Não havendo arguido formalmente constituído, mas, apenas denunciado conhecido, no momento de tomada de declarações para memória futura de vítimas/testemunhas em relação de parentesco ou intimidade com o denunciado, nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, devem ou não as mesmas ser previamente, esclarecidas e advertidas da faculdade de recusa a depor prevista no artigo 134.º, n.º 2 ?
Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
I.1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, não se conformando com o acórdão proferido por aquela Relação em 7 de Maio de 2024, transitado em julgado a 20 de Maio de 2024, acórdão recorrido, do mesmo veio interpor recurso extraordinário para FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 437.º e seguintes do Código de Processo Penal.
Invoca como acórdão fundamento o proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, 3.ª secção, proferido em 7 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 68/23.1PALSB-A.L1 publicado em www.dgsi.pt, ambos transitados em julgado.
I.2. O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões: (transcrição)
“1. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 3.ª Secção, acórdão fundamento, datado de 7 de fevereiro de 2024, transitado em julgado, disponível em www.dgsi.pt, proferido no âmbito do Processo/Inquérito com o NUIPC 68/23.1SXLSB-A.L1, decidiu que as vítimas [enteada e cônjuge do denunciado], que iriam depor para memória futura, ao abrigo dos arts. 271.º, n.ºs 1 e 2, do CPP e do art. 33.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, teriam de ter sido, previamente, esclarecidas e advertidas, pelo Mmo JIC, que presidiu à diligência, para a faculdade de deporem, nos justos termos do art. 134.º, do CPP, mesmo perante a inexistência de arguido constituído nos autos de Inquérito.
2. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 5.ª Secção, no acórdão recorrido, datado de 7 de maio de 2024, Processo/Inquérito com o NUIPC 76/24.5SXLSB-A.L1, disponível em www.dgi.pt, decidiu, no quadro de declarações para memória futura, ao abrigo dos artigos 271.º, do CPP e 33.º, da Lei 112/09, 16 de setembro, pela dispensa da comunicação prevista pelo art. 134.º, n.º 1, al. b) e 2, do CPP, relativamente à vítima, ex companheira do denunciado/suspeito, também este identificado, localizado e não constituído arguido.
3. Os dois acórdãos versaram sobre a norma legal do artigo 134.º, do CPP e decidiram em sentido oposto a mesma questão de direito, a de saber se aquando da prestação de declarações para memória futura por testemunha abrangida pelo art. 134.º, n.º 1, do CPP, sem que exista arguido constituído, e tão só suspeito/denunciado identificado e localizado, deve ou não esta testemunha ser objeto da advertência do n.º 2 do art. 134.º, do CPP.
4. Os dois acórdãos mostram-se transitados em julgado e não são suscetíveis de recurso ordinário.
5. Impõe-se a fixação da jurisprudência, nos termos do disposto no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Vossas Excelências, porém, como sempre, superiormente apreciarão e decidirão, fazendo a tão costumada JUSTIÇA.” (fim de transcrição)
1.3 Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)
1. O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência foi interposto por quem tem legitimidade e interesse em agir, afigurando–se ainda ser tempestivo, estando cumpridos integralmente os ónus formais exigíveis.
2. Quanto à oposição de julgados que origina o conflito de jurisprudência, a questão de direito apreciada no acórdão fundamento e no acórdão recorrido consiste em saber se, no âmbito de inquérito e em declarações para memória futura de testemunha/vítima numa das situações previstas no artigo 134.º, n.º 1, alíneas a) a c), do Código de Processo Penal, o regime previsto no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando não exista arguido constituído formalmente, mas apenas denunciado/suspeito identificado em relação ao qual a vítima/testemunha tenha um dos vínculos legalmente atendíveis, o Juiz de Instrução deve sempre proceder à advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor, enquanto condição de validade e eficácia do depoimento e formalidade essencial a ser observada por não depender da prévia constituição de alguém como arguido.
3. O acórdão–fundamento e o acórdão recorrido, sobre a questão assim enunciada, proferiram decisões opostas.
4. O acórdão fundamento decidiu, de forma expressa, que a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo uma condição de validade e eficácia do depoimento, é uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido, por tal advertência ser uma forma de tutela das testemunhas em atenção a determinados vínculos existenciais que as ligam aos autores dos factos sob investigação e que não se alteram em função da qualidade de arguido ou da qualidade de mero suspeito.
5. O acórdão recorrido decidiu de forma expressa que no caso das declarações para memória futura nenhuma previsão determina que a advertência prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal, criada para salvaguarda dos direitos do arguido, seja alargada para salvaguarda dos direitos do “suspeito”.
6. Há, pois, oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito.
7. A par disso, o acórdão fundamento e o acórdão recorrido estão em oposição a partir de situações de facto idênticas: (i) Em ambos os arestos, respetivamente, num e no outro não havia ainda constituição como arguido do denunciado identificado no âmbito da fase de inquérito; (ii) Requerida a tomada de declarações para memória futura de vítimas/testemunhas em relação de parentesco ou intimidade com o denunciado, nos termos normativamente relevantes previstos no artigo 134.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução decidiu não advertir as vítimas/testemunhas nos termos do n.º 2, do mesmo artigo, levando à interposição de recurso pelo Ministério Público; (iii) Escorando–se em entendimentos opostos quanto à aplicabilidade do regime previsto no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando não exista arguido constituído formalmente, mas apenas denunciado/suspeito identificado, num caso a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi considerada condição de validade e eficácia do depoimento e formalidade essencial a ser sempre observada que não depende da prévia constituição de alguém como arguido, no outro caso, foi decidido que não era considerada condição de validade e eficácia do depoimento, nem era formalidade essencial a ser observada por depender da prévia constituição de alguém como arguido.
8. Estão verificados todos os pressupostos ou requisitos do recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência, os formais [(i) A legitimidade do recorrente; (ii) A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; (iii) O trânsito em julgado do acórdão recorrido, o trânsito em julgado do acórdão–fundamento; (iv) Invocação no recurso do acórdão fundamento do recurso e junção de certidão respetiva e com indicação do lugar da sua publicação; e (v) Justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência, com formulação de conclusões], e os substantivos [(i) A existência de julgamentos, da mesma questão de direito, entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e um outro da Relação (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento); (ii) Os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas; e (iii) São ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, “quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida”].
Em conformidade, preenchidos os pressupostos formais e substantivos, pronunciamo-nos pela existência de oposição de julgados, devendo o recurso ser oportunamente admitido, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.»
I.4. Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Sob a epígrafe “Fundamento do recurso”, dispõe o artigo 437.º do Código de Processo Penal, no que tange à interposição de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência:
«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».
Por sua vez o artigo 438º, sob a epígrafe “Interposição e efeito”, dispõe:
“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.”
II.2. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim fomentando os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.
Como se diz no acórdão nº 5/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reiterar, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.1
São requisitos de ordem formal:
i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);
ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito;
iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões;
iv. tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).
- Requisitos de ordem material:
i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;
ii. verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;
iii. oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos;
iv. as decisões em oposição sejam expressas;
v. a identidade de situações de facto.
II.3. Da verificação dos pressupostos formais
Legitimidade e interesse em agir: O Ministério Público tem legitimidade e interesse em agir (artigo 437º, nº 5 do Código de Processo Penal)
Tempestividade: Nos termos do artigo 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o recurso para fixação de jurisprudência deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido.
O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 7 de Maio de 2024 e transitou em julgado a 20 de Maio de 2024.
O presente recurso entrou em 11 de Junho de 2024, portanto dentro dos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do mesmo.
O acórdão fundamento, proferido em 7 de Fevereiro de 2024, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do proc. nº 68/23.1PALSB-A.L1, transitou em julgado.
Assim, o pressuposto da tempestividade mostra-se igualmente preenchido.
Invocação, identificação, cópia do acórdão fundamento (só um) e indicação da sua publicação (artigo 438, nº 2): Para oposição de julgados, como acórdão fundamento, o Recorrente invocou o acórdão proferido a proferido em 7 de Fevereiro de 2024, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Proc. nº 68/23.1PALSB-A.L1, o qual transitou em julgado e encontra-se publicado em www.dgsi.pt
Está também preenchido o pressuposto de invocação de um único acórdão fundamento.
Trânsito em julgado dos dois acórdãos contraditórios de tribunais superiores: está em causa a contraditoriedade de dois acórdãos de duas Relações e os dois, como ficou referido, transitaram em julgado (artigos 438, nº 1, e 437, nº 4).
Justificação da oposição de facto e de direito (438, nº 2): O Ministério Público explicita bem a oposição entre o decidido em ambos os acórdãos a qual consiste em saber se, no âmbito de inquérito e em declarações para memória futura de testemunha/vítima numa das situações previstas no artigo 134.º, n.º 1, alíneas a) a c), do Código de Processo Penal, o regime previsto no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando não exista arguido constituído formalmente, mas apenas denunciado/suspeito identificado em relação ao qual a vítima/testemunha tenha um dos vínculos legalmente atendíveis, o Juiz de Instrução deve sempre proceder à advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor, enquanto condição de validade e eficácia do depoimento e formalidade essencial.
Mostra-se, pois, verificado o pressuposto da justificação da oposição.
Não se conhece jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão.
Estão, assim, verificados todos os pressupostos formais de que depende a admissibilidade do recurso ordinário para fixação de jurisprudência.
II.4. Da verificação dos pressupostos substanciais
Oposição de dois acórdãos de tribunais superiores tirados sob o domínio da mesma legislação (art. 437, nºs 1 e 2): A oposição tem de ocorrer entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça tirados em processos diferentes, ou um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do Supremo Tribunal de Justiça.
Aqui estamos efetivamente na presença de dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa. O Recorrente descreveu a oposição e delimitou a visada uniformização.
Os acórdãos em oposição foram proferidos no âmbito da mesma legislação, (437, nº 3) ou seja, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não sobreveio modificação legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida. No caso, não houve alteração legislativa no artigo 134º do Código de Processo Penal, na perspectiva de saber se, em declarações para memória futura, em inquérito, as testemunhas que se encontrem numa das situações previstas no artigo 134.º, n.º 1, alínea a), b) ou c), do Código de Processo Penal, devem ser esclarecidas e advertidas nos termos do n.º 2, do mesmo artigo apenas quando haja arguido constituído ou também quando apenas exista denunciado conhecido ainda não constituído formalmente como arguido.
Prolação de decisões opostas (artigo 437, nº 1): No caso, as considerações expendidas nos acórdãos invocados como opostos, consagraram soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, ditaram “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos idênticos.
Em ambos os acórdãos não havia constituição como arguido do denunciado identificado no âmbito da fase de inquérito e perante esta situação de facto, no acórdão recorrido decidiu-se, de forma expressa, que no caso das declarações para memória futura a advertência prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal, não deve ser efectuada, enquanto no acórdão fundamento decidiu-se, igualmente de forma expressa, que a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo uma condição de validade e eficácia do depoimento, é uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido.
Decisões opostas de forma expressa e identidade de situações de facto: No caso sub judice a questão (de direito) em causa, foi objeto de decisões expressas e contraditórias que se negam mutuamente, evidenciando claramente a oposição de julgados, partindo de idêntica situação de facto.
Na verdade, no acórdão recorrido, considerou-se, a propósito da questão em análise, o seguinte:
“(…) Porém, aqui chegados, a questão que cumpre responder é se o regime definido pelo art.º 134.º do Código de Processo Penal deverá ser aplicado aos casos em que inexiste Arguido constituído nos autos.
(…) O regime criado por este artigo visa, por um lado, a protecção da testemunha, desobrigando-a do dever de depor, seja para sua protecção, seja para defesa daquele que lhe é próximo. Desta forma, não só o regime aqui estabelecido se destina à testemunha que é vítima, como à testemunha que, pela sua proximidade, tem conhecimento de factos incriminatórios mas que, pela sua relação com o Arguido, não quererá prejudica-lo.
É, pois, manifesto que o regime fixado na lei também se destina à salvaguarda do Arguido. Logo, é o Arguido um dos beneficiários desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma excepção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo.
Tanto assim é que as relações da testemunha com os demais sujeitos processuais não concede idêntica faculdade de recusa de depor.
(…) O Ministério Público assumiu uma estratégia. Não pode, porém, socorrer-se de um regime que não foi pensado para acudir aos direitos de determinada pessoa que nem sequer é, ainda, sujeito processual. Tanto mais que, sendo um princípio geral estruturante do processo penal português que a prova deverá ser produzida em audiência (art.º 355.º do Código de Processo Penal), a opção por soluções diferentes deverá respeitar os preceitos especificamente criados para cada uma das excepções. Ou seja, a norma em apreço é excepcional pelo que não deverá o intérprete aplica-la de acordo com uma interpretação analógica ou extensiva.
No caso das declarações para memória futura nenhuma previsão determina que a advertência prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal, criada para salvaguarda dos direitos do Arguido, seja alargada para salvaguarda dos direitos do “suspeito”.
(…) Da mesma forma, não se vislumbra como a interpretação de que o art.º 134.º do Código de Processo Penal deve ser aplicado, apenas no caso de existir uma demonstrada relação entre o depoente/declarante e o Arguido, como tal constituído nos autos, nos temos que acima enunciámos, ponha em causa as garantias de defesa do Arguido, nomeadamente violando o disposto no art.º 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa o qual consagra «2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.», ou seja, uma norma desenhada para a protecção do Arguido, e não do “suspeito”.
Finalmente se dirá que a presença de um Defensor Oficioso que não tem, sequer, oportunidade para comunicar com o “suspeito”, seguramente estará limitado na sua capacidade de assegurar a plena defesa do futuro Arguido. Desconhecendo o “outro lado” dos factos, a outra versão, apenas poderá garantir o cumprimento das formalidades e dos direitos, seja pelo Tribunal, seja pelo Ministério Público.
Por tudo o já exposto, outra conclusão não poderá ser alcançada que não seja a da correcção do despacho impugnado e da improcedência do recurso.
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso do Ministério Público, mantendo inalterado o despacho impugnado.”
Por sua vez no acórdão fundamento considerou-se, estando em causa idêntico contexto processual, o seguinte:
(…) No que se refere à inobservância do preceituado no art. 134º nº 2 do CPP, este normativo sanciona-a expressamente com a nulidade.
O direito de recusar prestar depoimento, nos termos do artigo 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, não está directamente relacionada com a intromissão na vida privada, mas antes com o facto de as pessoas ligadas ao arguido por vínculos de parentesco e/ou de afinidade não serem obrigadas a prestar um depoimento incriminatório, contra este, sujeitando-se à prestação de juramento e às consequências que lhe são inerentes.
Com efeito, se o que está em causa, com o cumprimento do dever de informação acerca da prerrogativa de se recusar a prestar depoimento, verificado o circunstancialismo do nº 1 do art. 134º, é poupar a testemunha ao conflito entre o dever jurídico de falar com verdade e o dever ético de fidelidade a um seu familiar próximo, da omissão do dever de informação não resulta qualquer violação da vida privada da testemunha, porque não ocorre qualquer acção do Tribunal que viole esse bem jurídico. Apenas está em causa a coesão familiar e a integridade do laço existencial que une a testemunha ao autor dos factos sob investigação ou julgamento.
O que acontece é tão-só a inobservância de uma formalidade, cuja consequência é a nulidade do acto, como a própria lei expressamente indica (“sob pena de nulidade”), nulidade esta, que é sanável, porque não consta da enumeração taxativa das nulidades insanáveis do art. 119º do CPP.
(…) No presente processo, as testemunhas a serem ouvidas em declarações para memória futura são, respectivamente, a cônjuge e a enteada da pessoa identificada como autora de factos praticados contra ambas e susceptíveis de integrar a prática de crimes de violência doméstica.
O Mmo. Juiz de Instrução Criminal considerou que não tinha de efectuar a advertência contida no art. 134º nº 2 do CPP em virtude de ainda não haver arguido como tal constituído.
A esta tomada de posição parece estar subjacente o entendimento de que a constituição de arguido tem de ser necessariamente prévia à inquirição como testemunha de alguma das pessoas da sua família, ou das suas relações íntimas ou societárias, daquelas que se enquadram na previsão do art. 134º nº 1 als. a) a c) do CPP.
Porém, a ter sido este o entendimento, o mesmo não tem correspondência, nem na letra, nem no espírito da lei, nem na unidade do sistema jurídico.
Não se ignora que o art. 134º do CPP se refere expressamente a arguido.
Mas o que não estabelece é a sequência cronológica entre a constituição de arguido e a realização das diligências de investigação pertinentes à fase do inquérito, nisso, aliás, não se distinguindo a produção de prova testemunhal, ou por declarações dos assistentes e partes civis, das restantes provas e meios de obtenção de prova.
(…) Ora, acerca das diligências probatórias que podem e em certos casos até devem ter lugar antes da constituição de arguido, para assegurar a eficácia da investigação, como sejam as escutas telefónicas e as buscas domiciliárias, ninguém duvida que a sua realização não fica inviabilizada pela circunstância de a pessoa por elas visada ainda não ter o estatuto de arguido, do mesmo modo que não oferece a menor dúvida de que terão de ser realizadas com estrita obediência a todos os requisitos de natureza substancial e formal de que depende a sua validade e eficácia como meios de obtenção de prova e de que terão de ser conservados para poderem vir a ser valorados, impugnados e contraditados, quando chegar o momento processual legalmente previsto para esse efeito.
(…) Mas a admissibilidade do contraditório em momento posterior àquele em que certas diligências probatórias são realizadas, sobretudo, as que são produzidas antes do momento processual natural em que vigoram a imediação, a oralidade e o contraditório – a audiência de discussão e julgamento – não se transmite à observância dos requisitos de natureza formal e substancial de que depende a sua validade e eficácia como meios de prova e/ou de obtenção de prova e a possibilidade da sua valoração para alicerçar a convicção do julgador em ordem a fixar os factos objeto do processo e da decisão final a proferir, já que estes não sofrem qualquer aligeiramento ou alteração, consoante as fases do processo, nem consoante sejam realizadas antes ou depois da constituição de arguido.
Portanto, a cabal informação sobre os deveres gerais das testemunhas e a possibilidade excecional de se negar a cumpri-los, não prestando depoimento, quando se verifique alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a c) do art. 134º nº 1 do CPP, terá de ser feita quer já haja arguido constituído, quer seja ainda só um suspeito, tal como acontece com as demais formalidades legalmente impostas para outros meios de prova.
(…) É, assim, irrelevante que a pessoa identificada como autor dos factos integradores do crime em investigação, seja só suspeito ou já esteja constituído arguido.
O que releva é a autoria dos factos e a identidade do seu autor, por um lado e, por outro lado, a constatação de que o dilema entre falar com verdade como testemunha e incriminar o seu parente próximo, ou cumprir certos imperativos sócio-afectivos conaturais a certas relações de parentesco ou de intimidade conjugal ou afim, para cuja concretização é preferível recusar o depoimento, do que mentir, se verifica com os mesmos contornos e igual intensidade, quer o autor dos factos sobre os quais incidir o depoimento a prestar seja só suspeito ou já esteja formalmente constituído como arguido.
(…) Por conseguinte, para efeitos de aplicação do disposto no art. 134º do CPP, arguido é o autor dos factos sob investigação, já constituído ou a constituir com esse estatuto jurídico-processual, ainda que em momento posterior ao da inquirição como testemunha do seu familiar.
Assim sendo, a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no art. 134º nº 2 do CPP, sendo uma condição de validade e eficácia do depoimento, é uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido, por tal advertência ser uma forma de tutela das testemunhas em atenção a determinados vínculos existenciais que as ligam aos autores dos factos sob investigação e que não se alteram em função da qualidade de arguido ou da qualidade de mero suspeito.
Termos em que decidem: Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam as decisões recorridas, as quais deverão ser substituídas por outra que designe data para tomada de declarações para memória futura às vítimas/testemunhas (…) e (…) – respetivamente, enteada e cônjuge do denunciado – dando-se cumprimento à advertência prevista no art. 134º n.º 2 do C.P. Penal, mesmo que ainda não tenha havido constituição de arguido.”
Como se pode verificar da transcrição efectuada dos dois arestos, as soluções opostas a partir de idêntica situação de facto mostram-se expressas, tal como a lei exige.
Em ambos os processos, não havia arguido formalmente constituído, mas, apenas, denunciado conhecido e, no momento de tomada de declarações para memória futura de vítimas/testemunhas em relação de parentesco ou intimidade com o denunciado, nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, no acórdão recorrido foi decidido pela dispensa da advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no artigo 134.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, enquanto no acórdão fundamento foi decidido que teriam de ter sido, previamente, esclarecidas e advertidas da faculdade de recusa a depor.
Apesar desta identidade de factos, a solução jurídica é oposta e contraditória em ambos os arestos.
Identidade da questão jurídica: A identidade do enquadramento jurídico é, igualmente, evidente nos dois acórdãos em conflito, nos quais, relativamente à mesma questão de direito, proferiram soluções opostas.
Na verdade, no acórdão recorrido foi decidido pela dispensa de advertência de recusa a depor prevista no nº 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal, enquanto no acórdão fundamento foi decidido que a advertência de recusa a depor devia ter lugar.
Recorrido e fundamento assentaram, pois, em soluções de direito opostas, no domínio da mesma legislação, sobre situação de facto idêntica, pelo que este Supremo Tribunal de Justiça terá de decidir em termos de uniformização da jurisprudência.
Nestes termos, concluindo-se pela verificação de todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário de jurisprudência, deve o presente recurso prosseguir, nos termos do artigo 441, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal.
III. DECISÃO
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, acorda em julgar verificada a oposição de julgados e, em conformidade, ordenar o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Dezembro de 2024.
Antero Luís (Relator)
Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)
Jorge Raposo (2º Adjunto)
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1. Veja-se, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03 de Julho de 2024, Proc. nº 234/18.1IDAVR.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt