RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
ÓNUS DA PROVA
MÁ FÉ
PREJUÍZO PATRIMONIAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
INTERPOSIÇÃO REAL DE PESSOAS
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
RATIFICAÇÃO DO NEGÓCIO
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
PROVA PLENA
INSOLVÊNCIA
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
Sumário


I. A resolução em benefício da massa insolvente, estando em causa resolução condicional, depende da verificação cumulativa de três requisitos reportados ao ato a resolver, a saber, ter o ato sido praticado dentro dos 2 anos anteriores ao início do processo de insolvência, ter o mesmo natureza prejudicial para a massa e existir má-fé do terceiro, competindo ao Administrador de Insolvência a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de resolução que exerceu, beneficiando, porém, da presunção iuris tantum de má fé prevista no nº 4, do art. 120º do CIRE, pelo que compete ao A., impugnante da resolução, a alegação e prova de factos que ilidam esta presunção de má fé.
II. Se da factualidade provada resulta que, perante a recusa dos vendedores em realizar o negócio com os AA., estes acordaram com o insolvente (seu pai e sogro, respetivamente) a compra da fração (de que este era inquilino), no exercício do seu direito legal de preferência, e a transmissão subsequente, imediata, da mesma aos AA., o insolvente atuou em nome próprio, mas no interesse dos AA., acordando em realizar as duas escrituras por forma a concretizar a aquisição desejada por estes, tendo atuado na escritura realizada em 1º lugar, por interposição real, em mandato sem representação daqueles, e na 2ª querendo transferir para os AA. os direitos adquiridos na 1ª, em execução do mandato.
III. Adotando a tese da dupla transferência, o art. 1181º, nº 1, do CC, estipula que o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.
IV. Embora a outorga de um contrato de compra e venda possa não ser a forma idónea para efetuar a transferência dos direitos adquiridos pelo mandatário, a sua realização não põe em causa aquela transferência.
V. A força probatória plena do documento autêntico (art. 371º, nº 1, do CC) reporta-se aos factos ocorridos na presença do oficial público, aos atos que declarou praticar, que presenciou, ouviu e documentou, não abrangendo juízos pessoais, e no que respeita às declarações proferidas pelas partes perante o oficial público, a força probatória plena apenas abrange o conteúdo extrínseco dessas declarações (as declarações proferidas), não abrangendo o conteúdo intrínseco das mesmas (a sua veracidade e validade).
VI. O art. 1184º do CC afasta o regime regra resultante dos arts. 601º e 817º do CC, relativamente ao bem adquirido em execução do mandato e que o mandatário deve transferir para o mandante.

Texto Integral


Proc. nº 459/23.8T8STS-B.P1.S1


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Acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

Em 12.10.2023, AA, e esposa, BB, intentaram contra a Massa Insolvente de CC, ação de impugnação de resolução em benefício da massa, pedindo a revogação da resolução em benefício da massa insolvente operada pelo Sr. Administrador da Insolvência relativamente ao contrato de compra e venda realizado por escritura pública de 23.04.2021, em que os AA. figuraram como compradores, e que teve como objeto a fração autónoma designada pela letra B, do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., declarando-se a validade do contrato em causa.

Citada, a R. contestou, por impugnação, e terminou pugnando pela improcedência da ação.

Realizou-se julgamento, e foi proferida sentença, que julgou a ação de impugnação de resolução totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a Ré do pedido, declarando válida a resolução realizada pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência e datada de 11-07-2023.

Inconformados com a decisão, apelaram os AA., tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido acórdão que julgou a apelação procedente, revogou a decisão recorrida e julgou procedente o pedido de impugnação da resolução do negócio descrito no ponto j) dos factos provados, assim mantendo a sua eficácia.

A R. interpôs recurso de revista, formulando, no final das alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

I. Um dos pressupostos do mandato sem representação é a transmissão para o mandante dos direitos adquiridos pelo mandatário na execução do mandato.

II. Assim, o mandatário, no cumprimento das relações internas entre ele e o mandante, tem que transmitir para este o direito que antes, por efeito do contrato que com terceiros celebrou, ingressou no seu direito de propriedade.

III. É a consagração do princípio da dupla transferência – do terceiro para o mandatário e deste para o mandante –, face aos efeitos meramente obrigacionais que emergem do mandato.

IV. Exigindo, pois, tal princípio da dupla transferência, decorrente do regime do mandato sem representação (art. 1181.º, nº 1, do Cód. Civil) um novo ato de transmissão, do mandatário para o mandante, do direito de que aquele se tornou titular em resultado da execução do mandato.

V. “Este novo negócio jurídico não é obviamente uma venda, mas é, em todo o caso, um ato de alienação – uma modalidade alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante” - Prof. GALVÃO TELLES, in Parecer publicado na CJ, ano VIII, T. III, pág. 10.

VI. A Jurisprudência tem sufragado reiteradamente o mesmo entendimento de que este novo negócio jurídico não é uma venda embora seja um ato de alienação – cfr., entre outros, Acs. do STJ de 22.01.2008, Pº 07A441, e de 12.01.2012, Pº 987/06.0TBFAF.G1.S1, do TRL de 02.11.1999, Pº 0044841, de 20.05.2008, Pº 9443/2007, de 25.05.2010, do TRP de 02.10.2008, Pº 0832919, e do TRG de 30.03.2014, Pº 1191/16.4T8VCT.A.G1, e de 8.11.2018, Pº 642/16.2T8BGC.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

VII. No caso sub judice, e lendo os factos provados, não vemos que tenha ocorrido um ato de alienação do insolvente para o seu filho do direito de que aquele se tornou titular em resultado da execução de mandato, ato esse cuja causa justificativa estivesse no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário.

VIII. Efetivamente o que os factos provados nos mostram é, tão somente, que o insolvente e sua mulher declararam vender ao seu filho e nora, que declararam comprar, uma fração autónoma, pelo preço de €55.000,00, pago, nesse dia, pelo cheque nº ...82 do BCP (alínea j) dos Factos Provados).

IX. Se, pelas razões acima expostas, a transferência a que se refere o art. 1181º do CC não pode ser uma venda, então a venda em questão não é meio idóneo para o mandatário que age sem poderes entregar ao mandante ou transferir para este o direito de propriedade adquirido em execução do mandato.

X. De facto, se o insolvente agiu em seu próprio nome, adquirindo os direitos e obrigações decorrentes do ato que praticou, deveria o mesmo ter procedido à sua transferência para os Recorridos/compradores, o que não se provou.

XI. Como também não se provou, nem tal foi alegado, que o insolvente e sua mulher ao venderem aquele fração através da escritura referida em j) dos Factos Provados tivessem a intenção de cumprir qualquer obrigação advinda de mandato para com os mandatários, de transferir para estes aquela fração.

XII. Provou-se, sim, que “A única intenção dos Autores – que pretendiam efetuar a compra ao senhorio do insolvente e não a este – foi concretizar a compra que os vendedores se recusaram a fazer diretamente consigo” (alíneas dd) dos Factos Provados).

XIII. Mas dai não se pode concluir que essa tenha sido também a intenção do insolvente e de sua mulher, ao efetuarem a venda resolvida.

XIV. Nem que os Recorridos/mandatários ao adquirirem essa fração tivessem a intenção de aceitar o cumprimento de alguma obrigação resultante do mandato.

XV. Em suma: os factos concretos apurados no processo não permitem afirmar, com certeza, que o insolvente e sua mulher – que nem sequer tiveram intervenção nesta ação –, através daquela escritura quiseram transferir para os Recorridos/mandatários direitos adquiridos em execução do mandato.

XVI. Sendo certo que nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto – artº 238º/1, do CC.

XVII. O que resulta da escritura é apenas que o insolvente e sua mulher declararam vender aos Recorridos, que estes declararam aceitar, a fração autónoma em causa, e não transferir qualquer direito adquirido em execução de mandato.

XVIII. É isto que também se extrai da alínea k) dos Factos Provados pois na escritura mencionada em j) além dos vendedores e compradores interveio também DD o qual declarou que “autoriza os seus pais, primeiros outorgantes, a efetuar a presente venda ao seu irmão e cunhada, segundos outorgantes”. Ora,

XIX. Esta autorização (prestada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 877º/1 do CC) só se justifica e faz sentido quando se está perante uma venda a filhos ou netos.

XX. É indiscutível que a escritura pública consubstancia um documento (art. 362º do CC), mais concretamente, um documento autêntico (art. 363º/2 do mesmo Código).

XXI. Nos termos do art. 372º/1 do CC, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.

XXII. Impõe-se, pois, a força probatória plena da escritura pública mencionada em j) decorrente da sua natureza de documento autêntico.

XXIII. Sendo o negócio jurídico resolvido um negócio formal, nunca o mesmo poderia corporizar um mandato sem representação, pois dele não decorre qualquer declaração negocial de onde se possa extrair uma transferência para o mandatário de uma obrigação advinda do mandato.

XXIV. Portanto, a decisão recorrida, com o devido respeito, está inquinada de erro de interpretação e aplicação das normas de direito aplicáveis ao caso concreto, designadamente dos artºs. 1180º, 1181º/1 e 238º/1, 362º, 363º e 372º/1, todos do CC.

POR OUTRO LADO:

XXV. Mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se pudesse extrair dos factos provados a existência de um mandato sem representação – o que se rejeita – ainda assim também não se acompanha o douto Acórdão recorrido na parte em que considerou que a fração autónoma adquirida pelo insolvente não deve responder pelas suas obrigações.

XXVI. Da conjugação do disposto no art. 1180º, com o art. 1181º/1, ambos do CC, conclui-se que a nossa lei civil, pelo menos em relação ao mandato para adquirir, consagra a teoria da dupla transferência, acima referida, o que é reforçado pelo disposto no art. 1184º do mesmo código, que permite que, em regra, os bens adquiridos pelo mandatário em execução do mandato respondam pelas dívidas deste, o que só é possível porque se entende que os bens pertencem ao mandatário.

XXVII. Sustentam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in CCA, Vol. II, 3ª Ed., pág. 754, em anotação ao art. 1184º, que “Tais consequências são, porém, afastadas pelo art. 1184º, com as cautelas necessárias para evitar fraudes em prejuízo dos credores do mandatário e para tutelar os interesses ligados ao registo. Desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo, aqueles bens não respondem pelas dívidas do mandatário. (…) O requisito exigido quanto à falta de registo justifica-se. Estando registada a transmissão, esta deve produzir todos os seus efeitos em relação a terceiros, e, portanto, em relação aos credores do mandatário. É uma consequência do próprio registo”.

XXVIII. Ora, no caso sub judice não se mostra provado que o mandato conste de qualquer documento junto aos autos e que não tenha sido feito o registo da aquisição, pois, como decorre da escritura referida em j) dos Factos Provados, o insolvente foi presuntivo titular da fração em causa.

XXIX. O que significa que tendo entrado no património do insolvente, essa fração deve responder pelas suas obrigações, nos termos gerais, estando consequentemente sujeita a resolução.

XXX. No Acórdão recorrido sustenta-se que a questão da responsabilidade só se coloca enquanto o direito adquirido em execução do mandato não é transferido para o mandante, e que após a transferência deixa de o ser. Ora,

XXXI. Com o devido respeito, o que parece relevante para a fração não responder pelas dívidas do insolvente não pode ser a simples transferência para o mandante do direito adquirido (quando aquilo que se pretende é “evitar fraudes em prejuízo dos credores do mandatário e tutelar os interesses ligados ao registo”) mas sim a verificação cumulativa dos dois requisitos estabelecidos na segunda parte do referido art. 1184º.

XXXII. Por isso, salvo melhor opinião, no Acórdão recorrido não foi feita correta interpretação e aplicação do disposto no art. 1184º do CC.

Termina pedindo que seja concedida a revista e revogado o Acórdão recorrido, para ficar a prevalecer a sentença da 1ª instância, com as legais consequências.

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência da revista e manutenção do acórdão recorrido.

QUESTÕES A DECIDIR

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir são:

1ª - da não verificação, in casu, do contrato de mandato sem representação;

2ª – sem conceder, mesmo a existir tal mandato, se a fração autónoma adquirida pelo insolvente deve responder pelas suas obrigações.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No acórdão recorrido, após reapreciação da matéria de facto, foram dados como provados os seguintes factos 1:

a) Por sentença proferida no dia 13-02-2023, nos autos de que os presentes constituem apenso e já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de CC – tudo cfr. sentença proferida nos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

b) O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência remeteu a AA e BB uma carta, datada de 11-07-2023, com o seguinte teor:

- tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

c) Aos 04-02-2013, CC interpôs ação de declaração de insolvência, arguindo o seguinte:

(…)

10.º

O Requerente é casado e vive apenas com a sua mulher.

11.º

Auferem, respetivamente, como referido, o montante de EUR. 551,69 e EUR. 466,93 a título de pensão de reforma por velhice, valor com o qual se governam durante o mês, com muitas dificuldades.

12.º

Aquele rendimento esgota-se, na sua totalidade, em despesas de carácter geral e necessárias à vida, designadamente:

i. Alimentação: 350€

ii. Produtos de higiene e de limpeza da casa: 50€

iii. Renda e aluguer de mobiliário: 350€

iv. Eletricidade, Gás e Água da companhia: 126,00€

v. Telecomunicações: 49,65€

vi. Passes mensais e transportes: 50€

vii. Utensílios essenciais, vestuário ou calçado: 50€

viii. Farmácia: 150€ (atualmente)

O que perfaz um total de EUR. 1.175,65 (mil cento e setenta e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos).

13.º

As suas despesas mensais ultrapassam o valor auferido mensalmente e apenas com os subsídios consegue responder às mesmas, precisando muitas vezes de ajuda de familiares para se financiar para estas despesas essenciais. (…)

(…)

26.º

O requerente, que não dispõe de poupanças, sendo auxiliado, muitas vezes pelo seu filho, rapidamente esgota o rendimento mensal de que dispõe.” negrito e sublinhado nossos – tudo cfr. petição inicial junta aos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

d) AA, nascido aos ...-09-1975, encontra-se registado como filho de CC e de EE.

e) AA e BB casaram, um com o outro, em ...-07-2002 - tudo cfr. certidão de nascimento junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

f) O insolvente era inquilino de FF e de GG.

g) FF e GG contactaram o insolvente comunicando-lhe a sua intenção de proceder à venda do apartamento a um terceiro e, como tal, informando-o da possibilidade de exercer o seu “direito legal de preferência”.

h) O Autor entrou em contacto com o senhorio com uma proposta de compra pelo imóvel.

i) Por escritura pública, celebrada aos 20-04-2021, FF, residente na Rua ..., por si e na qualidade de procurador de HH, residente na Rua ..., declarou vender a CC e EE, residentes na Rua ..., que declararam comprar, a fração autónoma designada pela letra B, do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...96-B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo...93-B, pelo preço de €55.000,00, pago, nesse dia, por meio de cheque bancário número ...67 do Banco BPI, “tendo o primeiro outorgante em seu nome e em nome do seu representado declarado dar quitação da quantia recebida” – tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

j) Por escritura pública, celebrada aos 20-04-2021, CC e EE, residentes na Rua ..., residentes na Rua ..., declararam vender a AA e BB, residentes na Rua ..., que declararam comprar, a fração autónoma designada pela letra B, do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...96-B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...93-B, pelo preço de €55.000,00, pago, nesse dia, por meio de cheque nº ...82 do Banco Millennium BCP, “tendo os primeiros outorgantes declarado dar quitação das quantias recebidas”.

k) No escrito mencionado em j), AA e BB declararam que o imóvel adquirido se destinava “à sua habitação própria e permanente”, tendo II declarado que “autoriza os seus pais, primeiros outorgantes, a efetuar a presente venda ao seu irmão e cunhada, segundos outorgantes”– tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

l) O cheque mencionado em i) foi descontado de uma conta da titularidade dos Autores - tudo cfr. extrato junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

m) Da conta descrita em l) consta o recurso a empréstimo bancário - tudo cfr. extrato junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

n) O cheque mencionado em j) nunca foi apresentado a pagamento - tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

o) O pagamento do imposto de selo relativo à escritura mencionada em i), no valor de €440,00, foi realizado através do cartão com nº ...193- tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

p) O pagamento do IMT relativo à escritura mencionada em i), no valor de €550,00, foi efetuado com o cartão com nº ...193 - tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

q) O pagamento do imposto de selo relativo à escritura mencionada em j), no valor de €440,00, foi realizado por meio do cartão com o NIB 0035....32 - tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

r) O Cartório Notarial emitiu em nome do Autor uma fatura com o seguinte teor:

- tudo cfr. documento junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

(mais se provou)

s) O cartão com nº ...193, mencionado em o) e p), tem como titular o Autor - tudo cfr. DUC junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

t) O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência apresentou a lista de créditos a que se refere o artº 129º do CIRE, da qual decorre que foram reclamados e relacionados créditos, a título de capital e juros, num total de € 158.960,88 – tudo cfr. lista junta ao apenso de reclamação e créditos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

u) Das reclamações mencionadas em t) consta um crédito da sociedade H..., SA, o qual já foi peticionado em ação executiva, que correu termos sob o número 219/04.5..., no Tribunal Judicial da Comarca do ... –Juízo de Execução do ... - Juiz ... – cfr. documentos juntos aos autos com o requerimento com refª ...84, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

v) Os autores insistiram junto do senhorio que o negócio fosse concretizado diretamente com eles.

x) O senhorio transmitiu aos autores e ao insolvente que não queria vender o apartamento aos primeiros e que só o venderia ao segundo, concretizando a faculdade descrita em g);

z) Perante a intransigência do senhorio, a única forma de concretizar o negócio desejado pelos autores foi a outorga dos escritos descritos em i) e j).

aa) O preço descrito em i) foi efetivamente suportado pelos Autores.

bb) Os autores efetivamente arcaram com os valores descritos de o) a r).

cc) A compra do imóvel não teve como contrapartida qualquer deslocação patrimonial por parte do insolvente.

dd) A única intenção dos autores – que pretendiam efetuar a compra ao senhorio do insolvente e não a este – foi concretizar a compra que os vendedores se recusaram a fazer diretamente consigo.


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E foram dados como não provados os seguintes:

1. O aludido em g) tenha ocorrido no início do ano de 2021.

2. A recusa de venda aos autores se tenha ficado a dever ao compromisso assumido com terceiro, de modo a não faltar à palavra dada a este.

3. A intenção de apenas concretizar a venda ao “titular do direito de preferência” fosse uma forma de se justificar perante o terceiro interessado.

4. O senhorio tivesse conhecimento de que os verdadeiros compradores seriam sempre os Autores.

5. A transmissão da propriedade do imóvel descrito em j) haja sido realizada entre os Autores e os anteriores proprietários, sendo que a interposição da pessoa do insolvente tenha sido uma exigência dos primeiros transmitentes para concluírem o negócio com os Autores.

6. Os Autores desconhecessem a situação de insolvência do insolvente.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Declarada a insolvência de CC por sentença de 13.2.2023, o AI remeteu aos AA. carta datada de 11.7.2023, resolvendo em benefício da massa insolvente a compra e venda celebrada, em 2.4.2021, entre o insolvente (e esposa) e os AA., ao abrigo do disposto no art. 123º, nº 1, do CIRE.

A presente ação é de impugnação da referida resolução (art. 125º do CIRE).

Como resulta do disposto nos arts. 120º e 121º do CIRE, a resolução em benefício da massa insolvente pode ser incondicional, quando se prove qualquer uma das situações previstas no nº 1 do art. 121º, sem necessidade de outros requisitos ou condições, ou pode ser condicional (ou condicionada), dependendo da verificação cumulativa de três requisitos reportados ao ato a resolver: a) que o ato tenha sido praticado dentro de dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência; b) que o ato seja prejudicial à massa (considerando-se como tais os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência); c) que a pessoa com quem o insolvente contratou esteja de má fé 2 (art. 120º, nºs 1, 2, 4 e 5, do CIRE).

O AI exerceu a resolução condicional em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado entre o insolvente e os AA., pelo que lhe competia, como salientou a 1ª instância e o tribunal recorrido, a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de resolução que exerceu, beneficiando, contudo, da presunção iuris tantum de má fé prevista no nº 4, do art. 120º do CIRE, pelo que competia aos AA. a alegação e prova de factos que ilidam esta presunção de má fé.

Não se tendo suscitado dúvidas que o ato impugnado foi praticado dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, o tribunal de 1ª instância entendeu que, face à factualidade provada e não provada, os AA. não lograram provar os elementos integradores do conceito de simulação que invocaram, bem como não ilidiram a presunção de má fé consignada no art. 120º, nº 4, do CIRE, resultando, também, verificado este requisito.

Por outro lado, tendo em consideração que ficou demonstrado que o preço da compra objeto de resolução não foi pago, entendeu que daí derivava o carácter prejudicial da alienação, tendo o AI cumprindo o ónus da prova deste requisito, pelo que concluiu que era de considerar a transmissão validamente resolvida, uma vez que se mostravam preenchidos os requisitos da resolução nos termos do disposto no art. 120º, nºs 1, 2, 4 e 5, do CIRE.

O Tribunal da Relação do Porto, depois de julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, considerou, também, verificada a má-fé dos AA. enquanto requisito da resolução efetuada pelo AI, e que os factos apurados não corroboram a simulação, com interposição fictícia de terceira pessoa, invocada pelos AA.

Porém, entendeu que, tendo em conta as alterações introduzidas na fundamentação de facto, os factos apurados configuram uma situação de interposição real de terceira pessoa, reconduzível à figura jurídica do mandato sem representação, e concluiu, ao contrário da 1ª instância, que a aquisição, pelos AA., do imóvel em causa não foi prejudicial para a massa insolvente, pelo que julgou procedente o pedido de impugnação da resolução do negócio, mantendo este a sua eficácia.

A R./recorrente insurge-se contra o decidido sustentando que:

- Da factualidade provada não resultam demonstrados os pressupostos de um mandato sem representação, nomeadamente, a transmissão para o mandante dos direitos adquiridos pelo mandatário na execução do mandato.

- Os factos apurados não permitem afirmar, que o insolvente e sua mulher, através da escritura, quiseram transferir para os recorridos (mandatários) direitos adquiridos em execução do mandato.

- Sendo certo que nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, o que resulta da escritura é apenas que o insolvente e a sua mulher declararam vender aos recorridos, e estes declararam comprar, a fração autónoma em causa, e não transferir qualquer direito adquirido em execução de mandato, e consubstanciando a escritura pública um documento autêntico, a sua força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade.

- Mesmo que assim não se entenda, a fração autónoma adquirida pelo insolvente deve responder pelas suas obrigações, uma vez que não se mostram preenchidos os requisitos do art. 1184º, do CC, não se mostrando provado que o mandato consta de qualquer documento junto aos autos e que não tenha sido feito o registo da aquisição.

Os AA./recorridos sustentam o acerto da decisão recorrida.

Apreciando.

Como suprarreferido, a resolução em benefício da massa insolvente, estando em causa resolução condicional, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: ter o ato sido praticado dentro dos 2 anos anteriores ao início do processo de insolvência, ter o mesmo natureza prejudicial para a massa e existir má-fé do terceiro.

Sendo certo que o contrato de compra e venda foi celebrado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, no presente recurso cabe, apenas, apreciar o requisito da prejudicialidade do ato para efeitos do artigo 120º do CIRE, uma vez que o tribunal recorrido confirmou a verificação do requisito da má-fé dos AA. na celebração do contrato, não sendo tal parte da fundamentação objeto do presente recurso, e, apesar dos recorridos manifestarem inconformidade com a mesma, não a rebatem.

Os AA. alegaram na PI factualidade que poderia ser integrada no instituto da simulação, por interposição fictícia de pessoa, que não resultou provada, como concluíram em uníssono a 1ª instância e o tribunal recorrido, o que não vem posto em causa, na medida em que não resultou demonstrado o acordo simulatório entre as partes outorgantes da 1ª escritura de compra e venda, nem o intuito de enganar terceiros com qualquer uma das escrituras (pontos 2 a 5 dos factos não provados).

O tribunal recorrido entendeu, porém, que a factualidade provada revela a interposição real de terceiros, reconduzível à figura jurídica do mandato sem representação, com a seguinte fundamentação: “… O que os factos revelam é que os autores, pretendendo comprar a fração autónoma em causa, mas deparando-se com a recusa dos vendedores, acordaram com os seus pais que estes, exercendo o seu direito legal de preferência, formalizariam a compra dessa fração e, de imediato, a venda da mesma aos autores, suportando estes todas as despesas inerentes a estas duas transmissões. Perante estes factos, não podemos afirmar que o facto de os autores terem pago o preço devido pelos seus pais pela compra do apartamento configure uma liberalidade (…), caso em que o não pagamento do preço correspondente à segunda alienação traduziria uma verdadeira diminuição do património do insolvente. Não podemos, sequer, afirmar que o insolvente e a sua mulher tenham intervindo nas transmissões em causa por sua própria conta e no seu interesse, ainda que tenham sempre agido em nome próprio. Pelo contrário, da conjugação dos factos provados descritos nos pontos f) a s) e v) a dd) – com especial destaque para os pontos z) e dd) – decorre que os agora insolventes agiram em nome próprio, mas por conta e no interesse dos seus filho e nora, aqui autores. Dito de outro modo, embora não demonstrem a celebração de um negócio com interposição fictícia de terceiros, que se reconduz à figura da simulação, revelam a interposição real de terceiros, reconduzível à figura jurídica do mandato sem representação. …”.

Insurge-se a Recorrente contra tal entendimento, sustentando que a factualidade provada não permite concluir pela verificação da existência de um mandato sem representação, uma vez que não resulta demonstrada a transmissão para os mandantes (AA.) dos direitos adquiridos pelo mandatário (o insolvente) na execução do mandato, em virtude da compra e venda não ser meio idóneo para o efeito, nem tal resultar da respetiva escritura.

Salvo melhor opinião, não lhe assiste razão, tendo o tribunal recorrido feito correta integração jurídica dos factos apurados.

Pedro Pais de Vasconcelos, em Teoria Geral do Direito Civil, 2015, 8ª ed., págs. 601/602, escreve que “A interposição de pessoas e a intenção de enganar terceiros têm de ser vistas com cautela, para que não haja confusão entre a simulação subjetiva por interposição fictícia de pessoa e o mandato sem representação. Tanto numa como no outro, dá-se a ocultação da pessoa a quem o ato se destina. No mandato sem representação há uma intenção de ocultação da pessoa do mandante. Costuma distinguir-se dizendo que na simulação subjetiva há uma interposição fictícia de pessoa, enquanto no mandato sem representação a interposição do mandatário é real. Mas qual é o critério para distinguir a interposição real da interposição fictícia de pessoa? Na simulação, principalmente na simulação relativa, há uma vontade negocial comum às partes de produzir dois planos de eficácia jurídica do negócio: entre as partes e perante terceiros. No mandato sem representação, diversamente, o mandante incumbe o mandatário de praticar atos, ou uma atividade jurídica, por conta e no interesse dele mandante, mas sem ser em sua representação e atuando ostensivamente em nome próprio. Não há no mandato sem representação um intuito de enganar terceiros embora haja o de não lhes revelar a posição do mandante e a sua relação com o mandatário. Há que convocar os deveres de informação e de transparência tal como estão ínsitos no artigo 227º do Código Civil em conexão com o regime do dolo com vício da vontade (artigo 253º): na simulação o intuito é malus; no mandato, o intuito é bonus. Na simulação há ilicitude; o mandato é lícito. A distinção consegue-se por interpretação.”.

Conforme resulta da factualidade provada, concretamente das als. f) a s) e v) a dd) da fundamentação de facto, o insolvente era inquilino de FF e de GG, e estes contactaram-no comunicando-lhe a sua intenção de proceder à venda do apartamento a um terceiro e informaram-no da possibilidade de exercer o seu “direito legal de preferência”.

O A. entrou em contacto com o senhorio com uma proposta de compra do imóvel, insistindo junto deste para que o negócio fosse concretizado diretamente com eles, contudo o senhorio transmitiu aos AA. e ao insolvente que não queria vender o apartamento àqueles e só o venderia ao segundo, em exercício do seu direito legal de preferência.

Perante a intransigência do senhorio, a única forma de concretizar o negócio desejado pelos AA. foi a outorga das escrituras públicas descritas em i) e j), realizadas no mesmo dia e seguidas, ou seja, primeiro a venda da fração pelo FF e de GG ao insolvente (e esposa), e, de seguida, a venda por este aos AA., suportando estes o preço da venda realizada em 1º lugar, bem como as despesas e impostos (IMT e IS) inerentes à mesma, não tendo a compra do imóvel tido como contrapartida qualquer deslocação patrimonial por parte do insolvente.

A única intenção dos AA. – que pretendiam efetuar a compra ao senhorio do insolvente e não a este – foi concretizar a compra que os vendedores se recusaram a fazer diretamente consigo.

Acresce que o cheque para pagamento do preço da venda da fração pelo insolvente aos AA. nunca foi apresentado a pagamento.

Da factualidade provada pode concluir-se, como concluiu o tribunal recorrido 3, que, perante a recusa dos vendedores em realizar o negócio com os AA., estes acordaram com o insolvente (seu pai e sogro, respetivamente) a compra da fração, no exercício do seu direito legal de preferência, e a transmissão subsequente, imediata, da mesma aos AA.

O insolvente atuou em nome próprio, mas no interesse dos AA., acordando em realizar as duas escrituras por forma a concretizar a aquisição desejada por estes, tendo atuado na escritura realizada em 1º lugar, por interposição real, em mandato sem representação daqueles, e na 2ª querendo transferir para os AA. os direitos adquiridos na 1ª, em execução do mandato.

Afigura-se-nos manifesta a divergência entre a vontade dos outorgantes insolvente e AA. e o que ficou a constar da (2ª) escritura pública de “compra e venda”, a que na realidade faltou o pagamento e recebimento de qualquer preço.

A tal divergência subjaz um acordo dos outorgantes: a perceção da divergência (relativa ao pagamento do preço) por ambos os contraentes – que são pai/sogro e filho e nora – torna inquestionável a existência de uma ação concertada, no sentido pretendido pelos AA. 4.

Adotando a tese da dupla transferência, o art. 1181º, nº 1, do CC, estipula que o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.

Como nos dá conta Pessoa Jorge, em O Mandato sem Representação, pág. 319, nota 71, a transferência em causa não deve ser efetuada através de uma venda, “embora, na realidade, seja a esta que as partes normalmente recorrem”.

Regina Pacheco, em Da Transferência do Mandatário para o Mandante dos Direitos Adquiridos em Execução do Mandato Sem Representação, AAFDL, 2001, pág. 42, pronuncia-se no sentido da transferência dos direitos para o mandante poder ser efetuada através de um venda, explicitando que para além de se estar no âmbito da autonomia privada, em que as partes podem acordar, dentro dos limites da lei, os termos do contrato, nada na lei impede que num contrato de mandato se convencione aquela forma de transferência.

Embora a outorga de um contrato de compra e venda possa não ser a forma idónea para efetuar a transferência dos direitos adquiridos pelo mandatário (entendimento que não é unânime, como se vê), a sua realização não põe em causa aquela transferência.

Pode entender-se que o contrato em causa é simulado 5, porque as partes não pretendem, efetivamente, proceder a qualquer venda, mas o que é um facto, é que subjacente a esse negócio sempre estaria o negócio dissimulado (art. 241º, nº 1, do CC), através do qual o mandatário cumpre a obrigação assumida com o mandato, operando a transferência do direito (neste sentido, ver Pessoa Jorge, na obra citada, págs. 134, 319, e nota 71).

Da factualidade provada e supra referida resulta, efetivamente, que o insolvente quis transferir para os AA. o direito de propriedade sobre a fração resultante da compra celebrada com FF e de GG, no interesse dos AA., e em execução de mandato sem representação.

É certo que da escritura pública referida em j) da fundamentação de facto nada consta nesse sentido, mas, ao contrário do sustentado pelo Recorrente, o documento autêntico apenas faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora – art. 371º, nº 1, do CC.

A força probatória plena do documento autêntico reporta-se aos factos ocorridos na presença do oficial público, aos atos que declarou praticar, que presenciou, ouviu e documentou, não abrangendo juízos pessoais.

Já no que respeita às declarações proferidas pelas partes perante o oficial público, a força probatória plena apenas abrange o conteúdo extrínseco dessas declarações (as declarações proferidas), não abrangendo o conteúdo intrínseco das mesmas (a sua veracidade e validade).

Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, 4ª ed., Vol. I, págs. 327/328, em anotação ao art. 371º, escrevem que “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo (ex.: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas perceções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coação, ou que o ato não seja simulado. (...).”.

No mesmo sentido, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCE, pág. 852/853, em anotação ao art. 371º do CC, escreve que “Não é sempre a mesma a força probatória material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, que lhes leu o documento …), ou que nele são atestados com base nas suas perceções (por ex., as declarações que ouviu ou os atos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador. As declarações de ciência ou de vontade, cuja emissão é atestada pelo documentador, terão valor probatório especial ou não, de acordo com a sua natureza. … A força probatória do documento também não tem qualquer repercussão na validade ou na veracidade da declaração documentada, nem é questionada por eventual arguição de vícios na formação da vontade ou de divergências entre a vontade e a declaração”.

No caso, não estão em causa os atos atestados pelo documentador na escritura pública, mas a veracidade do declarado pelos outorgantes na mesma, sendo a força probatória plena do documento alheia a tais declarações.

Nesta conformidade, a invocação pela Recorrente da não arguição da falsidade da escritura não vem a propósito, uma vez que a falsidade teria que ter por objeto os factos cobertos pela força probatória plena da escritura, e não aqueles que, como é precisamente o caso, estão fora dessa força plena.

Não nos merece, pois, censura, a conclusão a que chegou o tribunal recorrido da verificação de um mandato sem representação, com a transferência posterior dos direitos adquiridos para os AA.

Tal como não nos merece censura a conclusão do tribunal recorrido de que a fração adquirida pelo insolvente não responde pelas suas obrigações.

Escreveu-se no acórdão recorrido: “… O mandatário que age sem poderes de representação tem a obrigação de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato, como preceitua o artigo 1181.º. Se adquiriu coisas, deve entregá-las ao mandante e transferir para este os respetivos direitos reais – no caso dos autos, o direito de propriedade sobre a fração. Mas, enquanto não o faz, é ele próprio o titular dos direitos sobre essas coisas. Antes da referida transferência, o mandante não tem qualquer direito sobre os bens adquiridos. … Em coerência com este regime de dupla transferência, os bens adquiridos pelo mandatário em execução do mandato entram no património deste e, por isso, deveriam responder pelas suas obrigações, nos termos gerais. Porém, o artigo 1184.º afasta esse regime geral, embora com algumas cautelas, preceituando o seguinte: «Os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante nos termos do n.º 1 do artigo 1181.º não respondem pelas obrigações daquele, desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora desses bens e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo». Em todo o caso, esta questão apenas se coloca enquanto o direito adquirido em execução do mandato não é transferido para o mandante. Como dissemos, esse direito é do mandatário enquanto não for transferido. Após a transferência deixa de o ser, passando para a titularidade do mandante, não sendo esta transferência passível de impugnação pauliana, como defendem Pires de Lima e Antunes Varela (cit., p. 753), e, acrescentamos nós, pelas mesmíssimas razões, de resolução em benefício da massa insolvente. Voltando ao caso concreto, vimos que o direito de propriedade da fração adquirida em nome do insolvente e da sua mulher, mas por conta e no interesse dos aqui autores, foi imediatamente a seguir transferido para estes, sem que se vislumbre qualquer razão para questionar a sua validade, pois revelam-se inteiramente inconsequentes as divergências entre a vontade declarada na escritura pública referida no ponto j) dos factos provados e a vontade real dos declarantes, designadamente no que concerne ao pagamento do preço, por não integrarem nenhum vício invalidante desse negócio. Por conseguinte, o referido bem não responde pelas dívidas do aqui insolvente.”.

Nos termos do disposto no art. 1181º, nº 1, do CC, o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato, e isto porque, ao agir em nome próprio, fica titular daqueles direitos, embora sujeito a proceder à sua transferência para o mandante por força das obrigações contratuais assumidas perante este.

Nesta conformidade, e entrando os bens no património do mandatário, deveriam os mesmos responder pelas suas obrigações, nos termos dos arts. 601º e 817º do CC.

Porém, o art. 1184º do CC afasta esse regime regra 6, “com as cautelas necessárias para evitar fraudes em prejuízo dos credores do mandatário e para tutelar os interesses ligados ao registo” (Maria João Vaz Tomé, no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP, pág. 735), nomeadamente quando o imóvel ainda se encontra em nome do mandatário quando ocorre a penhora - estando “registada a transmissão, esta deve, em princípio, produzir todos os seus efeitos em relação a terceiros e, portanto, em relação aos credores do mandatário. É uma consequência do próprio registo” (obra e local citados).

No caso em apreço, o imóvel, depois de adquirido, saiu, logo de seguida, da esfera patrimonial do insolvente na medida em que foi, imediatamente, transmitido para a esfera patrimonial dos AA., contrariando a factualidade provada a demonstração de qualquer fraude em prejuízo dos credores daquele.

Sublinhe-se, ainda, como o fez o tribunal recorrido, que verdadeiramente relevante na situação em apreço é a falta de prova do prejuízo que a resolução em benefício da massa pressupõe.

Como se escreve no acórdão recorrido, “… a prova desse prejuízo não se basta com a demonstração de que o imóvel em causa havia ingressado validamente no património do insolvente (e da sua mulher) e que foi alienado nos dois anos que antecederam a declaração da sua insolvência sem que tenha sido substituído por outro bem de valor equivalente, na medida em que se apurou que a aquisição daquele imóvel foi formalmente feita em nome dos agora insolventes, mas por conta e a expensas dos autores, não como uma liberalidade destes em benefício daqueles, mas tendo em vista a sua transmissão para os referidos autores. Como é bom de ver, a primeira transmissão não traduz um verdadeiro aumento do património dos insolventes – que passam a ser titulares do direito de propriedade sobre o imóvel, mas também devedores da obrigação de entrega do mesmo aos autores –, tal como a segunda transmissão não traduz uma verdadeira diminuição desse património – que deixa de integrar o imóvel em causa, mas também a obrigação da sua entrega.”.

Em conclusão, não merece censura a decisão do tribunal recorrido, improcedendo a revista.

As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo da recorrente, por ter ficado vencida – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar revista.

Custas pela recorrente.


*


Lisboa, 2025.01.14

Cristina Coelho (Relatora)

Teresa Albuquerque

Maria Olinda Garcia

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):

__________________________________________________________________

1. Aditando à factualidade provada os factos elencados sob as als. v) a dd).↩︎

2. Entendendo-se “por má fé o conhecimento, à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência.”.↩︎

3. Como se escreve no Ac. do STJ de 2012, P. 987/06.0TBFAF.G1.S1 (Serra Batista), em www.dgsi.pt, “… a Relação, sendo um tribunal de instância e não de revista, pode legitimamente extrair ilações ou conclusões da matéria de facto fixada pela 1ª instância ou mesmo por si, assim se movendo no âmbito da matéria de facto. Tendo vindo este Supremo a entender que tais conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto provada, são, elas mesmas, matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, devendo, contudo, as instâncias, ao extraírem aquelas conclusões, limitarem-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo, como tal, alterar [1]. Não podendo, assim, este Supremo, sindicar o juízo de facto formulado pela Relação para operar a ilação, salvo se ocorrer a situação prevista no art. 722.º, nº 2 do CPC – arts 729.º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal e 26.º da LOFTJ. Sendo apenas o tribunal competente para verificar da correção do método discursivo e, em geral, saber se os critérios de utilização das presunções judiciais se mostram respeitados, examinando a questão estritamente do ponto de vista da legalidade, assim decidindo se, no caso concreto, era ou não permitido o uso da presunção[2].”.↩︎

4. A que acresce o facto de o insolvente (e esposa) nada ter pago relativamente à 1ª escritura de compra e venda.↩︎

5. Não resultando, contudo, demonstrado o intuito de enganar terceiros.↩︎

6. Ao estipular que “Os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante nos termos do nº 1 do artigo 1181º não respondem pelas obrigações daquele, desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora desses bens e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo.”.↩︎