MÚTUO NULO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TÍTULO DE CRÉDITO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário


I - O entendimento jurisprudencial de que a subscrição de títulos de crédito faz presumir a existência de uma relação causal subjacente é uniforme em relação às letras e livranças, na medida em que nelas se contém a constituição ou confissão de uma dívida. Porém, já o mesmo não acontece em relação aos cheques, pois que estes são uma ordem de pagamento dada a um banco determinado e é entendido por uma parte da jurisprudência que não traduz a constituição de qualquer obrigação, não consubstanciando reconhecimento direto ou expresso de uma dívida, considerando outra parte que a emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um banco a favor de um terceiro, constituindo, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação ao portador.
II - Para os defensores dessa segunda posição, valendo o documento particular invocado pelo autor como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sujeita ao regime do art. 458º do Cód. Civil, funciona a presunção legal da existência da relação causal, competindo por isso ao réu afastar ou pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo autor.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA instaurou, no Juízo Central Cível de Braga - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo seja julgada procedente, por provada, a acção e, consequentemente:

- «Judiciar pela existência de um contrato de mútuo formalmente nulo por vício de forma, com as respetivas consequências legais ínsitas no artigo 289.º do CC, devendo os Réus ser solidariamente condenados a restituir à Autora o valor de 97.550,00 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 € desde a data da interpelação extrajudicial para pagamento, ou, caso assim não se entenda, desde a data da citação, e até efetivo e integral pagamento;
Ou ainda, caso divirja o entendimento,
- Condenar os Réus, solidariamente, em obrigação de indemnização a favor da Autora, no montante de 97.550,00 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 € desde a data da interpelação extrajudicial para pagamento, ou, caso assim não se entenda, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento, pelo exercício abusivo do direito;
Caso seja distinto o douto entendimento,
- Condenar os Réus, solidariamente, na obrigação de restituição perante a Autora, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, plasmado no artigo 473.º do CC, devendo restituir à Autora a quantia mutuada, no valor de 97.550,00 € €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 €.€ desde a data da interpelação extrajudicial para pagamento, ou, caso assim não se entenda, desde a data da citação, e até efetivo e integral pagamento;
Ou ainda, caso se perscrute pela existência de múltiplos contratos de mútuo, com validade formal,
- Condenar os Réus, solidariamente, a restituir à Autora a quantia de 97.550,00 €, em virtude do contrato de mútuo celebrado, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 € e até efetivo e integral pagamento, ao abrigo do disposto no artigo 1142.º do Código Civil;
Ou, caso se perscrute pela necessidade de resolução do contrato,
- Declarar a justa causa de resolução do contrato pelo inadimplemento contratual dos Réus, com a as respetivas consequências legais, nos termos dos artigos 432.º, 562.º, 798.º e 1142.º do Código Civil, e condenar os Réus, solidariamente, a indemnizar a Autora no montante da quantia mutuada, no valor de 97.550,00 €, acrescida de juros à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 €. €;

Em todo o caso,
- Condenar os Réus, solidariamente, a pagar à Autora o valor de 97.550,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da interpelação extrajudicial para pagamento, contando-se vencidos no valor de 24.940,73 €. ou, caso assim não se entenda, desde a data da citação, e até efetivo e integral pagamento».
Para o efeito, e em síntese, alegou a autora que, a pedido dos réus, emprestou-lhes a quantia de 100.000,00€, através da entrega de quantias parceladas e diferidas no tempo, mas que eles apenas lhe devolveram a quantia de € 2.450,00.
Daí que, com base no incumprimento do contrato de mútuo e sua nulidade, invocando subsidiariamente outros institutos, como seja o enriquecimento sem causa, peticione a condenação dos RR. no respetivo pagamento da quantia mutuada.

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Citados, contestaram os réus, pugnando pela total improcedência da acção (ref.ª ...85).
Para tanto, invocaram a excepção de prescrição quanto aos pedidos subsidiários fundados em enriquecimento sem causa, bem como quanto aos juros peticionados.
Mais negaram peremptoriamente que a autora lhes tenha emprestado dinheiro.
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A autora apresentou resposta, exercendo o contraditório (ref.ª ...00).
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Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador onde se indeferiu a excepção de caso julgado; relegou-se o conhecimento da excepção da prescrição para a sentença; foi fixado o valor da causa e com a subsequente identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova, bem como foram admitidos os meios de prova, com excepção dos indicados sob o ponto III, al. A) e F), que foram indeferidos (ref.ª ...57).
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Desse despacho que indeferiu os meios de prova foi interposto recurso de apelação, o qual foi julgado improcedente por acórdão desta Relação de 19/12/2023 (ref.ª ...22 no proc. n.º 2423/22....).
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento da causa (ref.ªs. ...52 e ...22).
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Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...19), nos termos da qual julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos.
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Inconformada, a A. interpôs recurso da sentença (ref.ª ...91), e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1 - A recorrente assenta a sua discordância quanto à douta sentença recorrida essencialmente nos seguintes pontos:
• Prova da existência efectiva do empréstimo invocado nos autos feito pela recorrente aos recorridos e cujo reembolso é peticionado
• Existência de presunção do direito de crédito da recorrente, com a consequente inversão do ónus da prova, mercê da existência de cheque sacado pelo recorrido a favor da recorrente e face também a pagamento parcial efectuado pelos recorridos à recorrente (de 2450 euros), conforme ponto 1 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida
• Insuficiência e inaptidão da prova para sustentar a douta sentença recorrida
• Total falta de prova e de base para a absolvição doutamente decidida
• Absurdo da tese dos recorridos (que, durante 10 anos, entre 2006 e 2015, dizem que entregaram, sem qualquer recibo ou declaração de quitação, à recorrente, 260 000 euros, para compra de imóveis que, ao longo daqueles 10 anos, nunca procuraram ou tentaram visitar ou encontrar, continuando a entregar numerário à recorrente, mesmo depois de terem recebido em 2014 a carta desta a que se refere o ponto 10 do elenco dos factos provados na douta sentença recorrida)
• Incompatibilidade insanável da tese dos recorridos com a sua opção de não deduzirem pedido reconvencional, uma vez que, segundo os recorridos, a recorrente  não lhes restituiu aqueles 260 000 euros
• Alteração à decisão sobre a matéria de facto
• Alteração consequente da decisão referente à aplicação do Direito
2 - Sendo a recorrente portadora de um cheque assinado pelo recorrido, não pode deixar de se considerar a verificação de uma presunção da existência do crédito peticionado, com a consequente inversão do ónus de prova, competindo aos recorridos a prova do que alegam para se eximirem do pagamento peticionado, conforme douta jurisprudência supra- citada a título meramente exemplificativo.
3 – Mas, mesmo sem inversão de prova, impõe-se a condenação dos recorridos.
4 - Para alegadamente justificarem a existência do mencionado cheque, os recorridos invocam nos autos que o cheque se enquadra no âmbito de um negócio de venda pela recorrente de apartamentos, efectuado, de acordo com a fantasiosa versão dos recorridos, ao longo de 10 anos.
5 - Mas, durante esses 10 anos, os recorridos nunca procuraram saber onde ficavam os ficcionados apartamentos, apesar de virem a Portugal todos os anos e apesar de ficarem a residir (em Portugal) em ... que, como é público e notório, se localiza muito próximo  (a poucos quilómetros e a poucos minutos) de ..., sendo certo também que nunca concederem poderes ou mandato a favor da recorrente para os representar em qualquer eventual negócio de compra de imóveis.
6 - Mas, mesmo neste ponto e como infra se explicitará adicionalmente, os recorridos tropeçam nas suas próprias contradições, porquanto dizem que nunca visitaram, nem sabem onde ficam, os imóveis alegadamente negociados com a recorrente, mas a testemunha (e filho) dos recorridos DD afirmou, no depoimento que prestou em audiência (minutos 14,35 a 15,00 desse depoimento), que foi visitar um imóvel com os pais…
7 – Impõe-se também conferir um destaque muito relevante a opção dos recorridos de não terem deduzido qualquer pedido reconvencional, apesar de terem passado os autos a alegar que entregaram à recorrente a quantia de 260 000 euros, sem qualquer retorno ou contraprestação, pelo que, recorrendo às regras mínimas e mais elementares da experiência, seria de esperar que os recorridos deduzissem pedido reconvencional para tentarem reaver da recorrente o que alegam que lhe entregaram, se tal fosse verdade (que não é).
8 - Mas, esclarecedoramente, os recorridos quedaram-se por contestar o pedido formulado pela recorrente, sem formular qualquer pedido reconvencional.
9 - Acresce que, como consta dos autos, nomeadamente pelas informações bancárias obtidas pelo Tribunal, é absolutamente inequívoco que os recorridos não têm meios, nem capacidade, financeira para disporem da quantia de 260 000 euros, como alegam, ao longo dos autos, que fizeram, invocando (falsamente) que entregaram esse montante à recorrente.
10 – Como consta da gravação dos respectivos depoimentos, é totalmente perceptível o carácter hesitante e evasivo das respostas (especialmente do recorrido BB), admitindo até não ter explicação para os seus próprios comportamentos e opções.
11 - Durante 10 anos, entre 2006 e 2015, os recorridos dizem que entregaram dinheiro à recorrente (260 000 euros) sem nunca lhe exigirem um recibo ou declaração de quitação, mesmo depois de terem recebido a carta de interpelação para pagamento a que se refere o ponto 10 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida, ou seja, na versão dos recorridos, estes recebem uma carta da recorrente interpelando-os para pagamento da quantia de 100 000 euros e, não obstante, continuam, na sua versão, a entregar à recorrente montantes em numerários para compra dos apartamentos que nunca viram, que nunca visitaram, cuja tipologia nem sequer sabem.
12 - É, pois, imperioso concluir pela total falta de verdade e de compatibilidade com a realidade da versão apresentada pelos recorridos.
13 – Sem prejuízo das citações supra-transcritas dos depoimentos que impõem decisão sobre a matéria de facto totalmente distinta da proferida, importa referir o depoimento da testemunha EE, que afirma expressamente que, estando recorrente e recorrida juntas, era esta (recorrida) que estava a contar as notas, o que não pode deixar de significar que as tinha recebido, como a mais elementar regra da experiência dita, pois quem recebe notas é quem as conta, até para conferir o montante exacto que está a receber de quem entregou, sendo que, quem entrega, já confirmou previamente o que está a entregar e não necessita de contar novamente à frente daquela a quem entrega.
14 – Assim, impõe-se concluir que foi a recorrente que entregou, a título de empréstimo, à recorrida o numerário para cuja garantia de reembolso foi sacado o cheque dos autos.
15 - Quanto à condição e situação financeira, importa ainda referir que nunca os recorridos demonstraram qualquer possibilidade de efectuar entregas da ordem dos 260 000 euros, nem as informações obtidas dos bancos permitiu qualquer indício a esse respeito, nem sequer a eventual existência de qualquer financiamento bancário a esse respeito, tanto mais que «Quod non est in actis, non est in hoc mundo.»
16 – Face a tudo quanto consta dos autos e aos depoimentos supra-transcritos, impõe-se concluir e obter a alteração da douta decisão sobre a matéria de facto.
17 – Desta forma, os pontos 3, 4, 5, 6, 7,8, e 9 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida devem ser eliminados, tendo por base os supra-invocados e citados elementos probatórios que impõem decisão totalmente oposta à que consta da douta sentença recorrida.
18 – E os pontos a), b), c), d), e), f), g), e h) do elenco dos factos não provados devem passar para o elenco dos factos provados, considerando os elementos probatórios supra- transcritos e também o acervo documental dos autos, nomeadamente as informações  bancárias obtidas, que evidenciam a total ausência de capacidade financeira dos recorridos para entregaram à recorrente o que quer que seja e muito menos a quantia que eles próprios invocam, ou seja, 260 000 euros, para além do já referido e muito relevante depoimento supra-transcrito da testemunha EE e os depoimentos, ainda que hesitantes e evasivos, dos recorridos, em especial do recorrido BB que mereceram do MMº Juiz algumas questões que tem subjacentes dúvidas fundadas sobre o que está a ser afirmado em Tribunal e sobre a total inverosimilhança das respostas dos recorridos.
19 - Os depoimentos (e documentos) em causa comprovam que:
• Os recorridos nada entregaram à recorrente (excepto o pagamento parcial de 2450 euros)
• Os recorridos não têm capacidade financeira para dispor de 260 000 euros
• Nunca houve qualquer negócio imobiliário entre recorrente e recorridos, tanto mais que estes, ao longo de 10 anos, nunca procuraram saber sequer se os imóveis alegadamente negociados estavam construídos
• A recorrente emprestou aos requeridos a quantia peticionada
• Os recorridos entregaram à recorrente um cheque para garantir a devolução do montante que esta lhes emprestou para além de já terem efectuado um pagamento parcial de 2450 euros, conforme ponto 1 do elenco dos factos provados na douta sentença recorrida.
20 - Consequentemente, face a tudo quanto já se alegou e à alteração da matéria de facto requerida, impõe-se revogar a douta sentença recorrida e julgar procedente a presente acção e condenar os recorridos a reembolsar a recorrente do montante que esta lhes emprestou.
21- A douta sentença recorrida viola, nomeadamente, o disposto nos arts. 342, 458 CC.
Nestes termos e no mais que for Doutamente suprido por V.Exas,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser proferido Douto Acórdão que revogue a douta sentença recorrida e julgue a acção procedente.
Assim fazendo
JUSTIÇA».
*
Contra-alegou a Ré CC pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (refª. ...93).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (refª. ...04).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:    
     
I – Questões prévias:
i. Da rejeição do recurso (por falta de indicação do efeito do recurso; falta de indicação das normas jurídicas violadas - contra-alegações da recorrida/co-Ré CC);
II. Da impugnação da decisão da matéria de facto;
i. Da inversão do ónus da prova como decorrência da presunção da existência do crédito peticionado;
ii. Da reapreciação da matéria de direito (em face da procedência da alteração da matéria de facto).
*
III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1) Os Réus, sem prejuízo do infra apurado, entregaram à autora a quantia de €2.450,00.
2) A autora apresentou a pagamento o cheque n.º ...49, assinado pelo réu, em maio de 2009, e sacado sobre o Banco 1..., junto do balcão do Banco 2... sito em ..., tendo o mesmo sido devolvido na compensação pelo Banco de Portugal, na data de 12 de Agosto de 2015, por motivo de “saque irregular”.
3) Ao longo dos anos de convívio com os Réus, a Autora dizia que efectuava alguns negócios do ramo imobiliário.
4) A dada altura, em 2006, a Autora abordou os Réus e disse-lhes que tinha disponíveis imóveis para eles investirem as suas economias, em boas condições de preço e oportunidade.
5) Acreditando na idoneidade da abordagem e negócios subjacentes, os Réus ficaram, desde logo, receptivos e interessados.
6) A autora assegurou que ela trataria de tudo e que não tinham de se preocupar com qualquer espécie de papeladas ou burocracias.
7) Nesse seguimento, a Autora começou a solicitar aos Réus entregas, em numerário, tendencialmente mensais, para este conjunto de negócios e contexto.
8) Acreditando totalmente no que a Autora indicava, os Réus entregaram-lhe em numerário valor não concretamente apurado, entre 2006 e 2014 (para além do montante referido em 1).
9) O supra referido cheque foi pedido pela Autora aos Réus invocando que não era para ser movimentado mas apenas para exibir a terceiros para demonstrar a capacidade económica e a firmeza de vontade dos Réus.
10) A autora procedeu, a 15-09-2014, ao envio de carta (cujo teor aqui se dá por reproduzido) para os Réus, que receberam, interpelando-os para pagamento.
*
E deu como não provado:

Dos factos não provados

a) Bem sabendo das poupanças da Autora, os réus solicitaram-lhe que lhes procedesse ao empréstimo da quantia de 100.000,00€, em numerário, comprometendo-se a restituí-la posteriormente.
b) Com o intento de auxiliar aqueles que considerava seus amigos de longa data, a Autora não hesitou em aceitar entregar-lhes a quantia solicitada.
c) O acordo foi verbal, porquanto a relação de confiança assim o permitia.
d) O acordo das partes era no sentido de que a entrega de tal quantia pela Autora obrigaria os Réus a restituir igual montante em igual espécie e/ou qualidade.
e) As partes acordaram que a obrigação de restituição deveria ser cumprida em território nacional, uma vez que os Réus detinham contas bancárias em ..., nomeadamente no Banco 1..., S.A., e a Autora detinha contas bancárias em ..., no Banco 2..., S.A. e no Banco 3..., S.A.
f) Em cumprimento do que havia acordado, a Autora procedeu ao empréstimo da quantia total de 100.000,00 €, através da entrega de quantias parceladas e diferidas no tempo, em numerário e em mão, atendendo aos limites máximos de levantamento e de acordo com as suas possibilidades, ora sendo levantado por si directamente, ora sendo transferido para a conta da sua filha e posteriormente levantado, nos seguintes termos: - Na data de 27-01-2009, a Autora levantou a quantia de 1.500,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 09-02-2009, a Autora levantou a quantia de 6.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 16-02-2009, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 16-02-2009, a Autora levantou a quantia de 10.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 24-02-2009, a Autora levantou a quantia de 5.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 16-03-2009, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 € da conta com o n.º ...24; Na data de 30-03-2009, a Autora levantou a quantia de 350,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 03-04-2009, a Autora levantou a quantia de 5.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 29-04-2009, a Autora levantou a quantia de 10.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 18-05-2009, a Autora levantou a quantia de 200,00 € da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 09-07-2009, a Autora levantou a quantia de 3.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 17-09-2009, a Autora levantou a quantia de 1.500,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 18-09-2009, a Autora levantou a quantia de 5.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 21-09-2009, a Autora levantou a quantia de 10.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; - Na data de 14-10-2009, a Autora levantou a quantia de 1.500,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 27-10-2009, a Autora levantou a quantia de 10.000,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 02-11-2009, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; Na data de 23-11-2009, a Autora levantou a quantia de 2.000,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 01-12-2009, a Autora levantou a quantia de 300,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 03-12-2009, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 04-12-2009, a Autora levantou a quantia de 1.200,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 26-02-2010, a Autora levantou a quantia de 1.500,00 €, da conta com o n.º ...24; Na data de 29-06-2010, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 € da sua conta com o n.º ...24; Na data de 19-07-2010, a Autora levantou a quantia de 1.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; Na data de 06-08-2010, a Autora levantou a quantia de 5.000,00 €, da sua conta com o n.º ...24; perfazendo o valor total de 85.050,00 €, em levantamentos, que foram entregues em numerário aos aqui Réus.
g) O remanescente, designadamente a quantia de 14.950,00 €, foi entregue aos Réus sem necessidade de levantamento, durante o aludido ano de 2009, pois que a Autora detinha o valor em numerário na sua posse em virtude do pagamento de uma outra quantia anteriormente mutuada aos Réus.
h) Como “garantia” do cumprimento e para mais fácil realização do crédito, após a entrega das primeiras quantias, o 1.º Réu procedeu à entrega à Autora do supra referido cheque n.º ...49, sacado sobre o Banco 1..., S.A., no qual possuía conta bancária no balcão de ..., no montante de 100.000,00 € e com data de vencimento em 10.05.2009.
A restante matéria alegada pelas partes nos articulados é meramente conclusiva, impugnação, repetida, jurídica e/ou desprovida de interesse para a decisão da causa.
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V. Fundamentação de direito.

1. Questões prévias.

i) Da rejeição do recurso.
Refere a co-recorrida CC i) não ter a Recorrente indicado o efeito do recurso interposto, em violação do disposto no art. 637.º, n.º 1, do CPC; ii) a Recorrente pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto e, relativamente a matéria de direito, nas conclusões refere que “a douta sentença viola, nomeadamente, o disposto nos arts. 342, 458 CC”, pelo que se entende pretender o recurso interposto incidir simultaneamente sobre matéria de facto e de direito, não obstante no corpo das alegações pugnar apenas pela “alteração consequente da decisão referente à aplicação do Direito”; iii) o recurso deve ser rejeitado na parte em que impugna a decisão relativa a matéria de facto, por violar a Recorrente os requisitos constantes da alínea b) do n.º 1 do art. 640.º ao não estabelecer conexão entre cada ponto de facto impugnado e os concretos meios probatórios e fundamentos em que assenta a pretendida alteração da decisão; iv) viola os ónus relativos à impugnação de matéria de direito constantes do art. 639.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, porquanto, nas suas conclusões, não faz qualquer referência ao sentido com que as normas dos arts. 342.º e 458.º do CC deveriam ser interpretadas, sentido esse que também não resulta claro do corpo das alegações, onde não é feita sequer referência ao art. 342.º do CC.
Quanto à primeira objecção apontada, diremos tão somente que a falta de indicação do efeito do recurso interposto, em violação do disposto no art. 637.º, n.º 1, do CPC, não acarreta nenhuma consequência negativa ou preclusiva quanto à admissibilidade do recurso, até porque essa menção não vincula quer o tribunal recorrido, quer o tribunal “ad quem” (art. 652º, n.º 1, al. a), do CPC).
Quanto ao mais, como é sabido, a lei processual civil estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso.
A interposição de um recurso em processo civil, nos termos do art. 639º do CPC, sujeita o recorrente a dois ónus: o primeiro é o ónus de apresentar a sua alegação de recurso pelo qual deverá expor de modo circunstanciado as razões de direito e de facto da sua divergência relativamente ao julgado; o segundo ónus é o de finalizar essa peça com a formulação de conclusões, contendo a indicação resumida dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão posta em causa.
Ao mencionado normativo subjaz a distinção entre, alegações não acompanhadas de conclusões onde seja feita uma síntese dos fundamentos invocados na motivação, o que dá lugar à imediata rejeição do recurso; e alegações onde são formuladas conclusões, mas afetadas de deficiência, obscuridade ou complexidade ou nas quais faltem as especificações exigidas, o que dá lugar à formulação de convite à parte no sentido de as completar, esclarecer ou sintetizar antes de se decidir não conhecer do recurso na parte afetada[1].
Abra-se aqui um breve parêntese para referir que as objeções colocadas quanto à admissibilidade da impugnação da matéria de facto serão analisadas ulteriormente.

Se o recurso versar sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar (n.º 2 do art. 639º do CPC):
«a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

E, nos termos do seu n.º 3, “[q]uando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada».
No caso, quer nas alegações, quer nas respetivas conclusões do recurso, a recorrente não deixou de mencionar os normativos jurídicos que entende que foram incorretamente aplicados na sentença recorrida, como se extrai das alegações sob o item II e da 21ª conclusão.
Acresce que, lidas as contra-alegações apresentadas, evidencia-se que a apelada logrou perceber cabalmente os fundamentos (jurídicos) em que a recorrente assenta o mérito do seu recurso, rejeitando todos os argumentos explanados na apelação principal e concluindo pela total improcedência do recurso por a “sentença recorrida não deve[r] merecer qualquer censura”.
Por conseguinte, tendo a recorrida apreendido devidamente as alegadas normas jurídicas violadas em que a apelante fundamenta o seu recurso e o sentido com que, no entender desta última, tais normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, entende-se inexistir fundamento para a rejeição do recurso.
Ademais, a concluir-se pela procedência da argumentação da recorrida, previamente á rejeição do recurso sempre se imporia a prolação do despacho convite das conclusões a que alude o n.º 3 do art. 639º do CPC.
Na verdade, no circunstancialismo plasmado nos autos as razões de conteúdo ou substância, da celeridade e da eficácia devem sobrepor-se aos invocados aspetos de natureza puramente formal.
Nesta conformidade, pelas razões expostas, indefere-se a invocada questão prévia.
*
2. Da impugnação da decisão da matéria de facto.

2.1. Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no art. 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)».
A exigência que o legislador consagrou no art. 607º, n.º 4, do CPC, quanto à decisão da matéria de facto, impondo ao Tribunal o dever de fundamentação e de análise crítica da prova, tem como contraponto a exigência imposta às partes, que pretendam impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, de cumprirem os ónus estabelecidos nos arts. 639º e 640º, ambos do CPC[2].
À luz do citado art. 640º, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes[3], sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
«a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente tem de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…);
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
 (…)».
Debruçando-se especificamente sobre o (in)cumprimento dos requisitos formais de impugnação da decisão da matéria de facto previstos no n.º 1 do art.º 640.º do CPC, refere Abrantes Geraldes[4]:
A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: (…)
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 4, e 641º, n.º 2, al. b)); (…)
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a)); (…)
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…)
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; (…)
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
(…)
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada (da modificação dos factos provados para não provados e destes para provados).
A recorrente indicou, ainda, os meios probatórios que, na sua ótica, impõem uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, procedendo inclusivamente à respectiva transcrição dos depoimentos que considerou relevantes para o efeito. 
Contrapõe, porém, a recorrida que o recurso interposto viola os requisitos constantes da alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC ao não estabelecer conexão entre cada ponto de facto impugnado e os concretos meios probatórios e fundamentos em que assenta a pretendida alteração da decisão
Com o devido respeito, não se subscrevem tais considerações críticas.
Conforme se evidencia do item IV das alegações de recurso, a recorrente pugna pela alteração dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, e 9 do elenco dos factos provados da sentença recorrida que pretende ver eliminados, bem como das alíneas a, b, c, e, f, g, h) do elenco dos factos não provados que pretende ver incluídos no elenco dos factos provados,
E no que concerne à indicação dos meios probatórios em que alicerça a sua impugnação indicou, inclusive com a transcrição de excertos dos depoimentos prestados, o depoimento da testemunha EE (com indicação dos minutos em que as respectivas afirmações foram proferidas), o depoimento de parte do recorrido BB (com indicação dos minutos em que as respectivas afirmações foram proferidas) e o depoimento de parte da recorrida CC (com indicação dos minutos em que as respectivas afirmações foram proferidas).
Acresce que, como bem refere a recorrente, os factos impugnados – quer os provados, quer os não provados – “são encadeados e interligados, e, enquanto tal, insusceptíveis de autonomização sem que o seu enquadramento perca sentido ou sistematização”.
E também nesta parte, por referência às contra-alegações apresentadas, fácil é de concluir que a apelada logrou perceber perfeitamente os fundamentos da impugnação da decisão da matéria de facto, tendo-os rejeitado circunstanciadamente; e, em obediência ao disposto no art. 640º, n.º 2, al. b), do CPC, não deixou, aliás, de invocar e contrapor outros depoimentos tendentes a infirmar e/ou esclarecer/complementar o contexto dos depoimentos erigidos  pela recorrente como relevantes para a alteração da matéria de facto,
Aliás, não podemos deixar de ter presente que a orientação predominante no Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a revelar-se mais flexível e mais maleável, no que respeita ao cumprimento dos mencionados ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, principalmente em relação aos de natureza essencialmente formal ou secundária, devendo ser feita uma interpretação dessa norma mais consentânea com as exigências dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[5].
Ora, no caso presente, embora não tenha especificado individualizadamente em relação a cada um dos pontos impugnados os concretos meios probatórios, tendo-o antes feito por referencia à globalidade dos factos impugnados, de um lado os provados e do outro os não provados, a verdade é que, atenta a interligação entre tais factos, podemos concluir que se mostra respeitado o requisito previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC.
Termos em que podemos concluir que a recorrente cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º, impondo-se a improcedência da questão prévia suscitada pela co-recorrida (da rejeição do recurso quanto à matéria de facto impugnada).
*
2.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se, resumidamente, de acordo com os seguintes parâmetros[6]:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância.
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão.
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com benefício da imediação e oralidade - apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
*
2.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a recorrente pretende:
i) - A alteração das respostas positivas para negativas dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da matéria de facto provada da decisão recorrida;
ii) - A alteração das respostas negativas para positivas das alíneas a, b, c, d), e), f, g e h) da matéria de facto não provada da decisão recorrida.
No dizer da recorrente, essa materialidade fáctica, provada e não provada, merece ser alterada pela conjugação do depoimento da testemunha EE e dos depoimentos de parte dos recorridos, BB e CC, assim como pela análise dos documentos juntos aos autos.
Mais refere que tais depoimentos (e documentos) em causa comprovam que:
- Os recorridos nada entregaram à recorrente (excepto o pagamento parcial de 2.450 euros);
- Os recorridos não têm capacidade financeira para dispor de 260 000 euros;
- Nunca houve qualquer negócio imobiliário entre recorrente e recorridos, tanto mais que estes, ao longo de 10 anos, nunca procuraram saber sequer se os imóveis alegadamente negociados estavam construídos;
- A recorrente emprestou aos requeridos a quantia peticionada;
- Os recorridos entregaram à recorrente um cheque para garantir a devolução do montante que esta lhes emprestou para além de já terem efectuado um pagamento parcial de 2.450 euros.
Delineada a posição da recorrente, há, assim, que verificar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos invocados pelos apelantes.
Antes, porém, de iniciarmos essa análise importa deixar consignado que, com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos (de parte e testemunhais) invocados na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto, bem como de todos os depoimentos explicitados na motivação da sentença recorrida, não nos tendo restringido aos trechos parcelares e restritos assinalados pela apelante.
Para além disso, foram analisados todos os documentos referenciados.

Em termos genéricos, e a fim de termos presente o que está em discussão nos autos em termos fácticos, a A. alega que, no início do pretérito ano de 2009, celebrou com os RR. um empréstimo, nos termos do qual, a pedido destes, lhes emprestou a quantia de 100.000,00€, através da entrega de quantias parceladas e diferidas no tempo, que eles não lhe devolveram, à excepção da quantia de € 2.450,00, daí que peticione a sua condenação no respetivo pagamento da quantia mutuada.
Posição contrária e bem diferente têm os RR., os quais, rejeitando que alguma vez hajam contraído qualquer empréstimo perante a Autora, defendem antes que, fruto do convívio que as partes mantinham entre si, aquela, no ano de 2006, abordou os Réus e disse-lhes que tinha disponíveis imóveis para eles investirem as suas economias, em boas condições de preço e oportunidade, o que foi por estes aceite, pelo que começou a solicitar-lhes entregas, em numerário, tendencialmente mensais, para este conjunto de negócios e contexto, tendo-lhe os RR. entregado em numerário valor não inferior a 260.000,00 €, entre 2006 e 2014, em múltiplas entregas de valores aleatórios.
Mais referem que o cheque n.º ...49, no valor de 100.000,00 €, sacado sobre o Banco 1... e datado de 01/05/2009, com a assinatura do Réu marido, foi pedido pela Autora aos Réus invocando que não era para ser movimentado, mas apenas para mostrar a terceiros para demonstrar a capacidade económica e a firmeza de vontade dos Réus.
O Tribunal “a quo”, por sua vez, deu como parcialmente demonstrada a versão fáctica aduzida pelos RR. e não provada a versão apresentada pela Autora.
Feita esta breve súmula, passemos de seguida à análise dos diversos meios de prova produzidos.
A esse respeito – e com a vista à infirmação da facticidade provada –, a recorrente invoca, em primeiro lugar, o depoimento da testemunha EE, na medida em que este interveniente acidental, emigrante em ... e que era colega de trabalho do R. marido na empresa EMP01..., referiu que, numa ocasião em que se encontrava a executar um serviço/biscate na casa dos RR., ao ter passado pela cozinha a fim de ir buscas as suas ferramentas onde se encontravam a Ré e a A., presenciou a R. CC com “um molhe de notas na mão” e a contá-las.
Mercê desse facto, conclui a recorrente – dizendo ser público e notório e corresponder às mais elementares regras da experiência – que “quem conta notas é aquele que as recebe”, e “nunca quem as entrega (que já as contou em momento anterior ao da entrega)”, “pelo que o relato da mencionada testemunha arrolada pelos recorridos não pode deixar de significar que a recorrente entregou à recorrida um envelope com notas”, e “que esta (recorrida) estava a conferir o montante entregue pela recorrente”, o que “é compatível apenas com a versão da recorrente (de emprestar numerário aos recorridos)”, e “totalmente incompatível com a versão dos recorridos”.
Com o devido respeito, não se vislumbra que se trate de facto público e notório, nem decorrer necessariamente das regras da experiência, que “quem conta notas é aquele que as recebe”; esse acto tanto pode ser praticado por quem empresta, como por quem recebe o numerário.
Acresce que, por referência ao aludido episódio pontual da visualização do “molhe de notas” na posse da R. CC e da contagem do dinheiro, a referida testemunha não testemunhou quem procedeu à entrega de dinheiro ou a actos concretos de entrega de dinheiro, seja à recorrida, seja por contraposição à recorrente. O mesmo é dizer que o depoimento da referida testemunha é por si só manifestamente inviável para aferir o fluxo ou o circuito do dinheiro.
Por outro lado, no tocante à apreciação feita ao referido depoimento testemunhal não podemos deixar de assinalar que a recorrente se limita a invocar e a destacar um aspecto pontual e isolado reproduzido nesse depoimento, sem atender, contudo, à globalidade do depoimento prestado pela indicada testemunha.
Isto porque, tendo referido que viu por duas vezes a A. em casa dos RR. quando ali se encontrava a executar biscates de eletricista, e que ouviu as conversas que aquela manteve com a Ré CC – referiu que, na ocasião, a A. gritava –, nomeadamente aludindo a A. ao facto de já terem (os RR.) um apartamento, bem como dos filhos, que já estava pago – ou seja, depreende-se que estaria a dar conta à Ré mulher do desenvolvimento do negócio de aquisição dos apartamentos, bem como de que o mesmo já estaria pago –, tendo também feito menção a um cheque de 100,000.00€, que “era só para inglês ver”, para mostrar “como vocês (os RR.) têm capacidade para comprar”.
De qualquer modo, tendemos a concordar com a valoração feita pelo Mmº Juiz “a quo” no sentido do referido depoimento se afigurar pouco credível e plausível.
Aliás, a menção ao facto do cheque ser “só para inglês ver” corresponde à reprodução duma asserção feita no seu depoimento pela R. CC, pelo que não é de excluir que a testemunha tenha alinhado o seu depoimento com a versão dos factos trazida aos autos pelos RR., o que lhe retira credibilidade.
A recorrente invoca igualmente em abono da sua pretensão impugnatória o depoimento de parte dos recorridos.
Em relação ao depoimento de parte do R. BB, a recorrente destaca o facto deste nem sequer lograr indicar com precisão a tipologia dos apartamentos objeto da negociação de aquisição proposta pela A. – ou seja, o R. revelou não saber o que ia comprar –, de nunca ter visto os apartamentos, nem ao longo dos 10 anos (entre 2006 e 2015), apesar de vir sempre a Portugal, não ter revelado curiosidade em conhecê-los e de, apesar de alegadamente ter entregue em dinheiro a quantia 260.000,00€, nunca ter exigido à A. um documento comprovativo da entrega feita, nem nunca ter passado procuração à A. para ela adquirir essas casas.
E, no que concerne ao depoimento de parte da R. CC, realça o facto de, não obstante em princípios de 2015, ter recebido a carta da A. a interpelá-la para restituir a quantia emprestada de 100.000,00€ do cheque, ter continuado a pagar as quantias tendentes à aquisição dos apartamentos; de a A. nunca lhe ter mostrado os apartamentos em causa (“apartamentos muito bons aqui em ..., para os lados do ...”), e de a depoente nunca ter mostrado curiosidade em ver, pelo menos, o sítio da localização dos apartamentos, apesar de virem a Portugal todos os anos e de terem casa em ....
Por referência ao depoimento prestado pelo R. BB, explicitou o mesmo a proposta negocial feita pela A. no sentido de investirem na aquisição de apartamentos, em ..., quer para si, quer para os filhos, em boas condições de preço (por cada um dos imóveis pagariam o valor de 50.000,00€, quando o seu valor de mercado era de 100.000,00€), rejeitando ter solicitado qualquer empréstimo à A..
Remeteu parte das explicações sobre as condições do negócio (por ex. o detalhe das entregas em numerário realizadas) para a sua mulher, por ser esta quem lidava mais diretamente com a A., tendo-se escudado com o facto de ter ficado bastante afectado com toda esta situação com vista a justificar o desconhecimento e a não explicação de alguns contornos e detalhes do negócio alegadamente celebrado,
Por sua vez, a R. CC contextualizou o modo como os RR. e a A. se conheceram, referindo para o efeito que sendo todos de nacionalidade portuguesa, mas residentes em ..., entre eles se estabeleceu uma relação de amizade e de confiança, que perdurou por vários anos.
No seu dizer, depois de conquistar a sua confiança bem como do seu marido, a A. propôs-lhes, em finais de 2006, a aquisição de três imóveis, na cidade ..., localizados na zona do ..., pelo valor de 50.000,00€ cada um e a pagar mediante entregas em numerário. O negócio apresentava-se vantajoso, posto que cada apartamento valeria 100.000,00€.
Rejeitou peremptoriamente que alguma vez a A. lhes tivesse emprestado dinheiro.
O cheque aludido nos autos (no valor de 100.000,00€), referiu, era para a A. mostrar a potenciais interessados na aquisição de apartamento, tendo sido acordado que seria para rasgar aquando da celebração das escrituras dos apartamentos e que jamais seria apresentado a pagamento. No dizer da depoente e segundo o que a A. lhe disse, “era para inglês ver”.
No seguimento desse acordo, desde o ano 2006 até 2015, entregaram à A., parcelarmente, mais de 260 mil euros destinados à aquisição dos apartamentos, tendo contraído 3 (três) créditos – um junto da Banco 4..., pelo valor de 5.000,00€; outro perante a Banco 5..., no valor de 12.000,00€ e um terceiro com o Banco 1..., no montante de 9.000,00€ –, a fim de obter fundos para assegurar tais pagamentos.
Apesar dos pagamentos feitos, não solicitaram qualquer documento comprovativo, pois depositavam inteira confiança na A..
Posteriormente, e a fim de justificar o adiamento da celebração dos negócios, a A. comunicou-lhes que estava com problemas, pois a filha havia-se divorciado e o genro participou dela, que não tinha licença para vender imóveis.
Em 2015, a A. solicitou-lhes mais dinheiro, mas a R. disse-lhe que não podiam pagar mais.
No decurso desse ano, aquando da vinda a Portugal, o funcionário do banco comunicou-lhe que tinha sido apresentado a pagamento um cheque no valor de 100.000,00€. Tendo de imediato contactado a A., esta respondeu-lhe para não se preocupar, pois tinha sido um erro do advogado.
Os filhos da depoente também emitiram cheques a favor da A., e ela mudou (adulterou) as datas.
Confirmou o recebimento da carta em 2014 (constante de fls. 30 v.º), embora tivesse a ideia que essa carta seria de início de 2015, mas disse ser mentira o seu teor.
Confirmou que a A. nunca lhes mostrou os apartamentos, sitos em ... (no lugar de ...), nem eles nunca outorgaram procuração a favor da A. para os representar em qualquer negócio de compra dos apartamentos.
As dúvidas e objeções suscitadas pela recorrente quanto à credibilidade de tais depoimentos são, de facto, pertinentes, posto que a situação versada nos autos não deixa de ser peculiar. 
Mas, em contraposição, também não podemos deixar de assinalar que, afora o depoimento de parte prestado pela A. e o depoimento testemunhal da sua filha FF, bem como a referência ao cheque aludido no ponto 2 dos factos provados, inexiste qualquer outro elemento probatório que ateste ou certifique o alegado empréstimo que a A. diz ter feito aos RR., no valor de 100.000,00€.
Cientes que a questão é controversa e complexa, impõe-se apreciar e valorar os diversos elementos probatórios, bem como explorar alguns elementos circunstanciais a fim de formar uma convicção fundada sobre a matéria de facto impugnada.
Resulta inequívoco que as partes, não obstante presumir-se terem nacionalidade portuguesa, têm residência em ..., onde se encontram emigradas há longos anos.
O seu conhecimento surgiu por intermédio da filha dos RR., GG, a qual era amiga duma sobrinha da A., HH, sendo que após o termo da escola aquela ia quase todos os dias para casa da dita sobrinha da A., onde era frequente estarem a A. e a filha FF.
Da prova produzida (em concreto do depoimento da testemunha GG, filha dos RR.) resulta ter sido a A. quem tomou a iniciativa de conhecer os RR., tendo-a questionado quanto à nacionalidade (se eram portugueses) e situação financeira dos pais (se eram proprietários em Portugal e qual a sua profissão).
Dúvidas não subsistem que entre as partes se estabeleceu uma estreita relação de convívio, de amizade e de grande confiança – a A. passou a ser visita frequente e assídua da casa dos RR., onde por vezes comia, sendo considerada como uma segunda mãe para a filha dos RR. –, tendo inclusivamente os RR. sido testemunhas (vulgo padrinhos) do casamento da filha da Autora.
Dos depoimentos prestados resulta uma baixa formação dos RR. e até mesmo alguma ingenuidade no modo como se relacionaram com a A., posto a grande confiança nela depositada.
Essa baixa formação e instrução manifestou-se, inclusivamente, na forma como prestaram os seus depoimentos, sendo que o co-R. BB revelou não estar devidamente inteirado dos contornos ou condições dos negócios, remetendo as explicações para a sua mulher por ser a pessoa que mais lidava sobre esse assunto com a A.. Por exemplo, não soube precisar a tipologia dos apartamentos em questão, nem as quantias monetárias concretamente entregues à A., justificando-se com o facto desta situação muito o ter perturbado.
Já a co-R. CC mostrou-se mais assertiva e esclarecedora no depoimento prestado, sem embargo de evidenciar também desconhecimento sobre algumas questões colocadas, nomeadamente a específica tipologia dos apartamentos objeto da negociação.
Quanto ao facto de nunca ter visitado os apartamentos, atribuiu esse facto à elevada confiança que tinha com a A. e de esta, quando solicitada para os visitar, ir colocando entraves a esse propósito, comunicando-lhe para não se preocupar com isso, pois aquando da escritura se não gostasse do apartamento poderia escolher outro.
Por sua vez, no depoimento prestado a A. mostrou-se mais preparada e mais à vontade ao depor.
Contraditoriamente, porém, revelou enfado e aborrecimento com algumas questões colocadas, nomeadamente quando interpelada a explicitar melhor algumas condutas por si relatadas.
Concretamente:
Referiu ser usual (“costuma”) fazer empréstimos a outras pessoas, sem cobrar juros.
Os RR. solicitaram-lhe o empréstimo a fim de custear a reabilitação duma casa sita em ....
Ficou acordado que os RR. lhe devolveriam o dinheiro emprestado quando o R. marido se reformasse, porquanto, aquando do ingresso na reforma, a empresa EMP01... (então empregadora do R.) compensa os seus empregados com um valor monetário em função dos anos de trabalho (antiguidade).
Não soube indicar quando é que o R. se reformaria (se no decurso de 2 ou 10 anos a contar do início das entregas em numerário), o que não é curial com a específica data ajustada para a restituição do montante emprestado, ainda que tenha dito que o dinheiro não lhe fazia falta.
Foi a A. quem pediu aos RR. a emissão do cheque no valor de 100.000,00€, porque já lhes tinha entregue muito dinheiro.
Em 2023 ou 2014, o R. entregou-lhe um cheque no montante de 2.450,00€ para abater a dívida.
Contudo, não procederam à substituição do primitivo cheque – a fim de contemplarem a respetiva redução/abatimento desse valor – e na carta enviada a 15/09/2014 a A. reclamou o pagamento da quantia de 100.000,00€.
Instada porque não pediu o reembolso do dinheiro pessoalmente dada a relação de confiança que existia, referiu tê-lo feito, mas os RR. responderam-lhe que não tinham dinheiro para lhe dar, tendo de imediato ficado com a convicção de que iria ficar sem o dinheiro que havia emprestado. Ulteriormente, remeteu a carta aludida no ponto 10 dos factos provados e apresentou o cheque a pagamento decorrido um ano daquela interpelação verbal.
Instada a explicar a razão do envio da carta, quando já sabia da rejeição dos RR. em procederem ao pagamento do empréstimo, revelou falta de disponibilidade em esclarecer a situação (“emprestei o dinheiro e não vale a pena falar da carta, enviei carta para reclamar aquilo que é meu”).
Não conseguiu explicar a razão para a emissão do cheque, em maio de 2009, no valor de 100.000,00€, quando à data, segundo a sua alegação, apenas havia emprestado cerca de 39.850,00€.
Com vista a aquilatar o perfil da A., nomeadamente a sua postura e o seu padrão de comportamento, assumem particular relevância os depoimentos das testemunhas II e JJ, os quais não só fizeram referência aos mencionados negócios de venda de apartamentos, como também afirmaram ter sido enganados pela A..
O primeiro, que conhece a A. desde 2010, referiu ter-lhe vendido diversos móveis, mas que ela ainda não lhos pagou.
Emprestou diversas vezes dinheiro à A., com vista ao estabelecimento de um negócio conjunto de importação de carros, referindo que a A. também lhe reportou que se dedicava à compra e venda de imóveis (“apartamentos”).
Chegou a ter um relacionamento amoroso com a A. e, nessa altura, esta referiu-lhe ter tido um problema com as Finanças (Administração Fiscal), em ..., tendo as contas caducadas, pelo que lhe solicitou um cheque no valor de 200.000,00 euros, o qual se destinaria a servir como justificação de que ela tinha valores.
Que houve transferências da indicada testemunha a favor da A. comprova-o o extrato bancário da “Banco 6...” constante de fls. 26, do qual consta a entrada de créditos, uma no montante de 30.000,00€, a 16/09, e outra de 10.000,00€, a 18/09.
Já a testemunha JJ, emigrante em ... há 64 anos, conheceu a A. por volta de 1991/1993, por causa dum serviço de pintura e papel que lhe prestou.
Quando a conheceu, nem a A. nem a filha trabalhavam.
Reportou a existência de litígios (judiciais) que teve com a A., quer em Portugal, quer em ..., cuja resolução lhe foi (sempre) favorável.
Entre o mais, referiu ter emprestado dinheiro à A. – 7 (sete) milhões de francos –, que esta lhe instaurou um processo (“meteu-o na justiça a pedir dinheiro”) e que lhe furtou um cheque.
Fez menção a um processo que correu termos no Tribunal do Entroncamento, no qual a A. se arrogava  credora dele, tendo por base uns cheques que haviam desaparecido da casa da testemunha e cuja assinatura foi falsificada.
Não obstante não ter sido junto aos autos documento comprovativo desse processo judicial, a verdade é que a versão apresentada pela referida testemunha, quer quanto ao seu objeto, quer quanto ao sentido da resolução do processo, não foi questionada, nem infirmada.
Mais relatou uma situação em que a A. o levou a ... para lhe restituir o dinheiro emprestado, o que não se veio a concretizar.
No dizer da testemunha, a A. arrogava-se titular de um hotel, de explorar (“ter por conta dela”) cabines de lavagem de carros, ser proprietária de um apartamento em ... e de um outro em ..., o que era mentira. Ela ia buscar as chaves às agências, e depois ia visitar os apartamentos, mas não era nada dela.
Reportou a existência de mais lesados da A., em ....
Por outro lado, inexiste contradição entre os depoimentos dos RR. – que declararam nunca terem visitado os imóveis negociados com a recorrente, sitos em ... –, e do seu filho DD, porquanto este não referiu ter visitado nenhum desses apartamentos, mas antes fez alusão a outros apartamentos que seriam semelhantes aos que a eles se destinariam, situados aqueles na aldeia da A. (tendo ideia de que não foi em ...).
Quanto ao documento de fls. 20 v.º, constata-se consistir em declaração de entrega à recorrente da quantia de 15.000,00 €, alegadamente assinado pelo recorrido e alegando a recorrente que o dinheiro lhe foi entregue a título de devolução.
Ora, não é normal ser o próprio devedor a assinar declaração a afirmar a devolução do dinheiro que lhe cabia entregar; normal, sim, é ser o credor a assinar declaração a afirmar o recebimento da quantia mutuada.
É certo que a A. não deixou de tentar justificar o preenchimento daquele documento com o facto de tal se destinar a justificar o seu depósito junto de entidade bancária. A verdade é que não só não comprovou a efetivação do respetivo depósito, como alegou que esse dinheiro ficou na sua posse, não o tendo depositado.
Como refere a recorrida, a Recorrente não invoca qualquer meio probatório que sustente a pretendida alteração da decisão quanto à alínea g) dos factos não provados.
A menção quanto às entregas periódicas de dinheiro à A. resulta não só dos depoimentos de parte dos RR., mas também do depoimento das testemunhas GG e DD, filhos dos RR..
É certo que, diversamente do alegado pelos RR., não se comprovaram entregas no montante global de 260.000,00€, mas tão só em valor não concretamente apurado (resposta ao ponto 8 dos factos provados).
Quanto ao argumento da Recorrente no sentido de não ser credível que os Recorridos, tendo efetuado as entregas de dinheiro nos termos em que o afirmam, não tivessem deduzido pedido reconvencional no processo, importará ter presente que o Recorrido BB afirmou no seu depoimento que tais montantes estão a ser peticionados numa acção judicial pendente em ... contra a ora recorrente.
A pendência dum processo crime em ... contra a Autora instaurado pelos Recorridos e outros resulta do documento constante de fls. 58 vº a 67, tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público Francês com remessa do processo para fase jurisdicional no Tribunal de Segunda Instância de Riom, por existência de indícios suficientes, pela prática de desvio de fundos em numerário no montante de 297.070,00 € que lhe tinham sido entregues para um determinado fim, delito p. e p. pelos arts. 314º-1 e 314º-10 do Código Penal francês, assim como o crime de falsificação de documentos, delito p. e p. pelos arts. 313º-1 e 313º-3 e 313º-7 e 8, no mesmo contexto e, ainda, um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 324º-1, 324º-3 a 324º-8, todos do mesmo diploma.
No que concerne à emissão do cheque n.º ...49, assinado pelo réu, em maio de 2009, e sacado sobre o Banco 1..., junto do balcão do Banco 2... sito em ..., titulando o valor de 100.000,00 (cfr. ponto 2 dos factos provados), declararam os RR. que a Recorrente solicitou o aludido cheque, paralelamente com as entregas em numerário que aqueles lhe faziam mensalmente, com o objetivo daquela lograr demonstrar a sua capacidade financeira, tendo-se comprometido a não apresentar o cheque a pagamento.
Diversamente, defende a Autora que a emissão e entrega pelo 1.º Réu do referido cheque n.º ...49, sacado sobre o Banco 1..., S.A., se destinou a servir como “garantia” do cumprimento e para mais fácil realização do crédito, após a entrega das primeiras quantias.
Fica desde logo por perceber o motivo pelo qual, em 2009, quando a A. apenas havia emprestado aos recorridos, na sua tese, a quantia de 39.850,00 €, estes lhe entregaram um cheque titulando o valor de 100.000,00 €.
Sobre esse assunto, a filha da Recorrente, a testemunha KK, referiu ter sido o cheque entregue, a pedido da mãe, quando as entregas de dinheiro aos Recorridos já perfaziam à volta de 100.000,00 €.
Nessa pressuposição, fica, porém, por explicar a razão por que, quando os Réus entregaram à autora a quantia de € 2.450,00 (ponto 1 dos factos provados), não ter ocorrido substituição do cheque por um novo, com o valor atualizado.
Fica também por explicar a razão por que, na carta de interpelação expedida a 15/09/2014 (cfr. ponto 10 dos factos provados), a A. ter reclamado o pagamento da quantia de 100.000,00 €, sem o correspondente abatimento da importância de € 2.450,00.
Acresce que a solicitação da emissão de cheque para simular uma situação creditícia favorável à autora deu-se também com a testemunha II, nos termos supra explicitados.
Quanto aos pontos de facto a) a e) dos factos não provados, a Recorrente impugnou a decisão relativa a tais pontos de facto afirmando que a alteração pretendida decorre dos fundamentos e elementos probatórios por si invocados no recurso interposto.
No entanto, como bem salienta a recorrida, «da análise de tais elementos verifica-se que os mesmos se destinam, somente, a infirmar a tese dos Recorridos, carecendo a Recorrente de indicar meios probatórios e fundamentos que sustentem os factos que pretende que sejam dados como provados.
Com efeito, uma vez que os factos julgados não provados respeitam a uma tese autónoma e que não configura simplesmente o negativo da tese exarada nos factos julgados provados, uma alteração da decisão relativamente aos últimos não conduziria a uma automática alteração no que respeita aos primeiros, pelo que sempre seria exigido à Recorrente a indicação de fundamentos e meios probatórios que sustentem a impugnação da decisão respeitante aos factos não provados».
Por sua vez, apesar da Recorrente alegar que todo o dinheiro respeitante a levantamentos e entregas aos Recorridos saiu da sua conta, constata-se que – tal como é salientado na sentença recorrida – a mesma teve a necessidade de invocar movimentos e juntar os respetivos extractos de contas das quais não é titular, antes o sendo a sua filha e a sua neta.
Como bem assinalou o Mm.º Juiz “a quo”, “não se deixa de notar estranho que a autora alegadamente emprestava dinheiro com origem na sua conta bancária, mas também da sua filha e da sua neta. Isto é, com vista a demonstrar um valor que ainda assim não atinge os 100 mil euros, a autora teve de recorrer a extractos bancários de outras contas para tentar demonstrar a sua versão. Ora, o dinheiro dessas contas é da autora? Ficou, de todo, por responder tal questão”.
Por outro lado, apesar da Recorrente ter afirmado que todo o dinheiro lhe pertencia, a sua filha (LL) referiu que parte do dinheiro também seria seu (“é pouco meu”).
Registe-se também a contradição entre o depoimento da recorrente e o da sua filha, testemunha FF, pois esta referiu que as entregas ocorriam tanto na sua casa como na dos Recorridos, enquanto a Recorrente referiu ter sido sempre ela quem se deslocava a casa daqueles para lhes entregar o dinheiro.
Referiu a A. que a entrega em numerário de tais parcelas foi uma exigência dos RR..
Fica, porém, por perceber o motivo pelo qual, inexistindo qualquer ascendente (económico, pessoal, social, profissional ou de qualquer outra ordem) dos RR. sobre a A. – os quais, como se disse, revelam modesta formação e instrução – e sendo esta, ao invés dos RR., uma pessoa experiente e versada no mundo dos negócios – quer por fazer empréstimos a outras pessoas, como reconheceu no seu depoimento, quer por ser beneficiária de empréstimos, como resultou dos depoimentos das testemunhas II e JJ –, não cuidou a A. de exigir a subscrição de documento que atestasse o empréstimo acordado. E nem se diga que emissão do cheque vale como essa formalização, pois dele não consta a concreta causa do negócio subjacente e já se viu a falta de clareza entre o valor à data (alegadamente) emprestado e o que nele foi titulado.
Essa estranheza sai ainda mais reforçada por referência ao documento que alegadamente titula a devolução do primeiro mútuo celebrado entre as partes (documento de fls. 20 v.º), em que, não obstante a confiança entre elas existente, ainda assim terão sentido necessidade de outorgar documento no qual os RR. declararam ter procedido à devolução da quantia de 15.000,00€ (o qual foi por estes impugnado, sendo certo não ter sido feita prova quer desse empréstimo, quer da sua restituição).
Assim sendo, por maioria de razão, não se evidencia o motivo por que a A. não teve o cuidado de se munir com documento formalizador do alegado contrato de mútuo.
Acresce que, alegando a A. que o empréstimo deveria ser restituído quando o R. marido se reformasse – facto que ocorreu entre 2010/2011 –, pois que nessa altura receberia uma compensação monetária da sua entidade empregadora em função da antiguidade, o que lhe permitiria reembolsar o empréstimo concedido, fica também por explicar o motivo por que apenas em 2014 a A. terá interpelado verbalmente os RR. para lhe restituírem tal importância.
E considerando que, logo aí, o R. marido lhe terá comunicado que nada tinha a restituir, pois não iria roubar para lhe pagar, tendo a A. e a filha ficado de imediato convictas de que o RR. não lhe restituiria a quantia (alegadamente) mutuada, a A. não soube explicar o motivo por que, ainda assim, teve necessidade de enviar uma carta de interpelação – se bem que, juridicamente, esse envio possa ter-se destinado a formalizar a interpelação da restituição da quantia e a fixar a data do vencimento da obrigação do mutuário (art. 1148º do CC) –, e só aproximadamente um ano depois tenha apresentado a pagamento o cheque n.º ...49, assinado pelo réu, em maio de 2009, e sacado sobre o Banco 1....
Importa ainda secundar o aduzido na motivação da sentença recorrida quando aí se refere que os documentos bancários ulteriormente juntos (respeitantes à conta bancária do RR. em Portugal) em nada relevaram para a presente decisão, porquanto, vivendo os réus em ..., sendo aí que recebem as respetivas reformas, nada se pode concluir das suas contas bancárias em Portugal quanto à sua capacidade financeira.
Não obstante tenha referido que tinha sido proprietária de um hotel – sem que o tenha comprovado –, e dizendo auferir tão só uma reforma mensal de 1.200,00€, diversos intervenientes processuais aludiram ao facto da A. revelar sinais exteriores de riqueza sem demonstrar capacidade económica compatível.
Assim sendo, e retomando uma questão anteriormente aflorada, mercê da baixa formação e de alguma ingenuidade patenteada pelos RR., não é de excluir que tais factores se tenham revelado decisivos no modo como os RR. se posicionaram no negócio de aquisição de imóveis proposto pela A. (que esta nega), posto terem ficado seduzidos com a oportunidade de negócio que esta lhes propôs, de aquisição de prédios em Portugal a um preço muito vantajoso, num período em que se avizinhava a sua reforma e afigurando-se como um excelente negócio para aplicarem as suas poupanças, ao ponto de não cuidarem sequer de previamente visitar os apartamentos objeto da referida negociação, nem de exigirem qualquer tipo de documento ou comprovativo. .
Ora, como bem concluiu o Mm.º Juiz “a quo”, «apesar da factualidade apurada configurar uma situação caricata e pouco usual, porém a realidade demonstra-nos que estas situações peculiares ocorrem».
Em suma, das duas versões fácticas em confronto – empréstimo concedido pela A. aos RR. ou, ao invés, entregas em numerário, entre 2006 e 2014, pelo RR. à A. na sequência da proposta negocial por esta apresentada, tendo por objeto a futura aquisição de imóveis, sitos em Portugal –, a que foi acolhida na sentença recorrida é, nos termos explicitados, a que se afigura mais plausível em face da concreta prova produzida nos autos.
Resta dizer que da análise da enunciada fundamentação das respostas dadas pelo tribunal na sentença resulta exame crítico e valorativo das provas em que alicerçou a sua convicção, mais do uma simples identificação dos meios de prova que teve por relevantes. O tribunal concatenou os depoimentos/declarações de parte, as prestações testemunhais produzidas em audiência e os documentos produzidos, e, discutindo as suas posições, apelando aos conhecimentos, à experiência e à razão de ciência de cada uma, tirou conclusões que se mostram condizentes com a leitura por nós efetuada da prova produzida.
De facto, a fundamentação que serviu de base a essas conclusões dadas pela 1.ª instância – que subscrevemos, nos termos explicitados –, baseando-se na livre convicção e sendo uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, revela-se convincente e sustentada à luz da prova auditada e não se mostra fragilizada pela argumentação probatória da impugnante, não se impondo decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto diversa da recorrida (art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC).
Como tem sido salientado, baseando-se a decisão factual do tribunal da 1ª instância numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com benefício da imediação e oralidade – apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Nesta conformidade, por referência à prova produzida nos autos, não se evidenciam razões concretas e circunstanciadas capazes de infirmar a apreciação crítica feita pelo tribunal recorrido sobre os pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 dos factos provados e alíneas a, b, c, d), e), f, g e h) dos factos não provados da sentença recorrida.
Pelo exposto, coincidindo integralmente a convicção deste Tribunal quanto aos factos impugnados com a convicção formada pelo Mm.º juíz “a quo”, impõe-se-nos confirmar a decisão da 1ª instância e, consequentemente, concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto deduzida pela Autora, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida. 
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3. “Da existência de presunção do direito de crédito da recorrente, com a consequente inversão do ónus da prova, mercê da existência de cheque sacado pelo recorrido a favor da recorrente e face também a pagamento parcial efectuado pelos recorridos à recorrente (de 2.450 euros)”.
Defende a recorrente/Autora que, sendo «portadora de um cheque assinado pelo recorrido, não pode deixar de se considerar a verificação de uma presunção da existência do crédito peticionado, com a consequente inversão do ónus de prova, competindo aos recorridos a prova do que alegam para se eximirem do pagamento peticionado».
Efectivamente, apesar «de os títulos de crédito prescritos ou que não preencham os requisitos legais não gozarem da característica da abstração, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão e beneficiar da presunção de causa consagrada no nº1, do art. 458º, do Código Civil, quando, não indicando a causa, traduzam atos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação».
Tanto mais que a «subscrição do título faz presumir a existência de uma relação causal subjacente».
Até porque o «cheque incorpora uma ordem de pagamento, pelo que o seu preenchimento à ordem ou a entrega ao portador tem implícita a constituição ou o reconhecimento de uma dívida a satisfazer através do desconto na conta bancária respectiva.
Mesmo enquanto simples quirógrafo, o cheque contém (continua a conter) em si o reconhecimento unilateral de uma dívida, porque se mantém a ordem de pagamento».
Posição diferente tem a recorrida, aduzindo para o efeito não se afigurar esse entendimento como o mais correto, uma vez que a mera existência de um cheque não configura a situação prevista no art. 458.º do CC.
Depois de enunciar diversa jurisprudência em abono da sua posição, conclui inexistir qualquer inversão do ónus da prova, pelo que caberá à recorrente a prova da existência do mútuo por si alegado, o que a mesma não logrou fazer.
Mas ainda que se entenda existir a alegada inversão do ónus da prova, diz que ficou amplamente provado na presente acção o contexto da entrega do referido cheque, pelo que tal ónus foi satisfeito pelos Recorridos.
Vejamos como decidir.
Nas palavras de Marco Carvalho Gonçalves[7], «para que um título de crédito (cheque, letra ou livrança) constitua um título cambiário, torna-se necessário que o mesmo reúna todos os requisitos previstos na Lei Uniforme dos Cheques ou na Lei Uniforme das Letras e Lívranças (arts. l.º da LUC e 2.º e 75.º da LULL).
Para além disso, o título cambiário não pode estar prescrito (arts. 2.º da LUC e 2.º e 76.º da LULL). Com efeito, (…) em relação aos cheques, dispõe o art. 52.º da LUC que toda a ação do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra os demais coobrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação. Acresce a isto que o cheque apenas conserva a sua força cambiária se for apresentado a pagamento no prazo de oito dias após a data da sua emissão (art. 29.º da LUC)».
A questão da suficiência de um título de crédito, desprovido dos requisitos legais para funcionar como título cambiário, para suportar a dedução de uma pretensão dirigida à efectivação em juízo de um direito de crédito tem sido essencialmente abordada a propósito da qualificação desse documento como título executivo.
No caso dos autos, não estamos confrontados com uma acção executiva, mas com uma acção condenatória movida contra os pretensos devedores, pelo que a determinação do regime aplicável não passa naturalmente pela questão da exequibilidade do cheque junto aos autos, mas pela temática do cumprimento adequado do ónus de alegação incidente sobre a Autora.
É hoje jurisprudência predominante que os títulos de crédito desprovidos de força cambiária – os que não reúnem os requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstração substantiva previsto na respectiva Lei Uniforme – valem como reconhecimento unilateral de dívida[8].
Nos termos gerais da interpretação dos negócios jurídicos, é apenas necessário que, atenta a natureza do título, este, segundo as regras da interpretação, traduza um actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa material[9].

Sob a epígrafe “Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida”, o art. 458.º do CC prescreve:

«1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental».
Não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstrato[10]. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental[11].

Assim, se da declaração resultar a existência de uma dívida, ainda que, a tanto, ela não for primacialmente destinada, funciona a presunção do art. 458° do CCivil.
O reconhecimento de dívida e a promessa de cumprimento sem indicação da causa da constituição da obrigação têm como efeito a presunção da existência de uma relação fundamental, de uma fonte constitutiva de uma obrigação sobre o reconhecimento de dívida ou a promessa de cumprimento causal, com indicação da fonte da obrigação. Trata-se, portanto, de um negócio jurídico com mera eficácia declarativa, limitada à inversão do ónus da prova[12].
A promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida constituem presunções legais que, como tal, invertem o ónus da prova, mas não dispensam o ónus da alegação[13].
Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma ação, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor[14].
Reconhecida uma dívida ou prometido o cumprimento duma prestação, caberá ao devedor alegar e provar a inexistência da relação fundamental, seja porque, entre outras hipóteses, o negócio não se celebrou, é ineficaz ou se encontra prescrito[15]. Alcançando-se tal prova, não existe qualquer obrigação, não podendo o credor valer-se da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida.
Questiona-se se poderá o referido cheque valer como acto unilateral de promessa pelo respectivo sacador de uma prestação sujeita ao regime de abstracção processual previsto no art. 458º do CC?
Invocando-se um cheque ou outros títulos de crédito como meros quirógrafos, isto é, como simples documentos escritos, privados de força cambiária e dos quais conste uma obrigação, a promessa de cumprimento ou o reconhecimento de dívida devem resultar, de modo direto e expresso, do documento que as contenha ou podem ser extraídas de documentos que visem fins diversos, mas que, de certo modo, os revelem.
Como se considerou no Acórdão do STJ de 7/5/2014 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., «B) Em segundo lugar – e  não se mostrando preenchido algum dos requisitos ou condições imperativamente previstos na respectiva LU para o exercício do direito de acção conferido ao titular ou portador legítimo do título – pode ainda valer tal título de crédito – desde que, pela sua particular natureza (como sucede com as letras e livranças), envolva um acto recognitivo de dívida ou se traduza na promessa unilateral de uma prestação - como simples documento particular, assinado pelo devedor, contendo um acto unilateral de acertamento da obrigação causal subjacente, consubstanciado no reconhecimento de uma dívida ou na promessa de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no art. 458º do CC - ou seja, implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário.
Este regime parece ser aplicável, sem esforço, àqueles títulos de crédito que – embora imprestáveis para servirem de base à aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU – contenham um acto de reconhecimento de dívida ou envolvam uma promessa de prestação por parte do respectivo subscritor/aceitante (como sucederá com as letras e livranças, mas não já, segundo alguns, com o cheque, cuja fisionomia peculiar não se concilia facilmente com a natureza dos típicos actos de reconhecimento de uma dívida: na verdade, o cheque envolve essencialmente uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, não se podendo concluir, sem mais, que apenas por força  da sua subscrição o titular da conta reconheça ser devedor ao portador das quantias nele mencionadas - cfr. a situação debatida no. ac. de 21/10/10, proferido pelo STJ no P. 172/08.6TBGRD-A.S1)..  (…)».
Neste último aresto[16] – a propósito da exequibilidade do cheque que, por carecer dos requisitos definidos pela respectiva LU, não pode servir de base a uma execução reportada à estrita obrigação cambiária ou cartular –, foi explicitada a seguinte consideração:
«I- Temos como efectivamente discutível que, face à natureza do cheque e à fisionomia estrutural das obrigações dele emergentes, lhe seja plenamente aplicável a segunda perspectiva, atrás enunciada sob a alínea B): é que, ao contrário das letras e livranças, que contêm uma promessa de pagamento de determinada quantia pecuniária, a natureza do cheque não importa propriamente um acto de reconhecimento, directo e expresso, de uma dívida do executado no confronto do exequente, mas antes uma ordem de pagamento, dirigida a um banqueiro, em benefício do potencial credor da mobilização de fundos decorrente da emissão e entrada em circulação do cheque; implicam estas considerações que o titular do cheque, desprovido dos requisitos da LU, não beneficiará da presunção contida no art. 458º do CC, apenas convocável quanto àquelas declarações confessórias que, pela sua natureza, importem um reconhecimento unilateral, expresso e directo, de uma dívida no confronto do exequente»;
«C) Em terceiro lugar, podem ainda valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU e não possam materialmente subsumir-se ao referido art. 458º do CC (por não conterem materialmente um reconhecimento de dívida nem implicarem uma promessa de prestação, feita pelo seu subscritor) como meros quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo e por ele provados, revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório, na oposição que deduza: como é evidente, esta perspectiva acerca do valor executivo dos títulos de crédito funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respectiva emissão, não beneficiando, consequentemente, do regime de abstracção processual aí instituído e da presunção/ dispensa de prova afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o credor, autor ou exequente, o ónus, não só de invocar, mas também de provar, os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da acção».
Segundo o decidido no citado Ac. do STJ de 21/10/2010 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., «é-lhe, porém, plenamente aplicável a perspectiva ou enquadramento jurídico atrás referida sob a alínea C), nada obstando a que o cheque seja invocável, no âmbito das relações imediatas, como mero quirógrafo de uma relação obrigacional causal, não sujeita a particular forma legal, justificadora da ordem de pagamento dada pelo executado a favor do exequente, desde que este, no requerimento executivo, tenha alegado os factos constitutivos desse débito causal - não mencionado no próprio cheque dado à execução - nos termos actualmente consentidos, de forma expressa, pelo art. 810º, nº 3, al. c) [correspondente ao actual art. 724º] do CPC.
Na verdade, e embora o cheque, pela sua peculiar fisionomia, não contenha uma declaração confessória, expressa e directa, de um débito do executado perante o exequente, constitui um quirógrafo ou documento particular, dotado de valor probatório contra o respectivo signatário, nos termos dos arts. 373º e segs. do CC, e que, conjugado com a actividade de alegação complementar do exequente, poderá indiciar, com um grau de probabilidade suficiente para a execução poder prosseguir, a existência da obrigação causal que funciona como «causa petendi» da acção executiva».
A questão não é, porém, consensual, descortinando-se uma posição que defende que os cheques, como títulos de crédito, contém um acto de reconhecimento de dívida de modo a presumir-se a existência da relação fundamental[17].
Aduzem-se para o efeito os seguintes argumentos[18]:
- Os cheques são documentos particulares, assinados pelo seu devedor, que exprimem a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, de montante determinado.
- O cheque constitui um título de crédito que, enquanto meio de pagamento, se materializa numa ordem pura e simples dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta da provisão bancária à disposição do sacador.
- Subjacente ao saque do cheque existe um crédito do sacador (cliente, titular da conta) sobre o sacado (banqueiro) resultante do contrato de depósito bancário em vigor entre ambos; subjacente ao saque do cheque à ordem de um terceiro existe além do crédito do sacador sobre o sacado, também um crédito do tomador/beneficiário do cheque, sobre o sacador, crédito que tipicamente o cheque tem por função pagar.
- Assim, a emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento dada a uma instituição bancária a favor de um terceiro, pois que, constitui também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro.
- Não surgindo os cheques “ex nihilo”, na sua origem têm sempre um negócio ou, pelo menos, uma situação jurídica para os quais foram emitidos.
- Consequentemente, nessa ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, o titular da conta está também a reconhecer uma obrigação pecuniária em relação ao portador das quantias nele inscritas.
- Assim, contendo os cheques uma ordem de pagamento de determinada quantia pecuniária, tal como as letras, também importam, como estas, um ato de reconhecimento, direto e expresso de uma obrigação do sacador ao beneficiário do cheque, pois essa ordem de pagamento sempre terá uma relação subjacente à sua emissão.
- Contendo ambos os títulos de crédito ordens de pagamento, não se vislumbra nenhuma razão para os cheques também não beneficiarem da presunção contida no art. 458º do CCivil, pois, como as letras, importam o reconhecimento de uma obrigação.
- Não será pelo facto de a ordem de pagamento do cheque se dirigir a um banqueiro, que este não importe o reconhecimento de uma obrigação, pois tem sempre implícita a reconhecimento de uma dívida.
- Os títulos de crédito desprovidos de força cambiária - os que não reúnem os requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstração substantiva previsto na respetiva Lei Uniforme - valem como reconhecimento unilateral de dívida.
- Concluindo, o titular do cheque, desprovido dos requisitos da Lei Uniforme, beneficiará da presunção contida no art. 458º, do CCivil, pois além da ordem de pagamento dirigida a um banqueiro para pagar a quantia inserta no mesmo, o titular da conta também está a reconhecer uma obrigação pecuniária em relação ao portador das quantias nele inscritas.
- Valendo o documento particular invocado pelo autor como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sujeita ao regime do art. 458º, do CCivil, funciona a presunção legal da existência da relação causal, competindo por isso ao réu afastar ou pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo autor.
- Porém, o reconhecimento unilateral de dívida, nos termos do art. 458º/1, do CCivil, apenas dispensa o credor da prova da existência da relação fundamental, que se presume até prova em contrário, mas não da alegação dos respetivos factos constitutivos, cabendo aos contestantes a prova dos factos que permitam concluir pela inexistência da dívida.
- Ressalve-se que o cheque, como documento quirógrafo, só poderá servir como título executivo nas relações imediatas, ou seja, no domínio das relações directas entre o credor e o devedor originário, e não no âmbito das relações mediatas (entre um terceiro a quem o cheque foi endossado e o devedor originário). Só naquelas circunstâncias existe um reconhecimento directo de obrigações pecuniárias pelo devedor a favor do credor[19].
Ora, no caso concreto, a autora alegou que, em cumprimento do que havia acordado, procedeu ao empréstimo da quantia total de 100.000,00 €, através da entrega de quantias parceladas e diferidas no tempo, em numerário e em mão, sendo que, como “garantia” do cumprimento e para mais fácil realização do crédito, após a entrega das primeiras quantias, o 1.º Réu procedeu à entrega à Autora do supra referido cheque n.º ...49, sacado sobre o Banco 1..., S.A., no qual possuía conta bancária no balcão de ..., no montante de 100.000,00 € e com data de vencimento em 10.05.2009, concluindo que, perante a emissão do aludido cheque, os réus reconheceram a existência da sua dívida.
Resultou, porém, provado que o referido cheque foi pedido pela Autora aos Réus invocando que não era para ser movimentado, mas apenas para exibir a terceiros para demonstrar a capacidade económica e a firmeza de vontade dos Réus.
O que significa que os RR. provaram a inexistência da invocada relação causal.
Com efeito, os RR. provaram que não há causa para o título de crédito, tendo cumprido o ónus da prova, ilidindo a presunção de causa do reconhecimento de dívida, consagrada no n.º 1, do art. 458º do Código Civil.
Assim, embora a autora estivesse dispensada de provar a relação fundamental que alegou, verifica-se que os RR. lograram ilidir a presunção de causa, demonstrando nenhuma relação fundamental existir.
Termos em que improcede o fundamento da apelação em apreço.
*
4. Da prova da relação subjacente à emissão do cheque prescrito.
Quanto à questão em apreço, dir-se-á que a eventual alteração da solução jurídica alcançada na sentença impugnada dependia, na sua totalidade, do prévio sucesso da alteração da decisão de facto [em concreto, da não demonstração da materialidade fáctica constante dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 dos factos provados e da demonstração dos factos objeto das alíneas a), b), c), d), e), f), g) e h) dos factos não provados], condição esta que não se verificou.
Donde sempre seria de considerar que ficou necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, nos termos do art. 608º, n.º 2 do C.P.C. “ex vi” do art. 663º, n.º 2, in fine, do mesmo diploma.
Sem embargo das considerações antecedentes, não deixaremos de efetuar, ainda que sucintamente, a subsunção jurídica dos factos provados.
Dir-se-á para o efeito que a autora intentou a presente acção contra os Réus pedindo que o Tribunal sentencie pela existência de um contrato de mútuo formalmente nulo por vício de forma, com a consequente condenação solidária dos Réus a restituir à Autora o valor de 97.550,00 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
Por sua vez, o Tribunal “a quo”, atenta a factualidade provada e não provada, concluiu pela manifesta improcedência do pedido, «pois nada se demonstrou quanto ao mútuo que constitui a causa de pedir destes autos, em que a mutuante é a autora e os mutuários os réus».
Nos termos constantes do art. 1142º do CC, “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Ao regular este contrato a lei tem em vista o empréstimo de dinheiro ou outra coisa fungível feito à margem de qualquer outra relação jurídica.
Como notas características deste contrato temos um acordo em que a parte, denominada mutuante ou prestamista, empresta certa coisa a outra; o objecto emprestado é dinheiro ou outra coisa fungível, ficando o mutuário obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
A entrega da coisa é elemento essencial à perfeição do negócio, sem o qual este não se completaria, daí que se diga que o mútuo é, de sua natureza, um contrato real (quod constitutionem)[20].
A consequência mais relevante da celebração do mútuo é a transferência da propriedade para o mutuário, de acordo com o art. 1144º do CC.
As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida” (art. 1145º, n.º 1, do CC).

Nos termos do art. 1148º do CC:
«1. Na falta de estipulação de prazo, a obrigação do mutuário, tratando-se de mútuo gratuito, só se vence trinta dias após a exigência do seu cumprimento.
2. Se o mútuo for oneroso e não se tiver fixado prazo, qualquer das partes pode pôr termo ao contrato, desde que o denuncie com uma antecipação mínima de trinta dias.
(…)».

Nos termos do disposto no art. 1143º do Cód. Civil, “(…) o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário”.
No caso submetido à nossa apreciação urge questionar – e responder – se a autora/recorrente provou a relação subjacente à emissão do cheque prescrito?

A resposta é negativa, porquanto não se provou que:
- Bem sabendo das poupanças da Autora, os réus solicitaram-lhe que lhes procedesse ao empréstimo da quantia de 100.000,00€, em numerário, comprometendo-se a restituí-la posteriormente;
- Com o intento de auxiliar aqueles que considerava seus amigos de longa data, a Autora não hesitou em aceitar entregar-lhes a quantia solicitada;
- O acordo foi verbal, porquanto a relação de confiança assim o permitia;
- O acordo das partes era no sentido de que a entrega de tal quantia pela Autora obrigaria os Réus a restituir igual montante em igual espécie e/ou qualidade;
- As partes acordaram que a obrigação de restituição deveria ser cumprida em território nacional, uma vez que os Réus detinham contas bancárias em ..., nomeadamente no Banco 1..., S.A., e a Autora detinha contas bancárias em ..., no Banco 2..., S.A. e no Banco 3..., S.A.;
- Em cumprimento do que havia acordado, a Autora procedeu ao empréstimo da quantia total de 100.000,00 €, através da entrega de quantias parceladas e diferidas no tempo, em numerário e em mão, atendendo aos limites máximos de levantamento e de acordo com as suas possibilidades, ora sendo levantado por si directamente, ora sendo transferido para a conta da sua filha e posteriormente levantado (cfr. alíneas a) a f) dos factos não provados).
Assim sendo, não foi pela autora/recorrida feita a prova da relação subjacente à emissão do cheque prescrito. Com efeito, não tendo ficado provada a causa de pedir alegada na acção, o contrato de mútuo da quantia em dinheiro através da emissão e entrega do cheque não se demonstra.
Temos, pois, que não tendo a autora/recorrente provado que tenha entregado aos réus/recorridos a quantia de € 100.000,00€, com a obrigação de estes a devolver, acrescida de juros, em determinado prazo acordado, a acção tinha – como tem – de improceder.
Isto porque, tendo sido ilidida a presunção de causa do reconhecimento de dívida, consagrada no n.º 1, do art. 458º do CCivil, teria de alegar e provar essa relação subjacente.
E estando provado que o referido cheque foi entregue pelos Réus a pedido da Autora, invocando esta que não era para ser movimentado, mas apenas para exibir a terceiros para demonstrar a capacidade económica e a firmeza de vontade dos Réus, também não é invocável a figura jurídica do enriquecimento sem causa (art. 473º do Cód.Civil). Aqui não estamos em presença de relação cartular; logo, se a acção não se basear na relação cartular, abstracta e autónoma, a obrigação de restituir a quantia titulada pelo cheque (como seria o caso dos autos) há-de derivar de um acordo entre os sujeitos da relação jurídica subjacente ou fundamental[21].
A sentença recorrida está, pois, correcta, pelo que é de confirmar.
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5. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as respetivas custas serão da responsabilidade da recorrente (art. 527º do CPC).
*
VI. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).
*
Guimarães, 16 de janeiro de 2025

Alcides Rodrigues (relator)
Afonso Cabral de Andrade (1º adjunto)
Joaquim Boavida (2º adjunto)
 

[1] Cfr. Ac. do STJ de 14/11/2024 (relator Oliveira Abreu), in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Ac. do STJ de 06/06/2018 (relator Ferreira Pinto), in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 155/156.
[4] Cfr. Recursos (…), pp. 158/159.
[5] Cfr. Acs. do STJ de 12/09/2019 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), de 8/02/2018 (relatora Maria da Graça Trigo) e de 28/04/2016 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt
[6] Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, 2017 – reimpressão, p. 384 a 396, Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, in Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, obra citada, pp. 462 a 469; na jurisprudência, Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos) e de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, p. 87.
[8] Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 24/05/2011 (relator Silva Gonçalves), de 10/11/2011 (relator Martins de Sousa), de 27/05/2014 (relator Garcia Calejo), de 15/11/2017 (relator Sousa Lameira), de 12/12/2023 (relator Nelson Borges Carneiro), in www.dgsi.pt.; Fernando Oliveira e Sá, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, 2018, Universidade Católica, p. 215.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 7/05/2014 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt.
[10] Isto é negócios que são válidos e produzem efeitos jurídicos sem causa ou com causa ilícita: a falta ou ilicitude da causa produz a nulidade do negócio (art. 280º, n.º 1, do CC). (cfr. MM, Notas ao Código Civil, Vol. II, p. 252).
[11] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, p. 439.
[12] Cfr. Fernando Oliveira e Sá, Comentário ao Código Civil, (…), p. 215.
[13] Cfr. Lebre de Freitas, A Acão executiva, 7ª edição, p. 75, nota 48-B.
[14] Cfr. Lebre de Freitas, A confissão no direito probatório, p. 390 apud Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 7/05/2014 (relator Lopes do Rego), in.www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª ed., 1987, Coimbra Editora, p. 440.
[16] Cfr. Acórdão do STJ de 21/10/2010 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., proferido na vigência do pretérito Código de Processo Civil.
[17] Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 16/12/2004 (relator Neves Ribeiro), de 24/05/2011 (relator Silva Gonçalves), de 27/05/2014 (relator Garcia Calejo), de 15/11/2017 (relator Sousa Lameira), de 12/12/2023 (relator Nelson Borges Carneiro), in www.dgsi.pt.
[18] Na exposição seguiremos de perto a fundamentação do Ac. do STJ de 12/12/2023 (relator Nelson Borges Carneiro), in www.dgsi.pt, que contém vasta e abundante indicação jurisprudencial e doutrinal.
[19] Cfr., Acs. do STJ de 19/01/2004 (relator Nuno Cameira), Revista: 3881/03 - 6.ª Secção, de 27/05/2014 (relator Garcia Calejo) e de 05/07/2018 (relator José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt.; Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luis Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, Almedina, 2020, p. 27, nota 43.
[20] Cfr, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, 1986, p. 680, Joana Farrajota, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 1408, e A. Santos Justo, Manuel de Contratos Civis, Petrony, p. 357.
[21] Cfr. Ac. do STJ de 07/07/2010 (relator Gonçalo Silvano), in www.dgsi.pt.