EXPROPRIAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
ANULAÇÃO DO PROCESSADO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
OBJETO DO RECURSO
Sumário


O acórdão que, num processo de expropriação, anula todo o processado, desde o relatório pericial, por ter considerado que os peritos avaliaram as parcelas expropriadas de acordo com o critério legal supletivo sem que, na perspectiva da Relação, tenham demonstrado qualquer impossibilidade prática e objectiva de aplicação do critério principal (critério fiscal) e sem que as partes tenham tido a possibilidade de pronunciarem sobre essa questão, é nulo por violação radical do contraditório.

Texto Integral


Processo n.º 74/21.0T8ELV.E1S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


***


No procedimento de expropriação, em que é entidade expropriante Infraestruturas de Portugal, I.P., expropriados AA e BB e CC e interessada a Filser – Sociedade Agro-Pecuária, Lda., foi declarada de utilidade pública (DUP), com carácter de urgência, a expropriação das seguintes parcelas a destacar do prédio rústico denominado «...», descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...48 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ..., Secção N:

- Parcela 133.1: Terreno com a área de 33506 m2, que fica a confrontar do Norte e do Sul com o Próprio, do Nascente com a CM ...28 e do Poente com DD e outro (s);

- Parcela 133.2: Terreno com a área de 55966 m2, que fica a confrontar de Norte e Sul com o Próprio, do Nascente com E..., S.A. e outro (s) e do Poente com CM ...28.

Os árbitros fixaram, a título de indemnização global a atribuir, um montante de 158.389,34 € (cento e cinquenta e oito mil trezentos e oitenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos), sendo 128.651,89 € (cento e vinte e oito mil seiscentos e cinquenta e um euros e oitenta e nove cêntimos) a atribuir aos expropriados/proprietários e 29.737,45 € (vinte e nove mil setecentos e trinta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos) a atribuir à interessada/arrendatária.

Os expropriados recorreram da decisão arbitral, pugnando pela atribuição de uma indemnização no montante global de €507.919,76 (quinhentos e sete mil novecentos e dezanove euros e setenta e seis cêntimos).

A expropriante recorreu também, pugnando pela atribuição de uma indemnização no montante global de 81.316,15 € (oitenta e um mil e trezentos e dezasseis euros e quinze cêntimos), sendo 70.391,11 € (setenta mil e trezentos e noventa e um euros e onze cêntimos) para os expropriados/proprietários e 10.952,04 € (dez mil novecentos e cinquenta e dois mil juros e quatro cêntimos) para a interessada/arrendatária.

O primeiro grau decidiu fixar em 143.885,31 € (cento e quarenta e três mil oitocentos e oitenta e cinco euros e trinta e um cêntimos) o montante global da justa indemnização a pagar pela entidade expropriante Infraestruturas de Portugal, I.P. pela expropriação e ocupação das parcelas melhor identificadas nos autos, sendo 122.170,27 € (cento e vinte e dois mil cento e setenta euros e vinte e sete cêntimos) a atribuir aos expropriados/proprietários BB e CC e AA e 21.715,04 € (vinte e um mil setecentos e quinze euros e quatro cêntimos) a atribuir à interessada/arrendatária Filser – Sociedade Agropecuária, Lda, devendo tais quantias ser actualizadas.

A expropriante interpôs recurso da decisão da primeira instância.

O Tribunal da Relação de Évora anulou a decisão recorrida e todo o processado desde o relatório pericial datado de 5/4/2022, ordenando-se a ampliação da matéria de facto nos termos que definiu, a fim de possibilitar nova avaliação das parcelas expropriadas, com a aplicação da regra geral e primordial do método fiscal ou comparativo, no cálculo do valor do solo, previsto no n.º 1 do artigo 27 do Código das Expropriações(ou comprovando-se documental e factualmente nos autos a impossibilidade manifesta e total da sua aplicação, ser usado, então, supletiva ou subsidiariamente, o critério previsto no número 3 do artigo 27.º, do citado Código).

A expropriante interpôs competente recurso de revista, cuja minuta conclui da seguinte forma:

1.ª – O recurso cuja admissibilidade excepcional assenta na ofensa de caso julgado, nos termos do art.º 629.º, n.º 2, al. a), tem o seu objecto limitado à apreciação dessa questão, mas desta limitação ressalva-se a arguição de nulidades da decisão, como resulta do disposto nos artigos 666.º, n.º 1 e 615.º, n.º 4 do CPC.

2.ª – A entidade expropriante suscitou a questão da extemporaneidade do recurso de apelação interposto pelos expropriados, mas a Relação omitiu a sua apreciação, em consequência do que o acórdão é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 666.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1,al. d)do CPC, nulidade que haverá quesuprir, apreciando-see decidindo-se aquestão.

3.ª – O recurso de apelação dos expropriados foi interposto extemporaneamente, 45 dias depois de estes terem sido notificados da sentença (ou 40 dias + 3 dias úteis de multa), só podendo beneficiar do prazo suplementar de 10 dias previsto no art.º 638.º, n.º 7 o apelante que efectivamente suporte, total ou parcialmente, a impugnação da matéria de facto na reapreciação da prova gravada, o que não foi o caso. Sem conceder:

4.ª – Oacórdãorecorrido, ao determinar a anulaçãodetodo oprocessadodesde o relatório pericial (inclusive), no sentido de possibilitar nova avaliação das parcelas expropriadas, segundo outro critério, reabriu a discussão de uma questão que estava já fechada pelo caso julgado (a fixação do valor das parcelas expropriadas).

5.ª – A sentença transita em julgado quando já não é susceptível de impugnação, nomeadamente, pela via do recurso ou da reclamação.

6.ª – A lei sujeita essa impugnação a prazos preclusivos, designadamente, e quanto ao recurso, aqueles que são previstos o art.º 638.º do CPC: decorrido o prazo fixado na Lei sem que a decisão seja impugnada, esta transita em julgado.

7.ª – Mesmo quando se impugne a sentença, o recurso pode ser restringido, expressa ou tacitamente, a alguma ou algumas das questões decididas, nos termos do art.º 635.º, n.ºs 2 e 4, não podendo os efeitos do julgado, na parte não recorrida, serprejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo.

8.ª – Por fim, o recorrente tem o ónus de formular conclusões (art.º 639.º, n.º 1), igualmente com um efeito preclusivo, na medida em que a falta de especificação, nas conclusões, de alguma ou algumas questões decididas tem efeitos quanto à delimitação objectiva do recurso (art.º 635.º, n.º 4) e, por essa via, quanto ao caso julgado da decisão na parte não recorrida.

9.ª – A sentença da 1.ª instância fixou em 89.472,00€ o valor das parcelas expropriadas.

10.ª – Só os expropriados é que impugnaram a sentença em matéria indemnizatória, mas restringiram expressamente o objecto da sua apelação a duas questões, ambas respeitantes à desvalorização da parte sobrante do prédio.

11.ª – Ambas as partes aceitaram, pois, o valor fixado na sentença às parcelas, questão sobre a qual se formou, indiscutivelmente, caso julgado.

12.ª - Se o recorrente, de forma expressa ou tácita, restringiu o âmbito do recurso, o Tribunal ad quem não pode interferir na parte da sentença que ficou excluída da impugnação.

13.ª - Se sobre o valor fixado às parcelas expropriadas se formou caso julgado, ofendeu esse caso julgado a decisão recorrida, que determinou a anulação do processado, em ordem à ampliação da matéria de facto, destinada a possibilitar uma avaliação das parcelas expropriadas segundo outro critério.

14.ª – Se a Relação não podia, no recurso, fixar valor diferente às parcelas expropriadas, também não podia, logicamente, determinar a ampliação da matéria de facto a fim de se possibilitar a avaliação dessas parcelas segundo outro critério de avaliação.

15.ª – Reafirmando-se o teor das conclusões 4.ª a 14.ª, tendo os expropriados restringido o objecto da apelação a duas questões relacionadas com a desvalorização da sobrante, excluindo-se, assim, do objecto do recurso o valor fixado na sentença às parcelas expropriadas, com o qual ambas as partes se conformaram (questão definitivamente decidida na sentença da 1.ª instância), ocorre a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, por se conhecer da questão, nos termos dos artigos 666.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC. Sem conceder:

16.ª – Pelo acórdão proferido, decidiu-se anular todo o processado desde o relatório pericial, por se ter considerado que os peritos avaliaram as parcelas expropriadas de acordo com o critériolegalsupletivo (critériodo rendimento)sem que, na perspectiva da Relação, tenham demonstrado “qualquer impossibilidade prática e objectiva” de aplicação do critério principal prescrito no Código das Expropriações (“critério fiscal”).

17.ª – Trata-se de uma decisão baseada em fundamento que as partes não haviam considerado, pelo que, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC, a Relação devia ter, previamente, convidado ambas as partes a tomarem posição sobre a questão. Ademais, estando a questão do valor das parcelas expropriadas excluída do objecto da apelação, jamais as partes poderiam ter previsto apossibilidadede vira serapreciada, noacórdão, a questãodocritério de avaliação dessas parcelas.

18.ª – Foi, assim, proferida uma decisão-surpresa, com a consequente nulidade da decisão, por excesso de pronúncia.

19.ª – Mas se se entender tratar-se antes de uma nulidade processual a arguir em reclamação, no prazo de 10 dias, e não em recurso perante o Tribunal Superior, deverá a presente arguição ser admitida como reclamação perante a Relação (art.º 193.º, n.º 3 do CPC). Poderá, nesse caso, considerar-se que a nulidade está a ser arguida no 2.º dia útil após o termo do prazo de 10 dias [prazo de 10 diasterminado dia 6/6/2024, 5.ªfeira; 1.º dia útil seguinte: 7/6/2024, 6.ª feira; 2.º dia útil seguinte: 11/6/2024, 3.ª feira, data em que é apresentada esta peça]. Haveria, nesse caso, que notificar a expropriante nos termos do art.º 139.º, n.º 6 do CPC, ou seja, para liquidar a multa em falta pela apresentação da peça no 2.º dia de multa, acrescida de uma penalização de 25% do valor da multa.

20.º - Pelo exposto, o acórdão recorrido violou, nomeadamente, as disposições legais acima citadas, e deverá ser anulado e substituído por outro que julgue extemporâneo o recurso de apelação interposto pelos expropriados, julgue, em consequência, extinto esse recurso e determine a baixa do processo à Relação para apreciação e decisão do recurso de apelação da expropriante, relativo à condenação em custas; ou, assim não se entendendo, deverá, por ofensa de caso julgado ou, não se reconhecendo esta, por se julgar procedente a nulidade arguida por excesso de pronúncia, anular-se a decisão e determinar-se a baixa do processo à Relação para apreciação e decisão dos recursos de apelação interpostos pelas partes, relativamente às questões efectivamente submetidas à decisão da Relação, isto é, a depreciação da parte sobrante do prédio, no caso da apelação dos expropriados, e as custas, no caso da apelação da expropriante; em último caso, e sempre sem conceder, deverá declarar-se procedente a nulidade arguida por proferimento de decisão-surpresa e, em consequência, anular-se o acórdão proferido e ordenar-se a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão sobre a qual o acórdão se pronunciou, com o subsequente proferimento de novo acórdão».

Não foram oferecidas contra-alegações.


***


Constituem questões decidendas saber se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e objecto de impugnação é nulo por omissão ou excesso de pronúncia (artigo 615.º, 1, al. d) CPC).

***


São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes nas instâncias:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...48, o prédio rústico denominado «...», sito na freguesia de ..., ... e ..., com a o qual se encontra inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ..., secção N, com a área total de 233,775 hectares.

2. O referido prédio é composto de cultura arvense e pastagem, confrontando a Norte com ..., a Sul com ... e ..., a Nascente com ... e ... e a Poente com ... e ....

3. Pela Ap. 1 de 1965/05/12 mostra-se registada a aquisição, por partilha e doação, do prédio referido em 1. a favor de EE, casada com FF.

4. Pela Ap. 2 de 1967/04/14 mostra-se registado um ónus real de servidão de passagem para pé e carro a favor dos prédios 5.969 e 11.382.

5. BB e CC e AA são herdeiros de FF e de EE.

6. Em 15-08-2004, BB e CC e AA deram em arrendamento o prédio descrito em 1. à sociedade F..., Lda., por um período de 10 (dez) anos e pela renda anual de 5.000,00 € (cinco mil euros).

7. Por resolução do Conselho de Administração Executivo da Infraestruturas de Portugal, I.P. de 19 de Abril de 2019, foi aprovada a resolução de requerer a declaração de utilidade pública urgente da expropriação, incluindo as plantas parcelares e os respectivos mapas de áreas, relativos às parcelas de terreno necessárias à construção da «Nova ligação Ferroviária entre ... e ... – Subtroço .../Linha do ...», 8. Na sequência da referida resolução e por Despacho n.º ...10/2019, de 7 de Junho de 2019, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 130, de 10 de Julho de 2019 (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º ...15/2109, publicada no DR, 2.ª Série, n.º 146, de 1 de Agosto de 2019), o Sr. ... das Infraestruturas declarou a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação dos bens imóveis e direitos a eles inerentes, necessários à execução da obra da «Nova ligação Ferroviária entre ... e ... – Subtroço .../Linha do ...», melhor identificados no mapa de expropriações e plantas parcelares publicados em anexo ao referido despacho, e autorizou a Infraestruturas de Portugal, I.P. a tomar posse administrativa das respectivas parcelas.

9. Para execução da obra da «Nova ligação Ferroviária entre ... e ... – Subtroço .../Linha do ...» tornou-se necessária a expropriação de duas parcelas de terreno a destacar do prédio descrito em 1. e a ocupação temporária de outras duas parcelas, as quais se encontram descritas na planta parcelar n.º ...79, a saber:

- Parcela n.º 133.1 (a destacar do prédio descrito em 1.): Terreno com uma área de 33506 m2, que fica a confrontar do Norte e do Sul com o Próprio, do Nascente com a CM ...28 e do Poente com DD e outro (s).

- Parcela n.º 133.1T1 (a ocupar temporariamente): Terreno com a área de 4794 m2, que fica a confrontar do Norte, Sul e Nascente com o Próprio e do Poente com DD e outro (s).

- Parcela n.º 133.1T2 (a ocupar temporariamente): Terreno com a área de 4719 m2, que fica a confrontar do Norte, Sul e Nascente com o Próprio e do Poente com DD e outro (s).

- Parcela n.º 133.2 (a destacar do prédio descrito em 1.): Terreno com a área de 55966 m2, que fica a confrontar de Norte e Sul com o Próprio, do Nascente com E..., S.A. e outro (s) e do Poente com CM ...28.

10. Em 22-08-2019, as parcelas referidas em 9. foram objecto de vistoria «ad perpetuam rei memoriam», no âmbito da qual se verificou:

- que o terreno que as constitui se situa numa mancha de solos argilo-calcários de capacidade de uso A e B;

- que o terreno que as constitui se encontrava a ser explorado com culturas arvenses de sequeiro, não tendo sido observada a existência de qualquer árvore;

- que não foram observadas benfeitorias;

- a existência de uma vedação no limite norte das parcelas com 54 metros de comprimento;

- a existência de dois troços de vedação a atravessar o prédio, a ladear a estrada municipal CM ...28 com, respectivamente, 300 metros e 330 metros, todas construídas em postes 6/8 de 1,80 metros, em rede ovelheira ligeira de um metro e duas fiadas de arame farpado na parte superior;

- a existência de uma vedação no interior do prédio, que o atravessa, com 48 metros de comprimento, construída em 6/8 de 1,80 metros e com seis fiadas de arame farpado;

- a existência, muito próxima ao limite poente do prédio, de uma pequena charca, utilizada para o abeberamento do efectivo pecuário da exploração (que à partida não é susceptível de ser afectada nem pela expropriação, nem pela ocupação temporária das parcelas);

- a inexistência de infra-estruturas urbanísticas definidas no Código das Expropriações;

11. Em 31-10-2019, a Infraestruturas de Portugal, I.P. tomou posse administrativa das parcelas a expropriar e a ocupar temporariamente.

12. Em 17 de Maio de 2021, foi proferido acórdão arbitral que fixou, por unanimidade, o valor global da indemnização pelo acto expropriativo em 158.389,34 € (cento e cinquenta e oito mil e trezentos e oitenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos), sendo 128.651,89 € (cento e vinte e oito mil seiscentos e cinquenta e um euros e oitenta e nove cêntimos) a atribuir aos expropriados/proprietários e 29.737,45 € (vinte e nove mil setecentos e trinta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos) a atribuir à interessada/arrendatária, nos seguintes termos:

Indemnização dos expropriados/proprietários:

i) Indemnização pela área expropriada: 62.630,40 €;

ii) Indemnização pela perda das benfeitorias identificadas na vistoria «ad perpetuam rei memoriam»: 2.904,00 €;

iii) Indemnização pela perda de rendimento fundiário decorrente da ocupação temporária (1 ano) das parcelas n.º 133.1T1 e n.º 133.12: 165,71 €;

iv) Indemnização pela depreciação da área não expropriada: 62.951,78 €.

Indemnização da interessada/arrendatária:

i) Indemnização pela perda de rendimento da actividade pecuária (2 anos): 1.770,00 €;

ii) Indemnização pela perda de rendimento fundiário decorrente da ocupação temporária (2 anos) das parcelas n.º 133.1T1 e n.º 133.12: 3.448,44 €;

iii) Indemnização para reestruturação do sistema de abeberamento do gado: 21.716,41 €;

iv) Indemnização para construção de um corredor de passagem entre os parques de pastoreio das zonas norte e sul: 3.402,60 €. 13. Em 19-07-2021, encontrava-se depositada à ordem dos autos a quantia de 158.389,34 € (cento e cinquenta e oito mil e trezentos e oitenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos).

14. À data referida em 8., o prédio descrito em 1. tinha um topografia regular e declives suaves, situava-se a 3 km de ... e a cerca de 15 km de ... e tinha bons acessos através da estrada municipal CM ...28.

15. À data referida em 8., de acordo com a Planta de Ordenamento do Plano Director Municipal (PDM) de ..., o prédio descrito em 1. estava classificado como «Solo Rural – Espaços Agrícolas em Solos da RAN» e, em menor parte, na zona Norte, como «Solo Rural – Actividades Compatíveis com Espaço Agrícola e Florestal – Estrutura Ecológica».

16. À data referida em 8, de acordo com a Planta de Condicionantes do Plano Director Municipal (PDM) de ..., o prédio descrito em 1. estava classificado como «Recursos Ecológicos – Reserva Ecológica Nacional REN» - próximo da ... -, «Recursos Agrícolas Reserva Agrícola Nacional RAN (Solos das classes A e B)» e «Conservação da Natureza — Zona de Proteção Especial a Aves».

17. À data referida em 8., o prédio descrito em 1. era atravessado, no sentido Noroeste-Sudeste (sensivelmente a meio) pela estrada municipal CM ...28 e encontrava-se dividido em duas partes, a parte poente, com cerca de 107.6184 ha, e a parte nascente, com cerca de 126.1566 ha.

18. À data referida em 8., o prédio descrito em 1. encontrava-se completamente vedado em todo o seu perímetro e em ambos os lados da referida estrada municipal.

19. À data referida em 8., a utilização agrária do prédio descrito em 1. consistia na produção de forragem anual para fenos e pastoreio dos restolhos, realizada numa rotação anual de 4 folhas (3 em produção e 1 em pousio), sendo que as produções (de forragens e pastagens) se destinavam à alimentação do efectivo pecuário de bovinos para carne, utilização que, de acordo com as condições edafo-climatéricas e o tipo de exploração predominante na região em terrenos com características similares, tem potencial (técnico e económico) para ser mantido.

20. À data referida em 8., a Filser- Sociedade Agro-Pecuária, Lda. pastoreava, no prédio descrito em 1., 100 (cem) cabeças normais e crias de gado bovino, durante 6 (seis) meses por ano (de Abril a finais de Setembro), em parques vedados existentes em cada um dos lados do CM ...28.

21. À data referida em 8., as culturas arvenses do prédio descrito em 1. destinavam-se fundamentalmente à alimentação do gado, parte por fenação e parte por pastoreio directo.

22. À data referida em 8., o prédio descrito em 1. era composto, de acordo com a qualificação e classificação do cadastro geométrico, por 5 (cinco) parcelas de cultura arvense de sequeiro (CA) e por uma parcela de pastagem (P).

23. À data referida em 8., a parte da estrema poente do prédio descrito em 1. coincidia com a ..., sendo que a parcela de pastagem incluía 0,4000 ha de Leito de Curso de Água (LCA).

24. À data referida em 8., o prédio referido em 1. possuía 3 (três) vedações interiores na parte nordeste e 1 (uma) no lado sudoeste.

25. À data referida em 8., o prédio referido em 1. possuía 4 (quatro) portadas para atravessamento de gado junto ao CM ...28, 2 (duas) sensivelmente a meio da parte norte do prédio e 2 (duas) na estrema sul do prédio.

26. À data referida em 8., a exploração do prédio descrito em 1. possuía 5 (cinco) parques vedados para pastoreio de gado e praticava uma rotação cultural composta por 4 (quatro) folhas, 3 (três) semeadas com forragem anual para feno e 1 (uma) em pousio com pastagem natural.

27. À data referida em 8., o prédio referido em 1. possuía uma pequena charca, com nascente, e um furo, na zona poente, próximo da ..., e um furo e poço na zona nascente, recursos hídricos que se destinavam ao abeberamento do efectivo pecuário.

28. À data referida em 8., existiam, no prédio descrito em 1., em cada um dos lados do CM ...28, 2 (dois) sistemas de abeberamento do gado, um na zona poente (agora a noroeste da nova ferróvia), composto por um depósito vertical PEAD de 10.000 litros e 3 (três) bebedouros de betão de 700 litros, abastecido pela charca e pelo furo referidos em 27., e outro na zona nascente (agora a nordeste da nova ferrovia), também composto por um depósito vertical PEAD de 10.000 litros e 3 (três) bebedouros de betão de 700 litros.

29. À data referida em 8., o prédio descrito em 1. tinha 2 (dois) sistemas de bombagem solar fotovoltaica, um composto por dois painéis e por uma electrobomba na charca e outro composto por uma electrobomba no furo, ambos destinados a abastecer um depósito vertical PEAD de 10.000 litros e 3 (três) bebedouros a partir do furo e da charca.

30. À data da referida em 8., as parcelas a expropriar (n.º 133.1 e n.º 133.2) encontravam-se ocupadas com culturas arvenses de sequeiro, sendo o solo de características argilo-calcário com capacidade para uso A e B, apresentando a parcela n.º 133.1 uma orografia regular com uma ligeira pendente no sentido do CM ...28 para a ... e a parcela n.º 133.2 uma orografia regular até ao CM ...28 e, a partir daí, um declive sensivelmente decrescente até ao limite da propriedade.

31. À data referida em 8., o prédio descrito em 1., considerando as melhores condições ambientais, apresentava um rendimento líquido total anual de 299,20€/ha.

32. A taxa de capitalização/actualização a considerar para os rendimentos anuais, perpétuos e constantes dos rendimentos líquidos das parcelas a destacar do prédio descrito em 1. corresponde a 3%.

34. À data referida em 8., a transferência/movimentação do gado entre os parques de pastoreio situados do mesmo lado do CM ...28 era efectuado sem constrangimentos.

35. À data referida em 8., a transferência/movimentação de gado entre os parques de pastoreio situados em lados diferentes do CM ...28 obrigava ao seu atravessamento, razão pela qual existiam portadas em dois pontos daquela estrada municipal, 2 (duas) na zona centro-norte do prédio e 2 (duas) na estrema sul. 36. À data referida em 8., a gestão e movimentação entre as duas partes do prédio descrito em 1., nomeadamente a passagem de animais e máquinas, eram efectuadas, sem qualquer obstáculo físico e incómodos através das portadas referidas em 25. e 34..

37. A expropriação das parcelas n.º 133.1 e n.º 133.2, que atravessam o prédio descrito em 1. no sentido poente/nascente, originou a sua divisão em 2 (duas) áreas a norte das parcelas expropriadas e 2 (duas) áreas a sul das parcelas expropriadas. 38. Como consequência da expropriação, o prédio descrito em 1. ficou dividido em 4 (quatro) partes sobrantes, a saber:

- uma parte a noroeste (parte sobrante A1), com cerca de 61.1008 ha;

- uma parte a nordeste (parte sobrante B1), com cerca de 93.4350 ha;

- uma parte a sudeste (parte sobrante B2), com cerca de 27,1250 ha;

- uma parte sudoeste (parte sobrante A2), com cerca de 43,1670 ha.

38. Todas partes sobrantes referidas em 37. mantêm as mesmas características agronómicas e acesso a partir do CM ...28.

39. A comunicação directa entre as parcelas sobrantes a noroeste e a nordeste (A1 e B1) não sofre qualquer alteração em relação àquela que exista antes da DUP, sendo feita através do atravessamento do CM ...28 através das portadas referidas em 25. e 34..

40. A comunicação directa entre as parcelas sobrantes a sudoeste e a sudeste (A2 e B2) não sofre qualquer alteração em relação àquela que existia antes da DUP, sendo feita através do atravessamento do CM ...28 através das portadas referidas em 25. e 34..

41. A parte poente do prédio descrito em 1. (em relação ao CM ...28) desenvolve-se sensivelmente entre o km ...96+800 e o km ...97+700 da futura linha férrea.

42. Entre o km ...96+800 e o km ...97+300 (numa extensão de 500 metros), a futura linha férrea desenvolve-se em viaduto, identificado na planta parcelar da expropriação n.º ...79 como «...».

43. O tabuleiro do referido viaduto ficará a uma altura de em relação ao terreno que varia entre os 30 (trinta) metros (junto ao pilar n.º 9 - «P9») e os 10 (dez) metros (junto ao pilar n.º 21 - «P21») de altura, sendo que a distância entre os referidos pilares é de 35 (trinta e cinco) metros.

44. Nos locais em que a linha férrea passa em altura (viaduto), as vedações previstas são fechadas no início do viaduto, sendo garantida a livre passagem sob o viaduto.

45. Nas parcelas expropriadas, está prevista a construção de uma vedação rural dos dois lados da linha férrea nos limites com o prédio expropriado, que será interrompida/fechada à entrada do Viaduto sobre a ..., inexistindo qualquer previsão de construção de qualquer vedação ao longo da zona do viaduto, nomeadamente entre o limite Poente das parcelas expropriadas (km ...96+800) e a zona onde se garante a livre passagem sobre o viaduto (km ...97+300).

46. O desenvolvimento da nova linha férrea em viaduto no prédio descrito em 1., designadamente no «...», insere-se no âmbito de solução preconizada para a minimização do efeito barreira provocado pela implantação da ferrovia em território nacional, não só para a fauna (passagem de animais entre os dois lados da linha), mas também social (acessibilidade pelos proprietários ao seu terreno de um lado para o outro da linha), quer permite a redução dos impactes a travessia da linha féria em termos ecológicos e em termos de acessibilidade às propriedades intersectadas).

47. Como consequência da divisão do prédio expropriado, a comunicação directa (quer para transporte de gado, quer para transporte de equipamentos agrícolas) entre toda a extensão das parcelas sobrantes a noroeste (A1) e a sudoeste (A2) deixa de ser possível, mas continua a poder ser feita sob o »...», que permite a comunicação directa entre estas parcelas (A1-A2) numa extensão de 500 (quinhentos metros), quer para o atravessamento de gado, quer para o atravessamento de equipamentos agrícolas.

48. Como consequência da divisão do prédio expropriado, a comunicação directa entre as parcelas sobrantes a nordeste (B1) e a sudeste (B2) deixa de ser possível, mas pode ser feita através da circulação no CM ...28 mediante o atravessamento de uma passagem superior sobre a nova linha férrea, designada ..., que, nesse local, fica ao nível do terreno e dispõe de painéis laterais em betão armado (para protecção de risco de queda à linha), permitindo apenas o atravessamento de equipamentos agrícolas.

49. Em alternativa à descrita em 47., a comunicação entre as parcelas sobrantes a noroeste (A1) e a sudoeste (A2) pode também ser feita através da circulação no CM ...28 mediante o atravessamento de uma passagem superior sobre a nova linha férrea, designada ..., que, nesse local, fica ao nível do terreno e dispõe de painéis laterais em betão armado (para protecção de risco de queda à linha), permitindo apenas o atravessamento de equipamentos agrícolas.

50. Em alternativa à descrita em 48., a comunicação entre as entre as parcelas sobrantes a nordeste (B1) e a sudeste (B2) pode também ser feita através da parcela sobrante a sudoeste (A2) – B1-A1-A2-B2 -, sob o ..., que permite o atravessamento de gado e de equipamentos agrícolas. 51. A falta de comunicação directa entre as parcelas sobrantes noroeste (A1) e sudoeste (A2) e entre as parcelas sobrantes a nordeste (B1) e a sudeste (B2) não afecta a sua produtividade em termos de rendimento forrageiro e de produção animal, mas aumenta os encargos com a deslocação (de gado e equipamentos agrícolas para realização de operações agrárias) de e para as parcelas sobrantes localizadas a sul das parcelas expropriadas (A2 e B2), nomeadamente resultantes de um aumento de tempo e distância de deslocação para essas parcelas sobrantes.

52. Como consequência da falta de comunicação directa entre as parcelas sobrantes a norte das parcelas expropriadas (A1 e A2), verifica-se, na parcela sobrante a sudoeste (A2), uma interrupção na continuidade das operações culturais resultantes da necessidade do atravessamento (de equipamentos agrícolas) do Viaduto sobre a ....

53. Como consequência da falta de comunicação directa entre as parcelas sobrantes a sul das parcelas expropriadas (B1 e B2), verifica-se, na parcela sobrante a sudeste (B2), uma interrupção na continuidade das operações culturais resultantes da necessidade de circulação no CM ...28 e do atravessamento (de equipamentos agrícolas) do Viaduto sobre a .... 54. Considerando as características do solo das parcelas sobrantes a sudoeste (A2) e sudeste (B2), são necessárias, numa base anual, 6 (seis) operações agrárias com recurso a maquinaria, a saber: lavoura e gradagem com grade de discos; escarificação; rolagem e/ou fresagem; sementeira; e corte e enfardamento.

55. Na parcela sobrante a sudoeste (A2), cada uma das operações agrárias/culturais referidas sofre um acréscimo de 50,00 € (cinquenta euros), perfazendo um montante global de 300,00 € (trezentos euros), que corresponde a um aumento de 1,75 % nos encargos destinados a fazer face aos custos de manutenção das culturas, preparação de solo, sementeiras, fenação, etc., com reflexo no rendimento líquido das culturas instaladas nesta parte sobrante e que corresponde a uma diminuição de 0,03 €/metro por metro quadrado.

56. Na parcela sobrante a sudoeste (B2), cada uma das operações agrárias/culturais referidas sofre um acréscimo de 75,00 € (setenta e cinco euros), perfazendo um montante global de 450,00 € (quatrocentos e cinquenta euros), que corresponde a um aumento de 4,19 % nos encargos destinados a fazer face aos custos de manutenção das culturas, preparação de solo, sementeiras, fenação, etc., com reflexo no rendimento líquido das culturas instaladas nesta parte sobrante e que corresponde a uma diminuição de 0,06 € (seis cêntimos) por metro quadrado.

57. Como consequência da falta de comunicação directa entre as parcelas sobrantes a norte das parcelas expropriadas (A1 e A2), torna-se necessário colocar vedações que permitam a criação de um corredor de passagem para o gado (canada) entre estas parcelas e entre estas e o CM ...28, por forma a permitir a circulação dos animais sem prejudicar a existência da cultura arvense implantada no terreno, cujo custo, prevendo a colocação de uma passagem dedicada ao longo da zona de aterro e complementada com a colocação de uma vedação na zona do viaduto e com a colocação de portões de passagem de gado (que permitem a passagem pela estrada entre as parcelas a nascente e a poente) e a utilização de rede metálica suportada em estacas de madeira e encimadas por arame farpado (que permitem a fácil condição do gado e impedem a passagem para a zona ocupada com a cultura), ascende a 6.690,00 € (seis mil seiscentos e noventa euros).

58. As opções de passagem entre as parcelas sobrantes a norte das parcelas expropriadas (A1 e A2) e a sul das parcelas expropriadas (B1 e B2), melhor descritas em 48. e 49. (pela passagem superior existente no CM ...28) implicam um aumento de encargos com o transporte do gado.

59. Como consequência da divisão do prédio, os animais que pastoreavam nas parcelas sobrantes a sudoeste (A2) e sudeste (B2) deixaram de ter acesso aos bebedouros referidos em 28. e 29..

60. Para colmatar a referida falta de acesso dos animais aos bebedouros, com a execução da obra de construção da nova ferróvia, a entidade expropriante assegurou a passagem de condutas subterrâneas (sob a nova linha férrea) entre os lados Norte e Sul do prédio (a Poente e a Nascente do CM ...28), que permitiram abastecer a parcela sobrante a sudoeste (A2) a partir da parcela sobrante a noroeste (A1) e a parcela sobrante a sudeste (B2) a partir da parcela sobrante a nordeste (B1), nos bebedouros já existentes à data referida em 8.

61. A entidade expropriante assegurou a passagem de água nas condutas subterrâneas através da construção de uma passagem (de ligação) hidráulica (...01), na extremidade Poente da passagem superior ao nível do CM ...28 (...7-1) - local onde existe uma linha de água – e da construção de um negativo (...3-3) para encaminhamento das ligações das condutas de água, ligando a (agora) parte Norte e Sul do prédio descrito em 1.

62. Em face do referido em 55. a 57., é necessário contruir um novo sistema de abeberamento do gado na parcela sobrante a sudoeste (A2), que consiste na bombagem da água a partir da charca para um depósito de regularização de caudal, por acção de electrobomba, e deste depósito para novos bebedouros, por acção de gravidade, através de canalização a construir, e cujo custo ascende a 6.336,50 € (seis mil trezentos e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos).

63. Em face do referido em 55. a 57. e para não prejudicar as operações agrícolas de cultura arvense, é necessário construir um novo sistema de abeberamento do gado na parcela sobrante a sudoeste (B2), que consiste, em face do desnível entre o local do furo situado na parcela sobrante a nordeste (B1) e o local da possível colocação de novos bebedouros, na construção de uma canalização subterrânea, alimentada por um depósito de regularização de caudal, para distribuição da água proveniente do furo, por acção de gravidade, até aos novos bebedouros, e cujo custo ascende a 7.057,80 € (sete mil e cinquenta e sete euros e oitenta cêntimos).

64. À data referida em 8., as parcelas a ocupar temporariamente (n.º 133.1T1 e n.º 133.1T2) localizavam-se ao longo da parcela n.º 133.1, de ambos os lados, constituindo duas faixas a ela paralelas, em toda a extensão da zona em que seria implementado o viaduto sobre a ... e que, de acordo com a planta parcelar, corresponde a 475 metros, tendo a parcela n.º 133.1T1 uma área de 4794 m2 e a parcela n.º 133.1T2 uma área de 4719 m2.

65. As parcelas a ocupar temporariamente (n.º 133.1T1 e n.º 133.1T2) destinavam-se a ser utilizadas durante um período previsível de 36 (trinta e seis) meses para a construção de um viaduto sobre a ..., sendo, após conclusão da obra, devolvidas aos proprietários nas mesmas condições agronómicas existente à data da ocupação,

66. Como consequência da ocupação temporária das parcelas 133.1T1 e 133.1T2, nos termos referidos em 60., a respectiva área (0,9513 ha), sofreu uma perda de produção (rendimento líquido anual da cultura arvense) durante um período de, pelo menos, 4 (quatro) anos, sendo 3 (três) anos pela ocupação da obra e 1 (um) ano para recuperação das condições de produção do solo, à razão de 299,20 €/ha por ano.


***


Das nulidades do acórdão; a violação do contraditório

Diz a recorrente: 16.ª – Pelo acórdão proferido, decidiu-se anular todo o processado desde o relatório pericial, por se ter considerado que os peritos avaliaram as parcelas expropriadas de acordo com o critériolegalsupletivo (critériodo rendimento)sem que, na perspectiva da Relação, tenham demonstrado “qualquer impossibilidade prática e objectiva” de aplicação do critério principal prescrito no Código das Expropriações (“critério fiscal”).

17.ª – Trata-se de uma decisão baseada em fundamento que as partes não haviam considerado, pelo que, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC, a Relação devia ter, previamente, convidado ambas as partes a tomarem posição sobre a questão. Ademais, estando a questão do valor das parcelas expropriadas excluída do objecto da apelação, jamais as partes poderiam ter previsto a possibilidadede vira ser apreciada, no acórdão, a questão do critério de avaliação dessas parcelas».

A recorrente tem inteira razão.

Não tanto, quando toma posição relativamente á prioridade do conhecimento da extemporaneidade do recurso em relação á nulidade decorrente da violação do contraditório.

Na verdade, esta nulidade deriva da não verificação de um dos pressupostos do acto decisório, logo cronológica e logicamente anterior à apreciação dos vícios do próprio acto.

Vejamos então por que é que entendemos que existe a nulidade por violação do artigo 3.º, 3 CPC.

O contraditório representa uma garantia civilizacional de grande alcance e não deve ser visto como um inútil formalismo que atrasa os processos e favorece a chicana das partes e as manobras dilatórias dos advogados.

Sem contraditório não há igualdade, nem está assegurada uma defesa efectiva; sem contraditório não temos sequer processo: «o processo é a organização jurídica do contraditório: o processo é o contraditório em desenvolvimento. Portanto jurisdição, juízo, processo e contraditório não são mais do que sinónimos, as várias faces, ou projecções, de um único fenómeno» (Girolamo Monteleone, Diritto Processuale Civile, 3.ª ed., Cedam, Padova, 2002:19. Nicola Picardi, Manuale Del Processo Civile, Giuffrè Editore, Milano, 2006:207, Elio Fazzalari, Instituições de Direito Processual, Bookseller, Campinas-SP, 2006:118 ss).

Tradicionalmente, o contraditório era visto como o direito de qualquer uma das partes a ser chamado e de se fazer ouvir na acção, portanto numa perspectiva estática do processo e de natureza retórica/defensiva.

De início considerava-se que o contraditório, agora chamado fraco ou horizontal, estaria assegurado se o réu estiver informado do começo do processo, através da citação, e se lhe for dado um prazo côngruo para contestar e reconhecidos, ao longo do processo, poderes processuais equivalentes aos do autor.

É a modalidade prevista no artigo 3.º, 1 quando se estipula que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente citada para deduzir oposição.

Actualmente, esta vertente retórico-defensiva do contraditório, encontra-se reforçada por uma nova vertente, epistémico-argumentativa, assumindo o contraditório uma modalidade forte, que se resolve na regulamentação do diálogo das partes entre si, como anteriormente, mas também entre estas e o juiz.

O artigo 3.º, 3 dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar.

Com este artigo, elaborado pela reforma de 1995/1996, passaram a ser proibidas as decisões-surpresa, também chamadas decisões solitárias, solipsisticamente adoptadas ou de terceira via.

Não cabe aqui fazer uma exegese do artigo.

Sublinhemos, no entanto, alguns pontos:

i) Trata-se de um dever do juiz, não de poder discricionário. O juiz deve observar e fazer cumprir o contraditório.

ii) É um dever que deve ser cumprido ao longo de todo o processo, em qualquer das suas fases e mesmo em instância de recurso. Os juízes dos tribunais superiores não estão dispensados de cumprir esse dever.

iii) É um dever que admite excepções, mas só em caso de manifesta desnecessidade os juízes estão dispensados de o cumprir. Manifesta desnecessidade é a excepção e não a regra. E manifesta desnecessidade é isso mesmo: manifesta, o que é evidente, o que salta à vista, o que não levanta dúvidas, o que está exposto no processo de forma flagrante.

iv) É um dever holístico, que abrange todas as questões «novas» de facto ou de direito, que não tenham sido tratadas e discutidas no processo.

Não é de seguir a ideia restritiva de que o magistrado só deve assegurar o contraditório prévio quando seja de proferir uma decisão insólita que as partes não tenham o dever de, com diligência adequada, antecipar como possível.

A possibilidade de as partes se defenderem previamente de uma questão de conhecimento oficioso do juiz, implicaria que aquelas gozassem de faculdades divinatórias, para poder antecipar na própria cabeça o raciocínio que fará o juiz e assim poderem correctamente defender-se.

Acresce que o princípio da autorresponsabilidade não pode transmutar-se em princípio de autolesionismo, ou seja, impor às partes que dêem atenção e contribuam com argumentos para a vitória da parte contrária.

Ora, no caso sujeito, a deliberação da Relação surge inopinada, totalmente impressível para as partes que não podiam contar com decisão tão drástica de anulação do processado desde a referida perícia.

A recorrente põe claramente em relevo a surpresa que constituiu o teor do acórdão da Relação, pelo que será ocioso reproduzir aqui os seus argumentos.

Quando, no decurso do processo, o juiz releva de ofício determinada questão, de facto ou de direito, com influência decisiva na decisão da causa, ele está a introduzir no âmbito do material decisório um novo objecto sobre o qual até esse momento as partes não puderam ou quiseram tratar e discutir no contraditório entre elas.

Por conseguinte, o acto de conhecer de ofício determinada questão não pode deixar de se exteriorizar, com a chamada de atenção das partes sobre essa questão e de ser antecedido pela sua sujeição ao crivo dialéctico dos sujeitos processuais.

Estando assente que houve violação do artigo 3.º, 3 CPC coloca-se a questão discutidíssima sobre como qualificar esse vício.

Não é este o local para análises teóricas sobre o tema. Diremos apenas que:

i) O acto decisório pode ser formalmente perfeito em relação ao seu modelo legal e ser, no entendo, nulo por violação de outro género, como por exemplo, em relação a um obstáculo legal que vede o exercício do poder de cumpri-lo.

ii) Nesta perspectiva nem sequer é precisa uma específica previsão de nulidade, designadamente o vício constar de um elenco legal, como v.g o existente no artigo 615.º CPC.

iii) O contraditório é um valor-fim e não um valor-meio, como o valor da economia processual e do princípio do prazo razoável.

iv) O contraditório é não apenas um princípio estruturante do processo civil; é um direito processual fundamental.

v) Encontra fundamento, além dos artigos 10.º e 11.º DUDH, 6.º CEDH, 47.º CDFUE e 14.º PIDCP e ainda nos artigos 1.º, 2.º, 20.º, 4, 32.º, 5 da CRP.

vi) Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias vinculam as entidades públicar e privadas (artigo 28.º, 1CRP).

vii) A violação do contraditório fere a justiça de qualquer decisão judicial;

ix) A violação da audiência prévia comporta de per se uma nulidade do acórdão como ilícito obstáculo à possibilidade de o defensor das partes desenvolver convenientemente o direito de defesa.

A decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.

Não parece congruente que uma violação, que constitui fundamento de anulação de uma sentença arbitral (artigo 46.º, 3, Lei da Arbitragem Voluntária), não tenha tratamento idêntico na jurisdição do Estado.

Conclui-se que, ao não fazer actuar o contraditório, o segundo grau cometeu uma irregularidade, causa de anulação da decisão impugnada.

Queda prejudicado o conhecimento das restantes nulidades invocadas.


***


As custas do recurso serão suportadas pela parte vencida a final, porquanto não é possível aplicar nesta fase critério justo de determinação de responsabilidades.

***


Pelo exposto, acordamos em julgar procedente o recurso, em anular a decisão recorrida, e em ordenar a baixa do processo, a fim de os autos aí prosseguirem os termos adequados, conforme o ora deliberado.

Custas pela parte vencida a final.


***


14.01.2025

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Rosário Gonçalves

Cristina Coelho