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PRESTAÇÃO DE CONTAS
INVENTÁRIO NOTARIAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
NULIDADE DA SENTENÇA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I - O disposto no artigo 45.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário não abrange o pedido formulado por um dos interessados para que o cabeça-de-casal preste contas no processo de inventário notarial. Neste caso a prestação de contas tem lugar em juízo, no âmbito da ação de prestação de contas a que se refere o artigo 947.º do Código de Processo Civil. II - Não atua com abuso do direito o interessado que pede que o cabeça-de-casal preste contas relativas à administração de um determinado imóvel, quando anteriormente o mesmo interessado exerceu estas funções e numa ação judicial não foi condenado a prestar contas da sua gestão relativamente a esse bem. III - A ausência ou insuficiência de motivação da decisão da matéria de facto não constitui uma nulidade da sentença. Esse vício enquadra-se, sim, na previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil e é por essa via que ele é sanado. IV - Havendo um facto relevante para a decisão da causa que se encontre admitido por acordo das partes e não figurando ele entre os factos provados, nos termos dos artigos 607.º n.º 3, 662.º e 663.º n.º 2 do CPC, o tribunal da Relação pode aditá-lo a estes.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
AA, BB e CC intentaram a presente ação de prestação de contas, que corre termos no Juízo Local Cível de Guimarães, contra DD pedindo a condenação desta a "apresentar as contas relativas ao património do dissolvido casal, EE e FF, desde abril de 2018 até à presente data e, a final, ser a requerida condenada a pagar aos requerentes a respetiva meação do saldo que venha a apurar-se. Mais deverá a requerida ser condenada a relacionar a dívida da herança no valor de 10.038,44 €, acrescido de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, e a incidir sobre o capital de 9.473,40 €, até integral e efetivo pagamento, devendo ainda ser a requerida, na qualidade de cabeça de casal da herança, condenada a pagar este quantitativo à 1ª requerente."
Alegaram, em síntese, que, conjuntamente com GG e HH e II, cuja intervenção principal provocada suscitaram, são os herdeiros de EE.
Mais alegam que EE e a FF, falecida em ../../1995, casaram em 1953 e separaram-se de facto em 1987, tendo corrido inventário para separação das meações no âmbito do qual foi nomeada cabeça-de-casal a aqui requerida.
Com início em abril de 2018 a requerida exerceu a administração dos bens que eram do casal EE e FF, por então ter ficado na posse dos mesmos. Desde essa data que vem recebendo mensalmente todos os rendimentos existentes e/ou gerados pelo património do separado e, posteriormente, dissolvido casal. E a requerente AA, por conta e no interesse da herança, viu-se na obrigação de liquidar algumas despesas contraídas em nome da herança, cujo pagamento era da responsabilidade da requerida.
A requerida contestou afirmando, em suma, que, não obstante, a partir de outubro de 2018, ter passado a receber algumas rendas de um dos imóveis que integram o património comum do extinto casal, nega ter qualquer obrigação de prestar contas aos requerentes.
Defende ainda que há abuso do direito na presente ação, uma vez que a requerente AA exerceu as funções de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do EE e nessa qualidade recebeu rendas, desde a data do óbito do falecido (../../2013) até março de 2018 sem que tenha sido condenada a prestar contas quanto a essas quantias, tendo feito seus tais montantes, em prejuízo dos demais herdeiros.
Foi admitida a intervenção principal provocada de GG, HH e II.
A Meritíssima Juiz proferiu despacho em que decidiu:
"(…) Pelo exposto, o Tribunal declara a existência da obrigação da R. de prestar contas, talqualmente peticionado na petição inicial."
Inconformada com esta decisão, dela a requerida interpôs recurso, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
1ª- Padece a sentença a quo de uma nulidade processual pois, foi proferida decisão sem consideração dos meios de prova constantes dos autos, concretamente da prova testemunhal produzida;
2ª- A sentença ora em recurso não faz qualquer referência à testemunha nem ao depoimento prestado por esta.
3ª- Tal omissão influi inexoravelmente no exame ou na decisão da causa,
4ª- E importa a declaração de nulidade dos atos posteriormente praticados – designadamente a nulidade da sentença;
5ª- Verifica-se assim, clara violação das normas jurídicas constantes do artigo 607.º n.º 4 do CPC, encontrando-se a sentença a quo inquinada de nulidade, ao abrigo do artigo 615.º n.º 1 b) do CPC, porquanto omite aspetos considerados essenciais para a fundamentação da sentença.
6ª- Por outro lado, foi dado como provado, nomeadamente o facto g) que "corre, sob o n.º 540/15 no Cartório Notarial do Dr. JJ, processo de inventário para separação judicial de bens de EE e de FF, tendo a R. assumido o cargo de cabeça de casal em 11.03.2015".
7ª- A ação de cuja sentença ora se recorre foi instaurada quando e durante a pendência daquele processo de inventário, sendo que, salvo o devido respeito e melhor opinião contrária, competente para a apreciação da prestação de contas do cabeça de casal é o Cartório Notarial e não o Juízo Local Cível de Guimarães, sendo este absolutamente incompetente em razão da matéria.
8ª- O processo de inventário foi instaurado em 03.02.2015 e a ação de cuja sentença se recorre foi em 03.05.2023, logo o regime aplicável é o do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 e, por via disso, é o Cartório Notarial do Notário JJ o competente para julgar o incidente de prestação de contas pelo cabeça de casal.
9ª- De harmonia com o disposto no art.º 96.º e 97.º do CPC é o Juízo Local Cível de Guimarães, Juiz ..., incompetente materialmente para a ação, devendo este Venerando Tribunal declarar essa incompetência e, a R/recorrente, consequentemente, ser absolvida da instância, o que ora se requer.
10ª- Por outro lado, a decisão da obrigação de prestar contas proferida pela Mmª Juiz a quo configura um verdadeiro abuso de direito.
11ª- Conforme alegou a A./recorrida, concretamente no art.º 9.º da p.i., correu termos pelo Juízo Local Cível de Braga, Juiz ... a ação de prestação de contas com o n.º 317/14.....
12ª- Nessa ação, foi a aqui Recorrente, autora e, a aqui recorrida AA, ré, uma vez que é cabeça de casal da herança de EE, pai de ambas mas, mercê da deserdação, não é a recorrente herdeira deste.
13ª- O acervo a partilhar pelas duas heranças dos de cujus FF e EE é o constante dos autos de inventário que correm termos sob o n.º 540/15 no Cartório Notarial do Notário JJ em ...,
14ª- Independentemente de quem exerce o cabecelato, os bens a partilhar e sobre os quais recai a obrigação de prestar contas são exatamente os mesmos.
15ª- Estão discriminados naqueles autos de inventário e, sobre eles, exerceu a A/recorrida o cargo de cabeça de casal desde ../../2013 (data em que faleceu EE) até 6 abril de 2018, data em que transitou em julgado o douto acórdão proferido nos autos n.º 4846/16.... pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
16ª- Nesse douto acórdão foi decidido que a R/recorrente KK como era a cabeça de casal nos autos de inventário para separação de bens das heranças de FF e EE, seria ela a receber as rendas dos arrendatários do pavilhão inscrito na matriz sob o art.º ...21 (anterior 501), sito em ... em que são arrendatárias as empresas EMP01... Unipessoal, Ldª e EMP02..., Ldª.
17ª- Desde a morte de EE ocorrida em ../../2013 até ao mês de março de 2018 foi a A/recorrida AA que, na qualidade de cabeça de casal da herança do pai recebeu as rendas dessas três sociedades, as quais, ressalvando as atualizações anuais, foram sempre as mesmas.
18ª- Ou seja, as rendas que a R/recorrente KK passou a receber a partir de abril de 2018 são exatamente as mesmas que a A./recorrida AA recebeu até essa data.
19ª- Nesta ação, cuja sentença ora se recorre, a A./recorrida AA pretende que a R./recorrente KK preste contas desse período e relativamente às rendas desse imóvel, o 1021 (anterior 501), situado em ..., sendo certo que ela, na prestação de contas que correu termos pelo Juízo Local Cível de Braga, Juiz ... com o n.º 317/14.... não prestou contas dessas rendas, apesar de as ter recebido.
20ª- Em súmula, os prédios descritos nesta ação de prestação de contas são os mesmos que foram descritos na tal ação de prestação de contas n.º 317//14.... e nos autos de inventário que correm termos sob o n.º 540/15.
21ª- Sendo que, desses prédios, o único que gerou e gera rendimento, no período de cabecelato da A./recorrida AA e no período de cabecelato da R./recorrente KK, é o prédio misto, composto por edifício de r/c com dependência, destinado a industria, situado no lugar da ..., da freguesia ... (...), do concelho ..., descrito na CRP ... sob o n.º 2 e inscrito na matriz sob o art.º ...01. (atualmente 1021)
22ª-A A/recorrida AA não foi condenada a prestar contas quanto às rendas que recebeu desse prédio, tendo-as recebido e ingressado no seu património todas as rendas que recebeu nos anos de 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, o que configura enriquecimento sem causa pois, locupletou-se, à custa dos restantes herdeiros.
23ª- Sendo que, a presente ação configura abuso de direito pois, exige a terceiros, in casu à R./recorrente que preste contas sobre os rendimentos que colheu de um mesmo imóvel sobre o qual ela própria não prestou contas, apesar de ter recebido as rendas.
24ª- A pretensão da A./recorrida bem assim como a decisão que determinou a existência da obrigação da R./recorrente prestar contas prefigura de forma gritante um manifesto abuso de direito previsto no art. 334.º do CC, o que se requer seja verificado e declarado, e que se extraiam as correspondentes consequências legais.
Não foram apresentadas contra-alegações.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consiste em saber se:
a) "competente para a apreciação da prestação de contas do cabeça de casal é o Cartório Notarial e não o Juízo Local Cível de Guimarães, sendo este absolutamente incompetente em razão da matéria";
b) "padece a sentença a quo de uma nulidade processual pois, foi proferida decisão sem consideração dos meios de prova constantes dos autos, concretamente da prova testemunhal produzida", pelo que está "inquinada de nulidade, ao abrigo do artigo 615.º n.º 1 b) do CPC";
c) "a presente ação configura abuso de direito pois, exige a terceiros, in casu à R./recorrente que preste contas sobre os rendimentos que colheu de um mesmo imóvel sobre o qual ela própria não prestou contas, apesar de ter recebido as rendas".
II
1.º
No que se reporta à matéria de facto, importa começar por sublinhar que, como resulta dos artigos 9.º da petição inicial e 1.º da contestação, as partes estão de acordo em que correu termos no Juízo Local Cível de Braga a ação de prestação de contas 317/14...., que nela era requerente a aqui requerida e requerida a aqui requerente AA e que nesse processo foi proferida a sentença que foi junta aos autos pelos requerentes com a sua petição inicial.
O teor dessa decisão é relevante para estes autos, nomeadamente para melhor se compreender a questão do abuso do direito suscitada pela requerida.
Mas o tribunal a quo não levou aquele facto aos factos provados[2].
Ora, "a nova formulação do art. 662.º do CPC deixou de prever especificamente amodificação da decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como se previa no art. 712.º do anterior CPC. Da modificação legal não resulta que tenha sido abolida essa possibilidade. Ao abrigo daquele preceito, continuará a justificar-se o aditamento de novos factos cuja prova plena resulte dos autos, seja por confissão judicial ou extrajudicial, seja por acordo das partes estabelecido nos autos ou por documento dotado de força probatória plena. Tal pode acontecer nomeadamente quando (…) tenha sido desconsiderado acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574.º, n.º 2, do CPC). Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1ª instância desatendeu (…), alteração que não depende sequer da iniciativa da parte. Com efeito, nos termos do art. 663.º, n.º 2, do CPC, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o art. 607.º, n.º 4, do CPC, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na sentença (…) os factos admitidos por acordo"[3].
Assim, adita-se aos factos provados o seguinte facto:
"Correu termos no Juízo Local Cível de Braga a ação de prestação de contas 317/14.... na qual era requerente a aqui requerida e requerida a aqui requerente AA e onde foi proferida a sentença junta aos autos pelos requerentes com a sua petição inicial, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido."
2.º
Estão provados os seguintes factos:
a) A R. DD, nascida aos ../../1954, é filha de EE e de FF;
b) O EE e a FF haviam casado entre si em 13.05.1953, sem convenção antenupcial;
c) Por sentença datada de 12.12.1988, transitada em julgado em 09.07.1990, foi decretada a separação de pessoas e bens de EE e de FF;
d) A DD é a única herdeira de FF, falecida aos ../../1995;
e) No dia ../../2013 faleceu o EE;
f) Ao EE sucederam os requerentes e os intervenientes principais;
g) Corre termos pelo Cartório Notarial do Dr. JJ sob o n.º 540/15 processo de inventário para separação judicial de bens de EE e de FF, tendo assumido em 11.03.2015 o cargo de cabeça-de-casal, no âmbito desse processo de inventário, DD;
h) Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 22.02.2018, transitado em julgado em 06.04.2018, proferido no âmbito da ação comum que sob o n.º 4846/16.... correu termos pelo Juízo Local Cível de Guimarães da comarca de Braga (J...) foi decidido, entre o mais, condenar a aqui R. a entregar à A., na qualidade de cabeça-de-casal, as rendas devidas pelo "arrendamento dos prédios identificados nos autos" e cuja renda vinha sendo paga ao EE;
i) Desde abril de 2018 que a R. recebe as rendas provenientes de prédios que integram o património comum do extinto casal.
j) Correu termos no Juízo Local Cível de Braga a ação de prestação de contas 317/14.... na qual era requerente a aqui requerida e requerida a aqui requerente AA e onde foi proferida a sentença junta aos autos pelos requerentes com a sua petição inicial, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
3.º
Segundo a requerida, uma vez que que a "ação de cuja sentença ora se recorre foi instaurada quando" corria "no Cartório Notarial (…), processo de inventário para separação judicial de bens de EE e de FF", "competente para a apreciação da prestação de contas do cabeça de casal é o Cartório Notarial e não o Juízo Local Cível de Guimarães, sendo este absolutamente incompetente em razão da matéria".
A ação de prestação de contas "tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se"[4].
O artigo 947.º estabelece a regra de que "as contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita".
Mas o n.º 1 do artigo 45.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei 23/2013, de 5 de março) diz-nos que "o cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação", acrescentando o seu n.º 2 que "compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior".
No nosso caso, encontra-se provado que "corre termos pelo Cartório Notarial (…) sob o n.º 540/15 processo de inventário para separação judicial de bens de EE e de FF, tendo assumido em 11.03.2015 o cargo de cabeça-de-casal, no âmbito desse processo de inventário, DD".
Neste cenário, coloca-se a questão de saber quem é competente para conhecer da prestação de contas pretendida pelos requerentes: se o notário, em incidente no processo de inventário notarial, ou se o juiz, em ação judicial.
A maioria da jurisprudência vem entendendo que "estando pendente processo de inventário notarial, a prestação de contas pelo cabeça de casal, anteriores ou contemporâneas dessa pendência, terá de ser requerida como incidente no processo de inventário notarial (...), [uma vez que] nos termos (…) [do n.º 1 do artigo 45.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário] o meio legal para a apresentação de contas pelo cabeça de casal é o aqui previsto, deixando de se justificar ação especial intentada para tal efeito em processo autónomo (cfr. Artigos 2093.º do C.C. e 1019.º do CPC, ao qual corresponde o artigo 947.º do Novo Código de Processo Civil). (…) A partir do momento em que está pendente um inventário notarial, as contas que não tiverem sido prestadas voluntariamente e as que não tiverem sido pedidas até então, entrarão na conta de cabecelato referida no artigo 45.º"[5].
Porém, com o devido respeito, não se afigura que esta seja a interpretação mais adequada do citado artigo 45.º.
Face à letra deste preceito, "ao notário compete a tomada desta decisão, mas só em via incidental e quando haja apresentação espontânea de contas pelo cabeça de casal. Nada se refere quanto à prestação forçada de contas por iniciativa de outro interessado, nem, menos ainda, que seja da sua competência julgar essas mesmas contas em ação autónoma. O que, a nosso ver, está em linha com a intenção do legislador de, por um lado, tornar mais célere o processo de inventário, mas, por outro, de preservar a função jurisdicional nos limites constitucionalmente previstos e internacionalmente aceites.
(…) O artigo 947.º do CPC atual (…) ainda reflete (…) [o] pressuposto [da existência de um processo judicial], na medida em que alude ao "administrador ou depositário judicialmente nomeados", determinando que as contas sejam prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita". O que não deve ser visto, necessariamente, como um lapso. Com efeito, o atual Código de Processo Civil entrou em vigor, praticamente, na mesma altura do Regime Jurídico do Processo de Inventário (…). E, de acordo com este último, esse regime não era aplicável aos processos de inventário que então se encontrassem pendentes (artigo 7.º). Portanto, nessa altura, ainda havia processos judiciais em que o cabeça de casal era judicialmente investido nessas funções. Mas, a partir daí, passou a haver também processos de inventário nos cartórios notariais. (…) [Contudo,] nem esta é uma norma [artigo 45.º] de atribuição de competência, nem do seu teor ou do Regime Jurídico do Processo de Inventário (…) resulta que os cartórios notariais tenham jurisdição em relação às ações de prestação forçada de contas que sejam instauradas contra o cabeça de casal, para seguir termos nos parâmetros definidos no artigo 941.º e segts do CPC. Desde logo e como já vimos, a letra da lei, aponta no sentido da dependência dever ser estabelecida em relação a processos onde tenha havido nomeação judicial. Depois, o próprio Regime Jurídico do Processo de Inventário (…) apenas prevê que o notário aprecie as contas incidental e espontaneamente prestadas que sejam objeto de impugnação e não outras (artigo 45.º). Além disso, há também que levar em linha de conta o princípio da reserva da função jurisdicional ou princípio da reserva do juiz, consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual só os tribunais, e não outras entidades, têm competência para administrar a justiça, o que é particularmente importante quando está em causa a intervenção constitutiva de direitos. E, por fim, mas não menos importante, é necessário ter também presente que nem a atribuição de competência aos cartórios notariais para o julgamento da prestação forçada de contas se enquadra no espirito da lei, que lhe reserva, como vimos, o papel de direção do inventário em questões de menor complexidade, nem seriam de fácil resolução os problemas resultantes dessa eventual competência, como sejam os incidentes subsequentemente surgidos na própria ação de prestação de contas, bem como a competência para a prolação da decisão final e correspondente força executiva, o que redundaria na prática, por aplicação do disposto no artigo 16.º, n.º 1, do RJPI, na remessa das partes para os meios judiciais comuns, com o que o ganho seria nulo, senão mesmo negativo, inclusive, para a imagem da justiça. Neste contexto, considerando todos os elementos interpretativos acabados de referir nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, entendemos ser o tribunal e não o notário o competente para o julgamento da prestação de contas exigidas ao cabeça de casal, na pendência do inventário notarial, por via de ação autónoma."[6]
Na verdade, o artigo 45.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário menciona apenas a apresentação de contas por iniciativa do cabeça-de-casal. Nada diz quanto a essa apresentação ser requerida por outra pessoa com legitimidade para tal. Por isso, dado o limitado alcance daquela norma continua a justificar-se, plenamente, a ação de prestação de contas do artigo 947.º, mais a mais, quando, em regra, nesta existe uma forte litigiosidade, se discutem valores com significado e há múltiplas diligências a realizar.
Aliás, se não fosse assim, a prestação forçada de contas, dadas estas suas características, seria, à partida, um dos casos em que, à luz do artigo 16.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, face à "complexidade da matéria de facto e [ou] de direito", o notário remeteria "as partes para os meios judiciais comuns", o que nos mostra que o processo de inventário notarial não está vocacionado para aquele fim.
Portanto, o tribunal a quo não é incompetente em razão da matéria.
4.º
Na ótica da requerida a decisão recorrida está "inquinada de nulidade, ao abrigo do artigo 615.º n.º 1 b) do CPC, porquanto omite aspetos considerados essenciais para a fundamentação da sentença", dado que "foi proferida (…) sem consideração dos meios de prova constantes dos autos, concretamente da prova testemunhal produzida".
Em primeiro lugar, regista-se que na decisão sub iudice a Meritíssima Juiz afirmou que "o facto enunciado em a) é comprovado pelo doc. n.º 2 junto com a p.i. que deu origem a essa ação, os factos enunciados em b) e c) pelo doc. n.º 1 junto com tal p.i., o facto enunciado em d) pelo doc. n.º 3 junto com esse petitório e os constantes de f) e g) dos docs. n.os 4 e 5 juntos com essa dita p.i.; junta à dita p.i. encontra-se igualmente a certidão que comprova o consignado em h). O facto elencado em i) foi confessado pela aqui R. (cfr. art. 9.º da contestação)." Sendo assim, não se omitiu a fundamentação da decisão da matéria de facto.
Em segundo lugar, "como é jurisprudência corrente, a falta de especificação dos fundamentos da decisão de facto ou a omissão de pronúncia no mesmo plano, não afetam a sentença de nulidade, nos termos da al. b) ou da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. As patologias ocorridas no plano da decisão de facto, que resultam do disposto no art. 607.º, n.ºs 1 a 4 do CPC (…) não configuram as nulidades previstas no art. 615.º do CPC"[7]. Efetivamente, "a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é suscetível de lugar à atuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662.º, n.º 2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve - no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação - reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662.º, n.º 2 do nCPC)."[8]
E se por hipótese estivéssemos no âmbito da nulidade da sentença de que fala a requerida, então teria de se ter em devida consideração que, como a jurisprudência e a doutrina vêm dizendo, "só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente"[9]. Com efeito, "para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta"[10]. Nesse caso, perante o que deixou dito a Meritíssima Juiz, não se podia falar de falta de fundamentação.
Em terceiro lugar, se porventura o tribunal a quo decidiu "sem consideração dos meios de prova constantes dos autos, concretamente da prova testemunhal produzida", então cabia à parte impugnar a decisão da matéria de facto que, por errada avaliação da prova produzida, foi decidida incorretamente. E nessa impugnação a parte teria de, para além do mais, "sob pena de rejeição", especificar os "concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados".
Ora, se a requerida queria atacar o julgamento de algum facto, e ficamos com a ideia de que não é esse o seu propósito, tinha de nas conclusões identificar quais os concretos factos que pretendia colocar em crise, coisa que não fez.
Aqui chegados, é manifesto que a decisão recorrida não padece da apontada nulidade.
5.º
Por último a requerida sustenta que "a presente ação configura abuso de direito pois, exige a terceiros, in casu à R./recorrente que preste contas sobre os rendimentos que colheu de um mesmo imóvel sobre o qual ela própria não prestou contas, apesar de ter recebido as rendas". Afirma que na "ação de prestação de contas com o nº 317/14.... (…) foi a aqui Recorrente, autora e, a aqui recorrida AA, ré, uma vez que é cabeça de casal da herança de EE", mas que aí não prestou contas das rendas que nessa qualidade recebeu.
Como é sabido, o abuso do direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça"[11]. Por isso o abuso do direito"deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica"[12]. No abuso do direito "a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito"[13]. E "para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito"[14].
No nosso caso, a circunstância de em momento anterior a agora requerente AA não ter prestado contas da sua gestão como cabeça-de-casal relativamente a um determinado imóvel, não significa que, ao pretender que quem presentemente exerce essas funções as preste, esteja a exercer esse seu direito "em termos clamorosamente ofensivos da justiça" ou que com essa sua conduta haja uma "utilização manifestamente anormal, excessiva do direito". Note-se que não consta que a requerente AA se tenha recusado a prestar tais contas.
Conforme dá nota a Meritíssima Juiz a quo, "resulta da certidão junta aos autos, a aqui R. instaurou contra os aqui AA. e intervenientes ação declarativa sob a forma especial de prestação de contas, que correu termos pelo Juízo Local Cível de Braga (J...) sob o n.º 317/14.... peticionando fossem os ali RR. condenados a prestar as contas relativas ao património do dissolvido casal entre ../../1987 até à data da instauração daquela ação. Tal pretensão foi parcialmente acolhida, tendo (apenas) a ali R. AA (aqui 1.ª A.) sido condenada a prestar contas da administração que fez de dois prédios (que ali são identificados) e (somente) desde ../../2013. Se a aqui R. não concordava com essa decisão, recaía sobre si o ónus de dela recorrer para uma instância superior."
Veja-se que na sua contestação a requerida reconhece que "a A. AA não foi condenada a prestar contas quanto às rendas que recebeu (…) [do] prédio misto, composto por edifício de r/c com dependência, destinado a industria, situado no lugar da ..., da freguesia ... (...), do concelho ..., descrito na CRP ... sob o n.º 2 e inscrito na matriz sob o art. ...01.º (atualmente 1021.º)". O que a indigna é a requerente AA vir agora exigir "a terceiros, in casu a R., que preste contas sobre os rendimentos que colheu de um mesmo imóvel sobre o qual ela própria não prestou contas, apesar de ter recebido as rendas"[15].
Por conseguinte, neste concreto contexto, a requerente AA não atua com abuso do direito. E caso atuasse, sempre a requerida teria de prestar contas, pois esse abuso do direito não se estenderia aos requerentes BB e CC.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.
[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Apesar de uma parte da sua fundamentação de direito relativa ao abuso do direito assentar no que consta nessa sentença. [3] Ac. STJ de 28-4-2016 no Proc. 155/11.9TBPVZ.P1.S1, www.gde.mj.pt. [4] Cfr. artigo 941.º. [5] Ac. Rel. Lisboa de 21-5-2020 no Proc. 1852/19.6T8OER.L1-2. Neste sentido veja-se Ac. Rel. Lisboa de 30-3-2017 no Proc. 13079/16.4T8SNT.L1-6, Ac. Rel. Porto 30-5-2018 no Proc. 22255/17.1T8PRT.P1 e Ac. Rel. Évora de 8-10-2020 no Proc. 435/19.5T8ELV.E1, todos em www.gde.mj.pt. [6] Ac. Rel. Porto de 10-11-2020 no Proc. 4703/19.8T8PRT-A.P1, www.gde.mj.pt. [7] Ac. STJ de 4-6-2024 no Proc. 1098/20.0T8BRG.G1.S1. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 25-5-2021 no Proc. 384/16.9YHLSB.L1.S1 e Ac. STJ de 10-12-2020 no Proc. 4390/17.8T8VIS.C1.S1, todos em www.gde.mj.pt. [8] Ac. Rel. Coimbra de 20-01-2015 no Proc. 2996/12.0TBFIG.C1, em www.gde.mj.pt. [9] Ac. STJ de 21-6-2011 no Proc. 1065/06.7TBESP, em www.gde.mj.pt. [10] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 687. Neste sentido pode também ver-se Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, Alberto dos Reis CPC Anotado, Vol. V, 1952, pág. 140, Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 806, Ac. STJ de 16-11-2022 no Proc. 1060/19.6T8BRR.L1.S1, Ac. STJ de 16-3-2023 no Proc. 1377/18.7T8LSB.L1.S1, Ac. STJ de 18-4-2023 no Proc. 9560/21.1T8PRT-A.P1.S1, Ac. STJ de 16-11-2023 no Proc. 4286/20.6T8ALM-B.L1.S1 e Ac. STJ de 4-4-2024 no Proc. 5223/19.6T6STB.E1.S1, estes em www.gde.mj.pt. [11] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63. [12] Ac. STJ de 18-6-02, Jurisprudência Selecionada de Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 321. [13] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 13. [14] Ac. STJ de 25-6-98, Jurisprudência Selecionada de Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 340. [15] Cfr. artigos 12.º a 14.º da contestação.