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PROCESSO DE INVENTÁRIO
NULIDADE PROCESSUAL
SEGUNDA PERÍCIA
PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE
Sumário
I - A realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, exigindo-se que, para além da discordância com a primeira perícia, o requerente da segunda alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art. 487º, n.º 1, do CPC). II - Desde que se mostrem explicitadas, de modo fundamentado, as razões da discordância ou inexactidões, não caberá ao Tribunal aprofundar o bem ou mal fundado da argumentação da parte como suporte da divergência, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório.
AA instaurou, em 22/07/2021, no Juízo Local Cível de Ponte de Lima do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, processo especial de inventário para cessação de comunhão hereditária e partilha de bens por óbito de BB e de CC, falecidos, respetivamente, a ../../2019 e ../../2009.
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O cabeça de casal, DD, juntou a relação de bens (ref.ª ...26).
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A interessada EE apresentou reclamação à relação de bens e requereu a realização de prova pericial, sob a forma colegial (ref.ª ...88).
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Foi dado cumprimento ao estatuído no n.º 1 do art. 1105º do C.P.Civil.
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O cabeça de casal apresentou resposta, pugnando pela improcedência da reclamação à relação de bens (fls. 103 e ss.)
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Realizada audiência prévia, não foi alcançada a conciliação das partes (ref.ª ...01).
Foi proferido despacho que admitiu a requerida perícia, singular, para avaliação dos bens imóveis e das benfeitorias e também as benfeitorias referentes à vacaria.
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Apresentado e notificado o relatório pericial, o cabeça de casal DD, reclamou e pediu esclarecimentos do relatório pericial (ref.ª ...74); a interessada EE requereu, também, esclarecimentos ao perito; subsidiariamente, requereu a realização de uma segunda perícia, nos termos do art. 487º do Código de Processo Civil (ref.ª ...52).
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Datado de 14.11.2023, foi proferido despacho a determinar a notificação do Sr. Perito para prestar os esclarecimentos solicitados (ref.ª ...27).
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A perita prestou esclarecimentos (ref.ª ...57).
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A interessada EE apresentou nova reclamação, solicitando esclarecimentos sobre os pontos objeto da reclamação; subsidiariamente, requereu a realização de uma segunda perícia «nos termos dos artigos 487º e 1114º do Código de Processo Civil, por forma a obter uma perícia válida, imparcial e coerente acerca dos factos quesitados» (ref.ª ...16).
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Datado de 13/06/2024, a Mmª Juíza “a quo” proferiu despacho nos termos do qual indeferiu a realização de uma segunda perícia (ref.ª ...47).
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Inconformada com o aludido despacho que indeferiu o requerimento para a realização de segunda perícia, em 15.07.2024 a interessada EE, dele interpôs recurso (ref.ª ...35) e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a fls… datado de 13 de Junho de 2024, com a referencia ...47 pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Instância Local de Ponte de Lima, no processo supra referido, de acordo com o qual foi indeferido o requerimento apresentado pela Interessada, ora Recorrente, no qual se peticionava a realização de segunda perícia, nos termos dos artigos 487º e 489º do Código de Processo Civil. 2) E ainda foi ordenado “Notifique, incluindo nos termos e para os efeitos do estatuído no art. 1110º, nº1, al.b) do C.P.Civil.” – (Cfr. com despacho recorrido). 3) Foi requerida e deferida a realização de uma primeira Perícia. Notificada a Recorrente do resultado da mesma reclamou, requerendo, de imediato, a prestação de esclarecimentos para suprir a falta de fundamentação, as insuficiências e obscuridades que o Relatório Pericial notificado padecia, requerendo, ainda, e subsidiariamente, segunda Perícia Colegial, fundamentando as razões da discordância do relatório pericial apresentado. 4) Entendeu o Exmo. Juíz "a quo" notificar os Srs. Peritos para prestarem esclarecimentos sobre as insuficiências aí apontadas no relatório pericial. Tais esclarecimentos vieram a ser prestados, mas, no entender da Recorrente de uma forma insuficiente. 5) Por isso, a Recorrente apresentou nova reclamação contra o resultado da perícia notificada, requerendo que os Senhores Peritos viessem prestar os esclarecimentos para suprir a falta de fundamentação, as insuficiências e obscuridades que o Relatório Pericial notificado padecia, renovando, ainda, a Recorrente o requerimento para realização de Segunda Perícia Colegial, alegando, novamente, em concreto, as razões da discordância e, fundamentando-as. 6) Entendeu o Exmo. Juiz "a quo" indeferir a realização da segunda perícia, alegando, sumariamente, que “A interessada EE limita-se a colocar em causa o método utilizado pela Sra. Perita e o valor pela mesma atribuído aos bens, discordando dos trâmites seguidos pela Técnica. Não cremos que se verifique qualquer insuficiência na avaliação levada a cabo nos autos. Com efeito, com a motivação apresentada pela interessada não se pode considerar preenchida a exigência fixada pelo nº1 do artigo 487º do Código de Processo Civil, isto é a alegação fundada das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado, de forma a justificar a realização de uma segunda perícia.” 7) Ora, entendimento diverso tem a Recorrente, porquanto entende que os fundamentos por si invocados e as razões da discordância em relação à Primeira Perícia são pertinentes. A não realização de Segunda Perícia poderá ser susceptível de influenciar a decisão da causa, o que constitui nulidade que inquina os termos subsequentes ao despacho que a indeferiu. 8) Nos termos do disposto no artigo 487º, n.º 1 do Código de Processo Civil “Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” ( n.º 1 ), sendo que a segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta. 9) Atento o disposto no citado 487º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, não resultando da versão aplicável do preceito tratar-se de um poder discricionário da parte o de requerer e ver deferida a realização de 2ª perícia, como em versões anteriores se verificava, dispensando a lei o requerente do segundo arbitramento “de justificar o pedido, de apontar defeitos ou vícios ocorridos no primeiro arbitramento, de apontar as razões por que julga pouco satisfatório ou pouco convincente o resultado do primeiro arbitramento” – cfr. A. Reis, Código de Processo Civil, anotado, Vol IV, pg.302, é hoje condição de deferimento do pedido de realização de 2ª perícia a alegação fundamentada das razões de discordância relativamente aos resultados da 1ª perícia, e, ainda, que tal alegação especificada é o único requisito legal do requerimento em causa a formular nos termos do art.º 587º do Código de Processo Civil. 10) Para fundamentar a sua pretensão a Recorrente apresentou em juízo o requerimento (datado de 16-10-2023 com a referência ...73) que infra se transcreve: “6º Quanto à VERBA B-1) - ARTIGO RÚSTICO N.º ...41... (ARTIGO ...), refere aquele relatório que: “Da análise do PDM pode verificar-se que o local é predominantemente agrícola, em RAN, não tendo capacidades edificativas, pese embora efetivamente exista uma construção de moradia unifamiliar implantada no terreno. Para melhor análise, foi consultado no arquivo da Câmara Municipal ..., para averiguar da legalidade das obras executadas, uma vez que se trata de área definida no PDM, com área agrícola e não edificável, o processo de licenciamento respetivo, cujo processo de obras de ampliação, tendo como requerente FF, obteve o n.º 175/11. Da análise do referido processo foi possível verificar que a obra obteve alvará de utilização n.º ...4. Assim sendo, pese embora as condicionantes do PDM, o terreno 3 incluído no artigo urbano ...05º, deverá, na opinião da perita ser considerado terreno apto para construção, uma vez que efetivamente se verifica a construção de uma moradia unifamiliar e anexos, legalizados.” 7º Do trecho supra transcrito resulta claramente uma contradição no relatório pericial quanto à avaliação da verba b-1) - ARTIGO RÚSTICO N.º ...41... (artigo ...). 8º Isto porque o Exmo. Sr. Perito logo de início esclarece que, Da análise do PDM pode verificar-se que o local é predominantemente agrícola, em RAN, não tendo capacidades edificativas …, uma vez que se trata de área definida no PDM, com área agrícola e não edificável (…). 9º Não obstante, entendeu a Exma. Sra. Perita que, “(…) o terreno incluído no artigo urbano ...05º, deverá, na opinião da perita ser considerado terreno apto para construção, uma vez que efetivamente se verifica a construção de uma moradia unifamiliar e anexos, legalizados.” 8º Salvo o devido e merecido respeito, o prédio em causa deve ser avaliado em conformidade com as normas legais vigentes. 9º Ou seja, se em sede de PDM o prédio está classificado como predominantemente agrícola, em RAN – é como prédio predominantemente agrícola que tem que ser avaliado. 10º Até porque, o donatário e os seus herdeiros de forma alguma estão relacionados com o facto de ter sido erigida uma edificação ilegal no terreno em questão, 11º Edificação, essa, sujeita a demolição nos termos legais, porquanto o licenciamento pode a todo o tempo ser objecto de pedido de declaração de nulidade e consequente demolição. 12º Tanto é do conhecimento de qualquer técnico de direito. 13º Salvo o devido e merecido respeito pela “opinião da perita ser considerado terreno apto para construção”, a classificação de um terreno em PDM é um critério objectivo na avaliação de qualquer terreno, 14º Não está sujeito a opiniões, 15º O que terceiros fizeram com um terreno classificado em RAN não diz respeito aos presentes autos, 16º A violação de normas de direito urbanístico por parte de terceiros não confere um maior valor/ ou um valor acrescentado ao prédio em questão, 17º Apenas sujeita a edificação e os donos da mesma a acções de declaração de nulidade, e consequente demolição com reposição do solo no estado anterior. 18º Quanto à VERBA B-2) - ARTIGO URBANO 22ºM, conclui o relatório pericial que o mesmo tem o valor de 157 340, 00 €, e para tanto recorre ao método comparativo – valor de mercado. 7º O facto é que o Exmo. Sr. Perito não documentou nos autos as amostras que serviram de base para calcular o valor de mercado do imóvel e traduzir o método comparativo. 8º Isto porque, o apartamento em questão tem 36 anos, não tem elevador, apenas escadas, e não tem lugar de garagem, no centro histórico da vila (local que não tem aparcamento por natureza), 9º Tudo, critérios objectivos de desvalorização da fracção avaliada. 10º Ora, a Reclamante nem sequer pode aferir da bondade do relatório, porquanto, as amostras indicadas pelo Exmo. Sr. Perito não se encontram documentadas, 18º Não nos parecendo razoável que nos dias que correm se contruam e vendam apartamentos sem lugar de garagem e sem elevador, 19º Características de qualidade e conforto que valorizam os imóveis, 20º E que, ao invés, a falta delas implica necessariamente uma desvalorização. 21º Acresce que, da certidão matricial extrai-se que o imóvel tem uma área privativa de 130, 00 m2, e que de área bruta dependente tem 00, 00 m2, 22º Ora, como é comummente sabido a área bruta dependente corresponde entre outras às varandas e terraços, 23º Que o imóvel em questão tem terraço a Reclamante não tem dúvidas, 24º Resta saber, porque o Exmo. Sr. Perito não o diz, qual é a área de terraço da fracção e como foi obtido o valor de 5 500, 00 € apenas para o terraço. 25º E falta saber se a área privativa é mesmo de 130, 00 m2 ou são 130, 00 m2 deduzida das áreas correspondentes às varandas e aos terraços? 26º Refere também o relatório pericial que a fracção é composta por quatro quartos. 27º Ora, uma área privativa de 130, 00 m2 corresponde normalmente a um T3. 28º A existência de quatro quartos numa área privativa tão reduzida implica necessariamente e actualmente o incumprimento do RGEU quanto às áreas mínimas obrigatórias para quartos duplos e quartos individuais. 29º Ora, do relatório pericial não se extrai as áreas relativas aos quartos e que quartos (individuais ou duplos), sendo certo que tais áreas são, sempre, factores de valorização e de desvalorização em qualquer apartamento. 30º Mais se diga, como a amostra que fundamenta o valor alcançado para a fracção não faz parte integrante do relatório notificado, nem sequer tão pouco é possível à Reclamante aferir se a amostra também padece de falta de elevador, de falta de lugar de garagem e provavelmente de incumprimento quanto às áreas mínimas obrigatórias de quartos. 31º Face ao supra exposto, o relatório pericial, não cumpre, pois o objecto da perícia. 32º E não permite, pois, uma conclusão cabal acerca do objecto da mesma, e que, por isso, não se pode aceitar, motivo pelo qual se deixa o seu conteúdo integralmente impugnado, nos termos do disposto no artigo 485º, n.º 2 do Código de Processo Civil. 33º Pelo que, devem os senhores peritos esclarecer em concreto os quesitos de que ora se reclama. 34º Subsidiariamente, caso assim não se entenda, pelos motivos supra explanados, que aqui se dão integralmente por reproduzidos, requer-se desde já a realização de uma segunda perícia nos termos do artigo 487º do Código de Processo Civil. 35º Requer, ainda, desde já, a comparência dos senhores peritos em audiência de julgamento para prestarem os esclarecimentos necessários, nos termos do artigo 486º, n.º 1 do Código de Processo Civil.” 11) Notificada dos esclarecimentos, a Interessada voltou a apresentar novo requerimento (datado de 07-03-2024 com a referência ...83) que infra se transcreve: “(…)1º Sumariamente, em sede de esclarecimentos, foi perguntado ao Exmo. Sr. Perito, quanto à VERBA B-1) - ARTIGO RÚSTICO N.º ...41... (ARTIGO ...) a razão de ser do identificado imóvel ter sido avaliado como terreno apto para edificação, quando no PDM o mesmo está classificado como área definida no PDM, como área agrícola e não edificável. 2º Por uma questão de economia processual dá-se aqui inteiramente o já alegado em 6º a 17º do anterior articulado de reclamação. 3º Não obstante, o facto é que não respondeu cabalmente aos esclarecimentos solicitados, nem afirma não o poder fazer, dizendo tão só: “A avaliação do terreno como apto para a construção foi assim considerada, uma vez 2 que efetivamente existe a construção com alvará de utilização emitido, como tal construção legalizada e já com o PDM atual em vigor. Por essa razão a perita o considera como terreno de construção, tendo-o avaliado como tal no seu lado norte, tendo por base o que são as técnicas de avaliação de imóveis. Se juridicamente há razões para contrariar as técnicas de avaliação, é fácil obter o valor da totalidade do terreno, como agrícola.” 4º Salvo o devido e merecido respeito que é muito, desconhece a Reclamante o que sejam “técnicas de avaliação”, isto porque, de acordo com os factos se um terreno está definido em PDM como RAN, é como terreno em RAN que deve ser avaliado. 5º E é do conhecimento geral que o preço do metro quadrado para batatas (que varia entre 1, 00 € e 3, 00 €) é muito diferente do preço do metro quadrado de terrenos aptos para construção. 6º Repete-se (!) se terceiros conseguiram uma licença de construção para um terreno apenas apto para fins agrícolas tanto não pode ser repercutido na esfera jurídica dos herdeiros, uma vez que os mesmos nada tiveram a ver com o referido licenciamento (legal ou ilegal). 7º Salvo mais douta opinião a conclusão do Exmo. Sr. Perito não é fundamentada com dados objectivos. 8º Quanto à verba B-2) Artigo urbano ...2º M entendeu o Exmo. Sr. Perito esclarecer: “Como nota prévia a perita gostava de salientar que a parte reclama que o valor atribuído à fração é elevado e curiosamente o cabeça de casal considera o valor 3 atribuído à fração baixo, sugerindo variáveis favoráveis no sentido de subir o valor da fração, situação curiosa, que só pode levar à conclusão que o valor atribuído a este prédio/fração pela perita é o valor adequado. A avaliação de um prédio não pode ser feita a pedido, mas tendo em conta as regras de avaliação, com as variáveis envolvidas. Com o devido respeito a perita considera que a solicitação da junção das amostras ao processo denota falta de confiança no trabalho da perita que foi muito. Elas estão indicadas no mapa comparativo, onde se podem ver os coeficientes de majoração e minoração tendo em conta cada uma das amostras. Para traduzir a homogeneização das amostras na utilização do método comparativo, só com um plano de formação específico sobre a matéria. A análise das amostras passa por expurgar o que é acessório e fazer interessar na avaliação tudo o que é afeto a área privativa, calculando-se assim o valor médio para essa área. Esse valor médio encontrado só se aplica à área privativa, ao qual deve ser acrescentado o valor correspondente às áreas dependentes, que neste caso seria o terraço. Quanto às áreas a considerar a perita só dispõe dos meios disponíveis, a partir dos dados da caderneta predial, que refere que a área bruta privativa é de 130 m2, que considerou como válida. Quanto à área do terraço ela sendo utilizada pela fração tem uma valorização, bem como garagens, varandas, alpendres etc, como áreas dependentes. Na formação em avaliação imobiliária a valorização destes elementos da construção é considerada, tendo por base o tipo de utilização e caraterísticas da construção, que para o terraço em apreço ela é de cerca de 5 500, Quanto à qualidade da construção mais recente das amostras usadas, que é referida no pedido de esclarecimentos, é óbvio que com caraterísticas e construção atuais o valor da fração não seria seguramente o indicado, mas muito superior. Por isso é que se faz a homogeneização das amostras nas variáveis mais importantes. Gostaria ainda de salientar que as partes não conseguiram autorização para inspeção do apartamento, porque informaram não ter o contacto dos atuais proprietários. Foi a perita que após várias deslocações ao local conseguiu por fim, encontrar o apartamento habitado e solicitar autorização para o poder inspecionar, o que com base na compreensão dos proprietários foi autorizado, depois de explicada a razão da sua presença.” 9º Posto isto cumpre dizer, toda a prova a produzir, e, como tal, também a pericial, se destina a demonstrar a realidade dos factos da causa relevantes para a decisão (artº 341º do Código Civil), sendo que a demonstração que se pretende obter com a prova se traduz na convicção subjetiva a criar no julgador. 10º Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção). 11º A prova pericial, com a especificidade de ter a mediação de uma pessoa - o Perito – para a demonstração do facto, consiste na perceção ou apreciação de factos pelo perito/s chamado a os percecionar (com os órgãos dos sentidos) e/ou a os valorar (à luz dos seus especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos), conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador. 12º Donde resulta que as conclusões apresentadas por qualquer perito para além de fundamentadas, devem ser compreensíveis e sindicáveis, tanto para o Julgador como para as partes. 13º As perícias não podem refugiar-se num limbo de amostras não documentadas (e consequentes majorações e minorações que ninguém entende) ou em pressuposições. Senão veja-se, 14º Em resposta à pergunta se a área privativa é mesmo de 130, 00 m2 ou são 130, 00 m2 deduzida das áreas correspondentes às varandas e aos terraços. 15º Referem os esclarecimentos que, “Quanto às áreas a considerar a perita só dispõe dos meios disponíveis, a partir dos dados da caderneta predial, que refere que a área bruta privativa é de 130 m2, que considerou como válida. 16º Salvo o devido e merecido respeito conforme se disse supra a prova pericial consiste na perceção ou apreciação de factos pelo perito/s chamado a os percecionar. 17º Ora, se da certidão matricial se extrai que o imóvel tem uma área privativa de 130, 00 m2, e que de área bruta dependente tem 00, 00 m2, logo daqui podemos tirar a conclusão que o terraço (commumente designado como área dependente, fiscalmente) já foi avaliado como área privativa ao preço de 1 168, 00 € o metro quadrado! 18º E para além desse valor, ainda foi acrescentado mais 5 500, 00 € porque não se cuidou de saber se a área referente ao terraço conforme foi declarado ao serviço de finanças está incluída na área privativa ou não. 19º Claro está, que se não foi possível ao Exmo.Sr. Perito percepcionar no acto de inspecção a área privativa da fracção e a área dependente, disso deveria ter dado conta ao Tribunal e às partes. 20º Porque, em causa, está apenas a avaliação de factos, não de pressuposições ou cadernetas prediais. 21º No mais, e conforme já foi referido anteriormente, o Exmo. Sr. Perito não documentou nos autos as amostras que serviram de base para calcular o valor de mercado do imóvel e traduzir o método comparativo. 22º Dando-se aqui integralmente por reproduzido o já alegado em anterior reclamação. 23º Conclui-se que, o relatório pericial, não cumpre, pois o objecto da perícia. 24º E não permite, pois, uma conclusão cabal acerca do objecto da mesma, e que, por isso, não se pode aceitar, motivo pelo qual se deixa o seu conteúdo integralmente impugnado, nos termos do disposto no artigo 587º, n.º 2 do Código de Processo Civil. 25º Salvo melhor opinião, a resposta dos senhores peritos em partes não existe, noutras é obscura ou deficiente, noutras é pura e simplesmente falaciosa, porquanto, não responde cabalmente aos quesitos, nem indicam não o poderem fazer. 26º Pelo que, devem os senhores peritos esclarecer em concreto os pontos de que ora se reclama e cujos esclarecimentos já foram doutamente ordenados. 27º Subsidiariamente, pelos motivos supra e abundantemente explanados, e pelos motivos constantes da anterior reclamação, que aqui se dão integralmente por reproduzidos, por uma questão de economia processual, requer-se desde já a realização de uma segunda perícia nos termos dos artigos 487º e 1114º do Código de Processo Civil, por forma a obter uma perícia válida, imparcial e coerente acerca dos factos quesitados, sugerindo-se desde já, como perito o Engenheiro GG.” 12) A Recorrente, fundamentamente, discorreu sobre as razões pelas quais discorda com o resultado plasmado no relatório pericial. É o que resulta por imperativo legal das disposições conjugadas dos artigos 487º e 489º do Código de Processo Civil. 13)Face ao supra exposto, apenas se pode concluir pela necessidade de uma segunda perícia, porque, no entendimento da Recorrente os primeiros peritos viram mal os factos e emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia, tendo que se lançar mão da segunda. 14)O objecto da segunda perícia coincide com o da primeira, isto é, com as questões de facto indicadas pelas partes (artigos 475º, n.º 1 e 476º, n.º 1 do Código de Processo Civil) ou de iniciativa oficiosa, a que o juíz a tenha circunscrito (artigo 476º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “in fine”). 15)“Tal não impede que, dentro desse objecto, outros factos, que a primeira perícia devesse ter considerado mas não haja considerado, sejam agora objecto de averiguação. A segunda perícia pode assim ter maior latitude do que quando, no regime anterior, o campo de intervenção dos peritos estava delimitado pelos quesitos que lhe eram formulados: embora a norma do n.º 3 do artigo 589º seja formalmente equivalente à do anterior artigo 609º, n.º 2, o seu conteúdo substancial sofreu a modificação decorrente da nova regra de apuramento do objecto da prova pericial”2. Com efeito, a lei processual, nas normas em causa, apenas se reporta a “alegação fundamentada das razões da discordância” do requerente, não impondo que estas sejam, ainda, razões de “convencimento” do próprio tribunal, sendo que, nos termos do n.º 2 do artigo 487º do Código de Processo Civil, considerando o juiz existirem razões a tal realização de segundo arbitramento deve ordenar a sua realização oficiosamente, independentemente da vontade e requerimento das partes, com vista ao apuramento da verdade, tendo sempre a segunda perícia por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta, sendo, ainda, que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal (artigo 489º do Código de Processo Civil). 16) No caso em apreço, a Recorrente apresentou requerimento para realização de segunda perícia colegial nos termos do artigo 487º e fundamentou de forma completa e especificada as razões da sua discordância relativamente aos resultados da primeira perícia. Cumpriu assim a Interessada o ónus de alegação fundamentada imposto pelo citado artigo 487º do Código de Processo Civil, e, assim, deve ser ordenada a realização da requerida segunda perícia nos termos do citado preceito. Com efeito, o preceito do n.º 3 do artigo 487º do Código de Processo Civil, ao referir que a segunda perícia se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia, compreende qualquer inexactidão que seja relevante ao nível dos resultados da perícia e possa influir no juízo de avaliação do tribunal. 17) O significa que tanto abrange as inexactidões verificadas ao nível da fundamentação, como as relativas à percepção dos peritos ou às conclusões a que chegaram com base nos seus conhecimentos especializados. - (Neste sentido cfr. com Acórdão da Relação de Guimarães datado de 20 de Abril de 2009, proferido no processo n.º 202665/05.8TBOAZ.P1). “A lei, no artigo 589º do Código de Processo Civil confere às partes a faculdade de requerer a segunda perícia, fazendo depender a sua realização, somente, do seu requerimento tempestivo e da explicitação das razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, não podendo o juiz basear o indeferimento deste requerimento por discordar das razões invocadas para a pretensão formulada.” – (Sublinhado nosso, vide in, www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 10 de Novembro de 2009). 18) E mesmo que o Tribunal “a quo” entendesse que o requerimento a peticionar a segunda perícia não se encontrava suficientemente fundamentado, “Não basta à parte requerer a realização de segunda perícia, sendo-lhe exigido que concretize os pontos que não encontra suficientemente esclarecidos na primeira, enunciando as razões por que entende que esse resultado deverá ser diferente. II - Quando tal não ocorra, fazendo uso dos poderes que são conferidos ao juiz pelo art.° 265°, n.°l e 2°, do C. P. Civil, deve ser proferido despacho de convite com vista à omissão da fundamentação do requerimento para segunda perícia e não indeferido de imediato esse pedido.- (Cfr. com Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 13 de Outubro de 2010). 19) O direito à prova exige que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa. Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (art.º 265º, nº 3, do Código de Processo Civil). 20) É fundamental encontrar o justo valor dos bens doados pelo autor da herança (e das benfeitorias eventualmente realizadas pelo donatário), pois só assim, com referência ao total apurado para o valor dos bens a herança, se pode calcular o valor da legítima de cada um dos herdeiros, averiguar a inoficiosidade das doações, proceder à sua eventual colação, com respeito pela legítima (art.º 2162º do Código Civil), atribuindo a cada interessado aquilo a que efetivamente tiver direito. 21) Ainda ao contrário do que parece defender a 1ª instância, o objeto da perícia não é o seu resultado, mas o conjunto de factos sobre os quais recai tal meio de prova, ou, mais rigorosamente, no caso, por de uma avaliação se tratar, a determinação do valor de determinados bens, com resposta técnica à questão da avaliação suscitada. É justamente o facto de o interessado ter produzido fundamentação escrita que pode levar a conclusões diversas das que foram apresentadas pelo Sr. perito avaliador no relatório pericial em crise, que pode justificar a segunda avaliação dos bens. 22) E o tribunal a quo reconhece a existência dessa fundamentação, indeferindo-a, contudo, usando de argumentação, que salvo mais douto entendimento, não merece acolhimento. 23) Sobre esta questão existe abundante jurisprudência: Acórdão da Relação de Guimarães, de 20.05.2010, na Colectânea de Jurisprudência, 2010, 3º tomo, página 281 (Sumário): “I. É condição do deferimento da realização da 2ª perícia a sua fundamentação, através da alegação das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado. II- Sendo o requerimento devidamente fundamentado, não pode ser indeferida a 2ª perícia, por se discordar das razões invocadas.”. Acórdão da Relação de Guimarães de 22.06.2010, no processo 1282/06.0 – AVCT-G.1: “ … é hoje condição de deferimento do pedido de realização de 2ª perícia a alegação fundamentada das razões de discordância relativamente aos resultados da 1ª perícia, e, tal alegação especificada é o único requisito legal do requerimento em causa a formular nos termos do art. 589º do CPC.”. 24) Ao contrário do decidido na decisão recorrida – conforme se extrai da citada jurisprudência pacífica, mais conforme com a letra e o espírito da norma interpretada – devia ter sido ordenada a realização da segunda perícia. 25) A requerente pediu esclarecimentos que os senhores peritos tentaram satisfazer mas, insistindo a requerente em novos esclarecimentos, agora através de nova perícia, não há razão legal para indeferir. E a eventual prestação de esclarecimentos em audiência de julgamento não substitui, porque substancialmente diferente, a realização de uma segunda perícia por um diferente perito, como impõe a alínea a) do artigo 488º do actual Código de Processo Civil. 26) Não tendo sido realizada a requerida segunda perícia verifica-se a omissão de um acto que devia ter sido praticado, omissão esta susceptível de influir no exame ou decisão da causa, a impor a prática desse acto e a anulação de todo o processado posterior que dela dependa em absoluto – n.ºs 1 e 2, do artigo 195º do actual Código de Processo Civil. MAIS, 27)“Atendendo ao disposto no art. 1109.º, a decisão do juiz sobre as questões controvertidas pode ser precedida da realização de uma audiência prévia, nomeadamente quando o juiz considere possível a obtenção de um acordo dos interessados sobre alguma daquelas questões. Frustrado, no entanto, este acordo, passa-se à produção da prova requerida pelas partes ou determinada ex officio (art. 411.º) e à posterior decisão do juiz (n.º 3 do artigo 1105º). Esta decisão, se não for tomada imediatamente (n.º 3), incluir-se-á na fase de saneamento do processo de acordo com o disposto no art. 1110.º, n.º 1, al. a), que se reporta à resolução, nesse momento, de todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar. Considerando a natureza da questão controvertida ou a complexidade da matéria de facto a ela subjacente, o juiz pode determinar a remessa das partes para os meios comuns (n.º 3; cf. →arts. 1092.º e 1093.º).” (Negrito e sublinhado nosso, vide in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, página 88). 28)“O artigo [1110º] corresponde, com alterações relevantes, aos arts. 1352.o e 1373.o CPC/61 e aos arts. 47.o e 57.o RJPI. O artigo institui uma fase de saneamento no processo de inventário. Nesta fase, após a realização das diligências instrutórias que forem necessárias (cf. arts. 1105.º, n.º 3, e 1109.º, n.º 3), o juiz profere despacho em que resolve todas as questões que são susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (art. 1110.º, n.ºs 1, al. a), e 2, al. a)) e em que ordena a notificação dos interessados para a conferência de interessados (n.ºs 2, al. b), 3, 4 e 5). Quanto àquelas questões, trata-se, nomeadamente, para além das que possam ser suscitadas oficiosamente, das que sejam controvertidas como consequência de oposição, impugnação ou reclamação que, no exercício do respectivo contraditório, tenha sido deduzida e respondida pelos interessados na subfase da oposição (cf. arts. 1104.º e 1105.º). Como resulta do disposto nos n.ºs 1, al. a), e 2 caput, o despacho saneador – e, em consequência, a fase de saneamento – comporta duas subfases: a) Uma – que pode ser denominada como subfase preparatória da forma da partilha –, na qual cabe ao juiz não só decidir todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (n.º 1, al. a)), mas também ordenar a notificação dos interessados e do MP para apresentarem propostas de forma da partilha (n.º 1, al. b)). b) Uma outra – que pode ser designada como subfase preparatória da conferência de interessados –, na qual, findo o prazo para a apresentação das propostas, o juiz profere o despacho sobre a forma da partilha (n.º 2, al. a)), designa o dia para a conferência de interessados (n.º 2, al. b)) e ordena a citação de todos os interessados (n.ºs 3, 4 e 5). Como decorrência da imposição de um ónus de concentração das oposições, impugnações e reclamações (arts. 1104.º a 1106.º), o despacho de saneamento vai incidir sobre todas as questões que são relevantes para a realização da partilha e que tenham sido suscitadas no momento próprio na fase dos articulados.” (Negrito e sublinhado nosso, vide in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, página 101). 29) Em sede de reclamação à relação de bens foi requerida pela Interessada EE a inquirição de pelo menos duas testemunhas quanto à matéria controvertida nos autos. Foi, ainda, requerida pela Interessada a audição do perito nos termos do artigo 486º do Código de Processo Civil. 30) Quanto à inquirição requerida, ainda não existe pronuncia/decisão desse Tribunal. – (Cfr. com acta datada 12 de Maio de 2023). O mesmo acontecendo com a requerida audição do perito nos termos do artigo 486º do Código de Processo Civil. 31) Ora, determina o artigo 1105º do CPC que: “1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada. 3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º” – (Negrito e sublinhado nosso). 32) Determina o 1110º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC que: “1 - Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; b) Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha.” – (Negrito e sublinhado nosso). 33) Ora, sempre salvo o devido e merecido respeito por mais douta opinião, tendo sido ordenada a notificação das partes nos termos e para os efeitos do artigo 1110º, n.º 1, alínea b) do CPC, ficou por concluir a INSTRUÇÃO da reclamação à relação de bens. 34) Ora, tendo sido omitido um acto ou formalidade que a lei prescreve (violação do disposto nos artigos 1105º, n.º 3 e 1110º, n.º 1, todos do CPC: instrução do processo com a inquirição de testemunhas oportunamente requerida e audição do perito nos termos do artigo 486º do CPC) que influi directamente na decisão da causa (implica a não produção de um meio probatório, o que, definitivamente, influencia a boa decisão da causa), deverá ser declarada a sua nulidade ex vi do artigo 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil. O que desde já se invoca para todos os efeitos legais. 35) Assim, a decisão proferida violou nomeadamente, o disposto nos artigos 195º, 265º, 487º, n.º 1 e 489°, 1105º, 1110º todos do Código de Processo Civil, e o artigo 389º do Código Civil, pelo que deve ser revogada e, consequentemente, anulado tudo o que vier a ser processado posteriormente.
Assim se espera, venerandos Desembargadores, por ser de Justiça».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...23).
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, por despacho do ora relator foi determinada a devolução do processo, a título devolutivo, ao tribunal “a quo” com vista à fixação do valor da causa, nos termos e para os efeitos do disposto n.º 3 do art. 306º do CPC (ref.ª ...97).
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Fixado o valor da causa (ref.ª ...43), os autos foram novamente remetidos a este Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objeto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:
i) Da(s) nulidade(s) processual(is);
ii) Da admissibilidade da realização da segunda perícia.
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III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto.
As incidências fáctico-processuais a considerar para a decisão da reclamação são as descritas no relatório antecedente, que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos, a que acrescem os seguintes factos:
1. A 20/11/2024, foram inquiridas as duas testemunhas arroladas pela reclamante EE em sede de reclamação à relação de bens (ref.ª ...71).
2. Por despacho de 27/11/2024, foi reconhecido o lapso quanto ao não pronunciamento da audição da Sra. Perita requerida pela interessada EE, tendo sido agendado o dia 20/12/2024 para a sua audição (ref.ª ...23).
3. No dia 20/12/2024, teve lugar a audição da Sra. Perita, tendo sido interrompido o seu depoimento e agendada a sua continuação para o dia 30-01-2025 (ref.ª ...77).
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V. Fundamentação de direito
1. Da(s) nulidade(s) processual(is).
A recorrente invocou a nulidade processual por, na sua óptica, ter ficado por concluir a instrução da reclamação à relação de bens.
Isto porque, resumidamente, refere que, em sede de reclamação à relação de bens, a ora recorrente requereu a inquirição de, pelo menos, duas testemunhas quanto à matéria controvertida nos autos, tendo ainda requerido a audição do perito nos termos do art. 486º do CPC.
Quanto à inquirição requerida, ainda não existe pronúncia/decisão do Tribunal, o mesmo acontecendo com a requerida audição do perito.
Ora, tendo sido ordenada a notificação das partes nos termos e para os efeitos do art. 1110º, n.º 1, alínea b) do CPC, conclui ter ficado por concluir a instrução da reclamação à relação de bens, o que constitui a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve (violação do disposto nos arts. 1105º, n.º 3 e 1110º, n.º 1, todos do CPC: instrução do processo com a inquirição de testemunhas oportunamente requerida e audição do perito nos termos do art. 486º do CPC), que influi directamente na decisão da causa, consubstanciando uma nulidade nos termos do art. 195º, n.º 1, do CPC.
Como é sabido, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa dos actos processuais”[1], na medida em que os actos processuais são actos instrumentais que se inserem na complexa unidade de um processo, de tal sorte que cada acto é, em certo sentido, condicionado pelo precedente e condicionante do subsequente, repercutindo-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em risco a justiça da decisão[2].
Porém, como refere Alberto dos Reis[3], há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos.
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos arts. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e, por sua vez, as irregularidades (nulidades secundárias, atípicas ou inominadas) estão incluídas na previsão geral do art. 195º do CPC.
Atento o disposto no referido art. 195º e segs. do CPC, as nulidades processuais (inominadas) podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Não se trata de vícios que respeitem ao conteúdo do acto, mas tão só de vícios atinentes à sua existência ou formalidades[4].
Tais irregularidades só determinam a nulidade do processado a) quando a lei assim expressamente o declare ou b) quando o vício cometido possa influir no exame ou na decisão da causa (ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento)[5].
E se o primeiro caso não levanta dúvidas, no segundo caso é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa[6].
Este sistema remete o juiz para uma análise casuística, suscetível de só invalidar o acto que não possa, de todo, ser aproveitado, sendo certo que a nulidade de um acto acarreta a invalidação dos actos da sequência processual que daquele dependam absolutamente[7].
A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo, sim, de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada era suscetível de influir no exame ou na decisão da causa.
No caso em apreço, o primeiro dos fundamentos da impugnação que a recorrente deduz contra o despacho impugnado no recurso, na parte em que indeferiu a realização da segunda perícia, é o da sua nulidade processual.
Argumenta para o efeito que, “não tendo sido realizada a requerida segunda perícia, verifica-se a omissão de um acto que devia ter sido praticado, omissão esta susceptível de influir no exame ou decisão da causa, a impor a prática desse acto e a anulação de todo o processado posterior que dela dependa em absoluto – n.ºs 1 e 2, do artigo 195º do actual Código de Processo Civil”[8]. Mais refere que “a não realização de segunda perícia poderá ser susceptível de influenciar a decisão da causa, o que constitui nulidade que inquina os termos subsequentes ao despacho que a indeferiu”.
Sucede que este modo de pensar esquece, desde logo, que os despachos, à inteira imagem da sentença, possuem um regime específico e peculiar de nulidade, que apresenta especialidades salientes, designadamente no plano da sua impugnação (arts. 615º, 613º, n.º 3, 666º, n.º 1 e 685º do CPC).
Por outro lado, não toma em devida conta que uma coisa é a prática de um acto que não é permitido por lei ou a omissão um acto imposto, outra, bem diferente, é a violação primária da lei processual, decorrente, designadamente, de um erro na subsunção, i.e., na integração ou inclusão dos factos apurados na previsão da norma aplicável ao caso concreto, como sucede, por exemplo, quando o tribunal indefere o requerimento de realização da segunda perícia por, erroneamente, julgar que o requerente dessa prova não alegou, de forma fundamentada e concludente, as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
E é esse, segundo a alegação da recorrente, justamente a espécie objecto do recurso. O caso não é nitidamente de nulidade secundária, mas de um erro na aplicação da lei processual[9].
Resta, por conseguinte, saber se a decisão impugnada incorreu num tal erro (o que será feito ulteriormente).
Um outro dos fundamentos da invocada nulidade processual prende-se com a alegada falta de conclusão da instrução da reclamação à relação de bens.
O referido fundamento, porém, mostra-se já ultrapassado e sanado.
Isto porque, não obstante ter determinado a notificação dos interessados nomeadamente nos termos e para os efeitos do estatuído no art. 1110º, n.º 1, al. b), do CPC (despacho de 13/06/2024 - ref.ª ...47), a Mm.ª Juíza “a quo” apercebendo-se, entretanto, dos meios probatórios requeridos pela interessada EE no âmbito da reclamação à relação de bens agendou e inquiriu, a 20/11/2024, as duas testemunhas arroladas pela reclamante (ref.ª ...71), bem como tomou esclarecimentos presenciais ao perito, a 20/12/2024, os quais continuarão a 30-01-2025 (ref.ªs ...23 e ...77).
O que significa que, mostrando-se já suprida a invocada nulidade, é de concluir pela sua prejudicialidade.
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2. Da admissibilidade da realização da segunda perícia.
Insurge-se a apelante contra a decisão que indeferiu o seu requerimento a solicitar a realização de uma segunda perícia, pugnando pela sua admissão,porquanto, entende, os fundamentos por si invocados e as razões da discordância em relação à primeira perícia são pertinentes.
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341º do Código Civil/CC).
Segundo o estatuído no art. 388° do CC, a «prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial».
Esta prova tem como figura central o perito que se distingue da testemunha, pois enquanto esta descreve as suas perceções sobre factos passados, o perito serve-se de princípios científicos, de critérios artísticos, de máximas de experiência para fazer valer a sua apreciação ou valoração dos factos passados ou presentes, valoração que constitui precisamente o ato característico da prova pericial[10].
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação/inspeção de factos não ao alcance direto e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor[11].
A prova pericial pode visar a perceção indiciária de factos por inspecção de pessoas (ex., exame médico-legal) ou de coisas, móveis ou imóveis (ex., exame duma máquina ou vistoria dum prédio), como a determinação do valor das coisas ou direitos (ex., determinação do valor dum prédio ou duma quota social), ou ainda a verificação da origem dum documento (ex., assinatura, letra, data, genuinidade, alteração), a revelação do seu conteúdo (ex. os livros e documentos da escrita comercial)[12].
A prova pericial é livremente apreciada pelo tribunal (art. 389º do CC e arts. 489º e 607.º, n.º 5 do CPC), não estando o mesmo, por isso, adstrito às asserções e conclusões dessa perícia[13].
O procedimento da prova pericial em juízo mostra-se regulado pelos arts. 467º a 489º do CPC.
A perícia pode ser oficiosamente ordenada pelo juiz ou requerida por qualquer das partes (art. 467º, n.º 1, do CPC).
Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objeto da perícia (n.º 1 do art. 476.º do CPC).
O resultado da perícia é expresso num relatório, no qual o perito – se a perícia for singular – ou peritos – se a perícia for colegial – se pronunciam, fundamentadamente, sobre o respetivo objecto (art. 484º, n.º 1, do CPC).
A apresentação do relatório da perícia é notificada às partes, que podem reclamar, se entenderem que há nele qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou que as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas (art. 485º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
A reclamação é o meio de reacção conferido às partes contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou ainda falta de fundamentação suficiente detectadas no relatório pericial e visa levar os peritos, que o elaboraram, a completá-lo, a esclarecê-lo, a dar-lhe coerência ou a fundamentá-lo.
Os peritos poderão ser chamados, quer a pedido das partes, quer quando oficiosamente for determinado pelo tribunal, a prestar em audiência final, os esclarecimentos que forem julgados pertinentes [arts. 486º e 604º, n.º 3, al. c), do CPC].
No entanto, as ditas prerrogativas/faculdades (de reclamar ou de requerer a comparência dos peritos em julgamento) não podem ser fundamento para negar a realização de uma segunda perícia (requerida nos termos e com respeito pelas exigências dos arts. 487º a 489º do CPC)[14][15].
Prevendo acerca da realização da segunda perícia, prescreve o art. 487º do CPC que “[q]ualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” (n.º 1)[16]; o “tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade” (n.º 2); “a segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta” (n.º 3).
A segunda perícia não é uma nova perícia. Dado que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta, a segunda perícia é a repetição da primeira[17][18]. Pretende-se “com o segundo exame ou com a segunda vistoria submeter á averiguação e apreciação dos peritos precisamente os mesmos factos que se tratou de averiguar e apreciar no primeiro”, configurando-se assim “da essência do segundo arbitramento a repetição da diligência já realizada”[19].
O que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados. Parte-se do princípio que o primeiro perito ou os primeiros peritos viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia é que se lança mão da segunda[20]. Dito por outras palavras, a finalidade da segunda perícia abrange a possibilidade, não só de corrigir a eventual inexatidão (ou deficiência) das percepções dos peritos ou das conclusões baseadas nos seus conhecimentos especializados, mas também de obter uma apreciação ou justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia anterior[21].
No tocante ao seu valor, a segunda perícia não inutiliza ou invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal (art. 489º do CPC). Ambas subsistem, lado a lado, não se substituindo o resultado da segunda perícia ao da primeira. O tribunal aprecia livremente uma e outra, segundo as circunstâncias e as demais provas que se produzirem. O princípio da liberdade da prova funciona plenamente, tanto em relação à primeira como em relação à segunda.
Sendo uma repetição da primeira quanto ao seu objeto, a segunda perícia é mais um meio de prova, que servirá ao tribunal para melhor esclarecimento dos factos, em livre apreciação e que tanto mais se justificará quanto a primeira não tenha sido totalmente esclarecedora de questões técnicas complexas e quanto mais os peritos tenham sido discrepantes[22]
Conforme resulta inequivocamente do n.º 1 do citado art. 487º do CPC, exige-se que, para além da discordância com a primeira perícia, o requerente da segunda perícia alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
A segunda perícia não constitui uma instância de recurso, visando, sim, “fornecer ao tribunal novos elementos relativamente aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art. 488º-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial”[23].
Preconizando uma posição mais exigente, Lopes do Rego[24] escreve que “a realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, pressupondo que a parte alegue, de modo fundamentado e concludente, as razões porque discorda do relatório pericial apresentado (ou da opinião maioritária vencedora)”.
Nos termos do citado acórdão do STJ de 25/11/2004 (relator Ferreira de Almeida), in www.dgsi.pt., a«expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões da dissonância tenham de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira».
O objetivo a alcançar com a exigência de fundamentação das razões de discordância é evitar segundas perícias desnecessárias, inúteis e dilatórias, exigindo a lei, para o evitar, a especificação, a concretização, dos pontos de facto não cabalmente esclarecidos na primeira perícia e a indicação das razões do entendimento de dever o resultado da perícia ter sido diferente, tendo o requerente de indicar os pontos de discordância, isto é, as inexatidões a corrigir e justificar a possibilidade de uma diversa apreciação técnica[25].
Salientam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[26] não caber «ao tribunal aprofundar o bem ou o mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia (RP 10-7-13, 1357/12 e RE 18-9-12, 4162/09). Fundamentando o requerente as razões da sua discordância face ao resultado da primeira perícia, a lei não permite ao juiz uma avaliação de mérito da argumentação apresentada como suporte da divergência, devendo o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem caráter impertinente ou dilatório (RP 11-1-16, 4135/14)».
A“procedência das razões invocadas pela parte só poderão ser sindicadas depois de realizada a segunda perícia”[27], pelo que, conquanto se mostrem explicitadas, de modo fundamentado, as razões da discordância ou inexactidões, não caberá ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação da parte como suporte da divergência, “embora já possa indeferir o requerimento com fundamento no carácter impertinente ou dilatório da segunda perícia”[28].
Como assertivamente se decidiu no Ac. da RP de 4/04/2024 (relator Aristides Rodrigues de Almeida), in www.dgsi.pt. «o que a lei exige é a alegação fundada das razões da discordância, não é a alegação de ter razões fundadas para discordar. A parte não tem que (expor razões para) convencer o tribunal que existem boas (fundadas) razões para pensar que o relatório apresentado possui (muito provavelmente) resultados errados. O que a parte tem de fazer é expor de forma fundada as razões da sua discordância, isto é, dizer com que aspecto não concorda, porque não concorda, que motivo torna verosímil que o resultado deva ou possa ser diferente do indicado no relatório apresentado».
Acrescenta o citado acórdão: «Não havendo no nosso sistema legal, com excepção do âmbito das perícias médico-legais, um modelo institucional para validar de forma sistemática as competências técnico-científicas das pessoas que são chamadas a exercer as funções de perito, não obstante elas sejam chamadas a apurar ou apreciar factos que exigem «conhecimento especiais» que os juiz não possui e para cujo julgamento a sua dependência da palavra dos peritos é enorme, mas também não correspondendo o nosso sistema ao modelo dos peritos das partes (…), a natureza equitativa do processo tem de compreender um amplo direito à prova e a faculdade de a parte só porque discorda do relatório pericial apresentado poder pedir a realização da segunda perícia para ao menos conseguir colocar ao lado daquele um relatório de outros peritos (…). Por conseguinte, se a lei só exige que o pedido da segunda perícia seja formulado num requerimento em que a parte indique a sua discordância e os motivos reais, objectivados e concretos, pelos quais discorda, é precisamente o direito à prova e o dever de não o cercear desproporcionadamente que impede o indeferimento do requerimento a não ser que esse meio de prova seja manifestamente dilatório ou impertinente (o que, aliás, é difícil de configurar porque se a primeira perícia não o foi, dificilmente o será a segunda, a não ser que os factos sob julgamento tenham entretanto sido demonstrados por um meio de prova plena – v.g. confissão – ou deixado de ser relevantes para o julgamento da acção)».
Podemos, assim, concluir que do actual quadro legal – designadamente o disposto no art. 487º do CPC – resulta constituir “condição de deferimento do pedido de realização de segunda perícia a alegação fundamentada das razões de discordância relativamente aos resultados da primeira perícia e, ainda, que tal alegação especificada é o único requisito legal do requerimento em causa a formular nos termos do citado artº. 487º do NCPC”, não se constituindo assim as razões da discordância do requerente “razões de [convencimento] do próprio Tribunal”[29].
Centremos agora a atenção no caso.
Está em causa um processo especial de inventário para cessação de comunhão hereditária e partilha de bens por óbito de BB e de CC, falecidos, respetivamente, a ../../2019 e ../../2009.
Nos termos propugnados pela recorrente, é fundamental encontrar o justo valor dos bens doados pelo autor da herança (e das benfeitorias alegadamente realizadas pelo donatário), pois só assim, com referência ao total apurado para o valor dos bens a herança, se pode calcular o valor da legítima de cada um dos herdeiros, averiguar a inoficiosidade das doações, proceder à sua eventual colação, com respeito pela legítima (art. 2162º do Código Civil), atribuindo a cada interessado aquilo a que efetivamente tiver direito.
No caso, tendo sido requerida prova pericial com vista à avaliação dos imóveis e das benfeitorias relacionados no processo de inventário e junto aos autos o respectivo relatório, a interessada EE (bem como, autonomamente, o cabeça de casal DD) apresentou reclamação, denunciando incorrecções e deficiências do mesmo, requerendo, simultaneamente, a realização de uma segunda perícia, especificando os pontos sobre os quais discorda do relatório da primeira perícia, e apontando e concretizando as razões da sua discordância com o resultado vertido no relatório pela senhora perita nomeada.
Prestados esclarecimentos pela Sra. Perita, a interessada insiste na realização da segunda perícia já antes requerida, voltando a expor com detalhe as razões da sua discórdia com o resultado da primeira perícia realizada, nomeadamente os critérios avaliativos e a metodologia seguidos pela perita autora da diligência.
Em qualquer dos requerimentos formulados nos autos para requerer a realização de uma segunda perícia a interessada EE, ora recorrente, não se limita a expressar a sua discordância com os resultados obtidos na primeira perícia, antes expõe e concretiza as razões dessa dissidência, objectivando-as, apontando incongruências várias aos critérios adoptados pela perita, com repercussões no resultado final obtido, não traduzindo, no seu entendimento, as avaliações dos imóveis e das benfeitorias o real e efectivo valor dos mesmos.
Os requerimentos em que a dita interessada formula pedido de realização de uma segunda perícia identificam não só as divergências com os resultados da primeira diligência concretizada, especificando os pontos sobre que discorda do relatório da primeira perícia, por forma a delimitar o objecto da segunda, como justificam a não conformação com os mesmos, indicando os motivos pelos quais discorda. Acresce não lhe ser exigível que demonstre ou sustente o eventual sucesso do resultado que prende obter, tanto mais que este dependerá, necessariamente, da realização da nova perícia.
Assim, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, os pedidos de realização de uma segunda perícia acham-se suficientemente fundamentados, não podendo concluir-se que a determinação da diligência consubstancie a produção de uma diligência dilatória e inútil que apenas iria prolongar os presentes autos, não sendo igualmente legítimo antecipar qualquer juízo quanto ao resultado da diligência requerida para justificar o seu indeferimento.
Especificamente, quanto à verba b-1) - ARTIGO RÚSTICO N.º ...41... (artigo ...), questiona o facto de o identificado prédio ter sido avaliado como terreno apto para construção, quando no PDM o mesmo está classificado como área agrícola e não edificável, em RAN.
Sucede que a sr.ª perita, no relatório apresentado, omite por completo a hipótese do prédio não dever ser avaliado como apto para construção, mas sim para outros fins. Ao invés do que seria curial, e porque a qualificação do referido prédio como sendo apto para construção ou para outros fins envolve uma questão jurídica a extrair da concreta facticidade apurada, a sra. Perita nem sequer aquilatou a possibilidade de se poder vir a concluir que o referido prédio, por força legal, não reúne as condições para poder ser classificado e avaliado como apto para construção. Ou seja, limitou-se a proceder à sua avaliação como terreno apto para construção, mas desconsiderou por completo a hipótese daquele prédio poder vir a ser classificado e avaliado como "solo para outros fins".
Ora, à semelhança do que sucede nas expropriações, a classificação do solo numa das categorias da lei é clara actividade jurisdicional. Ao sr. perito compete recolher e fornecer elementos que permitam ao julgador operar essa classificação.
Para tanto é necessário que o sr. perito encare as várias hipóteses de classificação do terreno, procedendo aos cálculos em qualquer dos casos, mesmo que, a seu ver, o prédio se inclua em categoria que dispensa tais cálculos.
Venha o terreno a ser classificado como apto para construção ou para outros fins, lá deverão estar os elementos todos no relatório, a fim de permitir formular esse juízo jurídico quanto à sua qualificação/classificação.
Por outro lado, quanto à Verba B-2) - Artigo Urbano 22ºM, o relatório pericial concluiu que o mesmo tem o valor de 157 340, 00 €, e para tanto recorreu ao método comparativo - valor de mercado -, contudo a recorrente aponta o facto de a Sra. Perita não documentar nos autos as amostras que serviram de base para calcular o valor de mercado do imóvel e traduzir o método comparativo.
Acresce que da certidão matricial extrai-se que o imóvel tem uma área privativa de 130,00 m2, e que de área bruta dependente tem 00,00 m2, pelo que tendo o imóvel em questão terraço, a recorrente critica o facto do relatório não dizer qual é a área de terraço da fracção e como foi obtido o valor de 5.500,00 € apenas para o terraço. Além de que fica por saber se a área privativa é mesmo de 130,00 m2 ou são 130,00 m2 deduzida das áreas correspondentes às varandas e aos terraços.
Do relatório pericial não se extrai as áreas relativas aos quartos e que quartos (individuais ou duplos), sendo que as respetivas áreas são factores de valorização e de desvalorização em qualquer apartamento.
Ademais, quanto às áreas a considerar, a sra. Perita referiu só dispor dos meios disponíveis a partir dos dados da caderneta predial, que refere que a área bruta privativa é de 130m2, que considerou como válida.
Ora, como refere a recorrente, não tendo sido possível à Srª. Perita percecionar no acto de inspeção a área privativa da fração e a área dependente, disso deveria ter dado conta ao tribunal e às partes, a fim de lhe ser facultado o acesso ao referido prédio, com vista à avaliação concreta e objetiva do prédio, e não com base apenas na caderneta predial.
Face ao apurado quadro fáctico e adjectivo, poder-se-á assim concluir que os dados em presença apontam para a dúvida sobre se a sra. Perita teve acesso a todos os elementos relevantes para a realização da perícia e, também por esse motivo, para a eventual inexactidão dos resultados alcançados, o que, de per si, acaba por tornar necessária ou conveniente a realização de uma segunda perícia.
Dúvidas e objeções que, atento o enquadramento legal efectuado, parecem ser suficientes e bastantes para justificar a realização da segunda perícia, não se podendo afirmar, sem margem para quaisquer dúvidas, que o pedido é de todo injustificável, impertinente ou dilatório.
Em face disso, não se subscreve a afirmação de que a interessada se limita «a colocar em causa o método utilizado pela Sra. Perita e o valor pela mesma atribuído aos bens, discordando dos trâmites seguidos pela Técnica». Tão pouco poderá concluir-se que aquele requerimento não apresenta razões concludentes de discordância das razões periciais ou que a motivação apresentada pela interessada não consubstancia a “alegação fundada das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado, de forma a justificar a realização de uma segunda perícia”.
Donde, e sem quebra de respeito por divergente opinião, afigura-se-nos ter a apelante cumprido aquele mínimo de fundamentação das razões da sua discordância relativamente ao relatório obtido pela primeira perícia efectuada e que no seu entender justificam ou tornam conveniente a realização de uma segunda perícia, assim cumprindo o ónus de alegação fundamentada imposto pelo citado n.º 1 do art. 487º do CPC.
Importa, no entanto, referir que a procedência do recurso não é extensível ao concreto pedido de perícia colegial.
Do disposto no art. 488º, al. b), do CPC, extrai-se que a segunda perícia será realizada sob a forma colegial de forma obrigatória, apenas quando a primeira também o tiver sido.
Como tal a segunda perícia será realizada sob a forma singular, por outro perito que não a autora do primeiro relatório elaborado [cfr. arts. 488º, al. a) do CPC].
O que determina a procedência parcial do recurso interposto pela interessada EE, devendo os autos prosseguir com a realização da segunda perícia, sob a forma singular, que não invalida a primeira, devendo ser ambas, conforme prescreve o art. 489º do CPC, objecto de livre apreciação por parte do Tribunal.
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VI. - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, na procedência parcial da apelação, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine a realização da segunda perícia, sob a forma singular.
Custas: as custas do recurso serão suportadas pela recorrente, por tirar proveito da decisão, não havendo lugar à sua condenação em custas de parte ou procuradoria por não ter sido apresentada resposta às suas alegações (art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
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Guimarães, 16 de janeiro de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Carla de Sousa Oliveira (1ª adjunta)
Maria Luísa Duarte Ramos (2ª adjunta)
[1] Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 176. [2]Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, p. 103. [3]Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 357. [4]Cfr.Lebre de Freitas, Introdução Ao Processo Civil - Conceitos e Princípios Gerais À luz do Novo Código, 4ª ed., Gestlegal, 2017, p. 24. [5] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, 2017, p. 401. [6] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pp. 484/485. [7] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, Almedina, p. 235. [8] Cfr. 26) e 7) conclusões da apelação. [9] Seguimos de perto, na exposição que antecede, a fundamentação do Ac. da RC de 24/04/2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt. [10] Cfr. Alberto do Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, reimpressão, 1987, Coimbra Editora, p. 181. [11] Cfr. Ac. do STJ de 25/11/2004 (relator Ferreira de Almeida), in www.dgsi.pt. [12] Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 475. [13] Cfr. Acs. do STJ de 6/07/2011 (relator Hélder Roque) e de 12/05/2011 (relator Granja da Fonseca) e Ac. da RC de 24/04/2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt. [14] Cfr. Ac. da RP de 10/07/2013 (relator Fonte Ramos) e Ac. RL de 02/11/2017 (relator Arlindo Crua), ambos consultáveis in www.dgsi.pt. [15] A reclamação ao relatório pericial e a segunda perícia correspondem a mecanismos processuais completamente distintos e inconfundíveis, quanto aos respectivos pressupostos e finalidades, com objectivos diversos, visando a primeira que o(s) perito(s) que a elaborou(raram) a corrijam ou completem, ao passo que a segunda é o meio de reacção contra a inexactidão do resultado da primeira perícia e procura que outros peritos confirmem essa inexactidão e a corrijam. [16] O referido prazo conta-se a partir da notificação do relatório pericial (art. 485º, n.º 1, do CPC), mas, se houver reclamações contra o relatório (n.º 2 do mesmo artigo), conta-se da notificação do relatório complementar [cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 390 (nota 927)].
Não sendo a reclamação atendida, ou, sendo-o, não se mostrando sanados os vícios de que pudesse aquele relatório padecer, podem as partes, na primeira daquelas hipóteses, impugnar a decisão que indeferiu a reclamação e, em qualquer dos casos, requerer a realização de segunda perícia, a qual, independentemente da faculdade de reclamação, pode logo ser requerida na sequência da notificação do relatório pericial inicial, no prazo fixado no n.º 1 do art. 487.º do CPC [cfr. Ac. da RP de 6.06.2024 (relatora Judite Pires) in www.dgsi.pt.]. [17] Cfr. Ac. da RC de 24/04/2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt. [18] Tal não impede que, dentro desse objeto, outros factos, que a primeira perícia devesse ter considerado mas não haja considerado, sejam agora objeto de averiguação, podendo, assim, a segunda perícia ter uma maior latitude (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 343). [19] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, 1987, pp. 297 e 299. [20] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 297 e Ac. da RC de 24/04/2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt. [21] Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 599. [22] Cfr. Fernando Pereira Rodrigues, Os Meios de Prova em Processo Civil, 2015, Almedina, p. 151. [23] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, p. 342. [24] Cfr. Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., 2004, Almedina, p. 509. [25] Cfr. Ac. da RP de 27/01/2020 (relatora Eugénia Cunha), in www.dgsi.pt. [26] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, Almedina, p. 547. [27] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, p. 342. [28] Cfr. Ac. da RP de 10/07/2013 (relator Fonte Ramos) e Ac. RL de 02/11/2017 (relator Arlindo Crua), ambos consultáveis in www.dgsi.pt. [29] Cfr. Ac. da RG de 14/04/2016 (relatora Maria Cristina Cerdeira), in www.dgsi.pt.