não ter mais esse casamento, porque não tava dando para ter um turista no casamento, que era o que tava acontecendo, inclusive foi maravilhoso termo nos separado porque agora, finalmente, ele se transformou no companheiro e no pai que eu sempre desejei ter em casa, então foi preciso separar para que uma evolução acontecesse e tudo melhorasse. Valeu a pena separar”.
14 - Ao fazê-lo, a Requerida quis e conseguiu passar a imagem de que o mesmo não era um pai presente, que não conviva com os seus filhos porque era um pai “turista”. X. DA TUTELA DA PERSONALIDADE.
(Conclusões A., B. e GGGG. a LLLL. das alegações de recurso).
Com a presente ação o A., aqui Recorrido, veio pedir a tutela da sua personalidade, considerando que a R./Recorrente ofendeu o seu direito ao bom nome, através das redes sociais.
Por sua vez, a R./Recorrente invoca o seu direito de liberdade de expressão, frisando que os factos decorrem no contexto de redes sociais em que ambos são intervenientes ativos, influentes, e figuras públicas, sendo que o A./Recorrido expõe diariamente a sua vida pessoal, privada, social e profissional.
Vejamos.
1. O direito à integridade pessoal, física e moral, bem como o direito à liberdade de expressão constituem direitos constitucionalmente salvaguardados, conforme designadamente artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, bem como artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, respetivamente.
Segundo aquele primeiro preceito, no que aqui releva, «[a] integridade moral (…) das pessoas é inviolável».
De acordo com o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, com relevância no caso, «[a] todos são reconhecidos os direitos (…) ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra (…)».
Nos termos do referido artigo 37.º, n.º 1, da Constituição, no que ora releva, «[t]odos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (…)».
Os direitos à integridade moral e à liberdade de expressão encontra-se igualmente consagrados em diplomas internacionais a que Portugal está vinculado, designadamente artigos 12.º e 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
2. No plano do direito civil, a «tutela geral da personalidade» encontra-se consagrada no artigo 70.º do CCivil, conferindo ao ofendido, em caso de «ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», o direito de «requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida» e, pois, providências de natureza inibitória ou repristinatória, respetivamente, incluindo providências inominadas.
Como refere Luísa Neto, Código Civil Anotado, volume I, edição Almedina, 2024, página 112, em anotação ao referido artigo 70.º do CCivil, «[o] artigo limita-se a declarar, em termos muito genéricos e muito sucintos, a ilicitude das ofensas ou das ameaças à personalidade física ou moral dos indivíduos, sem descer a minuciosa referência analítica. A delimitação de acordo com as circunstâncias do caso é deixada à lei, à jurisprudência e à doutrina, pelo que são naturalmente admitidas para este efeito providências inominadas, nos termos do processo civil e administrativo».
3. Por sua vez, a liberdade de expressão corresponde ao livre exercício do direito de exprimir o pensamento, nas mais diversas circunstâncias e lugares, bem como por qualquer meio, igualmente em plataformas informáticas, sendo próprio de um Estado de Direito Democrático.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, edição de 2005, páginas 428 a 430, «[a] liberdade de expressão só se compreende como liberdade de expressão de pensamento (…). Sem ela atinge-se o direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1)».
«(…) Os direitos de expressão e de informação exercem-se por qualquer meio: palavra oral ou escrita, a imagem, o gesto (…) o espectáculo, o filme e qualquer outro meio audiovisual, o ciber-espaço, o silêncio. Em qualquer circunstância. E em qualquer lugar, privado ou público».
4. Em caso de «colisão de direitos», o artigo 335.º do CCivil distingue entre «direitos iguais ou da mesma espécie» e «direitos desiguais ou de espécie diferente»: no primeiro caso, «devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes», ao passo que «[s]e os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior».
Em situação de colisão de direitos da mesma natureza, como o são o direito à integridade pessoal e o direito à liberdade de expressão, importa proceder à concordância prática de direitos, relevando com efeitos juridicamente operantes, a exigir tutela judicial, tão-só situações abusivas.
Como refere Elsa Vaz Sequeira, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, edição de 2014, páginas 790, 792 e 793, em anotação ao artigo 335.º do CCivil, «[e]xiste colisão de direitos sempre que o exercício de um direito impossibilita, no todo ou em parte, o exercício de outro. Para que se verifique uma situação desta natureza é necessária a presença cumulativa de três pressupostos: a existência de uma pluralidade de direitos, a sua pertença a diferentes titulares e a impossibilidade simultâneo e integral desses direitos».
«Este artigo estabelece os critérios para resolver as situações de colisão de direitos. Segundo ele, há que distinguir entre os casos de colisão que envolvem direitos iguais ou da mesma espécie daqueles em que os direitos colidentes são desiguais ou de espécie diferente. Ali a solução passa pela coordenação do exercício dos direitos, limitando-os na medida estritamente necessária, ao passo que aqui já vigora a regra da prevalência, de harmonia com a qual o exercício do direito superior deve prevalecer sobre o exercício do direito inferior».
Na densificação daquela ótica da «coordenação» de direitos da mesma espécie recorre-se a um critério de proporcionalidade, conforme artigo 18.º, n.º 2, da Constituição: as restrições de direitos devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Como refere Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, edição de 2020, páginas 337, 339 e 340, «[a] ideia de proporcionalidade é conatural às relações entre pessoas: a reação deve ser proporcional à ação e a distribuição das coisas deve fazer-se com justiça».
Na matéria em apreço, no mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2022, processo n.º 28126/17.4T8LSB.L1.S1, refere que ««[a] relação conflitual entre direitos de igual dignidade ou idêntica valência normativa (direito à liberdade de expressão e direito à honra), postula, não uma posição preferencial ou hierárquica abstracta, ou seja, o “princípio do primado”, mas antes o “princípio da concordância prática”, através de um critério de proporcionalidade concreta, implicando, em termos metodológicos, como que uma “jurisdicialização do facto”».
«Como refere VIEIRA DE ANDRADE, “a questão do conflito de direitos ou de valores depende, pois, de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas ou modos de exercício específicos dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais” (Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 2ª ed., pág. 315)».
«(…) Não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito. Trata-se de uma causa de exclusão de carácter geral, com tradução juspositiva na alínea b) do nº 1 do art. 31 do CP e que se extrai da norma do art. 335 nº 2 do CC».
«Para VAZ SERRA, ao dissertar sobre “Causas Justificativas do Facto Danoso” (BMJ 85, pág. 92), se a lei reconhece ao agente o direito de praticar certo acto, este não é contrário ao direito e não deve gerar responsabilidade, a menos que ocorra abuso de direito, pois nesta situação já o acto não é justificado».
«Sendo assim, no âmbito da tutela ressarcitória com base na violação dos direitos de personalidade, como o direito à honra e ao bom nome (arts. 483 e 484 do CC), o juízo de ilicitude deve ter em conta o princípio da unidade da ordem jurídica. Por isso, nas causas de justificação da ilicitude de ofensas à honra impõe-se considerar o princípio da ponderação dos valores conflituantes na situação concreta, designadamente quando se integram na titularidade de direitos subjectivos ou no cumprimento de deveres jurídicos».
«(…) A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), assinada por Portugal em 22/09/1976 e aprovada pela Assembleia da República pela Lei nº 65/78 de 13 de Outubro, vigora na ordem jurídica portuguesa por força do art. 8 nº 2 da CRP, e a tutela do direito à honra não está autonomamente positivada na CEDH, pois que apenas o exprime a propósito das restrições à liberdade de expressão no art. 10 nº 2».
«O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) na colisão ou conflito de direitos (liberdade de expressão versus honra) tem seguido uma metodologia diferente da generalidade da jurisprudência portuguesa, ao colocar o enfoque no primado da liberdade de expressão, sendo a honra apreciada como restrição contida no 10 nº 2, ou seja, como restrição à liberdade de expressão, enquanto princípio fundamental e estruturante de um Estado de Direito Democrático, o que implica que tal excepção deva ser interpretada restritivamente, nomeadamente quando estejam em causa as chamadas “figuras públicas” e está em causa um “ interesse legítimo” (cf. IRINEU BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 6ª ed., pág. 305 e s egs.)».
«Verifica-se que TEDH vem conferindo uma tutela reforçada (“tutela forte”) à liberdade de expressão, e a jurisprudência actual portuguesa tem genericamente acolhido esta orientação, apesar da Constituição da República Portuguesa não estabelecer qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa, afastando o princípio do primado».
«Contudo, não obstante o papel do TEDH como guardião da Convenção, a verdade é que a relação não pode ser de “sentido único, sem qualquer diálogo interjurisdicional”, tanto que a própria CEDH reconhece a “margem de apreciação” nacional, e o Tribunal Constitucional nunca aceitou critérios autónomos e directos de validade constitucional em relação à Convenção, pelo que no conflito entre os direitos fundamentais “há que contrariar o risco que, na prática judicial, possa vi a ter adesão significativa esta visão excessivamente menorizadora da tutela contra as ofensas ao bom nome e reputação. Mantendo, na íntegra, os critérios desenvolvidos pelo TEDH, importa, na sua aplicação aos casos em juízo, resguardar o equilíbrio da ponderação” (J.SOUSA RIBEIRO, “ Encontros e desencontros entre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e jurisprudência nacional”, RLJ ano 148 ( 2019), pág. 146 e segs.)».
«Por isso, afora o amplo espectro e finalidade da liberdade de expressão, a verdade é que no confronto com direito à honra impõe-se o princípio da “concordância prática”, segundo um critério de proporcionalidade concreta, tanto que esta liberdade “implica deveres e responsabilidades” (art. 10 nº 2 CEDH) (cf., por ex., Ac STJ de 13/7/2017 (proc. nº 3017/11), em www dgsi.pt)».
«Tal convoca metodologicamente o chamado “círculo hermenêutico” da relação entre o facto e a norma. Ora, o princípio da “concordância prática” dentro de uma lógica material é o critério que melhor se adequa, pois, de contrário o imperativo de tutela do direito fundamental à honra sairia de tal forma fragilizado (fragilidade de garantia), que afectaria a chamada “proibição de insuficiência”».
Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2023, processo n.º 156/21.9T8OLR.C1.S1, refere que «[t]endo presente que o direito ao bom nome e à reputação não gozam de garantia autónoma por parte da CEDH, o processo decisório, como deixa escrito Sousa Ribeiro, deverá centrar-se unidireccionalmente “em controlar se a ingerência, enquanto restrição à liberdade de expressão, encontra razão justificativa pelos critérios fixados no n.º 2 do artigo 10.º.” De acordo com esta perspectiva, tão-só são admitidas restrições ao exercício da liberdade de expressão “que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática” à realização da “proteção da honra ou dos direitos de outrem”[3]».
«Neste conspecto, se, por forma a garantir o livre debate de questões de interesse público no seio de uma sociedade democrática, se deverá sobrevalorizar a liberdade de expressão quando esta conflitue com o direito ao bom nome, o regime constitucional de restrição de direitos fundamentais consagrado no art. 18.º/2 do CRP não poderá ser postergado, competindo aos tribunais nacionais a irrenunciável tarefa de aquilatar se o núcleo essencial do direito ao bom nome se encontra preservado, segundo um juízo de proporcionalidade[4]».
Igualmente refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2024, processo n.º 3363/22.3T8OER.L1.S1, «[s]endo os direitos de liberdade de informação (no caso, de expressão) e à honra e ao bom nome, de igual hierarquia constitucional, o primeiro não pode, em princípio, atentar contra o segundo, devendo procurar-se a harmonização ou concordância pública dos interesses em jogo, por forma a atribuir a cada um deles a máxima eficácia possível, em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de direitos fundamentais (…)».
«Nesta conflitualidade, sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é indiscutível que o direito de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode, ao menos em princípio, atentar contra o bom nome e reputação de outrem, sem prejuízo, porém, de em certos casos, ponderados os valores jurídicos em confronto, o princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da adequação e todo o circunstancialismo concorrente, tal direito poder prevalecer sobre o direito ao bom nome e reputação (…)».
5. No caso sub judice, no que aqui ora releva, ficou demonstrado que:
(i) O A./Recorrido é um surfista mundialmente conhecido, sendo uma personalidade famosa, com mais de seis milhões de seguidores no Instagram, factos provados 1, 2 e 6;
(ii) A R/Recorrente é igualmente uma pessoa conhecida em diversas paragens, contando com mais de quatro milhões e meio de seguidores no Instagram e dispondo ainda de um canal no Youtube, onde faz vídeos, com visitas de milhões de pessoas, facto provado 7;
(iii) As partes viveram em união de facto e têm três filhos comuns, facto provado 8;
(iv) Após a separação, através de redes sociais e em entrevistas a canais de televisão e revista, a R./Recorrente «tem atacado a imagem do Requerente enquanto homem e enquanto pai, situação que atualmente se mantém», facto provado 9;
(v) No dia 02.06.2019, a R./Recorrente publicou um vídeo no Youtube e no Instagram, na qual verbalizou de viva voz o seguinte:
- “É ele que não convive com os filhos. Então as pessoas falam: Lá está ela cuidando dos filhos. Isso para mim é uma dádiva porque esse tempo não volta. E quem está perdendo é ele. Ele só que vem visitar. Ele é que vai ver e conviver o pouco tempo que tiver”;
– “De não ter mais esse casamento, porque não tava dando para ter um turista no casamento, que era o que tava acontecendo, inclusive foi maravilhoso termos nos separado porque agora, finalmente, ele se transformou no companheiro e no pai que eu sempre desejei ter em casa, então foi preciso separar para que uma evolução acontecesse e tudo melhorasse. Valeu a pena separar”.
6. Neste contexto factual, não se sufraga o entendimento do Tribunal recorrido no sentido do deferimento da pretensão do A./Recorrido.
Com efeito, a matéria indicada em 5.(iv) é de natureza manifestamente conclusiva, pelo que é absolutamente inócua para a decisão de direito
Relevante era saber, em concreto, quando e como é que a R./Recorrente «tem atacado a imagem do Requerente enquanto homem e enquanto pai», aspetos que este Tribunal da Relação não pode suprir oficiosamente, atento o disposto nos referidos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 663.º, n.º 2, do CPCivil, na falta de recurso subsidiário do A./Recorrido, conforme artigo 636.º, n.º 2, do CPCivil.
O indicado em 5.(v) exprime um facto concreto, embora insuficiente para fundamentar a pretensão do A./Recorrido: retrata-se aí uma situação pontual, ocorrida mais de três anos antes da propositura da ação, sendo que, contraditoriamente, a R./Recorrente tanto censura a postura do A./Recorrido enquanto pai e companheiro ausentes, como enaltece a mudança, entretanto, do comportamento daquele, afirmando que «ele se transformou no companheiro e no pai que» sempre desejou.
Ao expressar-se naqueles termos, a R./Recorrente emitiu a sua opinião nas redes sociais quanto ao A./Recorrido, enquanto pai e companheiro, com referência ao modelo que considera adequado a tais figuras que, contudo, não explícita, remetendo-se a conceitos vagos, embora com conotação pejorativa.
Apurou-se igualmente que ambas as partes são figuras públicas, no sentido de socialmente conhecidas nas redes sociais.
Ora, estando em causa o confronto entre o direito de personalidade moral do A./Recorrido e o direito de liberdade de expressão da R./Recorrente, no equilíbrio que importa salvaguardar in casu quanto a tais direitos, substancialmente equivalentes, isto é, na coordenação exigível entre tais direitos à luz do princípio de concordância prática dos mesmos, segundo um critério de proporcionalidade, têm-se por legítimas as referidas afirmações proferidas pela R./Recorrente, pois elas decorrerem do exercício da sua liberdade de expressão, o qual se tem no caso por não abusivo.
Numa sociedade de direito democrático, designadamente quanto a figuras públicas, como é o caso, admite-se alguma limitação do direito de personalidade em função do exercício do direito de liberdade de expressão quando este se contém dentro de limites razoáveis, como sucede na situação vertente.
Em suma, carece de fundamento o pedido do A./Recorrido deduzido nos autos, pelo que procede integralmente o recurso, sendo que mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas pela Recorrente, conforme artigos 663.º, n.º 2, e 608.º, n.º 2, do CPCivil: o Juiz deve abster-se de conhecer de questões cuja apreciação se mostre desnecessária, escusada, inútil, em função de outras anteriormente abordadas e decididas, o que bem se compreende por motivos de coerência lógica do discurso judiciário e de eficiência do sistema de justiça.
*
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus recursos «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a ação e procede a pretensão recursiva da Recorrente.
Nestes termos, na relação jurídico-processual quer da ação, quer do recurso o A./Recorrido configura-se como parte vencida, pelo que as custas da ação e do recurso devem ser suportadas pelo A./Recorrido.
XI. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, pelo que revoga-se a decisão recorrida, improcedendo a ação.
Custas da ação e do recurso pelo A./Recorrido.
Lisboa, 16 de janeiro de 2024
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins
Arlindo Crua
_______________________________________________________ [1] Cfr. J. RODRIGUES BASTOS, Notas, vol. III cit., p. 211, apud ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V cit., p. 211 e demais AUTORES nesse lugar citados. [2] Da decisão recorrida consta por manifesto lapso de escrita «requerido», o que aqui se retifica. [3] Joaquim de Sousa Ribeiro, “Encontros e desencontros entre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a jurisprudência nacional”, Gestlegal, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 4014, ano 148.º, janeiro-fevereiro de 2019, p. 162. [4] Neste sentido, cfr. Joaquim de Sousa Ribeiro, “Encontros e desencontros…” cit., p. 168.