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AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DA SENTENÇA
CAUSA PREJUDICIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
I - O recurso não é o meio próprio para conhecer da infracção às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela ocorreu, nos termos previstos nos art.ºs 199º a 202º do NCPC. II - Decorre da interpretação do corpo do art.º 597º, do NCPC, que nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação não é obrigatória a convocação da audiência prévia. III - A reclamação prevista no art.º 596º, nº 2, do NCPC refere-se ao despacho que fixa o objecto do litígio e enuncia os temas de prova, não visando o despacho saneador propriamente dito. IV - A impugnação das decisões interlocutórias está sujeita ao disposto no art.º 660º do NCPC, pelo que a impugnação destas só poderá ser conhecida se tiver repercussão na decisão final. V - Quando se regista uma contradição entre alguns dos factos que o tribunal considerou provados, ou entre factos provados e não provados não estamos perante uma nulidade da sentença, encontrando antes tais situações acolhimento na previsão do art.º 662º do NCPC. VI - Verifica-se a existência de uma causa prejudicial quando a decisão de uma causa depende do julgamento de outra, ou seja, quando a acção dependente tenha por objecto a apreciação de uma concreta questão cuja solução final seja susceptível de ser afectada na consistência jurídica ou prático-económica pela decisão a tomar na outra (prejudicial), quando a decisão da ação dependente possa ser decisivamente influenciada pela decisão a proferir na causa prejudicial. VII - Só adquirem o valor de caso julgado os fundamentos da decisão transitada que são pressuposto lógico indispensável da apreciação do objecto de uma acção posterior. VIII - A omissão na indicação das passagens dos depoimentos gravados tidas por relevantes se também desacompanhadas da indicação da decisão que no entender do recorrente deve ser proferida sobre a matéria impugnada, justifica a rejeição liminar do recurso no que a essa parte respeita.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
AA
veio, por apenso à acção executiva que corre termos sob o nº 1539/18...., deduzir a presente oposição à execução mediante embargos de executado, contra BB,
peticionando, no que ora interessa, que o documento apresentado à execução seja julgado não constitutivo de título executivo e extinta a execução apensa e a condenação do exequente como litigante de má-fé, em indemnização a pagar à executada de valor nunca inferior a € 5.000,00.
Para tanto, alega que o embargado não cumpriu com a obrigação que estava adstrito por acordo homologado por sentença, nomeadamente, com a entrega da exploração agrícola, constituída por todos os seus componentes, ou integrantes; prédios, animais, objectos, máquinas agrícolas que fazem parte da mesma e nela se encontram de acordo com uma lista previamente elaborada, não sendo exigível à embargante a sua contraprestação.
Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, no qual foi notificada a embargante para identificar os bens não entregues aquando do cumprimento do acordo, o que a embargante fez por requerimento de 07.10.2019.
Por despacho proferido a 06.01.2020, foi proferido despacho que determinou a suspensão da execução, uma vez prestada caução, e notificado o exequente/embargado para contestar.
O embargado/exequente apresentou contestação, referindo que todos os bens que que pertenciam à mesma e que se encontravam na exploração foram entregues, defendendo que o acordo celebrado entre as partes deve ser interpretado como o dever de entrega do que se encontrava na exploração, isto é, o que se encontrava na mesma e no estado em que esta se encontrasse, não tendo sido levada em conta qualquer lista de bens.
Findos os articulados, foi agendada data para a realização de audiência prévia com vista à tentativa da conciliação das partes e delimitação do objecto do litígio, a qual, contudo, veio a ser dada sem efeito devido aos constrangimentos ocorridos durante o decretamento do Estado de Emergência na sequência da propagação do vírus Covid 19, tendo ainda sido proferido o seguinte despacho, datado de 7.04.2020:
“Sem prejuízo, atenta a situação vivenciada no país e as restrições significativas à circulação de cidadãos com a consequente paralisação parcial de serviços públicos, incluindo os Tribunais, importa que as partes se consciencializem da necessidade de contribuírem para a pacificação dos conflitos dirimidos nos processos, particularmente, quando tal acordo se afigure mais passível de ser atingido pelas mesmas e de descongestionar os Tribunais previsivelmente muitíssimo afectados por tal paralisação parcial.
Pelo exposto, antes de mais, notifique as partes para, no prazo de 10 dias, informarem se entendem haver possibilidade de obtenção de acordo entre as mesmas e, nessa hipótese, juntarem tal acordo ou requererem, caso manifestem vontade de alcançar tal entendimento, a suspensão da instância.
Findo tal prazo, e não sendo manifestada tal vontade, o Tribunal proferirá despacho saneador, sem prejuízo de não agendar o julgamento, a menos que, nessa altura, já se verifiquem as condições de normalidade no país que tal permitam.
Findo o aludido prazo, abra conclusão.”
Notificadas as partes, veio o exequente/embargado informar não existir possibilidade de acordo e requerer o prosseguimento dos autos (requerimento de 17.04.2020).
Por sua vez, veio o executado/embargante reafirmar a posição assumida no respectivo articulado pedindo que se declarassem procedentes os embargos de executado e extinta a execução (requerimento de 20.04.2020). Nasequênciafoi proferido despacho saneador a 25.06.2020, tendo sido fixado o valor da causa em € 5.276,08 e apreciada a questão da inexigibilidade da dívida exequenda, a qual foi julgada improcedente. Foi ainda dispensada a indicação do objecto do litígio e a selecção dos temas de prova, ao abrigo do disposto no art.º 597º, al. g), do NCPC.
Por requerimento de 7.07.2020, veio a embargante apresentar reclamação ao abrigo do disposto no art.º 596º, do NCPC, pugnando pela procedência imediata dos embargos.
Sobre tal reclamação foi proferido despacho a 09.10.2020, nos seguintes termos:
“Veio, se bem se compreende, a Embargante reclamar (sic) do despacho saneador, alegando que este deveria ter julgado os embargos imediatamente procedentes nos termos do artigo 595º alínea b) do CPC e, consequentemente, extinta a execução.
Como decorre do nº2 do artigo 596º do CPC, as partes só podem reclamar do despacho saneador relativamente à indicação do objecto do litígio e selecção de temas de prova, sendo que tais indicação e selecção foram dispensadas em tal despacho pelo Tribunal nos termos da alínea g) do artigo 597º do CPC.
Nessa medida, inexiste qualquer fundamento para a reclamação apresentada, constituindo a apresentação da mesma um incidente anómalo (na medida em que de todo não previsto na tramitação normal dos autos) tributável nos termos do artigo 7º nº8 do Regulamento das Custas Processuais.
Pelo exposto, indefere-se reclamação apresentada pela Embargante.
Custas do incidente pela Embargante (artigos 527º nº1 do CPC e 7º nº8 do RCP com referência à Tabela II) em anexo a este último diploma).
Notifique.”.
Realizada a audiência final, por requerimento de 13.06.2023, a embargante juntou cópia da decisão proferida no processo nº 1572/18...., requerendo que a quantia de € 5.000,00, fixada naquele processo, a título de indemnização por valorização dos animais, fosse deduzida à quantia exequenda e ainda que a decisão a proferir atendesse ao ali decidido quanto à falta de entrega de alguns bens que faziam parte da exploração agrícola, ao que o embargado se opôs.
Foi prolatada sentença que julgou totalmente improcedente a presente oposição à execução e determinou a prossecução da execução apensa, tendo ainda julgado totalmente improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé formulado contra o embargado/exequente.
Na sequência, a executada/embargante, por requerimento de 26.04.2024, veio juntar cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a sentença proferida no nº 1572/18.... e reiterou que a condenação na indemnização no valor de € 5.000,00 deveria ser atendida na decisão proferida, requerendo a sua rectificação em conformidade.
Após o exercício do contraditório, em 23.05.2024, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Embora devesse ser na execução que se devesse fazer o esclarecimento que de seguida se fará, por uma questão de celeridade processual, far-se-á já neste apenso o esclarecimento em causa.
E esse esclarecimento é o seguinte:
Segundo o título executivo, a executada obrigou-se a pagar ao exequente, a quantia de € 5.250,00.
E este valor haveria de ser tido em conta e descontado na indemnização que pudesse vir a ser atribuída ao aqui exequente no processo n º 1572/18.....
Segundo as regras de interpretação dos negócios jurídicos, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, entenderia o seguinte: a executada obrigou-se a pagar ao exequente, a quantia de € 5.250,00, mas esta quantia deveria ser descontada na indemnização que pudesse vir a ser atribuída ao aqui exequente no processo n º 1572/18.....
Ou seja, a executada deve ao exequente a quantia em causa de € 5.250,00. Porém, como a executada, no processo n º 1572/18.... foi condenada a pagar ao exequente a quantia de € 5.000,00, no âmbito desse processo/dessa condenação, a executada não está obrigada a pagar ao exequente esta quantia de € 5.000,00.
Ou seja, no âmbito dos dois processos, a executada apenas deve ao exequente a quantia de € 5.250,00.
Tal nenhuma repercussão tem sobre a execução a que estes autos estão apensos, podendo colocar-se a questão, mas é no âmbito de execução que possa vir a ser instaurada com base na sentença proferida no processo nº 1572/18.....
Notifique.”.
Inconformado com a sentença proferida, veio o executado/embargante recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
«1) Findos os articulados, o Tribunal recorrido, ao não convocar a competente e obrigatória Audiência Prévia, nem tendo ouvido as partes quanto à realização ou dispensa de tal diligência originou uma Nulidade que se invoca, tendo violado os artigos 6º, nº 1, 3º, nº 3 a artigo 591º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil;
2) O indeferimento da reclamação quanto ao Despacho Saneador, com base na não admissão, por em tal Despacho não ter sido fixado o objeto do litígio, nem indicados os temas de prova, tendo violado o artigo 596º, nº 3, do C.P.C., o que se invoca, pois o Despacho Saneador pronunciou-se quanto a questões suscitadas nos autos, e o objeto do litígio, como é desde início, resume-se ao título executivo e à sua interpretação pelas partes outorgantes;
3) Sentença – Questão decidenda;
Em Factos Provados 1º (1º a 5º) e 2º, no primeiro que corresponde na totalidade ao título executivo (ou acordo entre requerente e requerido, homologado nos autos de procedimento cautelar para entrega de bens componentes da exploração agrícola da primeira, entregue ao segundo na sequência de uma parceria pecuária), consta na cláusula 2ª, o “o pagamento será tido em conta e descontado na indemnização que possa ser atribuída ao requerido (aqui embargado) no âmbito do Processo nº 1572/18...., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., a título de valorização dos animais” (é obvio que, a quantia referida nada tinha que ver com a Providência Cautelar de entrega dos bens, nem podia ser exigida, tendo sido proposta a entrega naquele momento, precisamente para a entrega dos bens da exploração (fundamentais à sua atividade) acontecer mais rápido, daí ser cautelada a situação com a indemnização no outro processo onde o embargante é Autor).
Em Factos não Provados, B), alínea i), consta: “A quantia exequenda nestes autos de execução, encontra-se reclamada em outro processo no qual o exequente é Autor” (NÃO PROVADO).
É por demais contraditória a descrita situação, sendo que, deriva da vontade das partes – título/Acordo homologado por Sentença – onde o está em causa é o pagamento, a descontar no valor a calcular em outro processo, o que é dado como não provado (falso).
Violou a sentença o artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código Processo Civil, o que se invoca;
4) A dependência entre este processo e o supra referido tendo aquele início em primeiro lugar, criou deliberadamente uma relação de dependência entre ambos, sendo aquela “questão prejudicial” a dirimir, tendo em conta o título/Acordo.
Na ação declarativa, proferida Sentença e confirmada por este Tribunal a embargante foi condenada a pagar ao recorrido embargado, a quantia de 5.000,00 pela valorização dos animais.
Decisão Proc. Nº 1572/18.... do J.C.C.C de ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ....
A presente Decisão estava dependente da Decisão da anterior e mesmo não tendo sido suspensa a presente instância declarativa – APENSO B – porque nos autos constava tal “causa prejudicial”, devia ter aguardado aquela decisão que, apesar de tudo, foi proferida em primeiro lugar, assim como confirmada.
Violou a Decisão o artigo 272º do Código de Processo Civil.
5) Dos bens a entregar pelo exequente/embargado à executada/embargante;
Os bens seriam aqueles que compunham a exploração agrícola e identificados na Providência Cautelar, onde era reclamada a sua entrega, tanto que, se adiantou um valor, cuja entrega estava dependente da devolução dos bens e do cálculo a efetuar no processo anterior, onde era reivindicada uma indemnização que veio a proceder a favor do Autor, aqui embargado (não podendo este receber duas vezes). Em 2º de Factos Provados consta, “… que não entregou o requerido (recorrido) à requerente (recorrente) os bens que esta reivindicou e pretendia através da Providência Cautelar, uma vez que não houve assinatura de qualquer acordo”
Assim sendo os bens a entregar eram os reclamados na Providência Cautelar, sobre o que o processo mais antigo – causa prejudicial – também se pronunciou sobre tais bens, tendo condenado o Autor aqui embargado/recorrido a devolver à Ré/embargante recorrente;
Ver Proc. nº 1572/18.... do Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ...:
Ver Sentença/Recorrida, Factos Não Provados
O Tribunal violou a autoridade do caso julgado, artigo 628º, do C.P.C. e a questão/causa prejudicial, artigo 272º e ainda 615º, do mesmo diploma legal, o que se invoca.
6) A Decisão interpretada no sentido oposto ao que aqui se vem delineando, no que respeita ao Acordo título executivo, quanto à entrega dos bens, serem aqueles que o embargado quiser e não outros, porque “desapareceram com o uso”, demonstra uma má-fé processual, bastando ver que, a relação de bens constante da Providência Cautelar não foi impugnada e o processo mais antigo decidiu em contrário, pela entrega de bens em concreto.
Violou a Decisão o artigo 542º, nº 2, al. d) do C.P.C., devendo ser condenado como tal o recorrido em indemnização.
7) Tendo em conta as circunstâncias supra delineadas, advindas por demais da omissão de referências e remissão do título executivo – Factos Provados 1º (1 a 5) – para o Proc. nº 1572/18.... do Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., o Tribunal interpretou erroneamente os depoimentos das testemunhas:
- CC, do dia 04/05/2023, registado em suporte digital de 00:00:01 a 00:39:05;
- DD, do dia 04/05/2023, registado em suporte digital de 00:00:01 a 00:07:00;
- EE, do dia 04/05/2023, registado em suporte digital de 00:00:01 a 00:20:19;
- FF, do dia 04/05/2023, registado em suporte digital de 00:00:01 a 00:08:36;
- GG, do dia 04/05/2023, registado em suporte digital de 00:00:01 a 00:10:22;
Veja-se que, neste particular tipo de prova – factual – no que respeita aos bens que o recorrido se obrigou a entregar à recorrente, serem os que que esta reivindicou na Providência Cautelar e não aqueles que estavam na exploração agrícola, que eram nenhuns, pois desapareceram com o uso (tendo ficado apenas os que não conseguiram desparecer) a prova testemunhal não foi corretamente apreciada, conjugada com a demais prova, aliada ao decidido no processo que vem sendo referido ao longo destas alegações de recurso, e já era uma questão que constava nos próprios autos, e da qual a Decisão recorrida também dependia, mas foi ignorada (matéria que constava em factos provados, mas foi também dada como não provada). Violou a Decisão recorrida o artigo 640º do C.P.C. entre outros, nomeadamente o artigo 615º, nº 1, al. c) do mesmo diploma.».
Terminou pedindo a revogação da sentença recorrida.
Foram apresentadas contra-alegações, tendo o recorrido apresentado as seguintes conclusões:
“1- A douta sentença agora em crise está devidamente fundamentada, é acertada e não viola qualquer disposição legal.
- A alegada falta de audiência previa teve como fundamento os artigos 592 e 593 do CPC, sendo certo que que o recorrente pretendesse a sua realização, poderia tê-lo requerido em tempo e nesse sentido.
2- Não existe aqui qualquer nulidade ou invalidade.
3- O mesmo se diga relativamente ao indeferimento da reclamação apresentada sobre o despacho saneador.
4- Não conseguimos averiguar qualquer ilegalidade ou incorreção no tema que a 3ª conclusão pretende tratar, muito menos qualquer vicio enquadrável no disposto no artigo 615, nº1, c) do CPC.
5- Muito menos vemos qualquer violação do artigo 272º do CPC, porquanto as decisões da ação principal e do presente processo, são perfeitamente conciliáveis: este processo é claro ao afirmar que a quantia em que os devedores agora recorrentes foram condenados a pagar ao recorrido, será descontada no pedido do processo principal.
6- O alegado em 5º das conclusões, com o devido respeito não corresponde à verdade e muito menos foi violada qualquer autoridade do caso julgado.
7- A questão da má-fé foi devidamente julgada no lugar próprio e os depoimentos das testemunhas foram apreciados de acordo com as regras da lei: de forma critica, ponderada, concertada, livre e tendo em conta as regras do bom senso e da experiência comum.”.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente e a sua precedência lógica, são as seguintes:
- da nulidade processual por violação do disposto nos art.ºs 6º, nº 1, 3º, nº 3 e 591º, nº1, al. b), do NCPC [falta de convocação da audiência prévia e falta de audição das partes quanto à sua realização ou dispensa];
- da violação pelo despacho de indeferimento da reclamação do despacho saneador do disposto no art.º 596º, nº 3, do NCPC;
- da nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC [por contradição entre factos provados e não provados];
- da existência de causa prejudicial [quanto à quantia devida pela valorização dos animais];
- da violação da autoridade do caso julgado [quanto à determinação dos bens que o exequente estava obrigado a entregar];
- da errada apreciação da prova testemunhal quanto aos bens que o exequente/embargado se obrigou a entregar, apreciando-se – como questão prévia – o (in)cumprimento pela recorrente do respectivo ónus de impugnação previsto no art.º 640º, do NCPC;
- do erro de julgamento da decisão relativa à litigância de má-fé.
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentos de facto
Com relevo para a apreciação do objecto do presente recurso, destaca-se o que consta do relatório que antecede, bem como o seguinte que se encontra documentado nos presentes autos:
1. O tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:
«A – Factos provados:
1. O aqui embargado/exequente apresentou à execução a transação homologada por sentença nos autos principais (procedimento cautelar) datada de 12.06.2019, transitada em julgado, e da qual resulta, além do mais, o seguinte:
“1.ª - O Requerido obriga-se a proceder à entrega, na data de hoje, da exploração agrícola levada a cabo nos prédios rústicos da Requerente, entrega essa que inclui, não só a totalidade dos prédios em causa, bem como todos os animais, objectos e máquinas agrícolas que aí se encontrem. 2.ª - A Requerente obriga-se a pagar ao Requerido a quantia de 5.250,00€ mediante cheque emitido à ordem do Requerido que entregará no dia de hoje contra a entrega pelo demandado da exploração agrícola nos termos referidos na cláusula 1.ª. 3.ª - O valor do pagamento da cláusula 2.ª será tido em conta e descontado na indemnização que possa ser atribuída ao Requerido no âmbito do processo n.º1572/18.... a título da valorização dos animais. 4.ª - As partes comprometem-se a assinar documento comprovativo de entrega da exploração agrícola e do recebimento da indemnização previstos nas cláusulas 1.ª e 2.ª. 5.ª - As custas serão suportadas pelos litigantes em partes iguais, prescindindo de custas de parte, sem prejuízo do apoio judiciário de que alguma das partes beneficie”.
2. Os bens constantes da lista elaborada na data anterior à celebração do acordo referido em 1 não corresponde à lista constante do procedimento cautelar reivindicado pela embargante.
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B – Factos não provados:
a. Resulta do acordo obtido nos autos principais, que ficou acordada a entrega dos bens, cuja reivindicação e identificação é feita na Providência Cautelar, relativamente aos quais não foi questionada a respetiva propriedade, nem tão pouco os documentos juntos, em momento algum, foram impugnados.
b. Após a penhora dos tratores e nomeação de fiel depositária, e penhoradas as contas bancárias da executada, foi de imediato comunicado à ADS (ou este organismo ao exequente) que, não fossem emitidas Guias de Transporte dos animais da exploração, tendo sido assim, prontamente, impedida a venda ou transporte dos mesmos.
c. O impedimento na concretização da venda dos animais (que se encontrava em curso na data penhora), causou graves prejuízos à executada, não só porque se viu privada do valor do negócio, como obrigada até hoje a mantê-los na exploração, de onde não os pode movimentar (onde não havia pasto), provir pelo seu alimento, cuidados e guarda, forçada a recorrer aos serviços terceiros, quando, bem sabe o exequente que há outros bens que melhor asseguram a quantia exequenda, v.g. requerimento de substituição dos bens penhorados.
d. A executada/embargante foi privada do valor da venda dos animais.
e. Em razão de não possuir condição física, conhecimento nem meios para os tratar, desde a data da penhora em 11/07/2019, é obrigada a despender diariamente quantia bastante para os alimentar e pagar a um pastor que os acompanhe.
f. A executada é pessoa doente (entre outras patologias foi vítima de AVC), encontra-se em constante acompanhamento médico, factos que o exequente sobejamente conhece, sendo que tal como se vem relatando a situação em causa tem-lhe causado graves prejuízos.
g. Tudo isto causou e vem causando ainda à exequente, profundo mal-estar, desgosto, tristeza, desconforto, preocupação, ansiedade, angústia, irritabilidade, constrangimentos, frequentes incómodos, embaraços, vergonha, indignação, frustração e revolta.
h. Sentiu-se e sente-se vexada, ridicularizada e constrangida.
i. A quantia exequenda nestes autos de execução encontra-se reclamada e outro processo no qual o exequente é autor.
j. Na sequência do acordo referido em 1., não foram entregues os seguintes bens:
a) Reboque de trator agrícola, basculante, de marca ..., modelo ... B, matricula C-....0;
b) Canhão para rega em pressão, giratório;
c) Um conjunto de aspersores para rega, baixa pressão em metal;
d) Grade de madeira, para agradar as lavouras;
e) Um equídeo (égua) que faz parte do número e valores de animais entregues, conforme consta do Livro de Existências assinado pelas partes;
k. Na sequência do acordo referido em 1, foram entregues os seguintes bens avariados e/ou com falta de componentes:
a) Segadeira automotriz de marca ... (vários cabos e facas de corte partidos);
b) Trator de marca ... (disco de embraiagem desfeito; cabo de travão de mão partido; instalação elétrica parcialmente destruída; manómetros da temperatura e do gasóleo avariados;
c) Trator de marca ... (com o sistema de elevadores hidráulicos avariado; a tomada de força não se fixa e o sistema de combustão tem falta de pressão);
d) Charruas de dois ferros de 12’’ (encontram-se partidas no sistema de virar, estando partidos os pernos no formão);
e) Charruas de um ferro de 16’’ (encontram-se partidas e não viram);
f) Motor elétrico trifásico, falta-lhe o chupão completo e tem o disjuntor térmico de arranque queimado (foi aberto);
l. Na sequência do acordo referido em 1, não foram entregues os seguintes bens e partes integrantes afetos à exploração:
a) Metade de uma segadeira de corte duplo, marca ... (confirmado pelo mandatário do embargado, no local, ao marido da embargante e testemunha arrolada);
b) Cartão para abastecimento de gasóleo agrícola, em nome da embargante;
c) Livro de Registo de Nascimentos e Movimentos de bovinos (entradas e saídas), emitido pela DGAP/DGVA, adstrito à exploração identificada por ... e respetivas guias da DGA/IFAP;
d) Chaves de ignição dos dois tratores (... e ... entregues, avariados);
e) Chaves do palheiro em frene da igreja;
f) Barra de furos de engate da enfardadeira ao trator;
g) Jante larga com pneu a meio uso da enfardadeira ..., retirada à máquina que se encontra guardada no armazém do embargado;
h) Jante estreita com pneu a meio uso, da enfardadeira ...,
i) Um jugo completo do carro de bois;
j) Uma ponteira/torneira, retirada ao pulverizador de 400 litros do trator;
k) Um alicate para brincar bovinos e 3 brincos já cancelados;
l) Uma seringa profissional em Inox, com caixa e agulhas;
m) Uma masseira para farinha, em madeira de castanho, que, se encontrava no forno que o embargado utilizava, o qual faz parte dos prédios da exploração;
n) Dois engates de Terceiro ponto, para as alfaias dos tratores;». 2. BB intentou acção declarativa, com processo comum, que correu termos sob o nº 1572/18.... contra CC e HH, invocando que os réus incumpriram o contrato de parceria pecuária celebrado entre as partes, causando-lhe prejuízos, e pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de € 62.500,00 a título de danos patrimoniais – sendo a quantia de € 28.000,00, correspondente à valorização dos animais adultos - e não patrimoniais, a quantia de € 50,00 diários por cada dia de atraso na entrega efectiva do que forem condenados e a partir da citação e nos demais prejuízos que vierem a causar no futuro e que se vierem a apurar ou a liquidar em execução de sentença. 3. Os réus contestaram a aludida acção e deduziram pedido reconvencional, pedindo, para além do mais, que se declarasse que o referido contrato se encontra resolvido e de nenhum efeito desde 05.08.2018; que os réus/reconvintes são donos e legítimos proprietários dos bens móveis e imóveis identificados nos artigos 63.º, 64.º, 67.º e 70.º da reconvenção e que se condenasse o autor/reconvindo a reconhecer os réus/reconvintes como donos e legítimos proprietários desses bens e a restituir-lhos, bem como a pagar-lhes uma indemnização, pela privação do uso dos seus bens, a fixar em sede de execução de sentença desde a data da resolução do contrato até efectiva entrega, a pagar-lhes, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia € 100,00 por cada dia de atraso na obrigação de entrega dos bens, e a abster-se de dar aos bens da exploração agrícola destino diferente da sua utilização normal, não devendo fazer uso dos mesmos. 4. Findos os articulados, foi realizada audiência prévia, em 10.12.2021, constando da respectiva acta, para além do mais, o seguinte:
“Após o Mmº Juiz, em concordância com os Ilustres Mandatários procederam a delimitação dos temas do litígio, concordando que entre as partes vigorou um contrato cujo objeto e termos se encontram descritos nos artigos 8º a 12º da petição inicial. Mais concordaram que tal contrato só foi extinto com a decisão cuja cópia consta de fls. 526 dos autos constituída por uma transação homologada no processo cautelar 1539/18.... do ... Juízo Local Cível e datada de 13 de Junho de 2019 e cujo teor as partes dão por reproduzidas.
Declaram ainda que por força do Procedimento Cautelar supra referido e, portanto, na pendência da ação, todos os imóveis foram objeto de entrega na pendência dos autos e bem assim os dois tratores agrícolas, todos os animais, todas as alfaias os Réus, à exceção, segundo os RR, do reboque marca ...”, do aspersor giratório, do sistema de rega com 10 aspersores e da grade de alisar, sendo que os Autores não aceitam que tais bens não tenham sido entregues.
***
De seguida o Mmº Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Considerando que na pendência da ação foram entregues todos os bens imóveis, os tratores, os animais, as alfais agrícolas estas com exceção das supra referidas, julgo extinta quanto à entrega dos referidos bens a instância por inutilidade superveniente da lide (art.º 277º alínea e) do CPC).
As custas serão fixadas a final.”. 5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, já transitada em julgado, constando do respectivo dispositivo:
“A. Julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência: a) (…); b) Condeno os Réus a pagarem ao Autor a importância de € 5.000,00 (cinco mil euros) correspondente à parte que lhe é devida a título de valorização dos animais adultos;
(…)
B. Julgo parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus/Reconvintes e, em consequência: a) Declaro que o contrato celebrado entre o Autor/Reconvindo e os Réus/Reconvintes no ano de 1997 cessou por iniciativa das partes em Agosto/Setembro de 2018;
(…) d) Condeno o Autor/Reconvindo a pagar aos Réus/Reconvintes a quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) a título de indemnização pela perda do aspersor giratório com tripé, do sistema de rega com 10 aspersores e da grade de alisar a terra; e) Condenar o Autor/Reconvindo a, no prazo de 20 (vinte) dias, reparar o reboque de marca ... e matrícula C-....0 e restituí-lo aos Réus/Reconvintes em estado de funcional;
(…)”. 6. Consta da referida sentença, para além do mais, provada a seguinte factualidade:
«24. Devido ao descrito em 18. e 20., o Autor, por carta de 05.08.2018 subscrita pelo seu Mandatário, manifestou ao Réu marido a sua intenção de pôr fim à parceria que tinham desde 1997 e solicitou uma reunião tendo em vista um acerto de contas.
25. A tal missiva respondeu o Réu marido por carta de 19.09.2018, informando o Autor de que “terminou a partir deste momento qualquer relação com V.ª Ex.ª”, solicitando-lhe a entrega imediata dos bens que estão na sua posse e disponibilizando-se, quando tal ocorresse, a fazer o pretendido acerto de contas.
26. Porque não lhe tivesse sido feita a entrega dos bens, a Ré esposa instaurou contra o Autor o procedimento cautelar n.º 1539/18...., que correu termos no Juízo Local Cível – J..., desta Comarca.
27. No dia 13.06.2019 Autor e Réus puseram termo a tal litígio mediante a transacção que se encontra junta a fls. 526 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
28. Com base em tal acordo, naquele dia 13.09.2019, o Autor entregou aos Réus todos os bens imóveis, animais, tractores e alfaias agrícolas, com excepção de alguns que à data já não se encontravam na exploração agrícola, a saber o reboque de marca ... e matrícula C-....0, um aspersor giratório com tripé, o sistema de rega com 10 aspersores e a grade de alisar a terra.
29. O reboque de marca ... e matrícula C-....0 foi levado pelo Autor para reparação numa oficina sita em ..., já aí se encontrando àquela data.
30. O aspersor giratório, o sistema de rega com 10 aspersores e a grade de alisar já não se encontravam na exploração àquela data por razões não concretamente apuradas.».
*
3.2. Fundamentação de direito
3.2.1. Da nulidade processual por violação do disposto nos art.ºs 6º, nº 1, 3º, nº 3 e 591º, nº1, al. b), do NCPC [falta de convocação da audiência prévia e falta de audição das partes quanto à sua realização ou dispensa];
Como decorre do acima descrito, a apelante invoca primordialmente o cometimento pelo tribunal a quo - a montante da sentença apelada – de nulidade processual, por preterição de formalidades legalmente prescritas.
Com efeito, no presente caso, entende a recorrente que o tribunal a quo omitiu actos e/ou formalidades que a lei prescreve. Em concreto, invoca que o tribunal recorrido, findos os articulados, não convocou a competente e obrigatória audiência prévia, nem ouviu as partes quanto à realização ou dispensa de tal diligência, violando, assim, o disposto nos art.ºs 6º, nº 1, 3º, nº 3 e 591º, nº 1, al. b) do NCPC.
Vejamos, então.
É sabido que a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.
Além das nulidades típicas previstas nos art.ºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do NCPC, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, p. 235; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, p. 381.
Trata-se das nulidades secundárias, inominadas ou atípicas que podem emergir da prática de um acto que a lei não admita, da omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva ou da prática de um acto admitido ou a sua omissão em violação da sequência processual fixada pelo juiz ao abrigo do disposto no art.º 547º do CPC – cfr. art.º 195º, nº 1 do NCPC.
A nulidade do acto processual repercute-se nos actos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente (ver nº 2, do citado art.º 195º).
“Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do ato enquanto elemento da sequência do que do ato em si mesmo considerado” – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 381.
Porém, a arguição da nulidade processual deve ter lugar na própria instância em que é cometida e no prazo geral de 10 dias, por aplicação do disposto no art.º 149º, nº 1 do NCPC.
Isto posto, a este respeito, importa começar por dizer que ressalta à evidência que a sentença final de que se recorre, conhecendo apenas do mérito da oposição à execução, não contém qualquer pronúncia sobre a ora alegada nulidade processual, e só nessa hipótese caberia a este Tribunal ad quem averiguar da existência de tal nulidade processual, a qual não é de conhecimento oficioso (art.º 196º do NCPC). Note-se que os recursos visam reapreciar e modificar decisões e não criá-las sobre matéria nova, salvo nos casos de conhecimento oficioso.
E não contém a decisão impugnada qualquer pronúncia sobre a alegada nulidade processual, desde logo porque não foi tempestivamente arguida perante a 1ª instância, como exige citado normativo, na segunda parte, ao prescrever “das restantes (nulidades processuais) só pode (o tribunal) conhecer sobre reclamação dos interessados, salvo os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso”.
Assim, se a parte não reclama da nulidade ou infracção processual no tempo oportuno, e perante o tribunal onde é praticada, não pode, ulteriormente, em recurso, suscitar a nulidade, considerando-se esta sanada. O recurso não serve ou não é o meio próprio para conhecer da infracção às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela ocorreu, nos termos previstos nos art.ºs 199º a 202º do NCPC.
Ademais, a sentença final ora sob recurso, apenas circunscrita ao mérito da oposição à execução, não ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei processual não admite. E só nesse caso poderia a pretensa nulidade ser conhecida em recurso, como erro de julgamento sobre essa matéria.
De todo o modo, sempre se dirá que a arguição da aludida nulidade se revela manifestamente improcedente.
E isto porque, muito embora a convocação da audiência prévia seja a regra (cfr. nº 1 do art.º 591º do NCPC), dispõe o art.º 597º do NCPC que “nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no art.º 590º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo: (…) b) convoca audiência prévia (…)”.
Por conseguinte, atento o referido normativo, nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, cabe ao juiz, consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo, convocar, ou não a audiência prévia.
No presente caso, no despacho saneador, foi fixado à causa o valor de € 5.276,08.
Destarte, tem aqui aplicação o disposto no art.º 597º do NCPC.
A respeito desta norma referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, p. 673, que o referido normativo é “tributário de um dos princípios integrantes do principio da gestão processual (art.º 6º) - o principio da adequação formal (art.º 547º) (…). Ao juiz compete, então, nestas acções decidir sobre a prática de certos atos que a lei insere na tramitação do processo comum de declaração; mas não se pode dizer que a regra é a de que os mesmos não sejam praticados (por exemplo, não se pode depreender do art.º 597º que nas acções de valor mais baixo não tem normalmente lugar o despacho saneador, a menos que o juiz decida proferi-lo). O poder do juiz é, em principio, discricionário quanto á prática desses actos.”.
E Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. I, p. 703 afirmam que nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, “é ao juiz que cabe definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e complexidade da acção e a necessidade e adequação dos atos ao seu julgamento.”.
E foi isso mesmo que ocorreu no caso que nos ocupa, conforme decorre do despacho proferido em 7.04.2020 acima transcrito.
Ademais, o art.º 195º, nº 1 do NCPC dispõe que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Decorre da interpretação do corpo do art.º 597º acima referida e que se acolhe, que nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação não é obrigatória a convocação da audiência prévia.
Sendo assim não pode ter aplicação o disposto no art.º 195º, nº 1 na parte em que se refere à “omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva”, o que só por si, determina a improcedência da invocada nulidade da não convocação da audiência prévia.
Acresce que a recorrente nem sequer alega – nem tal decorre dos autos - que a omissão da realização de tal diligência tenha tido influência na decisão da causa ou prejudicado os direitos de defesa da embargante.
Improcede, pois, a apelação nesta parte. 3.2.2. Da violação, pelo despacho de indeferimento da reclamação do despacho saneador, do disposto no art.º 596º, nº 3, do NCPC;
Veio ainda a apelante arguir, no âmbito do presente recurso, a violação do disposto no art.º 596º, nº 3, do NCPC (certamente querendo referir-se ao nº 2, do referido preceito), dado que o tribunal recorrido não conheceu da reclamação deduzida ao despacho saneador.
Vejamos.
Já acima se concluiu que, ao caso sob apreciação, se aplica o disposto no art.º 597º, do NCPC o qual dispõe, além do mais:
“Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo: (…) e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º; (…)”.
O nº 1 do art.º 596º, do referido compêndio legal estabelece, por sua vez, “que proferido despacho saneador, quando a acção houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
A este propósito Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, p. 226-227 refere que o despacho a identificar o objecto do litigio será proferido “em função da causa de pedir e do pedido” e os temas da prova são “as questões essenciais de facto relevantes (rectius, pertinentes/imprescindíveis) para uma boa e justa decisão do pleito que permaneçam controvertidos (assim concretizando o objecto da prova a efectuar subsequentemente)”.
E o nº 2 do art.º 596º, do NCPC prevê que as partes podem reclamar do despacho que fixa o objecto do litígio e enuncia os temas de prova.
Com efeito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 702 referem: “A reclamação prevista no n.º 2 pode ter como fundamentos: a omissão de enunciação de pontos relevantes no que tange ao objecto do litigio e aos temas da prova (deficiência); o vicio inverso de inclusão de matéria espúria que ultrapassa o objecto do processo ou a factualidade aduzida pelas partes (excesso); a ininteligibilidade ou o carácter dúbio do objecto do litigio ou de um tema da prova (obscuridade).”.
Ou seja, a reclamação prevista no art.º 596º, nº 2, do NCPC refere-se ao despacho que fixa o objecto do litígio e enuncia os temas de prova, não visando o despacho saneador propriamente dito.
Por sua vez, dispõe o nº 3 do aludido art.º 596º que o despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final.
Ora, no caso, o tribunal recorrido decidiu dispensar o despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, o que lhe era permitido ao abrigo do disposto no referido art.º 597º, pelo que, naturalmente, julgou improcedente a reclamação deduzida pelo ora recorrente.
Depois, não podemos olvidar que o despacho que decide as reclamações constitui uma decisão interlocutória.
Sucede que a impugnação das decisões interlocutórias está sujeita ao disposto no art.º 660º do NCPC, o qual prescreve: “O tribunal só dá provimento à impugnação das decisões interlocutórias, impugnadas conjuntamente com a decisão final nos termos do n.º 3 do artigo 644.º, quando a infracção cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento tenha interesse para o recorrente.”.
Daqui decorre que não se pode analisar o despacho que decide as reclamações per si, mas apenas em função da decisão final, isto é, verificando se implica ou é susceptível de implicar uma modificação dessa decisão.
É o que ocorre, mormente, se os temas da prova omitirem um ou vários pontos de facto essenciais relativamente a uma das pretensões deduzidas ou a uma das excepções invocadas, tornando necessária a ampliação da matéria de facto, à luz do disposto no art.º 662º, nº 2, al. c), parte final, em que se refere o dever da Relação de, mesmo oficiosamente, anular a decisão de facto proferida em 1ª instância quando considere indispensável a ampliação desta. Mas mesmo assim a questão da reclamação quanto aos temas da prova só assumiria pleno relevo no momento de apreciar a decisão de facto e de se concluir que é necessária a sua ampliação.
Nada disto sucede no caso, não se vislumbrando (nem a recorrente o alega) que a supostainfracção cometida pelo tribunal a quo seja susceptível de ter repercussão na decisão final.
Destarte, é igualmente manifesta a improcedência do recurso nesta parte. 3.2.3. Da nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC (por contradição entre os factos provados e não provados);
A recorrente concluiu as suas alegações de recurso, afirmando ainda que a sentença recorrida é nula, por ocorrer, na sua perspectiva, contradição entre o ponto 1. dos factos provados e o teor da al. i) dos factos não provados.
O tribunal a quo não proferiu despacho a pronunciar-se sobre a invocada nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, nº 1 e 617º, nº 1 do NCPC. Todavia, tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade (cfr. nº 5, do referido art.º 617º, do NCPC e Abrantes Geraldes,inRecursos no Processo Civil, 6ª edição, p. 214).
Vejamos, então, se assiste razão à recorrente.
As causas de nulidade da sentença encontram-se enumeradas, de forma taxativa, no art.º 615º do NCPC, dispondo esse preceito que, para além das demais situações contempladas nesse normativo, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível [nº 1, al. c)].
É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito: as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito; enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual [nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma] ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava José Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 124 e 125, o tribunal comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) (cfr. neste sentido, o ac. do STJ de 17.10.2017, processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt).
Em suma, as causas de nulidade da decisão elencadas no art.º 615º do NCPC visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo, motivo pelo qual a sua arguição não deve ser acolhida quando se sustente a mera discordância em relação ao decidido.
No caso vertente, como vimos, a recorrente invoca que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art.º 615º do NCPC, sustentando que foi dado como não provado que a quantia reclamada na execução apensa não é a reclamada noutro processo em contradição com a factualidade constante do ponto 1. do elenco dos factos provados, o qual retrata o teor do acordo homologado por sentença (dada à execução), do qual resulta expressamente que a quantia reclamada nestes autos seria descontada na que viesse a ser fixada no processo nº 1572/18.....
A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (cfr., entre muitos outros, o ac. do STJ de 26.01.2017, processo nº 8838/12.0T8BVNG.P2.S1, acessível in www.dgsi.pt).
Situações diferentes desta, são aquelas em que se regista uma contradição entre alguns dos factos que o tribunal considerou provados, ou entre factos provados e não provados, ou quando a matéria de facto referida na decisão é insuficiente para a tomada de posição sobre o pedido formulado. Nestas circunstâncias podemos estar perante um erro ou vício da decisão de facto.
Estas situações encontram acolhimento na previsão do art.º 662º do NCPC relativamente à modificabilidade da decisão de facto. O nº 1 deste artigo estabelece que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Já o nº 2 vem prever, designadamente na sua al. c), a possibilidade de anulação da decisão da 1ª instância quando “…não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.”.
A situação alegada pela recorrente relativamente à qual a mesma conclui pela existência de contradição na decisão sobre a matéria de facto, mais não é do que um eventual vício da decisão de facto, que tem a sua previsão no mencionado art.º 662º, nº 2 al. c) do NCPC, não determinando a nulidade da sentença nos termos do art.º 615º n.º 1, do NCPC.
Tal como nos diz com toda a clareza o ac. do STJ de 23.03.2017 (processo nº 7095/10.7TBMTS.P1. S1, in www.dgsi.pt) com respeito à decisão de facto, a mesma pode: “padecer dos vícios de deficiência, obscuridade ou de contradição nos termos especificamente previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Por sua vez, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão sobre algum facto essencial constitui irregularidade suprível, mesmo oficiosamente, nos termos do citado artigo 662.º, nº 2, alínea d), e 3, alínea b). Nessa medida, em sede de decisão de facto, não se afigura, em princípio, aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC. (…) Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.”.
Em face do exposto, verifica-se que a situação invocada pela recorrente não é susceptível de revelar qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão que possa determinar a nulidade da sentença, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1 al c), do NCPC.
De todo o modo, e uma vez que o vício da decisão da matéria de facto previstos na al. c) do art.º 662º, do NCPC podem ser conhecidos oficiosamente, julga-se pertinente desde já referir, quanto tal vício, que aparentemente tal contradição se verifica. E, tal ocorre, a nosso ver, em virtude de a matéria que consta da al. i) dos factos não provados não se tratar de um facto mas antes de uma conclusão, que para constar dos factos provados necessita de ser concretizada no sentido de saber quais são as quantias reclamadas num e noutro processo.
O art.º 607º, nº 4 do NCPC estabelece: "Na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras de experiência".
Consideramos que é pacífica a conclusão de que a decisão sobre a matéria de facto só pode ser integrada por factos, o que decorre da norma mencionada, devendo assim ficar afastados da mesma os juízos meramente conclusivos ou os conceitos de direito.
Nem sempre é fácil distinguir um facto de uma conclusão ou distinguir matéria de facto de matéria de direito. A jurisprudência tem vindo a considerar, do que é exemplo o ac. do STJ de 7.05.2014 (processo nº 39/12.3T4AGD.C1.S1, in www.dgsi.pt) que: “são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, na expressão do Ac. de 09-12-2010 deste Supremo Tribunal, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.”.
À luz destas considerações e revertendo para o caso em presença, sem grande dificuldade se percebe que a matéria que consta da al. i) dos factos não provados tem natureza conclusiva, apenas podendo ser alcançado com recurso a factos concretos que o revelem.
Em face do exposto, já se vê que a matéria da al. i) em causa tem de considerar-se como não escrita, por não conter factos, mas apenas uma conclusão, podendo ser relevante para a solução do litígio (mormente, face ao alegado na oposição, para efeitos de litigância de má-fé, como melhor veremos infra), que importa avaliar em sede de apreciação jurídica da questão controvertida, em função dos factos provados, sendo aí a sede própria para a ponderar.
Elimina-se por isso a al. i) dos factos não provados.
Procede, pois, nesta parte a apelação, ainda que com fundamentos diversos. 3.2.4. Da existência de causa prejudicial [quanto à quantia devida pela valorização dos animais]
Argumenta a recorrente que a presente oposição à execução deveria ter aguardado o trânsito da decisão proferida no processonº 1572/18...., na qual foi fixada a indemnização devida ao aqui exequente e ali autor, a título de valorização dos animais, pelo que foi violado o disposto no art.º 272º, do NCPC.
Vejamos.
Na acção alegadamente prejudicial - processo nº1572/18.... -, intentada pelo aqui exequente/embargado contra a aqui executada/embargante foi peticionado, para além do mais, a condenação desta e do marido no pagamento de uma indemnização no valor de € 28.000,00, a título de valorização dos animais adultos.
Nos presentes autos, a embargante deduziu oposição à execução intentada pelo embargado baseada na sentença homologatória de transacção, celebrada entre as partes no âmbito do processo cautelar que correu termos sob o nº 1538/18.... e já transitada em julgado, com o seguinte teor:
“1.ª - O Requerido obriga-se a proceder à entrega, na data de hoje, da exploração agrícola levada a cabo nos prédios rústicos da Requerente, entrega essa que inclui, não só a totalidade dos prédios em causa, bem como todos os animais, objectos e máquinas agrícolas que aí se encontrem. 2.ª - A Requerente obriga-se a pagar ao Requerido a quantia de 5.250,00€ mediante cheque emitido à ordem do Requerido que entregará no dia de hoje contra a entrega pelo demandado da exploração agrícola nos termos referidos na cláusula 1.ª. 3.ª - O valor do pagamento da cláusula 2.ª será tido em conta e descontado na indemnização que possa ser atribuída ao Requerido no âmbito do processo n.º1572/18.... a título da valorização dos animais. 4.ª - As partes comprometem-se a assinar documento comprovativo de entrega da exploração agrícola e do recebimento da indemnização previstos nas cláusulas 1.ª e 2.ª. 5.ª - As custas serão suportadas pelos litigantes em partes iguais, prescindindo de custas de parte, sem prejuízo do apoio judiciário de que alguma das partes beneficie”.
Constata-se ainda que, na petição dos presentes embargos de executado, a embargante apenas veio invocar que a quantia exequenda não é devida, porquanto o exequente não cumpriu a contrapartida a que estava adstrito (de entrega da totalidade dos bens móveis reclamados no procedimento cautelar), sendo que apenas em sede de litigância de má-fé é que alega que “a quantia exequenda encontra-se reclamada em outro processo onde o exequente é Autor” (cfr. artigo 39 do referido articulado).
Segundo o art.º 272º, nº 1, do NCPC o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Como decorre expresso do referido preceito, a verificação de causa prejudicial não é impositiva da suspensão da instância, mas o poder facultado não é discricionário, antes depende da existência em juízo de outra acção que seja causa de prejudicialidade desta.
A suspensão da instância por causa prejudicial justifica-se, por norma, com fundamento na economia processual, sendo, no entanto, de ponderar o princípio da celeridade processual e evitar expedientes dilatórios.
Aliás, não havendo suspensão da instância e vindo a ocorrer decisões contraditórias, vingará a que primeiro transitou em julgado, por força do disposto no art.º 625º, do NCPC.
De todo o modo, o legislador consagrou o instituto da suspensão da instância, tal como se encontra previsto no referido art.º 272°, nº 1, do NCPC, precisamente como meio preventivo de decisões contraditórias entre si.
Com efeito, verifica-se a existência de uma causa prejudicial quando a decisão de uma causa depende do julgamento de outra, ou seja, quando a acção dependente tenha por objecto a apreciação de uma concreta questão cuja solução final seja suscetível de ser afectada na consistência jurídica ou prático-económica pela decisão a tomar na outra (prejudicial), quando a decisão da ação dependente possa ser decisivamente influenciada pela decisão a proferir na causa prejudicial.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Processo Civil, p. 575: “A relação de prejudicialidade entre objetos processuais verifica-se quando a apreciação de um objeto (que é prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objeto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objeto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na ação em que é apreciado o objeto dependente. Nesta hipótese, o tribunal da acção dependente está vinculado à decisão proferida na causa prejudicial”.
Tal ressalta, aliás, do disposto no art.º 276°, nº 2, do NCPC, quando diz que se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente.
No caso, da análise da transacção celebrada entre as partes – nomeadamente da redacção conferida à cláusula 3ª - inevitavelmente se conclui que a decisão da presente oposição à execução não depende da resolução que foi dada aos pedidos deduzidos no processo nº 1538/18..... Ou seja, a obrigação de pagamento da quantia exequenda não ficou dependente da decisão a proferir no referido processo (quanto à definição da quantia a pagar ao ali autor e aqui exequente, a título de valorização dos animais). Tal pagamento ficou apenas dependente/condicionado à entrega da exploração agrícola à embargante.
O que as partes acordaram é que a quantia seria paga mediante a entrega da exploração agrícola e que tal pagamento seria tido em conta e seria descontado “na indemnização que possa ser atribuída ao Requerido no âmbito do processo n.º1572/18.... a título da valorização dos animais.” (o sublinhado é nosso).
A utilização da expressão “possa ser atribuída” é por demais reveladora de que o pagamento da referida quantia não ficou dependente do que viesse a ser decidido no processo nº 1572/18..... Segundo o acordado, a quantia em causa devia ser liquidada simultaneamente com a entrega da exploração agrícola, ou seja, em momento anterior à prolação de decisão no mencionado processo e independentemente de vir ou não a ser fixada a indemnização peticionada.
E, assim sendo, a apreciação do pedido formulado neste processo de oposição à execução (que é - recorde-se - de extinção da execução apensa) não estava, nem está dependente da fixação da indemnização peticionada pelo autor no aludido processo.
E se é certo que o exequente/embargado não pode receber a quantia duas vezes, como ficou devidamente acautelado na transacção celebrada entre as partes, a questão dever-se-á colocar não nesta sede, como já defendido pelo tribunal a quo, mas antes no âmbito de execução que possa vir a ser instaurada com base na sentença proferida no processo nº 1572/18...., pois o que foi acordado é que a quantia acertada na transacção homologada por sentença dada à execução seria descontada na quantia que eventualmente viesse a ser fixada naqueloutro processo e não o inverso, como pretende agora a recorrente.
Neste conspecto, improcede a apelação neste segmento recursivo.
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3.2.5. Da violação da autoridade do caso julgado [quanto à determinação dos bens que o exequente estava obrigado a entregar]
Conforme decorre do acima exposto, veio ainda recorrer a embargante com fundamento na violação da autoridade do caso julgado formado na acção declarativa condenatória que correu termos sob o nº 1572/18...., em que também eram partes os aqui embargante e embargado, mormente por alegadamente não ter sido atendido nos presentes autos o que ali foi dado como provado quanto à entrega dos bens.
Por conseguinte, importa começar por apurar se ocaso julgado formado na decisão proferida na aludida acção se impõe nestes autos de forma a ser tido em consideração o ali dado como provado quanto à entrega dos bens que compunham a exploração agrícola.
A resposta à questão assim enunciada convoca, pois, a problemática da eficácia objectiva do caso julgado material formado com o trânsito em julgado da decisão anteriormente proferida numa acção em que tiveram intervenção a ora recorrente e o ora recorrido.
Como é sabido, o caso julgado material radica no disposto nos art.ºs 619º, nº 1 e 621º, ambos do NCPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido – art.º 2º da Constituição da República Portuguesa –, destinando-se a evitar que no exercício da função jurisdicional, duplicando-se as decisões sobre idêntico objecto processual, se contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
Pode dizer-se então que o caso julgado consubstancia a ideia de uma decisão judicial firme, ou que traduz a decisão judicial que se consolidou na ordem jurídica.
A figura do caso julgado, após a revisão do Código de Processo Civil, que lhe foi dada pelos DL 329-A/95 de 12.12 e posteriormente pelo DL 180/96 de 25.09, passou a constituir uma excepção dilatória– ao contrário do que sucedia até então em que assumia a natureza de excepção peremptória (cfr. art.º 494º, al. i) do referido diploma).
O caso julgado constitui, assim, uma das excepções previstas na lei adjectiva, que é de conhecimento oficioso e cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. art.ºs 494º, nº 1, al. i), 495º e 493º, nº 2, do NCPC), e não do pedido como sucedia anteriormente quando constituía excepção peremptória.
Esta excepção pressupõe, nos termos do art.º 497º, nºs 1 e 2 do NCPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Isso mesmo acentua Anselmo de Castro (in “Processo Civil Declaratório”, Vol. II, p. 242), tal impedimento, destina-se a duplicações inúteis da actividade jurisdicional e eventuais decisões contraditórias.
O caso julgado pode ser formal ou material. Haverá caso julgado formal se a sentença ou o despacho incidirem, apenas, sobre a relação processual, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta julgada no processo (art.º 620º do NCPC). Já o caso julgado material respeita ao mérito da causa subjacente à relação material controvertida, passando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, de acordo com o nº 1 do art.º 619º do NCPC.
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina, quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Segundo Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, p. 93, o caso julgado material exerce a sua função positiva quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões, na sua força obrigatória, exercendo a sua função negativa quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.
Citando Castro Mendes, escreveu também Lebre de Freitas(inCódigo de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, p. 325) que: “(…) pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, enquanto que a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (...).”.
Este efeito positivo do caso julgado material assenta, pois, numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.
Neste sentido pode ver-se o ac. do STJ, de 5.12.2017, relatado por Pedro Lima Gonçalves e disponível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:
«I - A lei processual civil define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado traduz-se na insuscetibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respetivo trânsito em julgado – arts. 619.º, n.º 1, e 628.º, ambos do CPC. II - Ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”). III - A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida. IV - A função negativa opera por via da “exceção dilatória do caso julgado”, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.».
Ainda no mesmo sentido, podemos ver: o ac. do STJ, de 15.09.2022, relatado por Fernando Baptista; o ac. da RC de 24.05.2022, relatado por Teresa Albuquerque; o ac. da RL de 26.12.2021, relatado por José Capacete; o ac. da RP de 12.09.2023, relatado por Artur Dionísio Oliveira e desta Relação de Guimarães de 27.04.2023, relatado por Francisco Sousa Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Desta distinção resulta mesmo o entendimento de que os requisitos ou pressupostos da excepção, que enunciamos supra, e da autoridade do caso julgado não serem necessariamente iguais. Desde logo, a autoridade do caso julgado actue não se exige a coexistência das três identidades referidas no art.º 498º do NCPC, sujeitos, pedido e causa de pedir.
Já no que refere à eficácia do caso julgado, na vertente objectiva, importa ter presente o que preceitua o art.º 673º do NCPC, no qual sobre a epígrafe de “alcance do caso julgado”, podemos ler: “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga...”.
Segundo Castro Mendes [in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 50] constitui problema delicado a “relevância do caso julgado em processo civil posterior”.
Com efeito, o problema da autoridade do caso julgado conduz-nos a uma questão muito discutida e com particular acuidade no caso presente: a de saber o que é que na sentença constitui a autoridade de caso julgado e o que é que não pode constituir.
Alguns doutrinadores, designadamente, Alberto dos Reis [in, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. III, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 139], Lebre de Freitas [in Revista da Ordem dos Advogados, nº 66, dezembro de 2006, p. 15] e Remédio Marques [in, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 447], defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença.
Porém, a corrente predominante relativamente a esta questão e que também acolhemos é a que perfilha um entendimento mitigado, no sentido de que, muito embora a autoridade ou eficácia do caso julgado não deva, como princípio ou regra, abranger ou cobrir os motivos ou fundamentos da sentença, cingindo-se apenas à decisão na sua parte final, ou seja, à sua conclusão ou parte dispositiva final; será, todavia, de se estender também às questões preliminares que constituírem um antecedente lógico indispensável ou necessário à emissão daquela parte dispositiva do julgado[cfr. Manuel de Andrade, in ob. cit., p. 285; Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 152 e seguintes, e Miguel Teixeira de Sousa, in Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIV, 1997, p. 309 a 316].
Com efeito, nas impressivas palavras de Teixeira de Sousa “Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.” [vide, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 578-579].
Na esteira desta doutrina, podemos ler, entre muitos outros, o ac. do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt), segundo o qual “a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa” e abrange, “para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”.
Ainda no mesmo sentido, podemos ver mais recentemente o ac. do STJ de 12.04.2023, relatado por Jorge Dias, o ac. da RP de 5.02.2024, relatado por Anabela Morais e os acs. desta Relação de Guimarães, de 16.02.2023, relatado por Anizabel Sousa Pereira e de 23.11.2023, relatado por Maria João Matos, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Mas, não obstante a divergência registada ao nível da doutrina sobre o âmbito objectivo do caso julgado, a verdade é que todos os autores parecem estar de acordo num ponto, ou seja, que os fundamentos de facto, por si só, nunca formam caso julgado.
Pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Antunes Varela [in, Manual de Processo Civil, p. 697] que “os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.
Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa [in Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 580], “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto “esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta.”.
Tem sido este também o entendimento unânime seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do ac. do STJ, de 08.10.2018 (prolatado no processo nº 478/08.4TBASL.E1.S1 e acessível in www.dgsi.pt), cujo sumário se mostra particularmente elucidativo:
«I. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa. II. Embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado. III. Assim, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada. IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. V. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo. VI. De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação.».
Vide, ainda a este propósito, os acs. do STJ, de 17.05.2018, relatado por Maria Rosa Oliveira Tching e de 12.04.2023, relatado por Jorge Dias, bem como o ac. desta Relação de Guimarães de 22.09.2016, relatado por Maria Luísa Ramos, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Isto posto, e voltando à analise da pretensão recursória, no que a este particular concerne, afigura-se-nos ser evidente que os factos dados como provados no processo nº 1572/16...., relativos à entrega dos bens, não valem com autoridade de caso julgado para o efeito de poderem ser dados como provados na presente acção, sob pena de se estar a conferir à decisão sobre a matéria de facto um valor de caso julgado que, manifestamente, a mesma não tem.
Com efeito, e não obstante sufragarmos o entendimento da extensão da autoridade do caso julgado aos fundamentos da decisão nos casos em que exista uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objecto da acção posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto de uma acção posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objecto da primeira acção, sendo seu pressuposto lógico, a verdade é que, não podemos deixar de ter em conta, por um lado, que, mesmo numa relação deste tipo, só adquirem o valor de caso julgado os fundamentos da decisão transitada que são pressuposto lógico indispensável da apreciação do objecto de uma acção posterior.
Daí entendermos que a força ou autoridade de caso julgado formada pelos fundamentos da decisão final proferida no processo nº 1572/18...., não se estende, sem mais, a todo o objecto do presente processo, impondo, antes, uma análise mais aprofundada por forma a determinar-se se e em que medida aquela decisão se impõe e influencia o tratamento a dar às questões suscitadas nos presentes autos.
Ora, a verdade é que muito embora em ambas as causas ora em análise se discuta a entrega de bens que compunham a exploração agrícola, naquele processo (nº 1572/18....) não esteve em discussão, como está no presente, a interpretação da vontade das partes na celebração da transacção homologada pela sentença dada à execução. Verificou-se antes o oposto, porquanto, na referida acção, o teor da referida transacção serviu de fundamento para extinguir (parcialmente) a instância quanto ao pedido de entrega dos bens.
Não se apresentou, pois, a questão em discussão nos presentes autos – quais os bens que o exequente se obrigou a entregar em face de tal acordo - como pressuposto ou antecedente lógico da decisão proferida na dita acção nº 1572/18.....
Vale tudo isto por dizer que o facto de ter resultado provado no referido processo nº 1572/18.... que o aqui exequente/embargado entregou todos os bens, à excepção dos que, à data não se encontravam na exploração agrícola (cfr. pontos 24 a 30 dos factos naqueloutra acção e acima descritos), não impede que o tribunal recorrido, nesta acção, tenha considerado – interpretando o acordado entre as partes – que o exequente cumpriu a sua obrigação com a entrega dos bens que se encontravam, à data, na dita exploração.
O que, diga-se, nem sequer contende com o que ficou demonstrado naqueloutro processo, pois, o que aí resultou demonstrado foi precisamente que o ora exequente/embargado entregou não só os prédios, como os animais e todos os bens móveis que se encontravam, à data, na exploração; tendo somente resultado provado ainda que só não foi realizada a entrega de um reboque que se encontrava a reparar numa oficina e a perda do aspersor giratório com tripé, do sistema de rega com 10 aspersores e da grade de alisar a terra, sendo o prejuízo pela perda destes bens sido computado na quantia de € 450,00.
Por conseguinte, é por demais evidente, que também tem de improceder o recurso nesta parte. 3.2.6. Da errada apreciação da prova testemunhal quanto à obrigação de entrega dos bens, apreciando-se – como questão prévia – o (in)cumprimento pela recorrente do respectivo ónus de impugnação previsto no art.º 640º, do NCPC:
A recorrente veio igualmente insurgir-se contra a ponderação da prova testemunhal feita pelo tribunal a quo, quanto aos bens que o exequente/embargado estava obrigado a entregar, aparentando, assim, pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto (embora também invoque sem o fundamentar o disposto no art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC – note-se que a recorrente apesar de aludir à referida norma nada aduz de forma a permitir concluir pelo preenchimento dos pressupostos necessários à aplicação deste normativo neste conspecto).
Ora, a modificação da decisão de facto não só é legalmente permitida, como é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão (art.º 662º, nº 1 do NCPC).
De todo o modo, impugnando a decisão da matéria de facto, deve o recorrente especificar, obrigatoriamente e sob pena de rejeição (vide, art.º 640º nº 1 do NCPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.
No caso de prova gravada, incumbe ainda ao recorrente [vide nº 2, al. a) deste art.º 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Analisadas as alegações recursórias, resulta patente que os mencionados requisitos não foram integralmente observados pela ora apelante (sendo, pois, esta quem violou o disposto no art.º 640º, do NCPC).
Desde logo, e concedendo-se que a mesma pretendia impugnar a matéria de facto relativa ao cumprimento do acordo quanto aos bens a entregar, a mesma não indicou a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre tal matéria.
Com efeito, a recorrente pretendendo insurgir-se contra a ponderação da prova feita pelo tribunal a quo, que no seu entender impunha pronúncia diferente sobre os factos relativos ao (in)cumprimento do acordo quanto aos bens a entregar, não indica, desde logo, a resposta que pretende que seja dada aos mesmos.
Acresce ser ainda evidente que a recorrente não cumpriu o requisito previsto no nº 2, do citado art.º 640º, do NCPC.
Ora, como se sabe, “a razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código; nessa conformidade, a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso” (cfr. ac. do STJ de 15.02.2018, processo nº 134116/13.2YIPRT.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt).
Dito de outra maneira, e por contraponto ao ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto, que decorre da al. a) do nº 1, o ónus, secundário, de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados, tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes deve ser “interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade” (cfr. ac. STJ de 29.10.2015, processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, no mesmo site). A indicação dos concretos meios probatórios convocáveis pelo recorrente, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, “já não respeita propriamente à delimitação do objeto do recurso, mas antes à amplitude dos meios probatórios a tomar em linha de conta, sem prejuízo, porém, dos poderes inquisitórios do tribunal de recurso de atender a meios de prova não indicados pelas partes, mas constantes dos autos ou das gravações realizadas” (cfr. ac. STJ de 17.03.2016, processo nº 124/12.1TBMTJ.L1.S1 e ainda de 22.10.2015, processo nº 212/06.3TBSBG.C2.S1, ambos em www.dgsi.pt.).
Por isso se escreve no ac. STJ de 9.2.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, acessível in www.dgsi.pt): “… no que respeita à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos, a sua inobservância não se mostra, sempre, assim tão pertinente, tendo em conta o processo técnico dessas gravações e o modo como ficam registadas nos respetivos suportes magnéticos, com o indicação do início e fim da gravação em relação a cada depoimento. Acresce que a indicação parcelada de determinadas passagens dos depoimentos convocados só raramente dispensam o tribunal de recurso de ouvir todo o depoimento, na medida em que os interrogatórios sobre determinado ponto de facto e as respetivas instâncias da parte contrária e do tribunal não são sequenciais, encontrando-se disseminadas ao longo de todo o depoimento. Em face disso, afigura-se que a sanção prescrita no n.º 2, alínea a), do art.º 640.º do CPC deverá ser aplicada com algum tempero, em termos de só se justificar quando, perante extensos depoimentos a abarcar matéria bastante diversificada - a maior parte dela não impugnada - a omissão ou inexactidão na indicação das passagens tidas por relevantes dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.”.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a recorrente se limitou a identificar os depoimentos produzidos em audiência de julgamento que diz não terem sido devidamente valorados e os respectivos minutos, sem indicar ou transcrever qualquer excerto e sem qualquer indicação, complementar das razões para que os referidos depoimentos devam ser valorados não no sentido decidido mas no sentido pretendido.
Ora, a mera indicação dos depoimentos sem a mínima indicação das passagens tidas por relevantes e sem qualquer indicação adjuvante no corpo das alegações ou nas conclusões das razões pelas quais as respostas à matéria de facto devem ser alteradas, não permitiu, nem permite o eficaz exercício do contraditório ou que o tribunal de recurso possa proceder a uma eficiente análise crítica da prova produzida.
Como assim, cremos que a omissão na indicação das passagens tidas por relevantes, sobretudo porque também desacompanhadas da indicação da decisão que no seu entender deve ser proferida sobre a matéria impugnada justificaria, no caso, a rejeição liminar do recurso (cfr. ac. do STJ de 21.06.2022, processo nº 644/20.4T8LRA.C1.S1).
Com efeito, admitir um recurso nessas condições equivaleria a admitir a possibilidade de uma impugnação generalizada (que se pretende evitar) sem a dedução de quaisquer argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo, desse modo se abrindo a porta a recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pinto e Luís Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. I, p. 770 e 771).
Não obstante, procedemos à audição integral dos depoimentos indicados, e cremos que dos mesmos também não se retira conclusão diversa da que logrou obter o tribunal recorrido, não assistindo à apelante razão na alteração pretendida, também por esta via.
Na verdade, a única testemunha que disse ter conhecimento directo dos termos do acordo celebrado entre as partes foi a testemunha CC, marido da ora recorrente, tendo-se revelado, porém, o seu depoimento notoriamente interessado e nada objectivo (manifestando relutância ou dificuldade em responder directamente às questões que lhe foram sendo colocadas), não merecendo suficiente credibilidade.
Deste modo, não podemos acolher a crítica dirigida à decisão do tribunal recorrido nesta parte, designadamente, quanto à interpretação que fez do acordo celebrado entre as partes, interpretação, aliás, perfeitamente conforme as regras comuns aplicáveis à interpretação dos negócios jurídicos, previstas nos art.ºs 236º e seguintes do CC, e portanto, também aplicáveis à transacção.
Na verdade, e acompanhando o tribunal da 1ª instância, também se nos afigura que não só a letra do negócio, como as circunstâncias de tempo e de lugar que antecederam a celebração da transacção e contemporâneas desse momento, bem como o fim visado pelas partes, nos leva a considerar que as partes quiseram colocar termo ao contrato que vigorava entre as partes com a entrega – a ocorrer no próprio dia em que a transacção foi celebrada - dos bens que se encontrassem, à data, na exploração agrícola.
E, assim sendo, não podemos deixar de concluir pelo acerto da decisão recorrida e pela falta de razão da recorrente também neste ponto.
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3.2.7. Do erro de julgamento da decisão relativa à litigância de má-fé.
Por fim, defende a recorrente a violação da decisão recorrida do disposto no art.º 542º, do NCPC, disposição relativa à litigância de má-fé.
Discorda, portanto, a recorrente da decisão proferida quanto ao pedido de condenação como litigante de má-fé formulado contra o exequente/embargado.
Analisando.
O modelo processual vigente consagra, como um dos seus princípios fundamentais, o princípio da cooperação, segundo o qual “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” – cfr. art.º 7º, nº 1, do NCPC.
No que respeita às partes, o dever de cooperação vem concretizado no art.º 8º, do NCPC que impõe às partes o dever de agir de boa fé.
A violação de tal dever pode traduzir-se em litigância de má fé que tem como consequência a condenação da parte em multa e em eventual indemnização à parte contrária (cfr. art.ºs 542º, nº 1 e 543º, do NCPC).
A noção de litigante de má fé encontra-se, por sua vez, plasmada no art.º 542º, nº 2, do mesmo diploma legal. Com efeito, neste preceito estabelece-se o seguinte:
“Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Por conseguinte, tem-se entendido que a litigância de má fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável).
Vide, a este propósito, na jurisprudência, entre muitos outros, os acs. do STJ de 28.02.2002, relatado por Vitor Mesquita, da RG de 10.05.2018, relatado por Alcides Rodrigues, da RC de 28.05.2019, relatado por Isaías Pádua e da RP de 24.09.2020, relatado por Manuel Rodrigues, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
De todo o modo, em qualquer dessas modalidades, importa que se esteja perante uma intenção maliciosa ou, pelo menos, perante uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-se da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reacção punitiva.
Com efeito, ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12, actualmente as condutas passíveis de integrar má-fé para este efeito não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave.
Instituiu-se uma acrescida e substancial responsabilização das partes pelo cumprimento dos deveres de probidade e de cooperação, alargando o âmbito da litigância de má fé.
A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito, como lapidarmente se afirma nos acs. do STJ de 12.11.2020, relatado por Maria Rosário Morgado e de 12.04.2023, relatado por Jorge Dias, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, de conhecimento oficioso e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos.
De facto e como assinala Pedro Albuquerque (in, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude De Actos Praticados No Processo, Almedina, p 53), na litigância de má-fé estamos perante uma responsabilidade com cunho próprio, que a distingue da responsabilidade civil [não interferindo uma com a outra, podendo perfeitamente coexistir], assentando em deveres de cooperação e probidade, pressupondo, por isso, violação de obrigações ou situações processuais, autónomas relativamente ao direito substantivo.
O instituto não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes procura acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial (vide, autor e obra cit., p. 55 e 56).
Ante o exposto, no essencial, podemos concluir que, na litigância de má-fé não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do citado art.º 542º, nº 2, do NCPC; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; e as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (cfr. art.ºs 542º, nº 1 e 543º, do NCPC).
Cabe dizer ainda ser pacífico que a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se (vide, ac. do STJ de 30.11.2021, relatado por Fernando Baptista de Oliveira e ac. da RP de 10.12.2019, relatado por Eugénia Cunha, ambos disponíveis in www.dgsi.pt).
Na verdade e como também se pode ler no ac. do STJ de 11.04.00, processo nº 34786 (citado no aludido ac. do STJ de 30.11.2021), a questão da má fé material não pode ser vista com a linearidade que por vezes lhe é atribuída, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil e tem foros de garantia constitucional.
Na verdade, se é certo que o direito de recorrer aos Tribunais para aceder à Justiça constitui um direito fundamental – cfr. o art.º 20º da Constituição da República – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art.º 542º do NCPC.
Por isso, terá de haver uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.
A afirmação da litigância de má fé depende, pois, da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé. Cfr., neste sentido, os acs. do STJ de 14.03.2002 e 15.10.2002, citados no ac. da RP, de 20.10.2009, relatado por João Ramos Lopes e acessível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2009:30010.A.1995.P1.
Posto isto, no caso em apreço, e ante tudo o que acima deixamos dito, julga-se não se poder concluir com segurança que o recorrido litigou de má fé, mormente por ter consciência de ter deduzido pretensão sem fundamento ou pretender receber a indemnização pela valorização dos animais duas vezes, como alegou a apelante.
Assim e sem necessidade de outras e maiores considerações, e não se vislumbrando que o recorrente, tenha actuado com manifesta má-fé substancial ou instrumental, não se antevê razões para o condenar como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto no art.º 542º e seguintes, do NCPC.
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Em conclusão, e sem prejuízo da alteração introduzida à matéria e facto, julgamos improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
A recorrente suportará, porque vencida, as custas do presente recurso (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Guimarães, 16.01.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dr(a). Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dr(a). Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues