Não pode a reclamante, por via do pedido de reforma do acórdão, obter o que este remédio não lhe pode dar: a reapreciação do julgado.
Pede o seguinte: «deve o acórdão ser reformado em conformidade do supra exposto, uma vez que existiu lapso na determinação do direito aplicável e um desrespeito pelo regime de prova, inexistindo qualquer meio de prova documental ou outro meio de prova plena que permitisse a decisão tomada».
A recorrida opôs-se.
Vejamos se o pedido deve ser julgado procedente.
Escreveu-se no acórdão de 9.7.2024, Proc. 1083/16.7T8VNG.P2.S1, desta Secção: «Dispõe o artigo 616.º, n.º 2, al. a), que, não cabendo recurso da decisão, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
Esta disposição aplica-se, como é sabido, aos Acórdãos (artigos 685.º e 666.º).
Este preceito corresponde ao artigo 670.º do Código de 1939 que previa o pedido de esclarecimento da sentença se esta cotivesse alguma obscuridade ou ambiguidade.
José Alberto dos Reis comentava que «se tem feito uso do pedido de aclaração, não para se esclarecer obscuridade ou ambiguidade realmente existente, mas para se obter por via oblíqua, a modificação do julgado. A título ou a pretexto de esclarecimento o que, na verdade, se visa é a alteração da sentença. Os tribunais têm reagido, e bem, contra tais tentativas, votando-as ao malogro» (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. V, Coimbra, 1952:151/152).
O actual código afastou-se do regime original: o pedido de reforma de sentença não se destina a esclarecer a sentença, ultrapassando obscuridades ou ambiguidades, mas sim a corrigir lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
A aplicação da actual norma não suscita particulares dúvidas. Implica que se reconheça que o tribunal cometeu um erro grosseiro, indesculpável, ostensivo, causal de julgamento que evidencia uma solução jurídica manifestamente ilegal.
Trata-se de jurisprudência consolidada, como resulta, entre outros dos seguintes acórdãos do STJ:
- De 14.12.2021, Proc. 63/13: O lapso manifesto a que se reporta esta norma «tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho», sentença ou acórdão (acrescentamos nós), «não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido».
Não se trata de «erros revelados pelo próprio contexto da sentença ou de peças do processo para que ela remete, nem de omissões sem consequência no conteúdo da decisão, mas de erro revelado por recurso a elementos que lhe são exteriores».
- De 10.5.2021, Proc. 1863/16: A reforma da decisão só pode ser requerida e ter lugar quando tenha havido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou quando constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Em qualquer dos casos é necessário que se possa dizer que o dito erro e a desconsideração do meio de prova determinante decorreram de um manifesto lapso do juiz.
É o que resulta do n.º 2, al. a) do artigo 616.º do CPCivil.
O que a lei pretende atingir com a reforma da decisão é a superação de lapsos óbvios de julgamento.
Se o que foi decidido não tem por detrás qualquer lapso - que terá que ser manifesto, ou seja, patente aos olhos de qualquer pessoa capacitada em matéria jurídica - mas sim uma decisão fundamentada intencional e expressamente em certo sentido, então não há a menor possibilidade legal de reformar a decisão, ainda que esta possa estar errada.
De outro modo, estar-se-ia simplesmente a reponderar ou reexaminar (tratar-se-ia de uma espécie de recurso para o próprio) o que já foi decidido, e isso seria contrário ao princípio geral da imutabilidade da decisão tomada, salvo por via de recurso para o tribunal superior.
- De 28.1.2021, Proc. 214/17: (…) a reforma de decisão judicial, prevista no art. 616.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi arts. 679.º e 666.º do mesmo Código, a acórdão que aprecia e decide o recurso de revista, apenas é possível caso se verifique lapso manifesto que se revele por elementos exteriores à decisão, não podendo reconduzir-se a uma mera discordância quanto ao sentido da decisão.
- De 18.2.2021, Proc. 709/12.6TVLSB.L1.S1: Tal disposição legal reporta-se ao lapso manifesto na determinação da norma jurídica aplicável ou à qualificação jurídica dos factos. Lapso manifesto não inclui erro judiciário, a corrigir por recurso, quando possível.
Fora do lapso manifesto, encontra-se esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, que já conheceu do recurso.
Ainda que a reforma seja pedida com apresentação de argumentos porventura de relevo, o certo é que o tribunal não incorreu no lapso na determinação da norma jurídica aplicável, pois foi seu entendimento de que essa era a solução mais correcta, ainda que porventura seja questionável».
Faz todo o sentido reproduzir aqui esta argumentação.
Na verdade, também neste caso o tribunal não cometeu qualquer lapso manifesto na interpretação e aplicação da lei.
Pode naturalmente discutir-se a qualificação do ajuizado contrato, se locação se contrato atípico, mas não é fácil aceitar que se diga que o acórdão, que tem uma fundamentação clara e suficiente, não explica «o motivo pelo qual o contrato em causa nos autos se tratará de um contrato atípico».
Nem se compreende que se invoque a alínea b) do n.º 2 do artigo 616.º, porquanto a decisão flui congruentemente dos elementos de prova existentes nos autos. O que a reclamante faz é oferecer uma interpretação diferente de um mesmo contrato.
Em suma, o que a reclamante pretende é, por via da reforma, obter o que este remédio não lhe pode dar: a reapreciação do julgado.
Quanto ao montante da taxa de justiça leva-se em consideração o penúltimo rectângulo da tabela II a que se refere aquela disposição legal.
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Pelo exposto, acordamos em indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 2,5 UC.
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Luís Espírito Santo
Maria Olinda Garcia