COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
JUNÇÃO DE PARECER
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À IMAGEM
JOGADOR DE FUTEBOL
JOGO
DOMICÍLIO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
Sumário


I - Entregando a recorrente juntamente com as alegações de revista cópia de decisões judiciais e uma opinião jurídica de livre acesso na internet, não solicitada para o presente processo, nem nele proferida, os documentos apresentados não constituem pareceres jurídicos ao abrigo do n.º 2 do artigo 652.º do CPC, para o qual remete o n.º 2 do artigo 680.º do CPC, devendo ser desentranhados.
II – Tendo sido alegado, na petição inicial, que o autor é um jogador de … ..., nascido em ..., que joga atualmente em Portugal ao serviço do ..., exercendo a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, conclui-se que o autor tem o seu centro de interesses em Portugal para o efeito de determinação do tribunal competente, à luz do artigo 62.º, al. b), do CPC.
III – Basta, pois, este fator de conexão com o território português para se concluir que é competente o Tribunal Judicial de ... para conhecer de ação de responsabilidade civil extracontratual, em que o autor pede indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, por violação do seu direito à imagem, ainda que o facto ilícito (produção de vídeojogos), sem consentimento dos jogadores, não tenha sido praticado em Portugal e que a comercialização e divulgação dos vídeojogos seja plurilocalizada.

Texto Integral


Processo n.º 94/21.5T8ALM.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. AA, residente em ..., Portugal, intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Electronic Arts Inc., com sede na …, 94065, EUA, formulando o seguinte pedido:

I) Uma vez a presente ação julgada procedente por provada, seja a Ré condenada a pagar ao Autor;

a) a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 132.000,00 (cento e trinta e dois mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 50.018,85 (cinquenta mil e dezoito euros e oitenta e cinco cêntimos), tudo no total de € 182.018,85 (cento e oitenta e dois mil e dezoito euros e oitenta e cinco cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.;

b) o montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.967,67 (dois mil, novecentos e sessenta e sete euros e sessenta e sete cêntimos), tudo no total de € 7.967,67 (sete mil, novecentos e sessenta e sete euros e sessenta e sete cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.

1.1.- Para tanto, invocou o autor, e em síntese, que :

- É o autor um jogador de futebol .., nascido em ..., sendo que, jogando atualmente em Portugal ao serviço do ..., a verdade é que mantém já uma longa carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecida no meio do …, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do …, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família;

- Tendo atuado, até este momento, em mais de 500 partidas oficiais como profissional, sempre se destacou na posição de ..., como é conhecido nacionalmente, tendo atuado principalmente no ..., ..., ..., ... e ..., entre outros, o que tudo vem detalhado em pormenor, em páginas de internet da especialidade, o que demonstra a notoriedade do Autor;

- Já a Ré é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo, prestando a sua atividade através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, contando para o efeito com várias subsidiárias espalhadas pelo mundo, entre as quais se destaca, na Europa, a E...;

- Sucede que a Ré, no âmbito da atividade desenvolvida ,veio a usar a imagem do Autor [ o que faz pelo menos desde Outubro de 2005, data de lançamento do jogo de vídeo FIFA 2006 ], retratando-o em milhões de jogos de vídeo [ v.g. só no jogo FIFA … vendeu 24 milhões de unidades em todo o mundo ], o que fez sem o seu prévio consentimento [ porque o Autor jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído em jogos eletrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, quais sejam, FIFA, FIFA MANAGER e FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, surgindo naqueles plenamente identificado] , sendo que a aludida exploração indevida da imagem e do nome do jogador Autor é renovada em todos os anos por via do lançamento de novas versões dos jogos ;

- Em rigor, tem portanto a Ré vindo a utilizar a imagem e o nome o autor [ v.g. no jogo FIFA …, o Autor é plenamente identificado, porque o jogo tem a imagem do Autor, o seu nome, a posição em que joga, peso, altura, idade e a referência ao clube ... ], sem a devida autorização, o que faz para divulgar e disseminar a venda dos seus jogos e, consequentemente, lucrar com isso , o que tudo tem provocado no autor um sentimento de perturbação, desgosto, tristeza e revolta, ao ver a sua imagem e nome utilizados de forma abusiva e ilícita pela Ré;

- Ora, vindo desde há muito a Ré a incorrer na violação ilícita e culposa dos direitos e interesses legítimos de personalidade do autor, os quais são claramente indemnizáveis, e, tendo causado com tal violação efetivos danos morais e patrimoniais ao autor, dos mesmos – e tanto os presentes, como os futuros – deve o autor ser reparado/indemnizado, quer relativamente aos danos emergentes, quer os lucros cessantes (artigo 564.º, do Código Civil).

1.2. – Devidamente citada para, querendo, contestar, veio a Ré ELECTRONIC ARTS INC., sociedade de direito norte-americano, fazê-lo, apresentando articulado em 26/4/2021, no âmbito do qual deduziu defesa por exceção [ invocando a exceção dilatória da Incompetência internacional ; a Exceção perenttória da prescrição do direito invocado pelo autor; a Exceção perentória do licenciamento dos direitos de imagem a favor da ré e a Exceção perentória do abuso de direito ] e por impugnação motivada [ invocando desenvolver a ré uma conduta lícita no desenvolvimento dos jogos FIFA, não atuar com culpa e contrariando os danos alegadamente sofridos pelo autor e a verificação do respetivo nexo de causalidade ], concluindo no final por impetrar que seja :

a) Declarada procedente a exceção dilatória de incompetência internacional deste tribunal, por não se verificarem quaisquer dos fatores de atribuição consagrados nos art.º 59.º, 62 e 63.º CPC, determinando a absolvição da ré da instância;

b) Declarada procedente a exceção perentória de prescrição, pelo decurso do prazo de três anos estabelecido no art.º 498.º, n.º 1 do CC, determinando a absolvição da ré do pedido;

c) Declarada procedente a exceção perentória inominada relativa ao licenciamento dos direitos de imagem de jogadores de …, incluindo o autor, a favor da ré, nos termos detalhados na contestação, determinando a absolvição da ré do pedido;

d) Declarada procedente a exceção perentória de abuso de direito, determinando a absolvição da ré do pedido;

e) Julgada improcedente a presente ação, seja porque (i) os factos alegados pelo autor se devem considerar não provados, seja porque, (ii) mesmo considerando provados, a ação está destituída de fundamento jurídico, face ao quadro legal vigente, determinando, em ambos, a absolvição da ré do pedido.

1.3.- Concedido prazo para resposta/s às exceções, e conclusos os autos a 27/2/2024, foi de imediato proferido despacho saneador que, apreciando a exceção dilatória de incompetência internacional do tribunal, decidiu declarar a incompetência absoluta do Tribunal Judicial de ..., no qual a ação foi interposta, por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses e, consequentemente, absolveu a Ré da instância.

1.4. - Notificado da decisão identificada em 1.3., e da mesma discordando, veio então – em 14/3/2024 - o autor, AA, interpor recurso apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de LISBOA, na sequência dos fundamentos supra aduzidos, em conceder provimento à apelação de AA, e, consequentemente, decidem :

5.1. - Revogar a sentença apelada;

5.2.- Declarar a competência absoluta do tribunal recorrido [ Juízo Central Cível de ... - Juiz ... ] para da acção conhecer e, consequentemente, determinam o prosseguimento dos autos ;

5.3. - Determinar o desentranhamento dos autos dos documentos juntos – indevidamente - pelo apelante e apelada com as respectivas alegações recursórias;

Tendo a Ré ficado vencida na apelação, suportará a mesma as respectivas e devidas custas [ cfr. artº 527º,nºs 1 e 2, do CPC ] .

Custas do incidente reportado à junção indevida de documento/s em sede de instância recursória a cargo do seu apresentante/apelante e apelada, e fixando-se a taxa de justiça em 1 UC - cfr. art. 527º/1 CPC e art. 7º/4, do RCJ».

2. Electronic Arts Inc., tendo sido notificada do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-07-2024 e com ele não se conformando, interpõe recurso de revista, com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º, n.º 3, parte inicial (violação das regras de competência internacional), 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, todos do CPC, formulando na sua alegação, à qual juntou cinco pareceres jurídicos, as seguintes conclusões:

«a) O presente recurso de revista impugna o acórdão do TRL de 04.07.2024, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível de ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

–princípio da causalidade, princípio da coincidência, princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 62.º do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ;

– art.º 8.º, 9.º e 351.º do CC.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

d) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, por força dos atos de produção e comercialização dos jogos FIFA, onde foi utilizada a sua imagem.

e) De acordo com o art.º 2.º da PI, o autor afirma que a ré não tem atividade na Europa, mas apenas nos EUA, Canadá e Japão, assim reconhecendo que a ré não praticou atos de produção e comercialização dos jogos em Portugal.

f) E é perante este quadro factual que se deverão aplicar os critérios de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC, única fonte normativa admissível para dirimir o thema decidendum (ou seja, não sendo aplicáveis regulamentos europeus, como se afirma no acórdão em análise, também não o é a jurisprudência do TJUE que interpreta esses diplomas e que não se debruça sobre direito interno dos estados-membros).

g) O regime interno tem de ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

h) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber:

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

– alínea c): critério da necessidade.

i) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) O autor é um jogador de futebol de nacionalidade estrangeira;

(ii) O autor representou clubes em Portugal e no estrangeiro (art.º 8.º da PI);

(iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da …, nos Estados Unidos da América (introito da PI);

(iv) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor exclui a prática destes e outros atos, pela ré, na Europa não alega que a ré o fazem Portugal (art.º 2.º da PI);

(v) É o próprio autor que refere que a ré não tem atividade em território nacional, reconhecendo que são entidades terceiras a efetuar a divulgação e comercialização na Europa, incluindo naturalmente Portugal (art.º 2.º da PI);

(vi) Na PI nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, localizado em Portugal.

j) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC, valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu.

k) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

l) Em suma, não ocorreu, em Portugal, qualquer facto praticado pela ré, o que afasta a competência ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

m) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

n) Sucede que não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

o) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

p) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

q) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao Tribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

r) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu apenas a terceiros, pelo que a declaração de competência à luz deste facto constitui uma competência exorbitante, já que não é um motivo diferenciar na nossa jurisdição sobre as demais, onde igualmente são comercializados os jogos FIFA.

s) A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

t) A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente oque se visa evitar em homenagem ao princípio da soberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

u) Acresce que não se pode inferir que o autor terá sofrido danos em Portugal, porque isso não é alegado na petição inicial.

v) Essa conclusão, assente na importação dum critério europeu relativo ao centro de interesses, resulta de incorreta interpretação da Lei, pois que tal critério não encontra um mínimo de correspondência com o teor do art.º 62.º do CPC.

w) Além disso, tal conclusão não se encontra sustentada em factualidade alegada pelo autor, pelo que traduz o emprego de presunção judicial de factos, o que é vedado na apreciação da competência – art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e art.º 351.º do CC.

x) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) inexistência de qualquer ligação relevante do autor a Portugal para efeitos da demanda, retira-se a conclusão de inexistência de elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

y) Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

z) Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

aa) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

bb) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação e aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRL e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

cc) Cumpre ainda ressalvar que são inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório);

– princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e – princípio do primado do direito europeu.

dd) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82 porque na interpretação abstrata da lei (e sua posterior concreta aplicação) do princípio da causalidade não cabe, por contrariar os princípios constitucionais acima elencados, o critério do centro de interesses, nem o emprego de factos presumidos, factos não alegados e factos que não integram a causa de pedir.

ee) Subsidiariamente, caso este Supremo Tribunal considere admissível, constitucional e legalmente, a inclusão do critério do centro de interesses nos princípios da coincidência e causalidade, importa ressalvar que não existem factos na PI que demonstrem a existência de um centro de interesses do autor em Portugal: não indicou ter o seu agregado familiar, amigos ou outro tipo de conexão pessoal no nosso paísou sequer onde estava e quando soube da inclusão da sua imagem nos jogos FIFA – nesse sentido, veja-se a recente decisão do TRL de 14.12.2023 (Parecer n.º 3 aqui junto).

ff) Nesta tese que admite a aplicação do critério do centro de interesses, tais factos seriam essenciais para que se pudesse aplicar o critério do centro de interesses, não sendo possível o recurso à utilização de presunções, como vimos.

gg) Deve por isso ser revogado o acórdão do TRL de 04.07.2024 e substituído por decisão que declare a incompetência internacional dos tribunais portugueses para este pleito, absolvendo a ré da instância e condenando o autor nas custas.

Nestes termos requer a V. Exas., face a tudo o que foi supra alegado, se dignem conceder provimento ao recurso, revogando a decisão sindicada e proferindo acórdão no sentido adrede pugnado».

3. O autor apresentou contra-alegações nas quais pugna pela manutenção do decidido.

4. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso as questões a decidir são as seguintes:

I – Competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do fundo da causa;

II – Inconstitucionalidade da interpretação/aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil, por violação de normas e princípios constitucionais ínsitos nos artigos 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Os factos

Para efeitos de decisão do mérito da instância recursória, importa atender à factualidade que resulta do relatório do presente acórdão para o qual se remete.

B. O Direito

Questão prévia: Junção de pareceres jurídicos

1. Apesar de as partes poderem apresentar documentos supervenientes juntamente com as alegações de revista (artigo 680.º, n.º 1, do CPC) e pareceres jurídicos até ao momento do início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão (artigo 680.º, n.º 2, que remete para o artigo 651.º, n.º 2, ambos do CPC), estes documentos devem estar sujeitos, para além do requisito da superveniência, ao requisito da necessidade. Não se pode olvidar qua a entrega de documentos na fase de recurso tem uma natureza excecional, uma vez que a lei (artigo 425.º do CPC) assumiu o entendimento de que, em rigor, a junção de prova documental deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância.

Juntou a recorrente à alegação de recurso cinco documentos que designa de pareceres jurídicos, mas que, na verdade, não o são.

Os documentos que as partes podem juntar configuram, em geral, um meio de prova de factos e a sua junção aos autos, ainda que em plena instância recursória, há de ser requerida com o objetivo de poder - em abstrato - contribuir para o julgamento de impugnação que haja sido deduzida da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, maxime quando a parte recorrente haja deduzido impugnação da referida decisão, nos termos do artigo 640º do CPC. Ora, dados os estritos termos em que o Supremo Tribunal tem poderes para conhecer de matéria de facto, esta questão, para além de não estar em causa nos documentos apresentados, nem no objeto da revista, sempre terá um valor estritamente residual.

Já os pareceres não valem como meio de prova e têm por função contribuir para esclarecer a interpretação de normas jurídicas aplicáveis ao caso, representando apenas uma opinião sobre a solução a dar a determinado problema e servindo para auxiliar o julgador a encontrar uma solução justa para o caso concreto que tem para decidir.

Os pareceres jurídicos reportam-se à opinião de jurisconsultos sobre uma determinada questão de direito discutida num determinado processo e destinada à apresentação de uma argumentação que visa fundamentar a posição de uma das partes em litígio.

Os documentos que a recorrente apresenta são decisões judiciais dos tribunais de 1.ª instância, acórdãos da Relação, um acórdão do Tribunal Constitucional, e uma opinião doutrinária expressa num blogue do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), disponível na internet, que, ainda que incida sobre questão semelhante à destes autos, não se reporta a este processo, nem foi proferida dentro deste processo.

Aqui chegados, é manifesto que, estando em causa cópia de decisões judiciais, os documentos apresentados não integram a previsão do nº 1 do artigo 680.º do CPC, nem do n.º 2 do artigo 652.º, para o qual remete o n.º 2 do artigo 680.º do CPC, porque não consubstanciam qualquer parecer/opinião de jurisconsulto, sendo antes decisões que apreciam e resolvem um concreto litígio.

O documento de livre acesso na internet também não integra a previsão do nº2 do artigo 651º, do CPC, desde logo porque não dirigido – a pedido/solicitação de interessado – para a solução da questão concreta que integra o objeto do processo, não tendo por finalidade contribuir - analisando os fatos concretos e as normas jurídicas aplicáveis – para a solução do presente litígio.

Logo, não estamos na presença de documentos, para o efeito dos artigos 680.º do CPC e 651.º, n.º 2, do CPC, decretando-se o seu desentranhamento, como também decidiu o Tribunal da Relação em relação a documentos semelhantes apresentados com a alegação da apelação.

2. Sobre a questão de saber se os tribunais judiciais portugueses são competentes para conhecer a presente causa – uma ação de responsabilidade civil extracontratual em que se pede a condenação da ré ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela violação do direito à imagem do autor – o tribunal recorrido, invocando uma jurisprudência constante e uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, decidiu ser o Tribunal Judicial de ... o competente para o conhecimento da ação, sumariando o seguinte:

«4.1. A competência absoluta do tribunal é pressuposto processual que se determina atendendo a como o autor configura o pedido e a causa de pedir;

4.2. – Alegando o autor ser um profissional de … que exerceu predominantemente a sua actividade em Portugal, o que actualmente ainda sucede, e peticionando da ré [ com sede nos EUA ] uma indemnização por danos causados pela utilização não consentida do seu nome e imagem em videojogos produzidos nos EUA e divulgados por todo o mundo, em causa está um pedido e subjacente causa de pedir que integra a previsão das alíneas a) e b), do artº 62º, do CPC, sendo o tribunal a quo/português o competente internacionalmente .

4.3. – Vindo o STJ de há muito a esta parte e em casos semelhantes aos identificados em 4.2. a reconhecer a competência dos tribunais portugueses - segundo os princípios da coincidência e da causalidade - para conhecer de acções de responsabilidade civil extracontratual, propostas por jogadores de … [ que pedem uma indemnização pela utilização não consentida do seu nome e da sua imagem, em videojogos produzidos nos Estados Unidos da América ], e inexistindo razões ponderosas - baseadas em critérios rigorosos, em contributos convincentes da doutrina e/ou em novos argumentos – que justifiquem divergir da referida jurisprudência consensual do STJ, manda a regra do bom senso da prudência, da sabedoria, e da segurança [ considerando designadamente a conjugação – para efeitos recursórios - do disposto no artº 629º, nº 2, alínea a) e artº 671º,nº2, alínea a) e nº3, ambos do CPC ] que seja seguida/perfilhada a aludida jurisprudência, assim se abdicando de excessos de autoafirmação, nada consentâneos com o valor da segurança jurídica».

3. Foi a seguinte a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que incidiu sobre questão de direito idêntica à destes autos, decidindo-a a favor da competência dos tribunais portugueses:

- Acórdão do STJ de 07-06-2022, Revista n.º 4157/20.6T8STB.E1.S1

- Acórdão do STJ de 07-06-2022, Revista n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1

- Acórdão do STJ de 23-06-2022, Revista n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1

- Acórdão do STJ de 27-09-2022, Revista n.º 637/20.1T8PRT.P1.S1

- Acórdão do STJ de 13-10-2022, Revista n.º 1014/20.0T8PVZ.P1.S1

- Acórdão do STJ de 10-11-2022, Revista n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1

- Acórdão do STJ de 10-11-2022, Revista n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1

-Acórdão do STJ de 15-12-2022, Revista n.º 3731/21.8T8BRG.G1-A.S1

- Acórdão do STJ de 10-01-2023, Revista n.º 996/21.9T8PVZP1.S1

-Acórdão do STJ de 14-02-2023; Revista n.º 3803/20.6T8BRG.G1-A.S1

- Acórdão do STJ de 15-02-2023, Revista n.º 4239/20.4T8STB.E1.S1

-Acórdão do STJ de 25-05-2023, Revista n.º 3729/21.6T8BRG.G1-A.S1

- Acórdão do STJ de 30-05-2023, Revista n.º 4167/20.3T8LRA.C1.S1

- Acórdão do STJ de 16-11-2023, Revista n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1

- Acórdão do STJ de 08-02-2024, Revista n.º 4425/20.7T8ALM-B.L1.S1

- Acórdão do STJ de 29-02-2024, Revista n.º 17657/20.9TSLSB-A.L1.S1

- Acórdão do STJ de 14-03-2024, Revista n.º 4488/20.5T8ALM-A.L1.S1

- Acórdão do STJ de 28-05-2024, Revista n.º 96/21.1T8ALM-A.L1.S1

4. A ré baseia a sua pretensão recursória, para contrariar a citada orientação jurisprudencial, em argumentos que não são novos e que, em síntese, são os seguintes: 1) não se verifica qualquer dos fatores de conexão ao Estado português estabelecidos no artigo 62.º do CPC; 2) na petição inicial o autor não alega factos integradores da causa de pedir ocorridos em Portugal: a ré não tem atividade na Europa e não praticou atos de produção e comercialização dos jogos em Portugal e não é alegado ou concretizado, pelo autor, qualquer dano localizado em Portugal; 3) o regime aplicável é o do direito interno: o artigo 71.º, nº 2, do CPC, de acordo com o qual, o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu; 4) inaplicabilidade dos regulamentos europeus e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

5. A agora Relatora já relatou Acórdão, datado de 16-11-2023 e proferido no processo n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1, sobre a mesma questão de direito e factualidade semelhante, em que estava em causa ação de responsabilidade civil extracontratual interposta por outro jogador de futebol profissional contra a empresa agora ré, por violação do seu direito à imagem, tendo fundamentado a decisão de competência dos tribunais judiciais nacionais em orientação já desenvolvida em jurisprudência anterior e que refuta a argumentação aduzida pela ré no presente recurso de revista:

«(…)

2. A especificidade da questão suscitada é que os factos reputados como ilícitos e danosos, que constituem a causa de pedir, têm conexão com distintas ordens jurídicas, pugnando o autor para que sejam competentes os tribunais do Estado português, onde reside e exerce a sua atividade profissional, ou seja, onde tem o seu “centro de interesses”, enquanto a ré sustenta que os tribunais competentes são os estadunidenses, local onde os vídeos foram produzidos.

(…)

Quid iuris?

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Entende o recorrente que este Regulamento não é aplicável ao caso dos autos porque a ré não tem sede num Estado da União Europeia, mas nos EUA, e indica como não aplicável a norma do artigo 7.º, n.º 2, que estipula o seguinte: «As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…) 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (…)»

Todavia, este argumento, se bem que, em abstrato, esteja correto, de nada serve ao recorrente, nem permite alterar a solução do caso, pois a regra aplicável é de direito interno, tendo o acórdão recorrido decidido a questão com base no artigo 62.º, al. b), do CPC, conforme decorre, por exemplo, do seguinte excerto:

«O critério da causalidade, constante da alínea b) do art. 62.º, diz-nos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes desde que tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram, resultando de forma clara da parte final desta norma, a plena aplicação aos casos em que haja uma causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos relevantes com ligação a mais do que um ordenamento jurídico ou jurisdição nacional».

As normas do regulamento aparecem referidas na jurisprudência do TJUE de que o acórdão recorrido se serviu para interpretar o artigo 62.º, al. b) do CPC, mas não foram objeto de qualquer aplicação direta aos factos do caso, tendo sido invocada essa jurisprudência, como veremos adiante, apenas como critério auxiliar de interpretação da norma competente de direito nacional, de acordo com a ideia de segurança jurídica e preservação da unidade do sistema jurídico europeu de que faz parte o Estado português e os seus tribunais.

Aliás, como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, será à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do CPC, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

As normas do Código de Processo Civil aplicáveis dispõem o seguinte:

Artigo 59.º

Competência internacional

Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.

Artigo 62.º

Fatores de atribuição da competência internacional

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

No artigo 62.º do CPC são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

3. A competência do tribunal afere-se pelos “termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 88). Ou seja, “A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, atendendo-se, apenas, aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados” (cfr., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-12-2013, proc. 204/11.0... e de 08-06-2021, proc. n.º 20526/18.9...)

A competência internacional constitui a “fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras” (cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, p. 198).

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos. O Autor tem nacionalidade italiana e reside em Portugal, exercendo a sua atividade profissional em Portugal e noutros clubes de … europeus.

A Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no ...), tendo a produção dos jogos ocorrido precisamente nesse local.

A difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, e os sentimentos negativos experienciados pelo Autor sucederam nos locais onde ele se encontrava durante todo o período temporal em que os jogos foram difundidos.

4. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciaram pela competência internacional dos tribunais portugueses, em casos semelhantes ao destes autos, em que os autores são jogadores de … que invocam a violação do direito à imagem contra a mesma empresa produtora de vídeos, os seguintes Acórdãos: de 24-05-2022 (Proc. n.º 3853/20), de 07-06-2022 (Proc. n.º 24974/19), de 07-06-2022 (Proc. n.º 4157/20), de 23-06-2020 (Proc. n.º 3239/20), de 27-09-2020 (Proc. n.º 637/20), de 29-09-2022 (Proc. 2160/20), de 13-10-2022 (Proc. n.º 1014/20), de 10-11-2022 (Proc. n.º 1579/20).

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-05-2022, a que se seguiram muitos outros, sumariou o seguinte:

«I. São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de … que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.»

(…)

Afigura-se, desde logo, que não tem razão a recorrente quando invoca que o acórdão recorrido decidiu com base em presunções de facto para determinar a causa de pedir e que o autor não concretizou os danos, não estando verificados, em seu entender, os elementos de conexão necessários para fundamentar a competência internacional dos tribunais portugueses.

Analisado o acórdão recorrido conclui-se que este não padece de qualquer ilegalidade, pois não se baseou em quaisquer juízos presuntivos para firmar os factos em que fundamenta a decisão, mas apenas no alegado na petição inicial, tal como rigorosamente articulado na fundamentação de facto do acórdão recorrido, agora reproduzida (cfr. ponto II, A do presente acórdão).

A causa de pedir invocada é, suscetível de preencher, em abstrato, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual tal como decorrem dos artigos 483.º, 562.º e 563.º do Código Civil, bem como os conceitos de “gravidade” e de “merecimento de tutela do direito” previstos no artigo 496.º do Código Civil, dado que foi alegada a exploração de direitos de personalidade, sem consentimento do titular (ilicitude), e concretizados os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, para além de ter sido invocado também o enriquecimento sem causa da ré nos termos do artigo 473.º do Código Civil (artigos 173.º e 174.º da petição inicial) e a figura dos danos punitivos. Ou seja, mesmo que não se venha a provar a integralidade dos danos psicológicos alegados pelo autor, o tribunal pode condenar em montante superior aos danos efetivamente sofridos com objetivo sancionatório do comportamento ilícito da ré.

(…)

Quando se analisa a petição inicial e o pedido do autor, para o efeito de determinar o tribunal competente, não se exige a prova dos factos alegados, nem que ele tenha razão quanto ao mérito da questão. Não cabe, pois, fazer qualquer apreciação sobre o fundo da causa nem sobre a suficiência ou insuficiência do alegado, mas tão-só ponderar os contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na medida necessária para aferir do pressuposto da competência em causa.

Conclui-se, pois, que o acórdão recorrido, nos seus fundamentos, não invocou, diferentemente do afirmado pelo recorrente, factos não alegados ou apoiados em presunções judiciais. Foram, pois, considerados exclusivamente os factos alegados na petição inicial e foi com base unicamente em tais factos que o tribunal recorrido formou uma convicção relativamente ao que estava em causa para o efeito de estabelecer uma ligação entre o autor, jogador profissional de …, e o tribunal por ele escolhido para propor a ação.

6. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem invocado, para fundamentar a solução do caso, a jurisprudência do TJUE, nos moldes em que o fez o Acórdão de 24-05-2022, onde se exarou o seguinte:

«(…)

Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não devem conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas e uropeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.

O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, BB, I... Inc, C... SARL e C... Ltd contra P..., S.A. [14], relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal F..., à venda em vários países europeus, incluindo ..., onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta».

Ainda noutro Acórdão, de 25.10.2011 (C-509/09 e C-161/10), também citado no Acórdão deste Supremo, datado de 24-05-2022, “ED...contra X, e BB e CC contra M...”, o TJUE (Grande Secção), o TJUE já decidiu que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado.

No Acórdão do Supremo, de 24-05-2022, cita-se também o Acórdão do TJUE, de 17.10.2017 (Processo C-194/16, EU:C:2017:766), relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia. Entendeu o TJUE que uma pessoa coletiva, que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos, pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses.

Por último, é ainda citado o Acórdão do TJUE, de 21-12-2021, G... contra D..., relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação, em sítios e fóruns da Internet, de afirmações depreciativas da sociedade G... que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se o TJUE no sentido de que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.

O acórdão recorrido aderiu, no ponto II da sua fundamentação, para onde se remete, ao papel orientador da jurisprudência do TJUE, por razões de segurança jurídica e de coerência, sustentando que se trata de «(…) procurar interpretar e aplicar o direito interno “de forma sistematicamente coerente, evitando que as mesmas normas nacionais sejam entendidas de modo diverso consoante aplicadas no âmbito do Direito Europeu ou fora dele (…). Daqui que as normas internas sobre competência internacional devam ser interpretadas em conformidade com a jurisprudência do TJUE sobre normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno, só assim se evitando soluções desencontradas com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria».

6.1. Invoca a recorrente que esta jurisprudência é irrelevante e inaplicável ao caso dos autos, por pôr em causa a autonomia jurídica dos tribunais nacionais na interpretação das suas normas, bem como a soberania dos Estados Membros.

Ora, não pode deixar de se afirmar que esta tese está ultrapassada em face da forma como a relação entre a UE e os Estados Membros é definida na Constituição da República Portuguesa e na jurisprudência do TJUE. Desde logo, esta relação não é concebida num plano vertical, em moldes de superioridade/submissão, mas num plano horizontal, como uma relação de cooperação.

Importa afirmar, em primeiro lugar, que a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 8.º, n.º 4, estipula que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático», deduzindo a doutrina maioritária desta norma um princípio do primado do direito da União Europeia enquanto primado de aplicação, isto é, o tribunal nacional tem de desaplicar a norma nacional incompatível com o direito da União Europeia, mas não declara a sua invalidade, continuando esta a integrar o ordenamento interno (cfr. Gomes Canotilho/Vítal Moreira, “Anotação ao artigo 8.º”, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, pp. 265 e seguintes).

Apesar de não expressamente previsto nos tratados europeus, o Tribunal de Justiça da União Europeia reconhece o princípio do primado do direito da União Europeia e fundamenta-o na necessidade de homogeneidade na aplicação do direito europeu.

Mesmo que não esteja em causa, como não está no presente caso, um conflito entre uma norma de direito da União e uma norma de direito nacional, suscetível de conduzir à desaplicação da norma de direito nacional desconforme, o princípio do primado tem, também, por consequência que os tribunais nacionais devem adotar uma interpretação do direito nacional conforme aos princípios e normas de Direito da União, aqui incluindo a jurisprudência do TJUE. Como se afirma no Acórdão Marleasing, nas conclusões do advogado geral (n.º 8, pp. 4146-4147, processo n.º C-106/89), «o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite dar à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com a norma da União Europeia». Trata-se do princípio da interpretação conforme, segundo o qual «(…) o intérprete e aplicador do direito deverá, ainda quando deva aplicar apenas direito nacional, a atribuir a este uma interpretação que se apresente conforme com o sentido, economia e termos das normas europeias» (cfr. Miguel Gorjão-Henriques, Direito da União, Almedina, Coimbra, 2019, p. 393). Este princípio tem sido reconhecido também pela jurisprudência nacional de que é exemplo o Acórdão Uniformizador do STJ n.º 3/2004, de 25 de março, quando se refere a ele como um «(…) princípio estruturante do direito comunitário de interpretação, conforme definido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, órgão máximo da interpretação do direito comunitário, princípio que deriva do primado do direito comunitário sobre a ordem jurídica estatal, que significa, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a obrigação de os juízes nacionais interpretarem o seu direito nacional de modo a harmonizá-lo com o direito originário e derivado de origem comunitária, na medida do possível». Não se pode olvidar que a Constituição da República Portuguesa prevê, no artigo 8.º, n.º 4, uma cláusula de receção do direito da União Europeia, que implica relações de coordenação entre Estados e entre Estados e União, envolvendo o recurso à jurisprudência do TJUE e de outros Estados da União Europeia através de um diálogo entre tribunais numa lógica de cooperação.

Não se coloca, pois, qualquer renúncia à soberania do Estado nacional quando orienta a interpretação das normas de direito interno pelos critérios normativos de normas de direito comunitário, tanto mais que este método de interpretação está de acordo com o disposto no artigo 9.º do Código Civil, que determina que o intérprete pode recorrer a uma multiplicidade de elementos de interpretação, históricos, teleológicos e sistemáticos. O único caso, mas que não está em causa neste processo, em que se colocam problemas de soberania do Estado, diz respeito ao conflito entre normas constitucionais e normas de direito comunitário, não renunciando os Estados, nesta hipótese, à defesa dos direitos e dos vetores básicos das correspondentes Constituições (Cfr. Jorge Miranda, “Anotação ao artigo 8.º da Constituição”, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 128). O Tribunal Constitucional português assumiu já uma posição em matéria de relacionamento entre os ordenamentos jurídico-constitucionais nacional e da União Europeia no Acórdão n.º 422/2020, a qual não tem aplicação no presente caso em que está em causa a aplicação de direito nacional compatível com direito da união europeia e de valor infraconstitucional.

6.2. Regressando ao caso concreto, verifica-se que decorre dos fundamentos do acórdão recorrido que este não considerou vinculativa a jurisprudência do TJUE, nem procedeu a uma aplicação direta e imediata da mesma. O que o tribunal recorrido fez foi utilizar, como elemento de interpretação do direito interno, a orientação do TJUE face a casos semelhantes ao destes autos. Trata-se de um procedimento adequado em face da circunstância de as normas de direito comunitário e os seus princípios jurisprudenciais integrarem o direito nacional, podendo servir de orientação ao julgador, de acordo com o elemento sistemático de interpretação que faculta ao intérprete o recurso às normas paralelas dentro do sistema e à unidade do ordenamento jurídico (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil). O Código Civil prevê também a possibilidade de uma interpretação atualista que conduz à ponderação como argumento hermenêutico das condições específicas do tempo em que a lei é aplicada, o que inclui a necessidade de harmonização do direito interno com o direito comunitário (cfr. artigo 9.º, n.º 1, in fine).

Vejamos:

Sobre este ponto afirmou o acórdão recorrido o seguinte:

«Sublinhando-se que não se visa a direta e imediata aplicação da jurisprudência do TJUE, mas sim como elemento essencial à atual e plena compreensão dos fatores de conexão estabelecidos no art. 62.º, no caso a alínea b), repetindo que o direito comunitário faz parte do direito interno, a interpretação sistemática e atualista da norma em causa também deve ser realizada, em termos de sistema, com recurso a direito comunitário, bem como a da orientação jurisprudencial do TJUE, e assim na observância da respetiva conformidade, indo aliás, ao encontro das regras interpretativas do art. 9.º do CC.

Assim, e já como se aludiu na breve nota Jurisprudencial do TJUE, vem-se consolidando um critério de interpretação segundo o qual o impacto da violação dos direitos de personalidade através de meios de exposição globais que lhe conferem conexão com mais do que um ordenamento jurídico e jurisdição nacional, verifica-se predominantemente no Estado onde o autor alega ter sofrido o atentado à sua reputação a sede da sua vida pessoal organizada, com atribuição da competência ao tribunal desse país para conhecer a totalidade dos prejuízos sofridos».

Perante o exposto, verifica-se que a invocação da jurisprudência do TJUE no texto da decisão do acórdão recorrido surge para fundamentar o critério regra da relevância do domicílio da vítima de violação de direitos de personalidade e da sede de organização da sua vida pessoal e, bem assim, o entendimento sufragado nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo.

Fica claro também da argumentação usada no acórdão recorrido que a sua ratio decidendi foi a alínea b) do artigo 62.º do CPC, norma em que o acórdão recorrido integrou a situação dos autos tal como foi alegada, conforme decorre do seguinte excerto:

«O critério da causalidade, constante da alínea b) do art. 62.º, diz-nos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes desde que tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram, resultando de forma clara da parte final desta norma, a plena aplicação aos casos em que haja uma causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos relevantes com ligação a mais do que um ordenamento jurídico ou jurisdição nacional.

Esta norma, que atribui aos tribunais portugueses competência internacional para julgar uma ação na situação de «b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram», prevê as causas de pedir complexas e estipula que basta a conexão de algum dos factos com a ordem jurídica portuguesa para que esteja fundamentada a competência internacional dos tribunais portugueses. Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado. A circunstância de a ação lesiva dos direitos do Autor se iniciar nos EUA, local onde foi produzido o vídeo, não determina que sejam os tribunais estadunidenses os competentes. Há que ter em conta que os danos poderão ou não ocorrer no mesmo lugar em que se deu a produção dos vídeos. Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome e à imagem são realidades distintas do ato lesivo, devendo ter-se em conta a atividade de divulgação púbica generalizada. Apesar de os danos terem sido sofridos em várias ordens jurídicas onde o autor participava em jogos de …, para determinar o tribunal competente deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE acima citada, segundo o qual impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.

Como sublinha o Acórdão deste Supremo, de 24-05-2022, «Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping».

Ora, no presente caso, apesar de a nacionalidade do autor ser a ... e de os vídeos terem sido produzidos nos EUA, local onde se desencadeou o processo que deu origem ao facto danoso, há outros elementos a ter em conta e que estabelecem conexão com a ordem jurídica portuguesa: o autor reside em Portugal, onde tem a sua vida familiar e profissional organizada, e está vinculado, entre outros, a clubes de… portugueses para quem trabalha.

Podemos, pois, afirmar que foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem, caraterísticas físicas e pessoais, poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que o autor interveio como ... profissional em clubes que predominantemente eram portugueses. No caso de se terem verificado prejuízos para a vida profissional e pessoal do autor e porque foi em Portugal que o autor predominantemente estabeleceu residência e desenvolveu a sua atividade profissional, terá sido também em Portugal que poderá ter sofrido a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado (artigo 195.º da petição inicial).

O dano, que, diferentemente do afirmado pela recorrente, foi invocado na petição inicial, na sua dupla dimensão patrimonial e não patrimonial (artigos 165 e seguintes da petição inicial), produz-se no país onde o autor reside e tem o seu centro de vida – Portugal – sendo, portanto, legítima e fundada na lei a pretensão do autor de propor a ação de responsabilidade civil extracontratual em Portugal.

Assim, mantém-se a decisão recorrida, e fixa-se a competência dos tribunais portugueses para conhecer a causa».

5. No âmbito de vários processos em que a ré é a mesma e semelhantes as causas de pedir invocadas, para o efeito de determinar a competência dos tribunais portugueses, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido uniformemente no sentido de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de ações de responsabilidade civil extracontratual, propostas por jogadores de …, que pedem uma indemnização pela utilização não consentida do seu nome e da sua imagem, em vídeojogos produzidos nos Estados Unidos da América e comercializados mundialmente.

Tem-se entendido que as causas de pedir nestes processos têm uma natureza complexa e que, de acordo com o alegado, os danos invocados pelos autores se prolongam no tempo e ocorrem significativamente em Portugal, uma vez que os factos alegados situam em Portugal o centro de interesses do autor, onde, em termos predominantes, pratica a sua profissão e estabelece a sua vida familiar e social.

No mesmo sentido, a doutrina tem entendido que o artigo 62.º, al. b), do CPC prevê o critério da causalidade e que, nas ações de responsabilidade civil, aquele pressuposto de atribuição de competência internacional se preenche «quando uma parte dos danos se produzir em Portugal» (cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. III, tomo I — Da competência internacional, 3.ª edição, AAFDL, 2019, p. 348.

No caso de indevido aproveitamento económico de bens de personalidade, ocorre uma dissociação entre o conceito de lesão (lugar em que a imagem foi divulgada) e o conceito de dano (o «lugar onde o titular do direito que tem por objeto o bem em causa, devido a essa atuação, sofre uma perda ou uma desvantagem» — cfr. Elsa Dias Oliveira, Da responsabilidade civil por violação de direitos de personalidade em Direito Internacional Privado, Almedina, 2011, pp. 407-408).

6. No caso concreto, sub judice, foi alegado, na petição inicial, que o autor é um jogador de futebol ..., nascido em ..., que joga atualmente em Portugal ao serviço do ..., e que tem já uma longa carreira como jogador de futebol profissional, exercendo a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses e dedicando-se inteiramente à prática desportiva do …, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família (artigos 3.º, 4.º e 5.º da petição inicial).

Foi alegado, também, que o autor atuou em mais de 500 partidas oficiais como profissional e que sempre se destacou na posição de ..., como é conhecido nacionalmente, tendo atuado principalmente no ..., ..., ..., ... e ..., entre outros (artigo 7.º da petição inicial).

No artigo 11.º da petição inicial, o autor invoca que jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos eletrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e., FIFA, FIFA MANAGER e FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, nem conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, especificamente para jogos eletrónicos, jogos de vídeo, aplicativos, ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma (artigo 12.º da petição inicial). Nos termos do artigo 18.º da petição inicial, «O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (por exemplo o jogo FIFA … vendeu 24 milhões de unidades em todo o mundo, cfr. doc. 6)».

Quanto à determinação dos danos patrimoniais, o autor invoca na petição inicial os avultados lucros da ré à custa da exploração sem consentimento da imagem dos atletas e o alto preço dos jogos de vídeo, especificando quais são os resultados, em dinheiro, obtidos pela ré com a comercialização dos jogos em que utiliza indevidamente a imagem e o nome dos atletas e os montantes indemnizatórios a que entende ter direito, bem como a forma de cálculo dos mesmos (artigos 175.º a 179.º da petição inicial), realçando a repercussão sancionatória da indemnização para a lesante (artigos 186.º e 187.º da petição inicial)

O autor, na petição inicial, pede, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 5000,00 euros (artigo 188 da petição inicial), invocando a perturbação, o desgosto, a revolta e a tristeza pelo facto de a sua imagem e nome estarem a ser explorados para obtenção de lucros da ré, sem a sua autorização.

Neste quadro, dúvidas não restam que o autor baseou o seu pedido em danos sofridos em Portugal, onde tem o seu centro de vida familiar e profissional, não tendo razão a ré/recorrente quando afirma que não foi alegado qualquer facto suscetível de integrar a causa de pedir de uma ação de responsabilidade civil extracontratual e que o acórdão recorrido presumiu factos não alegados.

A causa de pedir invocada é, pois, suscetível de preencher, em abstrato, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual tal como decorrem dos artigos 483.º, 562.º e 563.º do Código Civil, bem como os conceitos de “gravidade” e de “merecimento de tutela do direito” previstos no artigo 496.º do Código Civil.

7. Apesar de não existir em Portugal a regra do precedente, como nos países da Common Law, afirma o artigo 8.º, n.º 4, do Código Civil, que, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

Ora, não se descortinando que existam razões convincentes e irrefutáveis que justifiquem um desvio de jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, mantém-se a decisão do acórdão recorrido.

II - Inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil, por violação de normas e princípios constitucionais ínsitos nos artigos 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.

8. Os pressupostos para que estejam reunidas as condições para o conhecimento de uma questão de constitucionalidade são exigentes e incluem a natureza normativa das questões suscitadas nos seguintes termos: (i) o caráter geral e abstrato da(s) questão(ões) de constitucionalidade, e a suscetibilidade de a resposta que lhe for dada valer para um número indeterminado de casos; (ii) a suscitação prévia e de modo processualmente adequado das questões de constitucionalidade normativa; e, por último, (iii) que a solução da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade normativa, submetida à apreciação, possa repercutir-se, de forma útil e efetiva, na decisão proferida pelo tribunal recorrido acerca do caso concreto a dirimir. Ou seja, só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 475/2023). Por isso, a utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal recorrido.

9. Na forma como a recorrente suscita a pretensa questão de constitucionalidade, deteta-se que impugna um arco normativo composto por três preceitos: os artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil.

Ora, para além de a recorrente não ter suscitado a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado ao Supremo Tribunal de Justiça, pois não atribui a estas normas um sentido normativo geral e abstrato tal como exigido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, confunde nas conclusões de recurso «questão de constitucionalidade» com violação de lei e com interpretação de direito infraconstitucional.

Por outro lado, analisada a fundamentação do acórdão recorrido, verifica-se que o seu fundamento efetivo e principal foi a alínea b) do artigo 62.º do CPC:

«(…) inquestionável é porém que preencherá pelo menos o tatbestand da alínea b) [ “Estando indiciado pela alegação na petição inicial que o centro de interesses do Autor predominante se situa em Portugal, uma vez que aqui pratica profissionalmente a atividade de … destacado em diversos clubes desportivos, pelo menos desde que se fixa o começo da invocada violação do direito ao nome e à imagem e, tratando-se de uma causa de pedir complexa, não se afigura motivo para excluir a competência dos tribunais portugueses sob o disposto do artigo 62º alínea b) do CPC»

Neste sentido, a suposta interpretação normativa impugnada nas conclusões de recurso cc) e dd) de recurso, traduzida na conjugação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1, da LOSJ e 351.º do Código Civil, não foi aplicada como fundamento efetivo do acórdão recorrido, faltando o requisito da ratio decidendi.

10. A norma decisiva para a solução do caso foi o artigo 62.º, al. b), do CPC, interpretado à luz da jurisprudência do TJUE, nos termos expostos pela jurisprudência citada no acórdão recorrido e para a qual também remete o presente acórdão, o que não constitui, diferentemente do alegado pela recorrente, qualquer violação do princípio da soberania do Estado português ou da separação dos poderes, mas uma estratégia interpretativa legítima à luz dos princípios do primado do direito comunitário e da interpretação conforme ao Direito da União Europeia (artigo 8.º, n.º 4, da CRP), de forma a produzir um efeito de harmonia entre as ordens jurídicas europeias. Este método não contraria em nada os critérios hermenêuticos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, preceito que remete, precisamente, para a unidade da ordem jurídica e para o elemento sistemático de interpretação, aceitando também interpretações atualistas.

Assim, a alegada violação dos princípios da separação dos poderes e da soberania, não constitui qualquer questão de constitucionalidade normativa, mas uma questão de teoria geral do direito sobre os limites do poder interpretativo do julgador em face da letra da lei.

11. Pelo exposto, não se conhece da pretensa questão de constitucionalidade, por não ter sido suscitada de modo processualmente adequado, de forma a tornar vinculativa para este Supremo Tribunal a sua decisão, e por não constituir o arco normativo impugnado a ratio decidendi do acórdão recorrido. Ou seja, ainda que fosse decidida a recusa de aplicação das normas cuja constitucionalidade foi impugnada, não teria a inconstitucionalidade dessas normas qualquer repercussão prática na decisão do caso concreto.

12. Anexa-se sumário elaborado, de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - Entregando a recorrente juntamente com as alegações de revista cópia de decisões judiciais e uma opinião jurídica de livre acesso na internet, não solicitada para o presente processo, nem nele proferida, os documentos apresentados não constituem pareceres jurídicos ao abrigo do n.º 2 do artigo 652.º do CPC, para o qual remete o n.º 2 do artigo 680.º do CPC, devendo ser desentranhados.

II – Tendo sido alegado, na petição inicial, que o autor é um jogador de futebol ..., nascido em ..., que joga atualmente em Portugal ao serviço do ..., exercendo a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, conclui-se que o autor tem o seu centro de interesses em Portugal para o efeito de determinação do tribunal competente, à luz do artigo 62.º, al. b), do CPC.

III – Basta, pois, este fator de conexão com o território português para se concluir que é competente o Tribunal Judicial de ... para conhecer de ação de responsabilidade civil extracontratual, em que o autor pede indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, por violação do seu direito à imagem, ainda que o facto ilícito (produção de vídeojogos), sem consentimento dos jogadores, não tenha sido praticado em Portugal e que a comercialização e divulgação dos vídeojogos seja plurilocalizada.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se no Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Custas do incidente de junção indevida de documentos em sede de revista a cargo do recorrente à taxa de 2 UC’s.

Lisboa, 14 de janeiro de 2025


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Henrique Antunes (1.º Adjunto)

Anabela Luna de Carvalho (2.ª Adjunta)