ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
VALOR DA AÇÃO
ALÇADA
ACESSO À JUSTIÇA
REJEIÇÃO DE RECURSO
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
INDEFERIMENTO
Sumário


Não pode ser admitido como revista excecional um recurso interposto numa ação cujo valor é de 5.414,87 Euros, porque antes da apreciação dos requisitos específicos da revista excecional, a aferir pela Conferência (nos termos do art.º 672º, n.º 3 do CPC), devem estar preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade (exigidos pelo art.º 629.º, n.º 1 do CPC).

Texto Integral


Processo n.º 104/22.9T8STS.P1.S1

Recorrente-reclamante: “A... & Filhos, Lda.


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA propôs a presente ação de processo comum contra “A... & Filhos, Lda.”, com sede em ..., peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €5.415,87 (cinco mil quatrocentos e quinze euros e oitenta e sete cêntimos), a título de danos patrimoniais, bem como o que vier a apurar-se em execução de sentença a título de privação de uso do veículo, em montante diário não inferior a € 46,61 (quarenta e seis euros e sessenta e um cêntimos), acrescidas de juros, à taxa legal, desde a data do acidente até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:

Em 13 de janeiro de 2021, a Autora deslocou-se com o veículo automóvel ao posto de abastecimento Repsol, sito em ..., ..., explorado pela Ré;

A Autora solicitou a um funcionário da Ré que abastecesse o depósito do veículo com €30,00 de gasóleo e o mesmo enganou-se e colocou gasolina;

O referido provocou danos no motor.

2. A ré apresentou contestação, impugnando o invocado pela autora, e propugnou pela improcedência da ação.

3. A primeira instância deu razão à autora pronunciando-se nos seguintes termos:

«julga-se a ação procedente e, consequentemente, decide-se:

condenar a ré “A... & Filhos, Lda.” a pagar à Autora AA a quantia de €8.415,87 (oito mil quatrocentos e quinze euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora computados à taxa legal consignada para as obrigações civis desde a citação até integral pagamento

4. A ré interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação considerado que:

«Estamos (…) perante vício do requerimento de interposição de recurso, por as conclusões não serem a síntese “sintética” das alegações, que no caso não existem. Não se pode sintetizar aquilo que não existe.

Pelo exposto, será de rejeitar a apelação, por inobservância do disposto no artigo 639.º, n.º 1 e 3 e 641.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil.

Em consequência do decidido, ficam prejudicadas as demais questões recursivas.

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.»

5. Inconformada com esse acórdão, a apelante interpôs recurso de revista excecional, com base no artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC.

6. Distribuídos os autos no STJ e prefigurada a inadmissibilidade da revista, foram as partes notificadas, nos termos do art. 655º do CPC, para se pronunciarem.

7. A recorrente respondeu, defendendo a admissibilidade da revista.

8. Em 06.11.2024, foi proferida decisão singular que julgou findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto, nos termos do artigo 652º, n.º 1 alínea h) do CPC.

9. Contra essa decisão, a recorrente apresentou reclamação para a Conferência, requerendo a prolação de acórdão.

Cabe apreciar em Conferência.


*

II. FUNDAMENTOS

1. A questão da admissibilidade do recurso

1.1. A recorrente-reclamante pede que a Conferência se pronuncie sobre a decisão singular que não admitiu o recurso de revista. Todavia, não invoca razões específicas para demonstrar que a decisão reclamada tivesse feito errada aplicação do direito.

1.2. A decisão reclamada apresenta a seguinte fundamentação:

«A ré apelante vem interpor recurso de revista excecional, com base no 672.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPC.

A revista excecional, prevista no artigo 672º (tal como a revista normal, prevista no artigo 671º), é um recurso ordinário, como decorre do disposto no artigo 627º, n.º 2 do CPC.

Assim, antes da apreciação dos seus pressupostos específicos de admissibilidade (da competência da Formação a que alude o art.º 672º, n.º 3) devem estar preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade exigidos pelo artigo 629º, n.º 1 do CPC (cuja apreciação é da competência dos relatores), entre os quais se encontra a exigência de que a ação tenha valor superior à alçada do tribunal do qual se recorre.

A presente ação tem o valor de 5.414,87 Euros.

Como tal, é manifesto que o valor da causa não é superior à alçada do tribunal recorrido, a qual, nos termos do artigo 44º da Lei n.º 62/2013 é de 30.000 Euros.

É, assim, inequívoco que o recurso de revista não é admissível, dado o facto de o valor da ação ser inferior ao valor da alçada do tribunal recorrido.

Como a doutrina e a jurisprudência têm abundantemente explicado, a revista excecional é o meio de aceder ao STJ quando o único obstáculo à revista normal é a existência da dupla conforme.

Assim, nunca a revista excecional será admissível nos casos em que a própria hipótese de revista normal também não o seja por falta dos pressupostos gerais de recorribilidade (exigidos pelo artigo 629º, n.º 1), como o valor da ação e da sucumbência.

Cabe à Formação a que alude o artigo 672º, n.º 3 do CPC apreciar os requisitos específicos de admissibilidade da revista excecional, desde que o recurso de revista, em si mesmo, não se encontre previamente excluído.

Veja-se, neste sentido, por exemplo: Maria dos Prazeres Beleza, “Restrições à admissibilidade do recurso de revista e revista excecional”, in A Revista, n.º 1 (janeiro a junho 2022), página 11 e seguintes (também acessível on line na página eletrónica do STJ).

Em resposta à notificação a que respeita o artigo 655º do CPC, veio a recorrente reiterar a sua tese no sentido de que a revista excecional não pressuporia que o valor da ação fosse superior à alçada da Relação, até porque o tribunal recorrido admitiu a subida do recurso, bem como alegar que a não admissão da revista constituiria uma decisão inconstitucional por lesar o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, violando o artigo 20º da CRP.

Não assiste à recorrente qualquer razão.

Desde logo, dispõe o artigo 641º, n.º 5 do CPC que a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior. Assim, em rigor, não devia o Tribunal da Relação ter admitido a subida do recurso, por ser manifesta a insuficiência do valor da ação.

Por outro lado, não existe qualquer inconstitucionalidade. Efetivamente, como doutrina e jurisprudência têm, desde longa data, afirmado, o legislador ordinário é livre de estipular limitações ao direito ao recurso que sejam racionalmente fundadas1. É o que acontece quando o legislador fixa o valor das alçadas das diferentes instâncias, pois como é absolutamente compreensível por qualquer cidadão normal, nem todos os processos poderiam chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, dadas as naturais limitações dos recursos técnicos e humanos2.

De resto, há a notar que não existe uma garantia constitucional do direito a um terceiro grau de jurisdição, tanto mais que, mesmo no domínio do processo penal, a exigência constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa se confina ao duplo grau 3.

Pelo exposto, concluiu-se que a revista não pode ser admitida.»

1.3. É manifesto que nenhuma razão assiste à reclamante ao pretender a admissibilidade de um recurso de revista excecional numa ação cujo valor é de 5.414,87 Euros, pelas razões constantes da decisão singular, que agora coletivamente se subscrevem.

DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada.

Custas pela reclamante-recorrente.

Lisboa, 14.01.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Rosário Gonçalves

Luís Espírito Santo

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1. Veja-se, por exemplo, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 202 e seguintes.↩︎

2. Veja-se LOPES DO REGO, O Direito fundamental de acesso aos Tribunais e a Reforma do Processo Civil – Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, pág. 764.↩︎

3. Veja-se, entre tantos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 31/87 - de 28 de janeiro de 1987 - e 163/90 - de 23 de maio de 1990 -, ambos acessíveis, respetivamente, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870031.html e em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900163.html↩︎