I- As presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (cfr. art. 349.º do CC).
II- Constitui jurisprudência sedimentada do STJ que este tribunal só pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.
III- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa apenas pode ser objeto de recurso de revista, quando exista ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – art. 674.º, n.º 3, do CPC.
IV- O STJ está limitado a apreciar se houve violação de lei na apreciação da chamada prova vinculada, o que exclui dos poderes deste Supremo Tribunal a sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso da prova testemunhal direta ou indireta.
V- A identificação e fixação dos temas da prova não conduz a caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes
VI- O artigo 1284.º, n.º 1, do CC criou uma responsabilidade civil autónoma, na medida em que o facto ilícito decorre da turbação da posse ou do seu esbulho e não deixa a mesma de ter como pressupostos os descritos no art. 483.º do CC: violação de um direito ou interesse alheio; ilicitude; imputação do facto ao agente; dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
VII- O dano decorrente da privação do uso é considerado como um dano autónomo, bastando para o seu ressarcimento a prova de que o seu proprietário se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
VIII- O autor, enquanto locatário financeiro, desde 08-01-2010, tem o direito de usar e fruir livremente a fração, pelo que a conduta das rés, ao impedirem esse gozo, é causadora, por si só, de um dano autónomo suscetível de indemnização, traduzindo-se esse dano na perda das utilidades da coisa, qualificando-se como um dano patrimonial porque essas utilidades, consideradas em si mesmas, têm valor pecuniário.
IX- É lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.
X- O STJ tem entendido de forma consolidada que o juízo de equidade das instâncias deve ser mantido salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, isto é, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística.
XI- A consideração da notoriedade dos factos e a assunção de factos notórios, ao abrigo dos poderes do art. 607º, 4 do CPC., estará excluída da cognição do STJ., enquanto decisão ex novo, pertencendo em exclusivo às instâncias.
XII- Tendo em conta os critérios definidos no artigo 494.º do CC, por remissão do n.º 4 do art. 496.º do mesmo Código, importa ter em conta na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, o elevado grau de culpabilidade das rés que agiram com dolo, não sendo despicienda a sua situação económica, uma vez que exploram o empreendimento turístico descrito na factualidade provada, tendo inclusivamente explorado economicamente a fração do autor, obtendo proveitos com a sua conduta ilícita.
Acordam na 6º. Secção do Supremo Tribunal de Justiça
1-Relatório:
O autor, AA intentou ação declarativa, para restituição de posse, contra as rés, Panorama Convencional Unipessoal Lda., e Rainbowtribute, Lda., peticionando que:
Seja decretada a restituição definitiva ao autor da posse da fração “T” do prédio identificado nos autos e cumulativamente, sejam as Rés condenadas:
i- A restituir ao Autor os valores que receberam pela exploração ilícita do imóvel desde 2016, em valor não inferior a €154.204,80, nos termos e para efeitos do artigo 473.º do CC;
- ou, se assim se não entender, a restituição dos frutos nos termos do artigo 1271.º do CC, acrescido dos juros de mora, à taxa legal até efetivo e integral pagamento, para além dos compulsórios, contados do trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo;
ii- A indemnizar o Autor pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais causados (conforme explanado no 37.º, 52.º a 56.º da petição inicial e Doc.23), em valor nunca inferior a €10.246,00, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal até efetivo e integral pagamento, para além dos compulsórios, contados do trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo;
iii- A absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam, dificultem ou limitem a normal utilização da fração localizada no aldeamento turístico, bem como a fruição das áreas comuns da propriedade horizontal, por parte do Requerente ou a quem este permita a utilização do seu imóvel;
iv- Que seja determinada a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória às Rés, no valor de €500,00 (quinhentos euros) por cada dia que não entreguem os comandos dos portões ao Autor e por cada ato que pratiquem que impeça, dificulte ou limite a normal utilização da fração localizada no aldeamento turístico, bem como a fruição das áreas comuns da propriedade horizontal, por parte do Autor ou a quem este permita a utilização.
Alegou, em suma, que celebrou com o Banco Bilbao Viscaya Argentaria (Portugal), S.A. um contrato de locação financeira imobiliária, tendo por objeto a fração autónoma, contrato esse que se encontra em vigor.
Sempre pagou pontualmente os encargos com o imóvel, como as rendas e as obrigações fiscais, tendo sido surpreendido com o recebimento de uma convocatória para uma Assembleia Geral de Proprietários do prédio urbano em questão, que se realizaria a 3 de maio de 2021, convocada pelo empresa RAINBOWTRIBUTE, LDA. (2ª Ré), a qual se apresentava como empresa exploradora do aldeamento no qual se encontra inserida a fração autónoma de que é locatário, bem como se apresentava como proprietária das restantes 33 frações autónomas, tendo nessa sequência apurado que o imóvel a si locado se encontrava publicitado no site da referida sociedade como parte integrante do aldeamento explorado, sendo possível o seu arrendamento.
Refere ainda que, tendo-se deslocado a Portugal em finais de agosto de 2021, constatou que as fechaduras que dão acesso ao imóvel de que é locatário foram substituídas, sem o seu consentimento, estando o mesmo ocupado por terceiros.
A fração da qual é locatário foi integrada, sem o seu conhecimento, num empreendimento turístico tipo aldeamento e encontra-se nessa qualidade a ser explorada pelas Rés, sem o seu consentimento.
As Rés contestaram, referindo, em síntese, que o aldeamento em questão, outrora designado como Aldeamento “...”, é atualmente explorado pela Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA. (2ª Ré) com a denominação comercial de “...”, pelo que a Ré PANORAMA CONVENCIONAL (1.ª Ré) é parte ilegítima, por ausência de ligação com a lide.
Mais invocaram a caducidade do direito de ação, uma vez que, nos termos do disposto no artigo 1282.º do Código Civil, o Autor apenas poderia propor a ação no prazo de um ano contado do alegado esbulho, ou do seu conhecimento, quando o mesmo haja sido praticado a ocultas, o que não fez.
Acrescentam que a condição de locatário financeiro não confere ao Autor mais do que um direito pessoal de gozo sobre a fração, resultante da relação creditícia inerente à locação de que é parte, o que lhe confere uma posse precária, ou simples detenção, mas já não o direito a exercer uma verdadeira posse por referência a um direito real.
Alegaram ainda que, em 2015, a RAINBOWTRIBUTE, LDA. (2ª Ré) adquiriu o aldeamento num estado que obrigou à realização de obras de reabilitação do empreendimento, tendo então procurado contactar o Autor, através do envio de cartas para a morada conhecida, mas sem sucesso.
Aduzem que, desde 2015 e até agosto de 2021, o Autor não compareceu no aldeamento “...”, não tendo feito qualquer uso da fração locada, incumprindo ao longo dos últimos seis anos, deveres que lhe incumbiam, à luz do regime da propriedade plural em tais empreendimentos, pelo que, concluem, aquele perdera qualquer posse que alguma vez pudesse ter tido, por abandono.
Mais alegam que não existiu esbulho porquanto não houve qualquer “substituição de fechaduras” na fração locada pelo Autor, encontrando-se à sua disposição, na receção do aldeamento “...”, os códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas, bem como, adicionalmente, a chave de abertura de uma porta exterior pedonal.
Esclarecem ainda que a RAINBOWTRIBUTE (2ª Ré) não nega os direitos que ao Autor advêm da sua condição de locatário financeiro da fração em apreço, pelo que, o presente pedido de restituição da posse afigura-se inútil, quanto mais não seja porque o Autor encontra-se hoje em poder das chaves da respetiva fração, resultando além do mais infundado o pedido de restituição de alegados proventos, deduzido pelo Autor.
O Autor respondeu às exceções (ilegitimidade e caducidade) e invocou ainda a litigância de má-fé por parte das Rés.
Em audiência prévia de 28-06-2022 foi decidido relegar o conhecimento da exceção de ilegitimidade e da exceção de caducidade, para momento posterior, determinando-se a realização da audiência de julgamento.
Em 21-11-2022 o Autor apresentou articulado superveniente e deduziu ampliação do pedido, alegando que, em 31-10-2022 se deslocou ao aldeamento ... para verificar o estado do seu imóvel e que, quando chegou à sua fração, a porta estava novamente arrombada e o interior da fração totalmente esvaziado de bens, suspeitando que a autoria do ocorrido seja da responsabilidade das Rés.
Acrescenta que estas retiraram ou permitiram a retirada de todos os bens da fração do Autor de modo que não fosse mais possível usá-la para exploração turística e que, apesar de, desde setembro de 2021, as Rés não mais explorarem a fração do Autor, a verdade é que também não permitem a fruição do imóvel para os fins a que foi adquirido, nomeadamente para exploração turística, dado que, até à presente data, nunca forneceram qualquer tipo de proposta de exploração.
Assim, o Autor peticionou a acrescer aos pedidos originalmente deduzidos, os seguintes:
i- A restituição dos valores que as rés receberam pela exploração ilícita do imóvel desde junho de 2016 a agosto de 2021, em valor nunca inferior a €154.204,80, nos termos e para efeitos do artigo 1271.º do CC ou, nos termos do artigo 473.º do CC;
ii- acrescido de uma indemnização pelos prejuízos patrimoniais decorrentes da privação do uso do imóvel desde setembro de 2021 até ao trânsito em julgado da sentença, não só pelos valores que despendeu com o pagamento da renda do imóvel no período em questão, mas também e em igual valor, pelos valores que deixou de receber pela exploração turística da sua fração, acrescido dos juros de mora, à taxa legal até efetivo e integral pagamento; - para além dos compulsórios, contados do trânsito em julgado da decisão a proferir;
- ou, em alternativa,
iii- a condenação das Rés a indemnizar o Autor pelos prejuízos patrimoniais decorrentes da privação do uso do imóvel desde junho de 2016 até ao trânsito em julgado da sentença, não só pelos valores que despendeu com o pagamento da renda do imóvel no período em questão, mas também e em igual valor, pelos valores que deixou de receber pela exploração turística da sua fração, conforme os critérios do 564.º do CC;
iv- Indemnizar o Autor pelos prejuízos patrimoniais, para efeitos do 1284.º do CC, acrescido do que vier a ser liquidado em sede de sentença, e dos juros de mora, à taxa legal até efetivo e integral pagamento, para além dos compulsórios, contados do trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo, nos seguintes termos:
a) 246,00 € (duzentos e quarenta e seis euros) – pela substituição das fechaduras;
b) 5.000,00€ (cinco mil euros) pelos custos com os processos judiciais decorrentes das condutas ilícitas das Rés que obrigaram o Autor a recorrer aos Tribunais, que protesta juntar em sede de liquidação de sentença;
c) 4.000,00€ (quatro mil euros) a título de transportes, refeições e hospedagem, que tem incorrido desde 2021 para tentar resolver o esbulho que sofreu, que protesta juntar em sede de liquidação de sentença;
v- Indemnizar o Autor pelos prejuízos não patrimoniais, nos termos do 496.º do CC, conforme explanado no 55.º e 56.º da petição inicial e 14.º do presente petitório, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal até efetivo e integral pagamento, para além dos compulsórios, contados do trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo em 26.500,00 €;
vi- Seja ordenado que as Rés se abstenham de praticar quaisquer atos que impeçam, dificultem ou limitem a normal utilização da fração localizada no aldeamento turístico, bem como a fruição das áreas comuns da propriedade horizontal, por parte do Requerente ou a quem este permita a utilização do seu imóvel, determinando a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória as Rés, no valor de € 500,00 (quinhentos euros) por cada ato que pratiquem que impeça, dificulte ou limitem a normal utilização da fração localizada no aldeamento turístico, bem como a fruição das áreas comuns da propriedade horizontal, por parte do Requerente ou a quem este permita a utilização.
No exercício do direito ao contraditório, vieram as Rés impugnar os factos supervenientes alegados e, deduzir pedido de condenação do Autor em litigância de má-fé.
Em ata de audiência de julgamento de 13-12-2022 foi admitido o articulado superveniente e, bem assim, a requerida alteração do pedido e causa de pedir.
Na 1ª. Instância foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação, decidindo:
«Decretar a restituição definitiva ao autor da posse da fração “T” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...00, da freguesia da ..., com o valor patrimonial tributário de €31.028,40.
2. Condenar as Rés PANORAMA CONVENCIONAL UNIPESSOAL, LDA. e RAINBOWTRIBUTE, LDA. no pagamento da quantia de 250,00 (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de incumprimento.
3. Absolver as Rés do demais peticionado.
4. Absolver Autor e Rés do pedido de litigância de má-fé».
Inconformado com tal decisão, o autor interpôs recurso de apelação, tendo as rés respondido e interposto recurso subordinado.
Na Relação de Évora foi proferido acórdão com o seguinte teor no seu dispositivo:
«I. Julgar improcedente a apelação subsidiária das Rés, sem prejuízo duma procedência pontual quanto a uma nulidade de sentença que, suprida, foi julgada desfavoravelmente às mesmas.
II. Julgar procedente a apelação do Autor e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida que se substitui por outra que julga a ação procedente e, consequentemente condena-se as Rés, solidariamente no pagamento ao Autor do montante de €118.646,00 (cento e dezoito mil, seiscentos e quarenta e seis euros), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
III. Mantendo-se o decidido quanto a:
Decretar a restituição definitiva ao autor da posse da fração “T” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o número ...00, da freguesia da ..., com o valor patrimonial tributário de €31.028,40.
IV. Dando-se por prejudicada a condenação em sanção pecuniária compulsória considerando encontrar-se o A. recorrente na posse da fração».
As rés inconformadas, interpuseram recurso de revista excecional quanto à parte do acórdão recorrido que julgou improcedente a exceção de caducidade do direito de ação do autor e recurso de revista normal, concluindo as suas alegações:
A. O presente recurso de revista tem por objeto o Acórdão recorrido na parte em que o mesmo (i) confirmou a decisão de improcedência da exceção perentória de caducidade do direito de ação do Autor e (ii) condenou as Rés no pagamento de uma indemnização ao Autor a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, incidindo sobre a matéria de facto provada e a matéria de Direito.
B. O Tribunal a quo confirmou integralmente a Sentença, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, na parte em que a mesma determinou a improcedência da exceção perentória de caducidade do direito de ação do Autor.
C. Fê-lo com fundamento em que a posse das Rés foi praticada a ocultas, por não ser do conhecimento do Autor, razão pela qual, nos termos conjugados dos artigos 1262.º e 1282.º do Código Civil, o prazo de caducidade de um ano para interposição de ação de restituição ou manutenção da posse deveria, na perspetiva do Tribunal a quo, contar a partir da data do conhecimento efetivo do esbulho pelo Autor, e não a partir da data da sua putativa prática pelas Rés, como é a regra quando a posse e o esbulho tenham sido exercidos de modo público.
D. Ao assim decidir, o Tribunal a quo partiu do pressuposto errado de que a publicidade da posse é medida por padrões de conhecimento efetivo do esbulho pelos interessados, e não por padrões de cognoscibilidade, o que contraria, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.06.2010 no Proc. n.º 137/06.2TCGMR.G1.S1, que aqui se invoca como ACÓRDÃO-FUNDAMENTO da revista excecional, cuja cópia ora se junta como DOC. N.º 1 e cuja certidão de trânsito em julgado se protesta juntar (cfr. DOC. N.º 2), proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
E. A questão fundamental de direito que se impõe analisar neste tocante é a de saber quais são, ao abrigo do disposto no artigo 1262.º do Código Civil, os pressupostos de que depende a qualificação da posse como pública, e, particularmente, se o que releva para este efeito são padrões de cognoscibilidade do esbulho e da posse, como sustentam as Rés, ou de conhecimento efetivo, como sustentaram os Tribunais de 1.ª e 2.ª instância nos presentes autos.
F. No Acórdão-fundamento, ao contrário do Acórdão ora recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aderiu à posição aqui sufragada pelas Rés, tendo entendido o seguinte: “1. Posse pública, preconiza o art. 1262º C. Civil, é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados. A publicidade não se reporta ao momento em que se constitui, mas ao próprio exercício dos actos materiais correspondentes ao direito, ou seja, aos seus efeitos, até por que a posse oculta não deixa de ser posse. Para ser pública exige-se que o exercício da posse seja feito de modo a poder ser conhecido dos interessados mas já não um seu conhecimento efectivo. Basta que se possua a coisa como a possuiria um normal proprietário, sem a ocultar dos eventuais interessados. E tem de se apreciar objectiva e casuisticamente dessa possibilidade dos interessados se poderem ou não aperceber do exercício da posse.”
G. Conforme se demonstrou, o referido ACÓRDÃO-FUNDAMENTO permite o preenchimento de todos os pressupostos de que depende a revista excecional quanto à decisão de improcedência da exceção perentória de caducidade do direito de ação do Autor, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
H. O aludido Acórdão, há muito transitado em julgado, tem por objeto a mesma questão fundamental de direito que aqui se discute, respeitante à análise dos pressupostos de que depende a qualificação da posse como pública, nos termos do artigo 1262.º do Código Civil.
I. Para a apreciação dessa questão fundamental concorreu no ACÓRDÃO-FUNDAMENTO a mesma legislação que se discute nos presentes autos: o artigo 1262.º do Código Civil, que se mantém inalterado desde 25.11.1966, e que dispõe que “[p]osse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados”.
J. O quadro factual subjacente ao Acórdão-fundamento, no que releva para efeitos da questão fundamental a dirimir, é também semelhante ao que se discute nos presentes autos.
K. E existe, igualmente, uma incontornável contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento na análise dos pressupostos da publicidade da posse: enquanto o Acórdão recorrido fundamenta a falta de publicidade da posse das Rés, simplesmente, com o argumento de que o Autor residia no estrangeiro e o mesmo apenas teve conhecimento (efetivo) da alteração das fechaduras da Fração em 2021, o ACÓRDÃO-FUNDAMENTO irreleva a existência ou não de conhecimento efetivo do Autor, centrando-se antes naquilo que é verdadeiramente relevante, que é a possibilidade de conhecimento.
L. A posição assumida por um e outro Tribunal foi essencial, em ambos os casos, para determinar o resultado da lide. No caso vertente, a consideração do critério do conhecimento efetivo da posse para efeitos da apuração da sua natureza pública ou oculta implicou a sua qualificação como uma posse oculta, o que por sua vez levou à conclusão errónea de que o prazo de caducidade do direito do Autor a interpor ação de restituição ou manutenção da posse não tinha ainda transcorrido, nos termos do artigo 1282.º do Código Civil. No caso objeto do ACÓRDÃO-FUNDAMENTO, a consideração do critério da cognoscibilidade da posse para efeitos da apuração da sua natureza pública ou oculta implicou a sua qualificação como uma posse pública, o que por sua vez levou à conclusão de que estavam preenchidos todos os requisitos necessários à aquisição do direito de propriedade por usucapião, nos termos dos artigos 1287.º e 1297.º do Código Civil.
M. Encontra-se, pois, legitimado o direito recursório das Rés, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, alínea c), do CPC, pelo que deve a presente revista excecional ser admitida, o que se requer.
Por outro lado,
N. O Supremo Tribunal de Justiça tem também poderes de cognição no que respeita ao erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa nos casos em que esse erro se traduza na ofensa de uma disposição expressa da lei que “exija certa espécie de prova para a existência do facto” ou que “fixe a força de determinado meio de prova”, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.
O. Ao abrigo do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a doutrina e a jurisprudência têm aceitado que, entre outros aspetos, o Supremo Tribunal de Justiça tem poder de controlo sobre as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias para inferirem, com base nos factos efetivamente provados, outros factos que não decorrem diretamente da prova produzida.
P. In casu, o Tribunal a quo aditou ou manteve na matéria de facto provada, com recurso a presunções judiciais ilógicas e inválidas e a meios de prova cuja valoração viola disposições legais imperativas, os factos constantes dos pontos 17, 26, 28, 29, 37, 41, 43, 44, 45, 46 e 47.
Q. Para dar esses factos como provados, o Tribunal a quo valorou documentos que foram impugnados pelas Rés e cuja veracidade não foi demonstrada pelo Autor, considerou confessados factos que não foram objeto de confissão válida e eficaz e recorreu a presunções judiciais ilógicas, contraditórias e com recurso a factos base que foram, eles próprios, presumidos.
R. Além disso, o Tribunal a quo, fazendo uma errada seleção dos factos que integram o objeto probatório, veio julgar improcedente o recurso de apelação das Rés na parte em que as mesmas requereram o aditamento do seguinte facto: “Para além dos elementos referidos em 38., não existe nenhum outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do Autor”.
S. Com essa decisão, o Tribunal a quo olvidou a relevância material deste facto para a boa decisão da causa, tendo incorrido em erro na aplicação da lei processual, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC, e em violação do caso julgado formado quanto ao objeto do litígio e aos temas de prova.
T. A questão de saber se a fixação pelo Tribunal a quo da factualidade relevante, a apreciação da prova produzida e as ilações por ele retiradas dos factos provados foram feitas de forma legalmente válida e coerente subsume-se ao âmbito dos poderes de sindicância do Supremo Tribunal de Justiça, sendo admissível o presente recurso neste tocante, nos termos do disposto no artigo 674.º, n. º3, do CPC, e tendo por base a violação do regime previsto no artigo 662.º do CPC.
U. No que respeita ao segmento decisório relativo à condenação das Rés no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, relativamente ao qual inexiste dupla conforme, a presente revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, concretamente dos artigos 483.º e 1284.º do Código Civil, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, sendo, também neste ponto, plenamente admissível o presente recurso de revista.
II. DOS FUNDAMENTOS QUE JUSTIFICAM A PROLAÇÃO DE DECISÃO DIVERSA
A) DA EXCEÇÃO PERENTÓRIA DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO DO AUTOR -REVISTA EXCECIONAL
V. O Tribunal a quo, ao julgar improcedente o recurso de apelação das Rés e confirmar a Sentença na parte em que a mesma julgou improcedente a exceção perentória de caducidade do direito de ação do Autor, nos termos conjugados dos artigos 1262.º e 1282.º do Código Civil, incorreu em erro na interpretação e aplicação do Direito, partindo do errado pressuposto de que a putativa posse das Rés sobre a Fração era oculta, por não ser do conhecimento do Autor, quando a letra do artigo 1262.º (“poder ser conhecida”) não permite outra interpretação senão a de que a possa é pública quando seja cognoscível pelos interessados.
W. E é essa a posição doutamente perfilhada no ACÓRDÃO-FUNDAMENTO, que aqui deverá ser igualmente acolhida.
X. No caso vertente, a ter havido esbulho por parte das Rés (no que, reitera-se, não se concede) sempre o mesmo teria de ser qualificado como público, desde logo porque a Fração se encontrava inserida num aldeamento turístico aberto ao público, ao qual o locatário financeiro medianamente diligente, colocado na posição do Autor, sempre teria de ter-se deslocado, pelo menos ocasionalmente, e, ainda para mais, o aldeamento estava publicitado na Internet, num site de acesso público e amplamente divulgado: não existe maior publicidade do que essa
Y. E tanto assim é que o Autor, que residia no estrangeiro, conseguiu – quando a tal se predispôs minimamente – facilmente verificar a situação do aldeamento turístico através de uma pesquisa na Internet, o que se deu por provado nos pontos n.º 21 e 22 da lista de factos provados.
Z. A diligência e a intenção das Rés de fazer chegar ao Autor informações sobre a Fração e o aldeamento foi igualmente dada como provada nos pontos 13 a 15 da lista de factos provados, e inversamente deu-se como provada a falta de diligência do Autor, que não cumpriu as obrigações mais basilares que lhe competiam enquanto locatário financeiro da Fração, conforme ponto 39 da lista de factos provados e ponto b) da lista de factos não provados.
AA. Por todo o exposto, deve a conduta das Rés ser considerada pública, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1262.º do Código Civil, e, em consequência, deve considerar-se que o prazo de caducidade do direito de ação do Autor, previsto no artigo 1282.º do Código Civil, começou a contar a partir da data da prática do putativo esbulho, que sempre corresponderia a 01.06.201683, data aproximada do processo de reabilitação do aldeamento, razão pela qual o aludido prazo terminou a 01.06.2017, sendo extemporânea a presente ação.
BB. Termos em que deve o presente recurso de revista ser julgado procedente neste ponto e, em consequência, ser o Acórdão recorrido revogado e substituído por outro que julgue procedente, por provada, a exceção perentória de caducidade do direito de ação do Autor, nos termos dos artigos 1262.º e 1282.º do Código Civil, absolvendo as Rés de todos os pedidos.
B) DA VIOLAÇÃO DE NORMAS DE DIREITO MATERIAL PROBATÓRIO QUANTO AOS FACTOS N.º 17, 26, 28, 29, 37, 41, 43, 44, 45, 46 E 47
CC. No que diz respeito ao facto provado n.º 17, o mesmo foi mantido na lista de factos provados pelo Tribunal a quo com base numa presunção judicial inferida a partir do facto provado n.º 16, tendo o Tribunal decidido que: “Tal facto é verosímil […]”.
DD. Sucede, porém, que o teor do referido facto provado n.º 17 é contrariado pelo teor dos factos provados n.º 13, 14, 15 e 39, bem como dos factos não provados a) e b), que são indiciadores da absoluta falta de interesse do Autor no aldeamento e na sua Fração, da impossibilidade de contacto do mesmo pelas Rés, e também da falta de qualquer contacto entre o mesmo e o BBVA.
EE. É incoerente e ilógica a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 17, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil e contrariando os factos provados n.º 13, 14, 15 e 39 e os factos não provados a) e b), razão pela qual deve o referido facto ser suprimido da lista de factos provados.
FF. No que diz respeito aos factos provados n.º 26, 28, 29 e 37, os mesmos foram mantidos na lista de factos provados pelo Tribunal a quo com fundamento em que “esse depoimento [do legal representante das Rés] não se mostra suficiente, nem apto, a invalidar prova assente em depoimentos de testemunhas que estiveram no local, algumas das quais em exercício de funções públicas, como os agentes de autoridade, o que, no seu conjunto, impõe a manutenção de tais factos.”
GG. Sucede, em primeiro lugar, que quanto aos factos provados n.º 26, na parte em que refere que a Fração estava ocupada por “hóspedes”, e n.º 28, na parte em que refere que as Rés estavam a “explorar” todas as Frações, as pessoas que efetivamente terão proferido estas declarações, respetivamente a funcionária da limpeza e a BB, não foram ouvidas em julgamento, sendo certo que nunca as mesmas teriam conhecimento direto da qualidade das pessoas que ocupam a Fração, nem têm de o ter, atentas as suas funções estritamente administrativas no aldeamento turístico.
HH. Assim, caso tivessem sido ouvidas em audiência de julgamento – o que apenas por falta de iniciativa do Autor não sucedeu, tendo o mesmo prescindido da testemunha BB e nem sequer arrolado a funcionária de limpeza em causa – a BB e a funcionária da limpeza em causa sempre estariam, elas próprias, a depor sobre facto em que não tiveram participação direta e que não é do seu conhecimento pessoal.
II. Pelo exposto, quando o Tribunal a quo se socorre dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF, GG e HH, nos termos vistos, o que poderia eventualmente ter dado como provado seria, no limite, que a Fração tinha condições de habitabilidade e que BB e a funcionária de limpeza informaram que a Fração estava ocupada.
JJ. Contudo, a qualidade das pessoas que lá se encontravam não pode ser dada como provada com base nesses testemunhos, que ou foram proferidos a título indireto, por pessoas que relataram algo que lhes foi dito por uma outra pessoa que por sua vez não tem conhecimento pessoal do facto em causa (e.g., depoimentos de FF e HH), ou se limitaram a atestar o estado da Fração (depoimentos de CC, EE e GG), ou ainda se limitaram a especular sobre a natureza de um documento, sem confirmar o seu teor (depoimento de DD).
KK. Não poderia, pois, o Tribunal presumir, com fundamento no estado e condições de habitabilidade da Fração e com base em testemunhos duplamente indiretos e documentos cuja genuinidade não foi demonstrada pelo Autor, que a Fração estava ocupada por hóspedes no dia 24 de agosto de 2021, e não por pessoal administrativo, familiares, overbooking e outros, sem contrapartida financeira, ainda para mais quando os depoimentos do legal representante das Rés, II, e da diretora do alojamento, DD, pessoas com conhecimento direto e pessoal deste facto (ie., da qualidade das pessoas que ocupavam a Fração), foram em sentido contrário.
LL. Identicamente, o facto provado n.º 29 constitui um relato daquilo que terá sido dito por BB, sendo certo que o Autor, tendo estado presente em audiência de julgamento, optou por não prestar declarações de parte e por prescindir da inquirição da referida testemunha BB.
MM. A única testemunha ouvida a este propósito, FF, marido da Mandatária do Autor, nada relatou sobre o que a BB terá ou não dito.
NN. Acresce que a referida presunção encontra-se em contradição com os factos provados n.º 23 e 24, de cuja conjugação decorre que, na companhia da sua Mandatária e do marido desta, o Autor acedeu ao aldeamento turístico, tendo sido permitida a sua entrada e das pessoas que o acompanhavam, apesar de os mesmos não serem hóspedes e de o Autor nunca lá ter ido desde, pelo menos, 2016, o que evidencia que o acesso ao aldeamento durante o dia era livre, e não circunscrito aos hóspedes.
OO. O mesmo se dirá, por fim, quanto ao facto provado n.º 37, que o Tribunal a quo deu como provado com os mesmos fundamentos dos factos provados
n.º 26, 28 e 29, também com base numa dissimulada presunção judicial, uma vez que assumiu, simplesmente, sem facto-base ou meio de prova que o sustente, que existe um comando de abertura do portão eletrónico de acesso ao aldeamento turístico.
PP. No entanto, a verdade é que nenhuma prova foi produzida acerca da existência de um comando de abertura dos portões do aldeamento, pela simples razão de que o mesmo não existe, nem nunca existiu, sendo sobre o Autor, e não sobre as Rés, que recaía o ónus de prova a este propósito, nos termos do artigo 342.º, nºs 1 e 3, do Código Civil.
QQ. Por todo o exposto, são incoerentes, ilógicas e inválidas as presunções judiciais a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provados os factos n.º 26, 28, 29 e 37, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil e contrariando os factos provados n.º 23 e 24 e a falta de iniciativa probatória do Autor, razão pela qual devem os referidos factos ser suprimidos da lista de factos provados.
RR. Subsidiariamente, deve a redação dos factos provados n.º 26 e 28 ser alterada, nos seguintes termos:
“26. O Autor interpelou a funcionária da limpeza sobre a ocupação do imóvel referido em 1, tendo sido informado de que a casa número 11 do hotel – correspondente à fração “T” identificada em 1 e em 4 – estava ocupada até dia 28 de agosto.
28. A GNR interpelou BB, rececionista do hotel, tendo esta informado que o hotel se encontrava a utilizar todas as frações do aldeamento, através da sociedade PANORAMA CONVENCIONAL, UNIPESSOAL, LDA.”
SS. No que respeita ao facto provado n.º 47, o mesmo foi aditado pelo Tribunal a quo com base nas “filmagens realizadas pelo Autor na sequência dos factos que deram origem ao articulado superveniente”, sendo que das aludidas filmagens absolutamente nada resulta quanto à identidade das pessoas responsáveis pela retirada dos bens do interior da Fração do Autor, não sendo possível presumir, com base na prova da prática do facto (o esvaziamento da Fração), a autoria do mesmo.
TT. O que resulta dos aludidos vídeos é apenas que a Fração foi esvaziada de bens, bem como o reconhecimento pelo Autor de que o mesmo acedeu à sua Fração de modo livre e desimpedido, “sem que ninguém o parasse”. Quanto à concreta autoria do facto, a única (contra) prova produzida foi o depoimento de parte do legal representante das Rés, que foi assertivo ao responder que desconhecia o incidente (cfr. depoimento nas partes gravadas de 00h07m13s a 00h07m59s), e os depoimentos das testemunhas DD e EE, os quais nada indiciam quanto ao envolvimento das Rés no esvaziamento da Fração do Autor, muito pelo contrário.
UU. Perante a absoluta falta de prova acerca dos responsáveis pela retirada dos bens da Fração, só pode o Tribunal a quo ter presumido que a autoria do ato foi das Rés, porém, sem quaisquer factos que o validem.
VV. Assim, por ser ilógica e incoerente e carecer de fundamentação a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 47, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, deve o mesmo ser suprimido da lista de factos provados.
WW. Quanto ao facto provado n.º 41, o mesmo foi aditado pelo Tribunal a quo com fundamento nos depoimentos prestados pelas testemunhas FF e GG, bem como nos vídeos e fotografias juntos pelo Autor com o seu articulado superveniente, de 30.10.2022.
XX. A fundamentação esgrimida pelo Tribunal a quo a propósito do facto provado n.º 41 evidencia que o Tribunal presumiu o medo do Autor com base no facto presumido n.º 47, correspondente à putativa retirada, pelas Rés, dos bens da Fração do Autor.
YY. Sucede que o Tribunal a quo não pode, através de uma intrincada cadeia de presunções, querer colmatar, em cascata, a falta de prova produzida pelo Autor, o que sempre constituiria, além do mais, um afrontamento ao princípio da autorresponsabilidade probatória das Partes, designadamente do Autor, que, ademais, podendo prestar declarações de parte e encontrando-se inclusivamente presente em Tribunal durante a audiência de julgamento, optou por não as prestar.
ZZ. O mesmo é aplicável ao facto provado n.º 45, aditado pelo Tribunal a quo, desta feita com recurso reconhecido e expresso à presunção judicial, tendo ficado evidente que o Tribunal a quo se socorreu, também aqui, dos factos provados n.º 41, 43 e 47, os quais foram, eles próprios, presumidos, numa lógica especulativa.
AAA. Do exposto resulta que a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provados os factos n.º 41 e 45 é incoerente, ilógica e inválida, igualmente por inexistência de facto provado que lhe possa servir de fundamento, violando os artigos 349º e 351º do Código Civil, devendo, em consequência, esses factos serem suprimidos da lista de factos provados.
BBB. Quanto ao facto provado n.º 43, aditado pelo Tribunal a quo, o mesmo considerou, erradamente, uma confissão do legal representante das Rés de que a fração do Autor estava a ser por estas explorada, quando da mera análise da assentada vertida na ata da audiência de julgamento resulta evidente inexiste qualquer confissão: o que o legal representante das Rés disse foi apenas que a Fração do Autor poderia ser utilizada pontualmente, designadamente por pessoal administrativo, mas sem qualquer contrapartida financeira pela sua utilização (cfr. depoimento prestado na sessão de 13.12.2022, entre as 10:07:45 e as 10:47:42, nas partes gravadas de 00h20m28s a 00h20m47s).
CCC. O Tribunal a quo, ao partir do errado pressuposto de que houve uma confissão do legal representante das Rés sobre factos que não constam da assentada, faz uma errada aplicação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil, atribuindo força probatória plena a um meio de prova não subsumível ao referido preceito.
DDD. Além disso, o Tribunal presumiu, erradamente, que “havendo procura, haveria oferta”, mas absolutamente nenhuma prova foi produzida por qualquer das Partes sobre a existência ou não de procura, entre os anos de 2016 e 2021, que excedesse a oferta existente no aldeamento turístico, pelo que o exercício feito pelo Tribunal, de presumir um facto com base num facto igualmente presumido, é ilógico e inválido, por revestir natureza especulativa, contrariando o disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.
EEE. Acresce que também não se pode presumir que, porque a Fração foi usada para situações pontuais de estadia de staff ou familiares, fosse necessariamente utilizada também por hóspedes pagantes, e explorada comercialmente, o que é contrário às regras da experiência e aos factos provados n.º 13, 14 e 15.
FFF. É igualmente inelegível para os efeitos presuntivos pretendidos pelo Tribunal o facto de a Fração estar preparada para receber pessoas, oferendo boas condições de habitabilidade.
GGG. E é ainda irrelevante que se tenha afirmado que a rececionista e a empregada de limpeza confirmaram a presença de hóspedes, desde logo porque estas não foram ouvidas em audiência de julgamento, tendo este relato sido objeto de prova testemunhal indireta.
HHH. Ainda que assim não fosse, a prova testemunhal produzida a este propósito jamais seria suficiente para demonstrar que a Fração do Autor foi ocupada e explorada comercialmente, de modo contínuo, entre junho de 2016 e agosto de 2021, com uma taxa de ocupação de100%, o que, além de irrealista, é virtualmente impossível, atento, para além do demais, o contexto pandémico que se verificou nos anos de 2020 e 2021 e o impacto que o mesmo teve ao nível das taxas de ocupação média
III. Assim, também esta presunção judicial, a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 43, é incoerente e ilógica, violando os artigos 349º e 351º do Código Civil, devendo, em consequência, sere esse facto suprimido da lista de factos provados.
JJJ. Do exposto resulta que as presunções judiciais e meios de prova a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provados os factos n.º 17, 26, 28, 29, 37, 41, 43, 44, 45 e 47 são inválidos, violando, designadamente, os artigos 349º e 351º do Código Civil, devendo, em consequência, serem esses factos suprimidos da lista de factos provados.
C) DA INCORREÇÃO NA FIXAÇÃO DOS FACTOS MATERIAIS DA CAUSA
KKK. O Tribunal a quo, ao julgar improcedente o recurso de apelação subordinado das Rés, na parte em que as mesmas requereram o aditamento do seguinte facto: “Para além dos elementos referidos em 38. [cópia dos códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico ..., cartão magnético de abertura do portão de entrada para o parque de estacionamento e cópia de chave referente à porta de acesso pedonal], não existe nenhum outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do Autor”, olvidou que constituía tema da prova: “4º - Apurar se o Autor é impedido de aceder ao aldeamento turístico onde se integra a fração referida em 1”, para o que se mostra relevante apurar se todos os meios de acesso ao aldeamento foram disponibilizados pelas Rés ao Autor.
LLL. A este propósito, deve se notar que, conforme oportunamente sublinhado, “nenhuma prova foi produzida [pelo Autor] acerca da existência de um comando físico de abertura dos portões do aldeamento, pela simples razão de que o mesmo efetivamente não existe, nem nunca existiu, sendo naturalmente sobre o Autor, e não sobre as Rés, que recaía o ónus de prova a este propósito, nos termos do artigo 342.º, nºs 1 e 3, do Código Civil”.
MMM. Em face do exposto, requer-se a V. Exas. se dignem julgar procedente o presente recurso de revista e, em consequência, aditar à matéria de facto provada o seguinte facto: “Para além dos elementos referidos em 38. (cópia dos códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico ..., cartão magnético de abertura do portão de entrada para o parque de estacionamento e cópia de chave referente à porta de acesso pedonal), não existe nenhum outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do Autor”.
D) DA CONDENAÇÃO DAS RÉS NO PAGAMENTO DE UMA INDEMNIZAÇÃO A TÍTULO DE DANOS PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS
NNN. A linha de raciocínio traçada pelo Tribunal a quo para concluir pela responsabilidade civil das Rés padece, do início ao fim, de inúmeros erros de julgamento na interpretação e aplicação do Direito, para além dos já apontados erros na apreciação da prova produzida.
OOO. Em primeiro lugar, o Tribunal a quo, ao decidir que “[a] fonte da indemnização só pode residir, in casu, na responsabilidade extracontratual, enunciando o art.º 483.º do C.C. os pressupostos respetivos”, fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 483.º e 1284.º do Código Civil, uma vez que o segundo constitui norma especial face ao primeiro, portanto, com precedência em face da norma geral (lex specialis derogat legi generali).
PPP. Assim, ao ter chamado à colação apenas o artigo 483.º do Código Civil, e não o artigo 1284.º., incorreu o Tribunal em erro na apreciação e aplicação do Direito.
QQQ. Em segundo lugar, e independentemente da norma que se tenha por aplicável, é errada a apreciação que o Tribunal a quo fez dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente da culpa, uma vez que a “restituição” da posse só foi concretizada à força porque nunca o Autor se dignou a deslocar-se à receção do aldeamento, identificar-se como locatário da Fração e solicitar a disponibilização da respetiva chave, pelo que, não sendo imputável às Rés a necessidade de recurso às vias judiciais de reação, mas apenas ao Autor, não pode considerar-se, com este fundamento, que as mesmas atuaram com dolo.
RRR. Perante esta factualidade, incorreu o Tribunal a quo em erro na interpretação e aplicação dos artigos 483.º, 487.º e 1284.º do Código Civil, porquanto nunca poderia considerar-se que as Rés agiram culposamente, muito menos com dolo, devendo, no limite e a título subsidiário, ser a sua conduta qualificada como meramente negligente.
SSS. Em terceiro lugar, nunca poderia ter acolhimento a tese segundo a qual o dano de privação do uso de uma coisa é gerador de responsabilidade civil extracontratual “mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem”, o que contraria a jurisprudência mais recente do STJ , sendo certo que no caso vertente, não só não logrou o Autor provar que tinha um propósito efetivo de utilização da Fração, como as Rés provaram que este propósito inexistia, e não podia legalmente existir, porquanto, entre o mais, o Autor nunca apresentou às Rés qualquer proposta de contrato de exploração da sua Fração, a celebrar com a entidade exploradora do aldeamento, contrato esse que, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, bem como a Cláusula 20 do Título Constitutivo do empreendimento em discussão nos presentes autos (cfr. DOC. N.º 8 junto com a Contestação), constitui conditio sine qua non da exploração de uma fração inserida num empreendimento turístico como o em apreço.
TTT. In casu, a existência de um tal contrato de exploração celebrado com a Recorrente RAINBOWTRIBUTE seria a única forma de o Autor poder criar uma expectativa de rentabilização da sua fração.
UUU. Fica, pois, evidenciado que, ao decidir nos termos em que decidiu, o Tribunal a quo incorreu em erro na interpretação e aplicação dos artigos 483.º e 1284.º do Código Civil, porquanto deveria ter considerado (i) que a responsabilidade civil das Rés pressupõe a prova do dano sofrido pelo Autor em decorrência da putativa privação do uso da Fração e (ii) que este dano não só não foi provado, como foi provada a sua ausência.
VVV. Em quarto e último lugar, os factos provados n.º 21, 43 e 44, que o Tribunal a quo considera que provam os danos sofridos pelo Autor, são absolutamente insuscetíveis de fazer esta prova, servindo, antes, para a prova do putativo facto ilícito imputado às Recorrentes.
WWW. Efetivamente, o Tribunal confunde, neste segmento decisório, a prova do facto com a prova do dano, mas não é por acaso que estes são dois pressupostos inteiramente autónomos, quer ao abrigo do artigo 483.º, quer ao abrigo do artigo 1284.º do Código Civil: o facto ilícito culposo não gera responsabilidade civil caso não se prove que causou danos. Transposto para o caso vertente: não é porque houve exploração da Fração pelas Rés (que não houve) que o Autor foi prejudicado com isso (como não foi, nem poderia ter sido).
XXX. Por todo o exposto, deve o presente recurso de revista ser julgado procedente quanto a este ponto, devendo em consequência ser o Acórdão recorrido revogado e substituído por outro que julgue improcedente o pedido de condenação das Rés no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
YYY. Subsidiariamente, ainda que se entendesse que o Tribunal a quo andou bem ao condenar as Rés no pagamento ao Autor de uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (o que evidentemente não se concede e apenas por muito elevada cautela de patrocínio se equaciona), nunca poderia o Tribunal ter calculado o montante de indemnização nos termos em que o fez, desde logo porque, no seu raciocínio, o Tribunal a quo ignorou factos notórios respeitantes à taxa de ocupação normal no setor turístico do ... e ao impacto ocasionado pela pandemia do Covid-19 no setor turístico: é absolutamente irrealista que a Fração em causa tenha sido constantemente explorada, todos os dias do ano, todos os anos, entre 2016 e 2021, ainda para mais sempre com a mesma taxa diária de 100 euros.
ZZZ. A taxa média de ocupação no ..., a sua sazonalidade e o impacto da pandemia no setor turístico regional constituem, evidentemente, factos notórios, que, nos termos do artigo 412.º, n.º 1, do CPC, não carecem de prova nem de alegação, por serem de conhecimento geral, razão pela qual deveriam ter sido contabilizadas pelo Tribunal a quo no cálculo da indemnização.
AAAA. Por outro lado, o cálculo feito pelo Tribunal a quo tem o vício de visar o cálculo dos putativos benefícios auferidos pelas Rés, e não dos benefícios que, hipoteticamente, teriam sido auferidos pelo Autor com a exploração da Fração, os quais seriam sempre consideravelmente inferiores, por duas ordens de razão:
(i) Para explorar a sua Fração a título próprio, o Autor teria de a ter reabilitado, como fizeram as Rés, uma vez que, conforme se deu por provado nos presentes autos, a mesma se encontrava num estado de tal forma decadente que não tinha, antes da intervenção das Rés, qualquer potencial de exploração turística, pelo que aos valores (já, por si, irrealistas) apurados pelo Tribunal a quo, sempre teriam de ser deduzidos os custos estimados incorridos pelas Rés com a reabilitação da Fração;
(ii) Nos termos do contrato de exploração, a entidade exploradora do empreendimento turístico (in casu, as Rés) teria sempre de receber uma percentagem do valor auferido pelo proprietário da Fração (in casu, o Autor) com a sua exploração – cfr. artigo 55.º, n.º 1, alíneas i) e j), do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março;
(iii) Caso o Autor tivesse hipoteticamente explorado a Fração entre 2016 e 2021,teria necessariamente de ter suportado a sua quota-parte no custo de manutenção das partes de uso comum e no custo dos serviços de utilização turística (cláusula 10); a sua quota-parte no Fundo Comum de Reserva (cláusula 11); o valor devido às Rés pela exploração da sua Fração, nos termos do contrato de exploração a celebrar (cláusula 21); o valor devido pelos serviços de exploração turística (cláusula 22); a sua quota-parte nas despesas de pessoal, organização e administração (cláusula 24), entre outros, custos que também deveriam ter sido estimados e deduzidos do valor da indemnização.
BBBB. Acresce também que é notório que a taxa diária aplicável não terá sido a mesma entre 2016 e 2021, ao longo de mais de seis anos, e ainda para mais nas épocas baixas, sendo manifestamente desproporcional o valor de 100 euros.
CCCC. Atento o exposto, ainda que se entenda que o Acórdão recorrido deve ser mantido na parte em que o mesmo condena as Rés no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais, deve, subsidiariamente, ser o montante de indemnização reduzido, à luz das regras da experiência e dos factos notórios e provados.
DDDD. De igual modo, relativamente aos danos não patrimoniais, a indemnização de € 5.000,00 é manifestamente excessiva, considerando a dimensão dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos e as práticas jurisprudenciais observadas em Portugal.
EEEE. Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo 496º, n.º 1, do Código Civil, ainda que se entenda que o Acórdão recorrido deve ser mantido na parte em que o mesmo condena as Rés no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais, o que não se admite, deve, subsidiariamente, ser o montante de indemnização reduzido, à luz do princípio da proporcionalidade, fixando-se a indemnização em não mais de € 1.000,00 (mil euros).
Por seu turno, contra-alegou o autor:
A. Quanto a alegada exceção de caducidade, a Revista das Rés não deve ser admitida, nos termos conjugados do artigo 671.º, n.º 3, e 672.º, n.º 2, alínea c), do CPC, por não ter cabimento a revista excecional, uma vez que estamos perante uma dupla conforme, não havendo comparação possível entre Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento apresentado pelas rés, eis que versam sobre questões fundamentais de direito diversas e têm quadros factuais totalmente diferentes;
AA. Alternativamente, e se assim não entender, deve ser confirmada a improcedência da exceção perentória de caducidade do direito de ação do autor, sendo confirmada a decisão recorrida, por se tratar de uma correta interpretação do direito, à luz da matéria factual e das regras de interpretação do direito civil português, assim como uma jurisprudência conforme e em consonância com demais jurisprudência Dos Tribunais da Relação e do STJ.
B. Quanto ao alegado erro de julgamento na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa, requerendo sua alteração, não colhem os argumentos das Rés, sendo certo contudo que, face à limitação que emerge do disposto no artigo 662.º, n.º 4 coadjuvado com o artigo 674.º n.º 3, ambos do CPC, é insindicável pelo Tribunal Superior o erro na apreciação e fixação das provas em Recurso de Revista, pelo que improcede a apelação das Rés também nestes pontos.
C. Similarmente, andou bem a Relação ao fixar uma indenização ao Autor, tendo em conta o cabal preenchimento dos pressupostos de responsabilidade civil, especialmente o dolo das rés, o disposto no 1284.º e 483.º do Código Civil, devendo ser mantido na totalidade o Acórdão recorrido; de todo modo e ainda que não fosse este o entendimento do Tribunal a quo, sob pena de total injustiça do sistema, as Rés deveriam sempre ser obrigadas a restituírem os valores recebidos indevidamente nos termos do artigo 473.º do CC, resultando sempre numa indemnização ao Autor.
D. Finalmente, quanto a fixação dos montantes indemnizatórios, o Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos artigos 496.º n.º 4 e 566.º n.º 3 do Código Civil, em irrepreensível observância da equidade e das circunstâncias do caso, pelo que improcede na totalidade o Recurso das Rés.
E quanto ao recurso subordinado:
A.O Tribunal incorreu em erro de interpretação e aplicação do artigo 829.º-A – do Código Civil, uma vez que, ao julgar prejudicada a fixação da sanção pecuniária, deixou de levar em conta as circunstâncias do caso concreto e a função dissuasora da mesma, absolutamente indispensável no presente caso, devendo o Acórdão ser reformado nos termos requeridos pelo Autor em 20 das alegações.
Apesar de inicialmente o recurso subordinado ter sido admitido por despacho proferido pela Senhora Desembargadora Relatora, veio tal decisão a ser declarada nula por novo despacho, o qual, corrigindo o vício, não admitiu o recurso.
Os autos neste STJ. foram primeiramente remetidos à Formação, a qual veio a proferir acórdão, onde não admitiu o recurso de revista excecional.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Incumbe aquilatar do recurso de revista interposto, o qual será admissível, nos termos do n.º 1 do art. 671.º do CPC.
As questões a dirimir são as seguintes:
- Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada, por violação de regras de direito probatório material, alegando as recorrentes que o tribunal recorrido aditou ou manteve na matéria de facto provada, com recurso a presunções judiciais ilógicas e inválidas e a meios de prova cuja valoração viola disposições legais imperativas, os factos constantes dos pontos 17, 26, 28, 29, 37, 41, 43, 44, 45, 46 e 47.
-Se o tribunal recorrido fez uma errada seleção dos factos que integram o objeto probatório, em violação da lei processual e do caso julgado formado quanto ao objeto do litígio e aos temas de prova, quando julgou improcedente o recurso de apelação das Rés na parte em que as mesmas requereram o aditamento do seguinte facto: “Para além dos elementos referidos em 38., não existe nenhum outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do Autor”;
- Sobre a errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 483.º e 1284.º do Código Civil, por parte do tribunal recorrido ao decidir que a fonte da indemnização só pode residir, in casu, na responsabilidade extracontratual, uma vez que o art. 1284.º constitui uma norma especial face ao art. 483.º, pelo que tem precedência em face da norma geral.
- Sobre a errada apreciação pelo tribunal recorrido dos seguintes pressupostos da responsabilidade civil:
- Da culpa, uma vez que a restituição da posse só foi concretizada à força porque nunca o Autor se dignou deslocar à receção do aldeamento, identificar-se como locatário da Fração e solicitar a disponibilização da respetiva chave, pelo que, não sendo imputável às rés a necessidade de recurso às vias judiciais de reação, mas apenas ao Autor, não pode considerar-se, com este fundamento, que as mesmas atuaram com dolo, devendo, no limite e a título subsidiário, ser a sua conduta qualificada como meramente negligente;
- Do dano de privação do uso da coisa que, segundo as recorrentes, inexiste no caso em apreço, pois o autor não só não logrou provar que tinha um propósito efetivo de utilização da fração, como as rés provaram que este propósito inexistia, e não podia legalmente existir, porquanto, entre o mais, o autor nunca apresentou às rés qualquer proposta de contrato de exploração da sua Fração, a celebrar com a entidade exploradora do aldeamento, contrato esse que, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, bem como a Cláusula 20 do Título Constitutivo do empreendimento em discussão nos presentes autos (cfr. DOC. N.º 8 junto com a Contestação), constitui conditio sine qua non da exploração de uma fração inserida num empreendimento turístico como o em apreço;
- Se os factos provados n.º 21, 43 e 44, que o tribunal recorrido considera que provam os danos sofridos pelo autor, são absolutamente insuscetíveis de fazer esta prova, servindo, antes, para a prova do putativo facto ilícito imputado às recorrentes, confundindo o tribunal, neste segmento decisório, a prova do facto com a prova do dano, que são dois pressupostos inteiramente autónomos, quer ao abrigo do artigo 483.º, quer ao abrigo do artigo 1284.º do Código Civil.
- Subsidiariamente, caso se entenda ser devida pelas rés uma indemnização ao autor, por danos patrimoniais e não patrimoniais, importa apreciar os critérios seguidos para a sua quantificação, nos seguintes termos:
- Se o tribunal recorrido ignorou factos notórios respeitantes à taxa de ocupação normal no setor turístico do ... e ao impacto ocasionado pela pandemia do Covid-19 no setor turístico;
- Se o cálculo feito pelo tribunal recorrido tem o vício de visar o cálculo dos putativos benefícios auferidos pelas Rés, e não dos benefícios que, hipoteticamente, teriam sido auferidos pelo Autor com a exploração da Fração, os quais seriam sempre consideravelmente inferiores.
- Se a taxa diária aplicável não terá sido a mesma entre 2016 e 2021, ao longo de mais de seis anos, e ainda para mais nas épocas baixas, sendo manifestamente desproporcional o valor de 100 euros.
- Se relativamente aos danos não patrimoniais, € 5.000,00 é manifestamente excessivo.
A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:
1. O imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...00/1996610, inscrito na matriz sob o artigo ...39, no qual se encontra localizada a fração autónoma designada pela letra T, correspondente ao edifício D, moradia turística tipo T-1, designada por fração vinte, do prédio urbano denominado Lote Dois, Aldeamento ..., situado em ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número ...00 da freguesia da ..., afeto ao regime da propriedade horizontal, titular do artigo matricial n.º ...39 foi adquirido, em 1996, pela sociedade V..., Lda.
2. A sociedade V..., Lda., em 27 de março de 2008, constituiu o imóvel referido em 1 em regime de propriedade horizontal.
3. Em 13 de fevereiro de 2009, a sociedade V..., Lda. obteve autorização para a exploração do imóvel referido em 1 como Empreendimento Turístico, na modalidade de Aldeamento Turístico tendo a competente documentação sido depositada no Instituto de Turismo De Portugal, I.P. em 23 de dezembro de 2009.
4. No dia 8 de janeiro de 2010, foi outorgado o documento particular a que se reporta o documento de fls. 12 a 16 verso denominado «Contrato de locação financeira (leasing) imobiliária n.º 016/...42», mediante o qual o BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A. declarou dar em locação financeira a AA (ora autor) – e este declarou aceitar – a fração autónoma designada pela letra T, correspondente ao edifício D, moradia turística tipo T-1, designada por fração vinte, do prédio urbano denominado Lote Dois, Aldeamento ..., situado em ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número ...00 da freguesia da ..., afeto ao regime da propriedade horizontal, titular do artigo matricial n.º ...39 por um período de 360 meses.
5. A aquisição do prédio aludido em 4) encontra-se registada a favor do BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A., através da Ap. n.º ...82 de 2010/01/14, por «compra» a S..., Lda.
6. O contrato referido em 4 encontra-se registado através da Ap. n.º ...83 de 2010/01/14, com a referência «Locação Financeira», com o prazo de «360 meses» e início em «2010/01/08».
7. Desde a data da celebração do contrato referido em 4, o Autor tem vindo a pagar encargos do imóvel - IMI, renda pelo gozo do imóvel e juros devidos.
8. Em 2012 a sociedade V..., Lda. foi declarada insolvente, no âmbito do processo de insolvência n.º 1967/12.1... que correu termos na Instância Central de ..., Secção de Comércio, J....
9. No âmbito do aludido processo de insolvência que a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA. adquiriu 29 (vinte e nove) das 34 (trinta e quatro) frações autónomas que compunham o Aldeamento ..., mais concretamente, as frações designadas pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H, I, M, N, O, P, Q, R, S, U, X, Z, AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI e AJ.
10. Aquando da aquisição do aldeamento pela Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA., o mesmo encontrava-se inacabado e sem manutenção, encontrando-se algumas das frações vandalizadas.
11. Em consequência do descrito em 10., a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA., empreendeu um vasto processo de recapacitação do já edificado, de geral reabilitação do empreendimento, inclusive com conclusão dos referidos equipamentos de uso comum e implementação dos serviços turísticos necessários para o funcionamento do mesmo.
12. No âmbito do procedimento descrito em 11., o imóvel identificado em 4 foi também reabilitado pela Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA.
13. Em 3 de fevereiro de 2015, a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA. enviou ao Autor uma primeira carta, remetida para o endereço por este indicado para efeitos de inscrição no registo predial do seu contrato de locação financeira (...), na qual aquela Ré informava o Autor dos trabalhos de reabilitação programados para o empreendimento, tendo em vista a sua entrada em funcionamento como aldeamento turístico.
14. Tal carta veio devolvida ao remetente com a indicação de «mudou-se».
15. Em 13 de junho de 2016, a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA., expediu nova missiva dirigida ao Autor, para a mesma morada, a única de que tinha conhecimento, com vista à sua convocação para a Assembleia Geral de Proprietários que se iria realizar no dia 18 de julho de 2016 tendo essa carta vindo igualmente devolvida, desta feita com a indicação de «Recusado».
16. No final de junho de 2021, o Autor recebeu por correio, reencaminhada a si pelo BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A., uma convocatória para Assembleia Geral de Proprietários do prédio melhor descrito em 1, que se realizaria a 3 de maio de 2021, convocada pelo empresa RAINBOWTRIBUTE, LDA., que se intitulava como exploradora e administradora do aldeamento em questão, bem como proprietária das restantes 33 frações autónomas do prédio urbano.
17. O Autor questionou o BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A. se teria alguma informação adicional ou se teria recebido alguma ata de condomínio, tendo o primeiro referido nada saber.
18. O Autor contactou JJ como sua mandatária, para que esta diligenciasse junto da empresa exploradora do aldeamento por informações adicionais.
19. Em agosto de 2021 a mandatária do Autor tentou contactar a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA., mas sem conseguir falar com o administrador.
20. Ao referir o assunto do telefonema numa das chamadas a um dos colaboradores, foi informada telefonicamente de que aí funcionaria um hotel.
21. Subsequentemente, em pesquisa na internet o Autor verificou que o hotel instalado no aldeamento no qual se integra a fração autónoma locada ... publicitava como sendo suas todas as frações dele integrantes, tendo ainda verificado que estas são arrendadas pelo valor médio de €100,00 (cem euros) por dia, verificando ainda que a empresa detentora do aldeamento é a Ré RAINBOWTRIBUTE, LDA.
22. O Autor, ao comparar o mapa original, constante do contrato referido em 4, concluiu que a fração locada (fração T) correspondia à casa 11 do hotel referido em 20.
23. Na companhia da sua mandatária e do marido desta, o Autor dirigiu-se ao aldeamento em causa a 24 de agosto de 2021.
24. Ao chegar ao local, verificou que o aldeamento se encontrava cercado por um portão eletrónico, que foi aberto após alguns minutos de espera, uma vez que o Autor não dispunha de comando para o mesmo, tendo sido permitida a entrada ao Autor e às pessoas que o acompanhavam.
25. Ao entrar no local, verificou que as casas que integram o aldeamento, que inicialmente eram brancas, tinham sido pintadas de azul e, nas portas, estavam novas fechaduras e um sistema de cartão a que o Autor não tinha acesso, impedindo, consequentemente, a entrada do mesmo no imóvel.
26. O Autor interpelou a funcionária da limpeza sobre a ocupação do imóvel referido em 1, tendo sido informado de que a casa número 11 do hotel – correspondente à fração “T” identificada em 1 e em 4 – estava ocupada por hóspedes até dia 28 de agosto.
27. Inconformado, o Autor chamou a GNR ao local para registar a ocorrência.
28. A GNR interpelou BB, rececionista do hotel, tendo esta informado que o hotel se encontrava a explorar todas as frações do aldeamento, através da sociedade PANORAMA CONVENCIONAL, UNIPESSOAL, LDA.
29. Assim que a GNR abandonou o local, BB informou o Autor e os seus acompanhantes que teriam de sair do local imediatamente, pois este era exclusivo para hóspedes, pelo que teria que escoltar os dois carros até ao portão de saída.
30. Com a informação prestada à GNR acerca da entidade exploradora do local, verificou o Autor que a sua sede coincidia com a sede da proprietária das demais frações do prédio urbano no qual a fração locada se insere, tendo-se deslocado ao local.
31. Ao chegar à sede das empresas, verificou que na porta estava identificada uma outra sociedade, denominadaJ..., Lda. (nome coincidente com o apelido do ... da RAINBOWTRIBUTE LDA.), e, apesar de ter tocado à porta por diversas vezes ninguém atendeu, razão pela qual chamou a PSP ao local para tentar identificar os sócios.
32. A PSP foi ao local e apesar de bater à porta diversas vezes ninguém abriu, o que ficou registado em ocorrência, através do NPP ...01/2021.
33. Em 26 de agosto de 2021, a mandatária do Autor enviou cartas registadas às Rés e à Direção do ..., solicitando que entregassem as chaves do imóvel ou, em caso de não as terem, identificarem quem as possuía e informassem de quem era a responsabilidade pela alteração das fechaduras.
34. As cartas dirigidas à sede da PANORAMA CONVENCIONAL, UNIPESSOAL, LDA. e da RAINBOWTRIBUTE, LDA não foram levantadas, tendo a carta dirigida à administração do hotel, sido recebida a 27 de agosto de 2021, não tendo sido obtida qualquer resposta.
35. O Autor intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ... - Juiz ..., identificado pelo n.º 482/21.7..., no âmbito do qual veio a ser determinada a imediata restituição da posse do imóvel ao Requerente, ora Autor, com a consequente entrega da chave/comando do portão do aldeamento em que este se encontra integrado e a substituição da fechadura do imóvel locado, bem como a condenação das Requeridas, ora Rés, no pagamento da quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de incumprimento da providência decretada, a título de sanção pecuniária compulsória.
36. Em 29 de setembro de 2021, aquando do cumprimento da providência decretada, procedeu-se à substituição da fechadura da fração identificada em 4, após arrombamento da porta de entrada.
37. Nas circunstâncias enunciadas em 36., não foi entregue nenhum comando do portão eletrónico ao autor e não houve colaboração das ora rés.
38. Em 08 de abril de 2022, o Autor, através da sua Mandatária, recebeu cópia dos códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico ..., bem como de cartão magnético de abertura do portão de entrada para o parque de estacionamento e, ainda, cópia de chave referente à porta de acesso pedonal, tudo acompanhado de instruções respeitantes à sua utilização.
39. O Autor não comunicou à entidade exploradora do aldeamento a alteração da sua morada.
40. As frações identificadas em 9. estão a ser arrendadas desde, pelos menos, 1 de junho de 2016.
41. O Autor tem medo de ir ao seu próprio imóvel.
42. A Rainbowtribute Unipessoal Lda. cedeu a exploração das frações a outra sociedade comercial, com a mesma gerência, a Panorama Unipessoal, Lda.
43. As rés exploraram economicamente a fração do autor, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, pelos seguintes períodos: 7 meses, durante o ano de 2016 (de junho a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2017 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2018 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2019 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2020 (de janeiro a dezembro); 8 meses, durante o ano de 2021 (de janeiro a agosto).
44. As Rés cobram entre 100€ a 300€ por cada dia de alojamento.
45. O autor sofreu humilhação ao ser “expulso” da sua própria propriedade, ao ter que ficar em um hotel em Portugal e pagar pela hospedagem em agosto de 2021, tendo aqui um imóvel e por todo o stress que os procedimentos judiciais lhe estão causando a si e a sua família.
46. O autor pagou 246,00€ para arrombar a porta e trocar as fechaduras da fração identificada em 4.
47. As Rés entre 30-09-2021 e 30-10-2022 retiraram, ou pelo menos permitiram a retirada, de todos os bens que se encontravam na fração do Autor.
Foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Sempre que o Autor vinha a Portugal, ia à sua fração e estava tudo intacto; e, nestas vindas ao país, tentava perceber qual tinha sido o destino das demais frações, sem sucesso, desde logo porque não fala a língua e ninguém o conseguia informar.
b) Quando o Autor contactava com o BBVA, o setor do leasing do banco respondia-lhe que assim que fosse dado destino as demais frações o Requerente seria contactado, pois ninguém poderia fazer nada em sua fração, nem mesmo no aldeamento, sem contactar previamente com o proprietário do imóvel, neste caso o BBVA.
c) O Autor tem medo de ir ao seu próprio imóvel (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO).
d) A Rainbowtribute Unipessoal, Lda., cedeu a exploração das frações a outra sociedade comercial, com a mesma gerência, a Panorama Unipessoal, Lda. (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO).
e) As rés exploraram economicamente a fração do autor, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, pelos seguintes períodos: 7 meses, durante o ano de 2016 (de junho a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2017 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2018 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2019 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2020 (de janeiro a dezembro); 8 meses, durante o ano de 2021 (de janeiro a agosto) – (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO).
f) As Rés cobram pelo menos o valor de 160€ por cada dia de alojamento. (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO O QUE CONSTA DO PONTO 44).
g) Durante os anos de 2016 a 2021, as rés obtiveram um rendimento de, pelo menos, €154,204.80, com a exploração da fração identificada em 4.
h) O autor sentiu-se e sente-se desgostoso com sua propriedade e com o país.
i) O autor usou todas as suas poupanças para pagar o valor inicial do imóvel, sendo obrigado a financiar o restante, com sacrifício.
j) O autor sofreu humilhação ao ser expulso da sua própria propriedade; a ter medo de ir ao aldeamento; a ser ignorado pelas empresas, ora Rés; a ter que ficar em um hotel em Portugal e pagar pela hospedagem em agosto de 2021, tendo aqui um imóvel e por todo o stress que os procedimentos judiciais lhe estão causando a si e a sua família (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO O QUE CONSTA DO PONTO 45).
k) O autor pagou 246,00€ para arrombar a porta e trocar as fechaduras da fração identificada em 4 (CONSIDERADO PROVADO PELA RELAÇÃO).
l) As Rés retiraram (ou pelo menos permitiram a retirada) todos os bens da fração do Autor de modo a que não fosse mais possível usá-la para exploração turística (CONSIDERADO PROVADO O QUE CONSTA DO PONTO 47).
m) Apesar de, desde setembro de 2021, as Rés não mais explorarem a fração do Autor, a verdade é que não permitem a fruição do imóvel para os fins para que foi adquirido, nomeadamente para exploração turística.
n) O Autor despendeu aproximadamente 5.000,00€ (cinco mil euros) em custos judiciais e 4.000,00€ (quatro mil euros) a título de transportes, refeições e hospedagem.
Vejamos:
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada
Alegam as recorrentes que no que diz respeito ao facto provado n.º 17, o mesmo foi mantido na lista de factos provados pelo Tribunal a quo com base numa presunção judicial inferida a partir do facto provado n.º 16, tendo o Tribunal decidido que: “Tal facto é verosímil […]”. Sucede, segundo as recorrentes, que “o teor do referido facto provado n.º 17 é contrariado pelo teor dos factos provados n.º 13, 14, 15 e 39, bem como dos factos não provados a) e b), que são indiciadores da absoluta falta de interesse do Autor no aldeamento e na sua Fração, da impossibilidade de contacto do mesmo pelas Rés, e também da falta de qualquer contacto entre o mesmo e o BBVA.”
Concluem que é “incoerente e ilógica a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 17, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil e contrariando os factos provados n.º 13, 14, 15 e 39 e os factos não provados a) e b), razão pela qual deve o referido facto ser suprimido da lista de factos provados.”
Ora, no ponto 17 foi provado o seguinte:
17. O Autor questionou o BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A. se teria alguma informação adicional ou se teria recebido alguma ata de condomínio, tendo o primeiro referido nada saber.
Tendo as rés impugnado a prova de tal facto no seu recurso subordinado de apelação, na fundamentação do acórdão recorrido consta o seguinte a este propósito:
«Segundo as Rés, nenhuma prova foi produzida pelo Autor relativamente a esta alegação, contudo, discordamos.
Tal facto é verosímil considerando que, no final de Junho de 2021, o Autor recebeu por correio, reencaminhada a si pelo BBVA, uma convocatória para Assembleia Geral de Proprietários do prédio urbano em questão), que se realizaria a 3 de Maio de 2021, convocada pela empresa Rainbowtribute, Lda., que afirmava ser exploradora e administradora do aldeamento em questão, bem como proprietária das restantes 33 frações autónomas do prédio urbano, conforme doc. 9 da p.i.
Pelo que se mantém a mesma como provada».
As presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (cfr. art. 349.º do CC).
Constitui jurisprudência sedimentada do STJ que este tribunal só pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados – cfr. acórdãos do STJ de 30-04-2024, 28-02-2023, 28-03-2023, 27-04-2023, 11-05-2023, 11-07-2023, de 24-10-2023, 31-10-2023, 16-11-2023, de 30-11-2023 e de 14-05-2024, todos publicados em https://juris.stj.pt.
Assiste razão às recorrentes quando afirmam que a factualidade provada no ponto 17 foi considerada provada pelo tribunal recorrido unicamente com base numa presunção judicial pois não é feita alusão a qualquer meio de prova que sustente a realidade de tais factos.
Com efeito, a Relação inferiu do facto provado n.º 16, a prova dos factos vertidos neste ponto n.º 17, unicamente com base num juízo de verossimilhança
No referido ponto n.º 16 provou-se o seguinte:
16. No final de junho de 2021, o Autor recebeu por correio, reencaminhada a si pelo BANCO BILBAO VISCAYA ARGENTARIA (PORTUGAL), S.A., uma convocatória para Assembleia Geral de Proprietários do prédio melhor descrito em 1, que se realizaria a 3 de maio de 2021, convocada pelo empresa RAINBOWTRIBUTE, LDA., que se intitulava como exploradora e administradora do aldeamento em questão, bem como proprietária das restantes 33 frações autónomas do prédio urbano.
Ao contrário do que é alegado pelas recorrentes, não vislumbramos a existência de qualquer contradição dos factos do ponto 17 com a restante factualidade provada ou não provada. Porém, assiste-lhes razão ao invocarem a ilogicidade de tal presunção judicial, pois, da mera receção de uma convocatória para uma Assembleia Geral de Proprietários, que se traduz num mero comportamento passivo do autor, não se pode extrair um comportamento ativo dessa parte no sentido de questionar o Banco sobre se teria alguma informação adicional ou se teria recebido alguma ata de condomínio, presumindo-se ainda que a entidade bancária respondeu que nada sabia.
Assim, nesta parte, procede a pretensão das recorrentes, existindo violação por parte da Relação do disposto no art. 349.º do CC, fazendo uso de uma presunção que padece de evidente ilogicidade face ao acima exposto.
Deste modo, elimina-se o ponto 17 do âmbito dos factos provados.
Quanto aos factos provados n.ºs 26.º, 28.º, 29.º e 37.º, igualmente objeto de impugnação pelas aqui recorrentes no seu recurso de apelação, invocam as mesmas que existiu também violação do direito probatório material pelo tribunal recorrido ao considerar tais factos como provados, alegando o seguinte nas suas conclusões:
«FF. No que diz respeito aos factos provados n.º 26, 28, 29 e 37, os mesmos foram mantidos na lista de factos provados pelo Tribunal a quo com fundamento em que “esse depoimento [do legal representante das Rés] não se mostra suficiente, nem apto, a invalidar prova assente em depoimentos de testemunhas que estiveram no local, algumas das quais em exercício de funções públicas, como os agentes de autoridade, o que, no seu conjunto, impõe a manutenção de tais factos.”
GG. Sucede, em primeiro lugar, que quanto aos factos provados n.º 26, na parte em que refere que a Fração estava ocupada por “hóspedes”, e n.º 28, na parte em que refere que as Rés estavam a “explorar” todas as Frações, as pessoas que efetivamente terão proferido estas declarações, respetivamente a funcionária da limpeza e a BB, não foram ouvidas em julgamento, sendo certo que nunca as mesmas teriam conhecimento direto da qualidade das pessoas que ocupam a Fração, nem têm de o ter, atentas as suas funções estritamente administrativas no aldeamento turístico.
HH. Assim, caso tivessem sido ouvidas em audiência de julgamento – o que apenas por falta de iniciativa do Autor não sucedeu, tendo o mesmo prescindido da testemunha BB e nem sequer arrolado a funcionária de limpeza em causa – a BB e a funcionária da limpeza em causa sempre estariam, elas próprias, a depor sobre facto em que não tiveram participação direta e que não é do seu conhecimento pessoal.
II. Pelo exposto, quando o Tribunal a quo se socorre dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF, GG e HH, nos termos vistos, o que poderia eventualmente ter dado como provado seria, no limite, que a Fração tinha condições de habitabilidade e que BB e a funcionária de limpeza informaram que a Fração estava ocupada.
JJ. Contudo, a qualidade das pessoas que lá se encontravam não pode ser dada como provada com base nesses testemunhos, que ou foram proferidos a título indireto, por pessoas que relataram algo que lhes foi dito por uma outra pessoa que por sua vez não tem conhecimento pessoal do facto em causa (e.g., depoimentos de FF e HH
KK), ou se limitaram a atestar o estado da Fração (depoimentos de CC, EE e GG), ou ainda se limitaram a especular sobre a natureza de um documento, sem confirmar o seu teor (depoimento de DD).
KK. Não poderia, pois, o Tribunal presumir, com fundamento no estado e condições de habitabilidade da Fração e com base em testemunhos duplamente indiretos e documentos cuja genuinidade não foi demonstrada pelo Autor, que a Fração estava ocupada por hóspedes no dia 24 de agosto de 2021, e não por pessoal administrativo, familiares, overbooking e outros, sem contrapartida financeira, ainda para mais quando os depoimentos do legal representante das Rés, II, e da diretora do alojamento, DD, pessoas com conhecimento direto e pessoal deste facto (ie., da qualidade das pessoas que ocupavam a Fração), foram em sentido contrário.
LL. Identicamente, o facto provado n.º 29 constitui um relato daquilo que terá sido dito por BB, sendo certo que o Autor, tendo estado presente em audiência de julgamento, optou por não prestar declarações de parte e por prescindir da inquirição da referida testemunha BB.
MM. A única testemunha ouvida a este propósito, FF, marido da Mandatária do Autor, nada relatou sobre o que a BB terá ou não dito.
NN. Acresce que a referida presunção encontra-se em contradição com os factos provados n.º 23 e 24, de cuja conjugação decorre que, na companhia da sua Mandatária e do marido desta, o Autor acedeu ao aldeamento turístico, tendo sido permitida a sua entrada e das pessoas que o acompanhavam, apesar de os mesmos não serem hóspedes e de o Autor nunca lá ter ido desde, pelo menos, 2016, o que evidencia que o acesso ao aldeamento durante o dia era livre, e não circunscrito aos hóspedes.
OO. O mesmo se dirá, por fim, quanto ao facto provado n.º 37, que o Tribunal a quo deu como provado com os mesmos fundamentos dos factos provados n.º 26, 28 e 29, também com base numa dissimulada presunção judicial, uma vez que assumiu, simplesmente, sem facto-base ou meio de prova que o sustente, que existe um comando de abertura do portão eletrónico de acesso ao aldeamento turístico.
PP. No entanto, a verdade é que nenhuma prova foi produzida acerca da existência de um comando de abertura dos portões do aldeamento, pela simples razão de que o mesmo não existe, nem nunca existiu, sendo sobre o Autor, e não sobre as Rés, que recaía o ónus de prova a este propósito, nos termos do artigo 342.º, n.os 1 e 3, do Código Civil.
QQ. Por todo o exposto, são incoerentes, ilógicas e inválidas as presunções judiciais a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provados os factos n.º 26, 28, 29 e 37, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil e contrariando os factos provados n.º 23 e 24 e a falta de iniciativa probatória do Autor, razão pela qual devem os referidos factos ser suprimidos da lista de factos provados.
RR. Subsidiariamente, deve a redação dos factos provados n.º 26 e 28 ser alterada, nos seguintes termos:
“26. O Autor interpelou a funcionária da limpeza sobre a ocupação do imóvel referido em 1, tendo sido informado de que a casa número 11 do hotel – correspondente à fração “T” identificada em 1 e em 4 – estava ocupada até dia 28 de agosto.
28. A GNR interpelou BB, rececionista do hotel, tendo esta informado que o hotel se encontrava a utilizar todas as frações do aldeamento, através da sociedade PANORAMA CONVENCIONAL, UNIPESSOAL, LDA.»
Nos pontos 26, 28, 29 e 37, provou-se o seguinte:
“26. O Autor interpelou a funcionária da limpeza sobre a ocupação do imóvel referido em 1, tendo sido informado de que a casa número 11 do hotel – correspondente à fração “T” identificada em 1 e em 4 – estava ocupada por hóspedes até dia 28 de agosto”.
28. A GNR interpelou BB, rececionista do hotel, tendo esta informado que o hotel se encontrava a explorar todas as frações do aldeamento, através da sociedade PANORAMA CONVENCIONAL, UNIPESSOAL, LDA..
29. Assim que a GNR abandonou o local, BB informou o Autor e os seus acompanhantes que teriam de sair do local imediatamente, pois este era exclusivo para hóspedes, pelo que teria que escoltar os dois carros até o portão de saída.
37. Nas circunstâncias enunciadas em 36., não foi entregue nenhum comando do portão eletrónico ao autor e não houve colaboração das ora rés.”
No acórdão recorrido foi dito que as rés alegaram na sua apelação que o depoimento de parte do seu legal representante invalidou a prova da factualidade vertida naqueles pontos, fundamentando da seguinte forma a manutenção de tal matéria no elenco dos factos provados:
“(…) Contudo, como se extrai da nossa fundamentação anterior, esse depoimento não se mostra suficiente, nem apto, a invalidar prova assente em depoimentos de testemunhas que estiveram no local, algumas das quais em exercício de funções públicas, como os agentes de autoridade, o que, no seu conjunto, impõe a manutenção de tais factos.”
Ora, ao contrário do que é alegado pelas recorrentes, não existe aqui o recurso a qualquer presunção judicial por parte do tribunal recorrido, assentando a prova dos referidos factos unicamente da conjugação das declarações de parte do legal representante das rés, em matéria em que não existe qualquer confissão, sendo por isso livremente apreciada pelo tribunal (art. 358.º, n.º 4, do CC, e art. 466.º, n.º 3, do CPC), com a prova testemunhal produzida em julgamento, a qual é igualmente livremente apreciada (art. 396.º do CC).
Também o depoimento indirecto de testemunhas, em que as mesmas relatam em julgamento o que outras pessoas lhes disseram, sem que estas últimas deponham em julgamento, não é proibido no processo civil, sendo o mesmo livremente apreciado pelo tribunal nos termos do disposto no referido art. 396.º do CC – cfr. acórdãos do STJ de 22-04-2008 e de 08-05-2008, cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt e os acórdãos de 22-11-2007, de 05-07-2018 e de 30-06-2020, publicados in https://juris.stj.pt/.
Como afirma Luís Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado, Coimbra, Almedina, 2020, págs. 257 e 258): “não pode ser afastada a admissibilidade da testemunha indireta enquanto tal colidiria com um sistema misto, em que a livre apreciação da prova é preponderante”. Além que “existem factos com relevância processual que são, pela sua própria natureza e condicionalismo, insuscetíveis de prova testemunhal direta, de prova documental, inspeção judicial e mesmo de prova pericial. Neste tipo de condicionalismos, os únicos meios probatórios admissíveis são as declarações de parte (artigo 466 do atual CPC) e as testemunhas indiretas.” Conclui o mesmo autor que “necessário é que a valoração dos mesmos (depoimentos indiretos), feita segundo as singularidades do caso concreto e as máximas da experiência convocáveis, permite ao julgador atingir o patamar da convicção suficiente, sendo a valoração plasmada numa explicitação racional e percetível da convicção construída.”
No fundo, as recorrentes invocam que houve erro do tribunal recorrido na apreciação da prova testemunhal, atenta a prestação de depoimentos indiretos, além que as pessoas que alegadamente têm conhecimento dos factos provados, e que não foram ouvidas em tribunal, não podiam ter conhecimento pessoal dos mesmos atento o tipo de funções por elas desempenhadas.
Mas se houve erro por parte da Relação na apreciação da prova, tratando-se de meios de prova sujeitos a livre apreciação, o mesmo é insindicável no presente recurso de revista. Constitui entendimento pacífico que o STJ é um tribunal de revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias (arts. 674.º, n.º 1, e 682.º, n.º 1, do CPC), cabendo a estas, designadamente à Relação, apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo o STJ, por regra, alterar a matéria de facto por elas fixada. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa apenas pode ser objeto de recurso de revista, quando exista ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – art. 674.º, n.º 3, do CPC.
O STJ está, assim, limitado a apreciar se houve violação de lei na apreciação da chamada prova vinculada, o que exclui dos poderes deste Supremo Tribunal a sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso da prova testemunhal direta ou indireta.
Veja-se, a este propósito, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 11-7-2023, 6-7-2023, 4-7-2023, 6-6-2023 e de 22-6-2023, todos publicados in https://juris.stj.pt.
Não podendo este Supremo Tribunal sindicar se a prova testemunhal produzida nos autos é ou não suficiente para a prova dos factos aqui em causa, e tendo o acórdão recorrido fundado a sua convicção unicamente com base nessa mesma prova sujeita a livre apreciação, carece de sentido a alusão feita pelas recorrentes a presunções judiciais.
Improcede, assim, nesta parte a revista, devendo manter-se a referida factualidade como provada.
Pelos mesmos motivos, improcede também a requerida alteração aos factos provados nos pontos n.º 26 e 28.
Alegam as recorrentes que também os factos constantes do ponto 47.º não deveriam ter sido aditados à matéria de facto provada, invocando os seguintes argumentos sintetizados nas seguintes conclusões:
SS. No que respeita ao facto provado n.º 47, o mesmo foi aditado pelo Tribunal a quo com base nas “filmagens realizadas pelo Autor na sequência dos factos que deram origem ao articulado superveniente”, sendo que das aludidas filmagens absolutamente nada resulta quanto à identidade das pessoas responsáveis pela retirada dos bens do interior da Fração do Autor, não sendo possível presumir, com base na prova da prática do facto (o esvaziamento da Fração), a autoria do mesmo.
TT. O que resulta dos aludidos vídeos é apenas que a Fração foi esvaziada de bens, bem como o reconhecimento pelo Autor de que o mesmo acedeu à sua Fração de modo livre e desimpedido, “sem que ninguém o parasse”. Quanto à concreta autoria do facto, a única (contra) prova produzida foi o depoimento de parte do legal representante das Rés, que foi assertivo ao responder que desconhecia o incidente (cfr. depoimento nas partes gravadas de 00h07m13s a 00h07m59s), e os depoimentos das testemunhas DD e EE, os quais nada indiciam quanto ao envolvimento das Rés no esvaziamento da Fração do
Autor, muito pelo contrário.
UU. Perante a absoluta falta de prova acerca dos responsáveis pela retirada dos bens da Fração, só pode o Tribunal a quo ter presumido que a autoria do ato foi das Rés, porém, sem quaisquer factos que o validem.
VV. Assim, por ser ilógica e incoerente e carecer de fundamentação a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 47, violando os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, deve o mesmo ser suprimido da lista de factos provados.”
No ponto 47 constam os seguintes factos provados:
47. As Rés entre 30-09-2021 e 30-10-2022 retiraram, ou pelo menos permitiram a retirada, de todos os bens que se encontravam na fração do Autor.
Sobre este ponto dos factos provados, foi afirmado o seguinte no acórdão recorrido:
«Existe igualmente prova direta, nomeadamente as filmagens realizadas pelo Autor na sequência dos factos que deram origem ao articulado superveniente, as quais constam dos autos e foram visionadas em audiência, de que:
47) As Rés entre 30-09-2021 (dia subsequente ao cumprimento do mandado judicial donde consta uma relação de bens) e 30-10-2022 (data do vídeo realizado pelo Autor e queixa às autoridades nos termos do doc. 1 do articulado superveniente) retiraram, ou pelo menos permitiram a retirada, de todos os bens que se encontravam na fração do Autor.
Não se inclui nesta afirmação “de modo a que não fosse mais possível usá-la para exploração turística”, porquanto essa impossibilidade não resulta demonstrada, sendo sempre possível preencher a fração com novos bens e usá-la para tal fim».
As aludidas filmagens ou reproduções cinematográficas consubstanciam um documento (arts. 362.º e 368.º do CC) e não tendo as aqui recorrentes impugnado a sua exatidão, fazem prova plena dos factos e das coisas que as imagens fixadas nessas reproduções representam. Segundo as próprias recorrentes, de tais reproduções resulta que a fração em causa nos autos foi esvaziada de bens, mas das mesmas nada resulta quanto à identidade das pessoas responsáveis pela retirada dos bens do interior da fração do autor.
Em primeiro lugar, quer as declarações de parte do legal representante das rés, que nesta parte não consubstanciam qualquer confissão, quer os depoimentos das testemunhas DD e EE, são meios de prova sujeitos à livre apreciação das instâncias, pelo que aquilo que resulta de tais meios probatórios é insindicável pelo STJ.
Em segundo lugar, ainda que o tribunal tenha recorrido a uma presunção judicial para provar o que consta do ponto 47, não vislumbramos qualquer ilogicidade ou incoerência nessa presunção. Na verdade, resultando dos restantes factos provados que a fração aqui em causa foi explorada economicamente pelas rés, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, entre 2016 e agosto de 2021 (ponto 43), através do arrendamento a terceiros, não é ilógico presumir, de acordo com esse facto, que o mobiliário e restantes bens que se encontravam no interior pertencessem às rés. Uma vez que não foi alegado pelas rés que as mesmas tenham sido vítimas de furto ou qualquer outro ato ilícito praticado por terceiros que tivessem retirado os bens, sem o seu conhecimento, não é ilógico presumir que foram as próprias rés que retiraram ou permitiram que se retirassem os bens do interior da fração, como resultou provado.
Não havendo qualquer ilogicidade, baseando-se o juízo das instâncias em factos provados e não havendo a violação de qualquer norma legal, a presunção judicial em causa insere-se também na liberdade do tribunal recorrido de apreciar a prova produzida nos autos, pelo que tal juízo probatório não é sindicável pelo STJ nos mesmos termos já acima expostos.
Improcede também, nesta parte, a revista.
As recorrentes impugnam a prova dos factos vertidos nos pontos n.ºs 41 e 45, aditados pela Relação, argumentando o seguinte:
WW. Quanto ao facto provado n.º 41, o mesmo foi aditado pelo Tribunal a quo com fundamento nos depoimentos prestados pelas testemunhas FF e GG, bem como nos vídeos e fotografias juntos pelo Autor com o seu articulado superveniente, de 30.10.2022.
XX. A fundamentação esgrimida pelo Tribunal a quo a propósito do facto provado n.º 41 evidencia que o Tribunal presumiu o medo do Autor com base no facto presumido n.º 47, correspondente à putativa retirada, pelas Rés, dos bens da Fração do Autor.
YY. Sucede que o Tribunal a quo não pode, através de uma intrincada cadeia de presunções, querer colmatar, em cascata, a falta de prova produzida pelo Autor, o que sempre constituiria, além do mais, um afrontamento ao princípio da autorresponsabilidade probatória das Partes, designadamente do Autor, que, ademais, podendo prestar declarações de parte e encontrando-se inclusivamente presente em Tribunal durante a audiência de julgamento, optou por não as prestar.
ZZ. O mesmo é aplicável ao facto provado n.º 45, aditado pelo Tribunal a quo, desta feita com recurso reconhecido e expresso à presunção judicial, tendo ficado evidente que o Tribunal a quo se socorreu, também aqui, dos factos provados n.º 41, 43 e 47, os quais foram, eles próprios, presumidos, numa lógica especulativa.
AAA. Do exposto resulta que a presunção judicial a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provados os factos n.º 41 e 45 é incoerente, ilógica e inválida, igualmente por inexistência de facto provado que lhe possa servir de fundamento, violando os artigos 349º e 351º do Código Civil, devendo, em consequência, esses factos serem suprimidos da lista de factos provados.”
Nos pontos 41 e 45 foi provado o seguinte:
41. O Autor tem medo de ir ao seu próprio imóvel.
45. O autor sofreu humilhação ao ser “expulso” da sua própria propriedade, ao ter que ficar em um hotel em Portugal e pagar pela hospedagem em agosto de 2021, tendo aqui um imóvel e por todo o stress que os procedimentos judiciais lhe estão causando a si e a sua família.
Quanto ao ponto 41, como as próprias recorrentes admitem nas suas alegações, o tribunal recorrido baseou-se nos depoimentos das testemunhas FF e GG, bem como nos vídeos e fotografias juntos pelo autor com o seu articulado superveniente, de 30.10.2022.
Quanto aos registos fotográficos e cinematográficos, como acima referimos, se as recorrentes não impugnam a sua exatidão, os mesmos fazem prova plena dos factos que representam. Quanto à prova testemunhal, está a mesma sujeita à livre apreciação do julgador, pelo que o juízo probatório da Relação que considerou provados os factos do ponto 41 com base nesses depoimentos é insindicável pelo STJ.
Ainda que tenha também recorrido a presunções judiciais, não vislumbramos qualquer ilogicidade no raciocínio explanado no tribunal recorrido pois, efetivamente, os factos que decorrem dos referidos depoimentos e do teor das fotografias e vídeos (desde logo, o facto do autor ter sido expulso do interior do empreendimento onde se situa a fração da qual é locatário) são aptos a causar medo do mesmo em ali se deslocar.
Também quanto aos factos do ponto 45, em relação aos quais o tribunal recorrido expressamente afirma que são provados com base em presunção judicial, não cremos que tal juízo probatório da Relação padeça de qualquer ilogicidade. Decorrendo da prova testemunhal produzida, segundo a apreciação do tribunal recorrido, insindicável em sede de revista, que o autor foi expulso do empreendimento onde se localiza a sua fração, sendo obrigado a pernoitar em outro local, apesar de ser locatário do imóvel em causa nos autos, não é ilógico nem incoerente que o autor se tenha sentido humilhado, não cabendo a este Supremo Tribunal colocar em causa a livre apreciação que o tribunal recorrido efetuou da prova produzida na parte em que não estamos perante prova vinculada.
Também, ao contrário do que é alegado, não existe qualquer «cascata de presunções», pois os factos dos pontos 41 e 47 resultam também e sobretudo da apreciação da prova testemunhal, das declarações do legal representante das rés e de documentos juntos aos autos, nos termos acima expostos. Também os factos do ponto 43 não resultam apenas de presunções judicias como veremos adiante.
Improcede também, nesta parte, a revista.
As recorrentes impugnam também o aditamento dos factos vertidos no ponto 43 à matéria de facto provada no qual consta o seguinte:
43. As rés exploraram economicamente a fração do autor, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, pelos seguintes períodos: 7 meses, durante o ano de 2016 (de junho a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2017 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2018 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2019 (de janeiro a dezembro); 12 meses, durante o ano de 2020 (de janeiro a dezembro); 8 meses, durante o ano de 2021 (de janeiro a agosto).”
As recorrentes alegaram o seguinte nas suas conclusões:
BBB. Quanto ao facto provado n.º 43, aditado pelo Tribunal a quo, o mesmo considerou, erradamente, uma confissão do legal representante das Rés de que a fração do Autor estava a ser por estas explorada, quando da mera análise da assentada vertida na ata da audiência de julgamento resulta evidente inexiste qualquer confissão: o que o legal representante das Rés disse foi apenas que a Fração do Autor poderia ser utilizada pontualmente, designadamente por pessoal administrativo, mas sem qualquer contrapartida financeira pela sua utilização (cfr. depoimento prestado na sessão de 13.12.2022, entre as 10:07:45 e as 10:47:42, nas partes gravadas de 00h20m28s a 00h20m47s).
CCC. O Tribunal a quo, ao partir do errado pressuposto de que houve uma confissão do legal representante das Rés sobre factos que não constam da assentada, faz uma errada aplicação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil, atribuindo força probatória plena a um meio de prova não subsumível ao referido preceito.
DDD. Além disso, o Tribunal presumiu, erradamente, que “[h]avendo procura, haveria oferta”, mas absolutamente nenhuma prova foi produzida por qualquer das Partes sobre a existência ou não de procura, entre os anos de 2016 e 2021, que excedesse a oferta existente no aldeamento turístico, pelo que o exercício feito pelo Tribunal, de presumir um facto com base num facto igualmente presumido, é ilógico e inválido, por revestir natureza especulativa, contrariando o disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.
EEE. Acresce que também não se pode presumir que, porque a Fração foi usada para situações pontuais de estadia de staff ou familiares, fosse necessariamente utilizada também por hóspedes pagantes, e explorada comercialmente, o que é contrário às regras da experiência e aos factos provados n.º 13, 14 e 15.
FFF. É igualmente inelegível para os efeitos presuntivos pretendidos pelo Tribunal o facto de a Fração estar preparada para receber pessoas, oferendo boas condições de habitabilidade.
GGG. E é ainda irrelevante que se tenha afirmado que a rececionista e a empregada de limpeza confirmaram a presença de hóspedes, desde logo porque estas não foram ouvidas em audiência de julgamento, tendo este relato sido objeto de prova testemunhal indireta.
HHH. Ainda que assim não fosse, a prova testemunhal produzida a este propósito jamais seria suficiente para demonstrar que a Fração do Autor foi ocupada e explorada comercialmente, de modo contínuo, entre junho de 2016 e agosto de 2021, com uma taxa de ocupação de 100%, o que, além de irrealista, é virtualmente impossível, atento, para além do demais, o contexto pandémico que se verificou nos anos de 2020 e 2021 e o impacto que o mesmo teve ao nível das taxas de ocupação média
III. Assim, também esta presunção judicial, a que o Tribunal a quo recorreu para dar como provado o facto n.º 43, é incoerente e ilógica, violando os artigos 349º e 351º do Código Civil, devendo, em consequência, sere esse facto suprimido da lista de factos provados.
Compulsado o teor da fundamentação do acórdão recorrido, constatamos que a convicção do tribunal quanto a este ponto n.º 43 se baseou na conjugação das declarações de parte do representante legal das rés com os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF, GG e HH. Concluiu a Relação que perante este conjunto de elementos de prova, donde ressai a própria confissão do legal representante das Rés de que a fração do Autor estava a ser por estas explorada, ainda que sob determinadas condicionantes (nomeadamente overbooking), dúvidas não temos em dar como provada essa exploração.
Assim, ao contrário do que é invocado pelas recorrentes, os factos em causa não resultam de confissão da ré, mas da conjugação de vários elementos de prova. É dito expressamente que o que resulta da confissão é a exploração por parte das rés da fração do autor, ou seja, que essa fração era utilizada pelas rés, o que é independente da natureza dessa exploração. Segundo as recorrentes, o que o legal representante das Rés disse foi apenas que a Fração do Autor poderia ser utilizada pontualmente, designadamente por pessoal administrativo, mas sem qualquer contrapartida financeira pela sua utilização. Tal não é negado na fundamentação do acórdão recorrido, ou seja, o que daqui ressalta é que o representante das rés assumiu que utilizou a referida fração “pontualmente”, o que até indicia que tal aconteceu mais que uma vez. A restante prova produzida, em conjugação com as regras de experiência comum, levou o tribunal recorrido a adquirir a convicção da realidade dos factos que resultaram provados.
Esta convicção do tribunal recorrido baseou-se, assim, em meios de prova sujeitos a livre apreciação da prova, o que é insindicável pelo STJ. Acresce que mesmo as declarações de parte, na parte em que não constituam confissão, são livremente apreciadas pelas instâncias (art. 358.º, n.º 4, do CC, e art. 466.º, n.º 3, do CPC), não cabendo a este Supremo Tribunal colocar em causa esse juízo crítico da prova.
Por outro lado, ao contrário do que é alegado pelas recorrentes, não resultou provada que a fração do autor esteve sempre ocupada com hóspedes, de modo contínuo, entre junho de 2016 e agosto de 2021, com uma taxa de ocupação de 100%. O que resultou provado foi que as rés exploraram economicamente a fração do autor, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam no referido período temporal, não podendo daí extrair-se que a fração de que o autor é locatário financeiro esteve sempre ocupada por terceiros. O que daqui resulta e é relevante para a decisão da causa é que a fração do autor esteve permanentemente disponível para ser usada pelas rés na sua atividade comercial durante o referido período temporal.
Baseando-se primordialmente em prova testemunhal, em conjugação com as declarações de parte, não está, assim, em causa a prova de factos com base unicamente em presunções judiciais, pelo que carecem de razão as recorrentes, improcedendo esta parte da sua impugnação.
Por último, as recorrentes insurgem-se contra a decisão do tribunal recorrido de não ter considerado relevante para ser incluído no elenco de factos provados a seguinte factualidade: Para além dos elementos referidos em 38. [cópia dos códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico ..., cartão magnético de abertura do portão de entrada para o parque de estacionamento e cópia de chave referente à porta de acesso pedonal], não existe nenhum outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do Autor.
Alegam as recorrentes que tal matéria estava incluída no tema da prova: n.º 4 e que se deve notar que “nenhuma prova foi produzida [pelo Autor] acerca da existência de um comando físico de abertura dos portões do aldeamento, pela simples razão de que o mesmo efetivamente não existe, nem nunca existiu, sendo naturalmente sobre o Autor, e não sobre as Rés, que recaía o ónus de prova a este propósito, nos termos do artigo 342.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil.
Em primeiro lugar, a identificação e fixação dos temas da prova não conduz a caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes - cfr. acórdão do STJ de 27-04-2017 (Revista n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, inédito, encontrando-se o sumário publicado em www.stj.pt); no mesmo sentido vejam-se os acórdãos do STJ de 16-06-2016, 14-12-2021, 20-01-2022 ,17-10-2024, todos publicados in https://juris.stj.pt/.
O teor dos temas da prova não vincula, assim, o tribunal recorrido na aferição da factualidade relevante para a decisão da causa. E, efetivamente, não vislumbramos qual a relevância da factualidade indicada pelas recorrentes, nem as mesmas justificam eficazmente a pertinência de tais factos.
O que releva para os presentes autos é que as rés utilizaram a fração do autor para o exercício da sua atividade comercial, conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, desde junho de 2016 a agosto de 2021, impedindo o autor de usufruir da sua fração, impedindo igualmente o acesso do mesmo ao referido imóvel, como sucedeu no dia 24-08-2021. Resulta da factualidade provada que apenas em 29-09-2021, o autor conseguiu aceder ao interior da fração na sequência do cumprimento da providencia cautelar judicialmente decretada, data em que se procedeu à substituição da fechadura da fração, após arrombamento da porta de entrada. Relevam também os factos descritos no ponto 38, não se vislumbrando qual a pertinência de saber se existe ou não outro meio de acesso ao aldeamento e à fração do autor. Improcede, assim, esta pretensão das rés recorrentes.
Assim, com exceção dos factos vertidos no ponto 17 que devem ser eliminados do elenco de factos provados, improcede na parte restante a impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada.
Da responsabilidade civil extracontratual das rés
No que diz respeito à matéria de direito, começam as recorrentes por alegar ter existido uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 483.º e 1284.º do CC por parte do tribunal recorrido ao decidir que “[a] fonte da indemnização só pode residir, in casu, na responsabilidade extracontratual”, uma vez que o art. 1284.º constitui uma norma especial face ao art. 483.º, pelo que tem precedência em face da norma geral (lex specialis derogat legi generali).”
Como se aludiu no acórdão do STJ de 03-10-2013 (Revista n.º 9074/09.8T2SNT.L1.S1 - 7.ª Secção, publicado em https://juris.stj.pt/): «Criando, o art. 1284.º, n.º 1, do CC, uma responsabilidade civil autónoma, na medida em que o facto ilícito decorre da turbação da posse ou do seu esbulho, não deixa a mesma de ter como pressupostos os descritos no art. 483.º do CC: violação de um direito ou interesse alheio; ilicitude; imputação do facto ao agente; dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano».
Carece, assim, de sentido o alegado pelas recorrentes, havendo que apreciar se no caso dos autos estão preenchidos os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual.
Não questionando a ilicitude da sua conduta, começam as recorrentes por alegar que houve uma errada apreciação pelo tribunal recorrido da culpa das rés, uma vez que a “restituição” da posse só foi concretizada à força porque nunca o autor se dignou deslocar-se à receção do aldeamento, identificar-se como locatário da Fração e solicitar a disponibilização da respetiva chave, pelo que, não sendo imputável às rés a necessidade de recurso às vias judiciais de reação, mas apenas ao autor, não pode considerar-se, com este fundamento, que as mesmas atuaram com dolo, devendo, no limite e a título subsidiário, ser a sua conduta qualificada como meramente negligente.
No acórdão recorrido considerou-se, a propósito da culpa, que «se as Rés pretendiam explorar a fração do Autor, ainda que não conseguissem fazer chegar essa pretensão ao seu conhecimento por desconhecimento da morada deste, só poderiam recorrer a vias legais para esse efeito, nunca a uma ação direta por não serem titulares de qualquer direito que a justifique».
Considerando o disposto no art. 487.º, n.º 2, do C.C., concluiu-se no acórdão recorrido que «a permanência das Rés na fração entre 2016 e 2021, a resistência oferecida e os obstáculos levantados à sua restituição, apenas concretizada à força, por via duma providência cautelar de restituição provisória de posse, é reveladora de um acentuado dolo por parte das Rés agentes».
Atendendo à factualidade que resultou provada, cremos que esta conclusão não merece qualquer reparo.
Com efeito, provou-se que, no âmbito do processo de insolvência da sociedade que detinha o empreendimento turístico, a aqui ré Rainbowtribute, Lda., adquiriu 29 (vinte e nove) das 34 (trinta e quatro) frações autónomas que compunham o Aldeamento, pelo que sabia esta ré que a fração T não era da sua propriedade, nem tinha qualquer legitimidade para entrar nessa fração e muito menos utilizar ou explorar a mesma em seu proveito.
Este conhecimento direto de que a fração T não lhe pertencia e não podia ter acesso à mesma é reforçado pelos factos dos pontos 13 e 15 relativos ao envio de cartas ao autor, o que demonstra claramente que a referida ré sabia que a fração aqui em causa não lhe pertencia, sendo o aqui autor que beneficiava do gozo e fruição de tal imóvel.
Não obstante esse conhecimento, a ré publicitou como sendo sua a referida fração, tendo efetuado obras na mesma, cedendo a sua exploração à ré Panorama Unipessoal, Lda. que tem a mesma gerência, pelo que também esta última ré tinha pleno conhecimento do acima exposto.
Provou-se que ambas as rés exploraram economicamente a fração do autor conjuntamente com as demais frações que lhes pertenciam, entre junho de 2016 e agosto de 2021, mudando a fechadura do imóvel, o que demonstra a clara vontade de impedir o gozo do mesmo por parte do autor.
Carece de sentido a alegação das recorrentes de que a “restituição” da posse só foi concretizada à força porque nunca o autor se dignou a deslocar-se à receção do aldeamento, identificar-se como locatário da fração e solicitar a disponibilização da respetiva chave. Provou-se que em 26-08-2021, a mandatária do autor enviou cartas registadas às rés e à Direção do “...”, solicitando que entregassem as chaves do imóvel ou, em caso de não as terem, identificarem quem as possuía e informassem de quem era a responsabilidade pela alteração das fechaduras.
Uma dessas cartas dirigida à administração do hotel foi recebida a 27-08-2021, não tendo sido obtida qualquer resposta. É, assim, evidente que o autor se viu forçado a recorrer às vias judiciais para obter a restituição da posse do imóvel, o qual foi efetivamente entregue ao autor através do uso da força depois de decretada pelo Tribunal a providência cautelar de restituição provisória da posse. Apenas em 29-09-2021, aquando do cumprimento da providência decretada, se procedeu à substituição da fechadura da fração aqui em causa, após arrombamento da porta de entrada. Acresce ainda o desvalor da conduta das rés que nessa data não entregaram nenhum comando do portão eletrónico ao autor e não colaboraram por qualquer forma com o cumprimento da providência cautelar. Se tal colaboração tivesse existido, não seria certamente necessário o arrombamento da porta de entrada da fração.
Toda a conduta das rés é assim reveladora de um intenso dolo ao privarem o autor do gozo e fruição do seu imóvel, pois agiram de forma plenamente consciente e deliberada nos termos acima expostos, improcedendo, assim, de forma manifesta, a sua argumentação.
Do dano de privação do uso do imóvel
Alegam as rés que também houve uma errada apreciação por parte do tribunal recorrido do dano de privação do uso da coisa, o qual, segundo as recorrentes, inexiste no caso em apreço, pois o autor não só não logrou provar que tinha um propósito efetivo de utilização da fração, como as rés provaram que este propósito inexistia, e não podia legalmente existir, porquanto, entre o mais, o autor nunca apresentou às rés qualquer proposta de contrato de exploração da sua Fração, a celebrar com a entidade exploradora do aldeamento, contrato esse que, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, bem como a Cláusula 20 do Título Constitutivo do empreendimento em discussão nos presentes autos (cfr. DOC. N.º 8 junto com a Contestação), constitui conditio sine qua non da exploração de uma fração inserida num empreendimento turístico como o em apreço nos autos.
Invocam também as recorrentes que os factos provados n.º 21, 43 e 44, que o tribunal recorrido considera que provam os danos sofridos pelo autor, são absolutamente insuscetíveis de fazer esta prova, servindo, antes, para a prova do putativo facto ilícito imputado às recorrentes, confundindo o tribunal, neste segmento decisório, a prova do facto com a prova do dano, que são dois pressupostos inteiramente autónomos, quer ao abrigo do artigo 483.º, quer ao abrigo do artigo 1284.º do Código Civil.
Em sede de privação do uso de um bem móvel ou imóvel, a jurisprudência do STJ divide-se em três posições:
a) Numa das posições defendidas, que corresponde à que é preconizada pelas aqui recorrentes no seu recurso de revista, entende-se que a ressarcibilidade do dano de privação do uso depende da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à utilização da coisa, não bastando a mera privação do uso sem a alegação e a prova de (outros) danos específicos que sejam consequência dessa privação – Acórdãos do STJ de 30-10-2008 (Revista n.º 2131/07), de 09-12-2008 (Revista n.º 3401/08), de 19-05-2020 (Revista n.º 554/13.1TVPRT.P1.S1) e de 26-01-2021 (Revista n.º 6122/17.1T8FNC.L1.S1), todos publicados em https://juris.stj.pt/, bem como os acórdãos de 13-01-2009 (Revista n.º 3575/08), de 30-04-2019 (Revista n.º 1721/12.0TBMGR.C2.S1) e de 26-05-2021 (Revista n.º 1770/18.5TBALM.L1.S1), inéditos, cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt;
b) Numa outra posição, que desde já adiantamos que é aquela que sufragamos, o dano decorrente da privação do uso é considerado como um dano autónomo, bastando para o seu ressarcimento a prova de que o seu proprietário se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade – Acórdãos do STJ de 03-07-2018 e 06-07-2023, inéditos, mas cujos sumários se encontram publicados em www.stj.pt, bem como os acórdãos do STJ de 20-02-2020, 28-09-2021, 17-11-2021, 20-01-2022, 25-10-2022, 02-02-2023, 28-03-2023, 28-05-2024, 09-07-2024, todos publicados in https://juris.stj.pt/;
c) Numa posição intermédia, entende-se que não é suficiente a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, que dela pretende retirar as utilidades que normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado – Acórdão do STJ de 10-09-2019, inédito, com o sumário publicado em www.stj.pt, e os acórdãos do STJ de 23-01-2020, 28-01-2021, 17-06-2021, 16-12-2021 e de 04-07-2023, todos publicados in https://juris.stj.pt/.
Sufragamos a segunda posição acima descrita, acompanhando a jurisprudência aí citada, pois “a privação do uso de um imóvel é suscetível de constituir, por si, dano patrimonial, por impedir o proprietário de fruir prédio todas as suas utilidades e como tal, é passível de reparação” (cfr. Acórdão de 09-07-2024, Revista n.º 3068/21.2T8STR.E1.S1 - 6.ª Secção).
Como se defende num outro aresto de 28-05-2024, a propósito da privação do uso de um veículo automóvel: “o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo sinistrado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos estabelecidos no art.º 1305º do Código Civil, cabendo, assim, pela violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano. (…) A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.”
No caso dos autos o autor não é proprietário da fração autónoma designada pela letra T, aqui em discussão, sendo o proprietário da mesma o Banco Bilbao Viscaya Argentaria (Portugal), S.A., mas provou-se que essa instituição bancária, por contrato celebrado em 08-01-2010, declarou dar em locação financeira ao aqui autor, o qual declarou aceitar, a referida fração por um período de 360 meses. Mais se provou que tal contrato se encontra registado através da Ap. n.º 4083 de 2010/01/14, com a referência «Locação Financeira», com o prazo de «360 meses» e início em «2010/01/08», tendo o autor vindo a pagar desde esta última data o respetivo imposto municipal sobre imóveis, a renda pelo gozo do imóvel e os juros devidos.
Não restam, assim, quaisquer dúvidas de que o autor, enquanto locatário financeiro, desde 08-01-2010, tem o direito de usar e fruir livremente o referido imóvel, pelo que a conduta das rés, ao impedirem esse gozo, é causadora, por si só, de um dano autónomo suscetível de indemnização, traduzindo-se esse dano na perda das utilidades da coisa, qualificando-se como um dano patrimonial porque essas utilidades, consideradas em si mesmas, têm valor pecuniário.
Na presente ação, o autor pediu, além do mais, a condenação das rés na restituição dos valores que as mesmas receberam pela exploração ilícita do imóvel desde junho de 2016 a agosto de 2021, em valor nunca inferior a €154.204,80, nos termos e para efeitos do artigo 1271.º do CC ou nos termos do artigo 473.º do CC.
Em alternativa, pediu a condenação das rés a indemnizá-lo pelos prejuízos patrimoniais decorrentes da privação do uso do imóvel desde junho de 2016 até ao trânsito em julgado da sentença, não só pelos valores que despendeu com o pagamento da renda do imóvel no período em questão mas também, e em igual valor, pelos valores que deixou de receber pela exploração turística da sua fração, conforme os critérios do 564.º do CC.
Do acima exposto, parece decorrer que o autor configurou os danos cujo ressarcimento peticiona na presente ação como lucros cessantes correspondentes aos rendimentos não auferidos com a exploração comercial da fração, para além dos danos emergentes que também são peticionados.
No acórdão recorrido reconduziu-se o dano sofrido pelo autor aos lucros cessantes que o mesmo deixou de auferir no período entre junho de 2016 e agosto de 2021, lucros esses referentes à exploração turística da fração aqui em causa.
Todavia, não resulta da factualidade provada que o autor tivesse o propósito de explorar comercialmente a sua fração, subarrendando-a a terceiros para daí obter proveitos económicos.
Efetivamente, estando o imóvel inserido num empreendimento turístico explorado pelas rés, não foi alegado que o autor tenha alguma vez querido celebrar com estas algum tipo de contrato para a exploração comercial da fração, através da cedência do gozo do imóvel a terceiros a troco de contrapartidas monetárias. Como afirmam as recorrentes, nos termos do disposto no art. 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 39/2008 de 07-03, que aprovou o Regime Jurídico da Instalação, Exploração e Funcionamento dos Empreendimentos Turísticos: “Cada empreendimento turístico deve ser explorado por uma única entidade, responsável pelo seu integral funcionamento e nível de serviço e pelo cumprimento das disposições legais e regulamentares aplicáveis.”
Mas o facto de não se provar a existência de quaisquer lucros cessantes do autor não significa que não se verifica, nos termos acima expostos, um efetivo dano na sua esfera jurídica, dano esse que corresponde à perda das utilidades da fração em resultado da privação do seu uso.
Como conclui Abrantes Geraldes na sua obra sobre a temática aqui em causa (Temas da responsabilidade civil, Vol.1: Indemnização do dano da privação do uso, 3.ª ed., 2007, pág. 91), reportando-se à privação de um veículo automóvel: “(…) a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva; (…) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado”.
Não se tendo provado a intenção do autor em explorar comercialmente a sua fração, julgamos que continua a existir um dano patrimonial autónomo nos termos acima expostos, dano decorrente da simples privação do uso do imóvel, ou seja, da perda das respetivas utilidades.
Embora o autor tenha configurado os danos cujo ressarcimento peticiona na presente ação como lucros cessantes correspondentes à exploração comercial da fração, para além dos danos emergentes que também peticiona, julgamos que no seu pedido está incluído o ressarcimento do referido dano patrimonial autónomo de privação da coisa, tendo o autor feito corresponder esse dano aos valores que as rés receberam pela exploração ilícita do imóvel desde junho de 2016 a agosto de 2021, em montante que quantificou em €154.204,80.
Com efeito, cremos que o acima exposto não consubstancia qualquer alteração do pedido efetuado pelo autor.
A jurisprudência constante do STJ tem admitido a convolação da configuração jurídico-normativa atribuída pelo autor ao pedido ou à causa de pedir. Ou seja, e no que respeita ao pedido formulado, a errada qualificação jurídica do mesmo não impede o juiz de, observado o princípio do dispositivo, declarar pedido diferente, conforme a norma prevista no art. 5.º, n.º 3 do CPC, que correspondia ao art. 664.º do anterior código.
Como exemplos desta jurisprudência, salienta-se, desde logo, o Assento do STJ n.º 4/95 de 28/3/95 (publicado no Diário da República, I Série-A de 17-05-1995), no qual se uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.”
Como se defende no acórdão do STJ de 07-04-2016 (Revista n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, publicado em https://juris.stj.pt/), a propósito desse assento: «o que estava em causa na controvérsia jurisprudencial dirimida pelo citado assento era a questão da admissibilidade de convolação pelo tribunal da configuração jurídico - normativa que o A. dava à causa de pedir em que fundava a respetiva pretensão, passando a sustentá-la, não no cumprimento de certa relação contratual, mas antes nas consequências legais da declaração oficiosa da nulidade do negócio jurídico invocado como base da pretensão do demandante – envolvendo ainda tal reconfiguração jurídica da «causa petendi» uma alteração na configuração jurídica do próprio pedido, da pretensão material deduzida, que deixava de assentar na obtenção de uma prestação por via do contrato, para passar a incidir sobre a obtenção de determinado bem ou quantia pecuniária como mera decorrência da declaração oficiosa de nulidade dessa relação contratual.
Subjacente ao assento está, pois, não apenas o reconhecimento de que é lícito ao Tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. – no caso, como decorrência da inquestionável possibilidade de conhecimento oficioso das nulidades da ato jurídico - mas também a admissibilidade de uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar (só assim se explicando que o tribunal possa atribuir o bem, valor ou montante pecuniário pedido, não em consequência ou a título de cumprimento do contrato em que se consubstanciava a causa de pedir, mas através da figura do dever de restituir tudo aquilo que se obteve em consequência de um negócio oficiosamente tido por nulo)».
A mesma orientação foi seguida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2001 (publicado no Diário da República, I Série-A de 2001-02-09) , no qual se uniformizou a jurisprudência no sentido de que: «Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (nº1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC».
Como se conclui no mesmo acórdão acima citado de 07-04-2016: “o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado. (…) É lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.”
Esta orientação corresponde à posição assumida pelo relator do acórdão em «O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 789 e segs., no qual se conclui que: “A convolação do pedido há de respeitar «um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia” (pág. 789).
A restante doutrina nacional tem também seguido a mesma orientação de que são exemplos os seguintes autores: Vaz Serra, “Anotação ao acórdão do STJ de 15/10/1971”, in RLJ, ano 105, págs. 217 e ss.; Miguel Mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC – anotação ao Ac. Rel. Porto de 08-07-2010”, in RLJ, ano 143, págs. 129 e segs.; Manuel Tomé Gomes, “Da Sentença Cível”, texto da intervenção nas “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ que decorreram em Lisboa, em Janeiro de 2014, destacando-se as páginas 44 a 46, Teixeira de Sousa, Comentário ao Acórdão do STJ de 4/10/2016 (processo n.º 762/04.6TYLSB.L1.S1), publicado em 25-01-2017 no Blog do Instituto Português do Processo Civil; José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed. Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2021, anotação ao artigo 609.º; António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed, Coimbra, Almedina, 2022, anotação ao artigo 609.º.
A título exemplificativo, na jurisprudência do STJ para além das decisões acima citadas, têm admitido a possibilidade de convolação oficiosa do pedido, respeitados que sejam os limites supra enunciados, os seguintes acórdãos: de 17-06-1992 (Processo n.º 82428, Publicado no BMJ n.º 418, Julho de 1992, págs. 710 e ss.), de 23-09-1999 (Revista n.º 510/99 - 7.ª Secção), de 18-11-2004 (Agravo n.º 2640/04 - 2.ª Secção), de 14-05-2009 (Revista n.º 162/09.1YFLSB - 1.ª Secção), de 05-11-2009 (Revista n.º 308/1999.C1.S1 - 7.ª Secção), de 02-03-2011 (Revista n.º 823/06.7TBLLE.E1.S1 - 7.ª Secção), de 18-01-2018 (Revista n.º 1005/12.4TBPVZ.P1.S1 - 2.ª Secção), de 08-02-2018 (Revista n.º 633/15.1T8VCT.G1.S1 - 2.ª Secção), de 04-10-2018 (Revista n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1 - 2.ª Secção), e mais recentemente os acórdãos do STJ de 08-03-2022 (Revista n.º 21074/18.2T8PRT.P1.S1 - 7.ª Secção), de 02-03-2023 (Revista n.º 21025/19.7T8PRT.P1.S1 - 2.ª Secção), de 09-01-2024 (Revista n.º 95/16.5T8ARC.P1.S1 - 1.ª Secção) e de 15/10/2024 (processo n.º 2242/20.3T8LRA.C1.S1 . 1. Secção), todos publicados em https://juris.stj.pt/.
Também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 33/2000, de 12 de janeiro (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos arts. 610.º, alínea b), e 616.º, ambos do Código Civil, e do art. 661.º, n.º 1, do CPC antigo (correspondente ao atual art. 609.º, n.º 1, do CPC), quando interpretadas no sentido de permitirem que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado.
Como é salientado no acórdão do STJ de 04-10-2018 acima citado: “O nosso atual modelo de processo civil, assente no primado do direito substantivo sobre o direito adjetivo e no princípio da gestão processual, toma inevitável a flexibilização do princípio do pedido contido no art. 609.º, n.º 1, do CPC, no sentido da necessidade de se apreender realmente o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação.”
Na situação dos presentes autos, seguindo de perto a jurisprudência e a doutrina enunciadas, tudo se resumirá em saber se a convolação oficiosa do pedido de indemnização formulado pelo autor respeita o princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional que cabe ao caso, de acordo com o direito aplicável.
Na presente ação, o autor pede o ressarcimento dos danos decorrentes da privação do uso da fração identificada nos autos. De acordo com a jurisprudência acima citada, “o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.”
No caso vertente, o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor na presente ação é a reconstituição da situação que existiria se as rés não tivessem explorado ilicitamente a fração do autor, impedindo-o de aceder e usufruir da mesma.
Com efeito, reportando o seu pedido de indemnização aos valores auferidos pelas rés pela exploração comercial da sua fração, o autor não deixa de se referir à perda das utilidades do imóvel, calculando a indemnização peticionada tendo por referência o valor cobrado pelas rés para que terceiros pudessem ter o gozo do imóvel. A pretensão formulada pelo autor assenta na reconstituição da situação existente antes da conduta ilícita das rés. Seguindo de perto a jurisprudência constante do STJ acima citada, é lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo a qualificação atribuída pela parte, ou seja, a configuração do concreto dano cuja reparação é peticionada, reportar tal dano à simples privação do uso da fração e não a lucros cessantes decorrentes da impossibilidade de explorar comercialmente o imóvel.
Quer a configuração do dano constante da petição inicial, quer a configuração acima referida, têm a mesma base, ou seja, a diminuição do património do lesado/credor provocada pela conduta ilícita das rés, decorrente da impossibilidade de usufruir das utilidades do imóvel, ou seja, da perda do uso de tal bem.
Impõe-se, assim, a convolação do pedido de indemnização formulado pelo autor para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado. O bem jurídico cuja proteção é pretendida pelo autor é exatamente o mesmo e assenta na diminuição do seu património devido à impossibilidade de utilizar a sua fração, o que pode corresponder, quer aos lucros cessantes, quer ao dano autónomo decorrente da perda das utilidades desse bem.
Não está, assim, em causa qualquer reconfiguração normativa do pedido para bens ou direitos substancialmente diversos do que o autor procurava obter através da pretensão que formulou.
Atento o acima exposto, não é necessária a prova de qualquer propósito efetivo do autor de utilização da fração, nem releva que não tenha resultado provado qualquer propósito do autor em explorar comercialmente o imóvel, pelo que não tem aplicação ao caso o regime previsto no Decreto-Lei n.º 39/2008, de 07-03, nem é necessária convocar o teor do Título Constitutivo do empreendimento turístico em discussão nos autos.
Ao contrário do que é alegado pelas recorrentes, os factos provados revelam a existência de um dano patrimonial autónomo sofrido pelo autor e que consiste na perda das utilidades do imóvel devido a conduta ilícita das rés que, ao explorarem comercialmente a fração, impediram o gozo da mesma por parte do autor, o qual não tinha sequer acesso ao imóvel uma vez que as rés procederam à mudança de fechadura, só vindo o autor a ter acesso ao mesmo na sequência do cumprimento da providência cautelar de restituição provisória da posse decretada judicialmente.
Não existe, assim, qualquer confusão entre facto ilícito e dano, estando reunidos todos os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual das rés.
Do valor da indemnização devida ao autor
As rés recorrentes alegaram também a título subsidiário, caso se entenda ser devida uma indemnização ao autor, que importa rever os critérios seguidos no acórdão recorrido para a sua quantificação, argumentando o seguinte:
a) O tribunal recorrido ignorou factos notórios respeitantes à taxa de ocupação normal no setor turístico ... e ao impacto ocasionado pela pandemia do Covid-19 no setor turístico;
b) Por outro lado, segundo as recorrentes, o cálculo feito pelo tribunal recorrido tem o vício de visar o cálculo dos putativos benefícios auferidos pelas Rés, e não dos benefícios que, hipoteticamente, teriam sido auferidos pelo Autor com a exploração da Fração, os quais seriam sempre consideravelmente inferiores, pelas razões expostas nas alegações de recurso;
c) Acresce também que é notório que a taxa diária aplicável não terá sido a mesma entre 2016 e 2021, ao longo de mais de seis anos, e ainda para mais nas épocas baixas, sendo manifestamente desproporcional o valor de 100 euros.
d) Relativamente aos danos não patrimoniais, segundo as recorrentes, a indemnização de € 5.000,00 é manifestamente excessiva, considerando a dimensão dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos e as práticas jurisprudenciais observadas em Portugal.
Atendendo ao critério supra fixado quanto à natureza do dano de privação de uma coisa, traduzindo-se o mesmo num dano autónomo, bastando para o seu ressarcimento a prova de que o titular do direito sobre a coisa se viu privado da mesma, deixando de beneficiar das respetivas utilidades, tem sido entendido pela jurisprudência mais recente do STJ que “a chamada teoria da diferença não deve aplicar-se ao dano da privação do uso, dado que não atende, como deveria, à privação temporária ou transitória de um bem (art.º 566.º, n.º 2, do Código Civil).
A teoria da diferença é imprestável para a determinação do dano de privação do uso, na medida em que a comparação entre a situação patrimonial real e a situação patrimonial hipotética do lesado, na data mais recente que puder ser atendida se adequa a privações definitivas e não a privações temporalmente delimitadas” (Acórdão do STJ de 02-07-2024, in https://juris.stj.pt/).
De acordo com o mesmo acórdão, “o critério de decisão aplicável para a determinação da quantidade da obrigação de reparação do dano da privação do uso dos veículos automóveis da recorrente a que a recorrida deve ser vinculada é, assim, incontroversamente, o critério não normativo da equidade que funciona, aqui, como último e mesmo como único recurso (art.º 566.º, n.º 3, do Código Civil).” No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do STJ de 13-07-2017 (Revista n.º 188/14.3T8PBL.C1.S1 - 2.ª Secção) e de 02-02-2023 (Revista n.º 262/19.0T8ALB.P1.S1 - 2.ª Secção), ambos publicados em https://juris.stj.pt/.
No caso dos autos, a Relação recorreu também à equidade para determinar o valor dos lucros cessantes do autor. Efetuou a Relação o seguinte cálculo:
«Considerando que as Rés exploraram a fração do A. por 63 meses o que equivale a cerca de 1890 dias (63x30), que as Rés cobram recentemente entre 100 € a 300 € por cada dia de alojamento, sendo o valor médio de 100€ um valor médio contextualizado a 2021, é de considerar que as Rés cobraram por tal exploração um total de 189.000€.
Considerando que a atividade de exploração turística pressupõe a obtenção de ganhos, mas igualmente a perda por custos de exploração, dever-se-á deduzir àquele valor o que corresponder a essa perda.
Relativamente à fração em causa, as Rés não tiveram de suportar custos como seguros do imóvel, impostos e taxas de natureza predial, despesas com o condomínio, despesas decorrentes de certificados energéticos e de qualidade do edifício, porquanto, de acordo com o contrato de locação financeira, cabe ao Autor na qualidade de locatário (doc. 3 da P.I.), suportar tais custos, seja pela via das rendas mensais, seja, por notificação pontual por parte do locador.
Assim a Ré, na exploração desta fração, terá suportado apenas e basicamente taxas devidas pela exploração, custos de pessoal, secretaria e limpeza, cuja inserção num conjunto muito amplo de outras frações, permite mitigar tais custos.
Desse modo, consideramos equitativo considerar que com custos de exploração a Ré suportou 40% do valor das receitas.
Devendo, por consequência, considerar-se que o A. perdeu um lucro cessante equivalente a 100€ por cada um dos 1890 dias de ocupação, ou seja, um total de 189.000€, valor que que deduzido da percentagem de 40% por custos de exploração, representa 113.400€».
O STJ tem entendido de forma consolidada que o juízo de equidade das instâncias deve ser mantido salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, isto é, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística (acórdão do STJ de 30-03-2023, Revista n.º 15945/18.3T8PRT.P1.S1, in https://juris.stj.pt/).
Ou como se pode ler no sumário do Acórdão do STJ de 03-05-2023 (Revista n.º 291/09.1TCFUN-A.L2.S1, publicado em https://juris.stj.pt/): “quando o cálculo de um montante indemnizatório tenha assentado em juízos de equidade, não compete ao STJ a determinação do valor pecuniário, até porque a pura aplicação de tais juízos já não se consubstancia, em bom rigor, numa apreciação de uma questão de direito. As atribuições do STJ reportam-se a sindicar se o recurso à equidade foi indevidamente utilizado, porquanto competia ao tribunal aplicar critérios de cariz normativo, decorrentes dos preceitos normativos atendíveis, bem como aferir se foram ultrapassados os limites do acervo fáctico apurado, pois tal constitui violação da lei, e nessa medida abrangidos pelos poderes desse tribunal.”
A mero título exemplificativo, todos no sentido acima descrito, vejam-se os acórdãos do STJ de 11-05-2023, 12-04-2023, de 28-03-2023, 31-01-2023 e de 15-09-2022, todos publicados in https://juris.stj.pt/.
No caso concreto dos autos, como já decorre da fundamentação supra exposta, o critério seguido pela Relação seguiu o entendimento formulado quanto à qualificação do dano sofrido pelo autor como “lucros cessantes” que o mesmo perdeu com a privação do imóvel. Não sendo a qualificação correta do dano sofrido pelo autor, é evidente que não pode o critério para a fixação da indemnização corresponder ao montante auferido pelas rés com a exploração comercial do empreendimento turístico durante o período compreendido entre junho de 2016 e agosto de 2021. Também não pode corresponder o valor de tal indemnização ao montante que seria auferido pelo autor durante o mesmo período se fosse ele a explorar comercialmente a sua fração, subarrendando-a a terceiros.
Ainda assim, cremos que não merece reparo que, segundo a equidade, para a quantificação do dano sofrido pelo autor se atenda ao valor cobrado pelas rés por cada dia de alojamento nas frações do seu empreendimento turístico, incluindo a própria fração em causa nos autos que foi explorada pelas rés em conjunto com as demais no período temporal acima referido.
Correspondendo o dano sofrido pelo autor ao valor das utilidades da coisa perdida no período em que se viu privado da mesma, o valor pecuniário de tais utilidades corresponde ao valor diário cobrado a qualquer pessoa, incluindo o próprio autor, que quisesse utilizar a própria fração T, no período em causa nos autos.
De acordo com a factualidade provada, esse valor situou-se entre 100€ a 300€ por cada dia de alojamento, tendo a Relação considerado o valor mínimo de 100 euros para calcular o valor do dano.
Considerando que o autor se viu privado do uso da coisa durante um total de 1890 dias, de acordo com o cálculo efetuado pelo tribunal recorrido que não nos merece reparo [63 meses (junho de 2016 a agosto de 2021) x 30 dias], multiplicando tal número por €100,00, atingimos o valor de € 189 000,00.
Não têm aqui relevância os alegados factos notórios apontados pelas recorrentes respeitantes à taxa de ocupação normal no setor turístico ... e ao impacto ocasionado pela pandemia do Covid-19 no setor turístico. Pois o critério para quantificar o dano sofrido pelo autor nada tem que ver com a exploração comercial ou turística da sua fração, ou seja, é independente de qualquer consideração de taxas de ocupação ou de quaisquer constrangimentos decorrentes da pandemia do Covid-19. O dano reporta-se única e exclusivamente à perda das utilidades da cosia e nada impedia o autor de usar e fruir livremente da sua fração durante o período da referida pandemia.
Também nos termos acima expostos, não relevam nos autos os putativos benefícios que, hipoteticamente, teriam sido auferidos pelo autor com a exploração da fração.
As recorrentes também alegam que é notório que a taxa diária aplicável não terá sido a mesma entre 2016 e 2021, ao longo de mais de seis anos, e ainda para mais nas épocas baixas, sendo manifestamente desproporcional o valor de 100 euros.
Em primeiro lugar, como se entendeu no recente acórdão do STJ de 26-11-2024 (revista n.º 11/24.0T8SCF-A.L1.S1 – 6.ª Secção): «a consideração da notoriedade dos factos e a assunção de factos notórios, ao abrigo dos poderes do art. 607º, 4, estará excluída, enquanto decisão ex novo, da cognição do STJ, pertencendo em exclusivo às instâncias tal decisão (de modo que não se pode aproveitar para esse efeito a remissão do art. 663º, 2, e 679º para esse normativo-base) – estamos no domínio da construção do elenco factual e não da mobilização adicional de factos resultantes dos autos, com força plena e sem estarem controvertidos, que possam integrar a solução de direito que cabe ao STJ. (…) Logo, ainda que se adote a posição que se mostra possível sindicar se determinado facto provado é ou não notório, já se mostra vedado a este STJ proceder à fixação de factos com fundamento na sua notoriedade». No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos do STJ de 10-09-2019 e de 06-12-2022, in https://juris.stj.pt/.
Em segundo lugar, é manifesto que a taxa diária aplicável no empreendimento turístico explorado pelas rés no período aqui em causa não constitui facto notório pois não são factos do conhecimento geral, nos termos previstos no art. 412.º, n.º 1, do CPC, nem as recorrentes o demonstram.
O valor diário do alojamento considerado pela Relação decorre diretamente da factualidade provada pelo que nada há a apontar quanto a essa matéria.
Ao valor de € 189 000,00, a Relação abateu o montante de 40% considerando que a atividade de exploração turística pressupõe a obtenção de ganhos, mas igualmente a perda por custos de exploração, pelo que dever-se-á deduzir àquele valor de € 189 000 o que corresponder a essa perda de acordo com a equidade.
Não estando em causa na quantificação do dano sofrido pelo autor quaisquer receitas ou despesas inerentes à exploração comercial da fração, sempre se dirá que o referido valor diário de € 100,00 inclui o pagamento de despesas relacionadas com a utilização normal de um imóvel num empreendimento turístico, nomeadamente, os consumos de eletricidade e água, eventualmente de telecomunicações, limpeza e outras despesas de manutenção e conservação do imóvel. Tendo o tribunal recorrido reduzido o valor arbitrado em 40%, julgamos que tal juízo se contém dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, pelo que não merece reparo o montante fixado pelo tribunal recorrido de € 113 400€ (€ 189 000,00 – 40%).
Por último, as recorrentes invocam que a indemnização de € 5 000,00, para ressarcimento dos danos não patrimoniais é manifestamente excessiva, considerando a dimensão dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos e as práticas jurisprudenciais observadas em Portugal.
Provou-se que o autor sofreu humilhação ao ser “expulso” da sua própria propriedade, ao ter que ficar em um hotel em Portugal e pagar pela hospedagem em agosto de 2021, tendo aqui um imóvel e por todo o stress que os procedimentos judiciais lhe estão causando a si e a sua família.
Tendo em conta os critérios definidos no artigo 494.º do CC, por remissão do n.º 4 do art. 496.º do mesmo Código, importa ter em conta na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, o elevado grau de culpabilidade das rés que agiram com dolo nos termos acima expostos, não sendo despicienda a sua situação económica, uma vez que exploram o empreendimento turístico descrito na factualidade provada, tendo inclusivamente explorado economicamente a fração do autor, obtendo proveitos com a sua conduta ilícita.
Atendendo a tal factualidade e ao acima exposto, cremos que o juízo de equidade do tribunal recorrido ao fixar o valor dessa indemnização em € 5.000,00 se contém igualmente dentro da margem de discricionariedade legalmente consentida, não tendo o critério adotado se afastado de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística.
Com efeito, ao contrário do que é alegado pelas recorrentes, o montante fixado não se afasta do valor de indemnizações que têm sido fixadas pelo STJ em casos similares.
No acórdão do STJ de 14-12-2016 (Revista n.º 492/10.0TBPTL.G2.S2 - 2.ª Secção, publicado em https://juris.stj.pt/), em que estavam em causa os danos não patrimoniais decorrentes de incómodos, preocupações e frustrações inerentes à privação de uma nova casa de habitação durante seis anos (provando-se que a privação provocou nos lesados tristeza, nervosismo, angústia e revolta por não poderem tirar partido da casa, tornando-se tema de conversas e zangas, o que deteriorou o convívio familiar), fixou-se o valor da indemnização no montante de € 7.000,00 (sete mil euros).
Num outro caso, apreciado pelo acórdão do STJ de 05-07-2018 (Revista n.º 176/13.5T8MAI-A.P1.S1 - 2.ª Secção, igualmente publicado em https://juris.stj.pt/), em que estava em causa a privação de um veículo automóvel durante 8 meses, o que impediu o lesado de gozar férias, as quais tinha previsto gozar, com a sua família, fixou-se o valor da indemnização em € 1000,00.
No caso dos autos, estando em causa um imóvel do qual o autor se viu privado durante um período de cerca de 5 anos, provando-se que o mesmo sofreu humilhação ao ser “expulso” da sua própria propriedade, ao ter que ficar em um hotel em Portugal e pagar pela hospedagem em agosto de 2021, tendo aqui um imóvel, além de ter sentido stress pelos procedimentos judiciais, entendemos que não merece reparo o valor arbitrado pela Relação.
Destarte, não obstante a eliminação do ponto 17 da matéria de facto provada, verificamos que tal aspeto é irrelevante no desfecho dos autos, mantendo-se o decidido no acórdão proferido.
Sumário:
- As presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (cfr. art. 349.º do CC).
- Constitui jurisprudência sedimentada do STJ que este tribunal só pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.
- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa apenas pode ser objeto de recurso de revista, quando exista ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – art. 674.º, n.º 3, do CPC.
- O STJ está limitado a apreciar se houve violação de lei na apreciação da chamada prova vinculada, o que exclui dos poderes deste Supremo Tribunal a sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso da prova testemunhal direta ou indireta.
- A identificação e fixação dos temas da prova não conduz a caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes
- O artigo 1284.º, n.º 1, do CC criou uma responsabilidade civil autónoma, na medida em que o facto ilícito decorre da turbação da posse ou do seu esbulho e não deixa a mesma de ter como pressupostos os descritos no art. 483.º do CC: violação de um direito ou interesse alheio; ilicitude; imputação do facto ao agente; dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
- O dano decorrente da privação do uso é considerado como um dano autónomo, bastando para o seu ressarcimento a prova de que o seu proprietário se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
- O autor, enquanto locatário financeiro, desde 08-01-2010, tem o direito de usar e fruir livremente a fração, pelo que a conduta das rés, ao impedirem esse gozo, é causadora, por si só, de um dano autónomo suscetível de indemnização, traduzindo-se esse dano na perda das utilidades da coisa, qualificando-se como um dano patrimonial porque essas utilidades, consideradas em si mesmas, têm valor pecuniário.
- É lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.
- O STJ tem entendido de forma consolidada que o juízo de equidade das instâncias deve ser mantido salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, isto é, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística.
- A consideração da notoriedade dos factos e a assunção de factos notórios, ao abrigo dos poderes do art. 607º, 4 do CPC., estará excluída da cognição do STJ., enquanto decisão ex novo, pertencendo em exclusivo às instâncias.
- Tendo em conta os critérios definidos no artigo 494.º do CC, por remissão do n.º 4 do art. 496.º do mesmo Código, importa ter em conta na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, o elevado grau de culpabilidade das rés que agiram com dolo, não sendo despicienda a sua situação económica, uma vez que exploram o empreendimento turístico descrito na factualidade provada, tendo inclusivamente explorado economicamente a fração do autor, obtendo proveitos com a sua conduta ilícita.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista.
Custas a cargo das recorrentes.
Lisboa, 14-1-2025
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Luís Espírito Santo
Luís Correia de Mendonça