I. A liquidação de sentença segundo o critério da equidade não pode deixar de observar os vários parâmetros orientadores da quantificação da indemnização constantes da decisão a liquidar.
II. Resultando a indemnização do incumprimento de uma doação modal, que implicava a realização de prestações futuras tanto pelo donatário como pelo doador, a liquidação segundo a equidade deve proceder a uma equação ponderada da natureza do contrato-base e das diversas prestações não realizadas.
Recorrente: Município de ...
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. AA propôs ação de condenação contra Município de ..., peticionando a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 288.000,00 (duzentos e oitenta e oito mil euros), acrescido de juros à taxa legal desde a citação e em procuradoria condigna.
Por sentença proferida em 25.10.2020, foi decidido:
“Condenar o Réu Município de ... a pagar ao autor AA a quantia total de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral pagamento”. Quanto ao mais, o réu foi absolvido do pedido.
2. Em 01.06.2021, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual decidiu:
“ revogar a sentença recorrida, determinando agora a condenação do Réu a pagar ao Autor o valor pecuniário equivalente à quantia, a liquidar, que resultar da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006 se lhe tivesse sido, integralmente, dado o destino de catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados, valor esse acrescido do montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual, correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido museu, como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu qualquer cargo ou função correspondente.”.
3. Por requerimento de 14.10.2021, o autor deduziu incidente de liquidação de sentença, peticionando a liquidação dos danos em que o réu foi condenado nos seguintes termos:
- Liquidação da quantia num valor nunca inferior a € 273.600,00, que diz respeito ao período de 12 anos, com uma remuneração mensal correspondente à quantia líquida de € 2.000,00 a que o autor teria legalmente direito pelo cargo simbólico, representativo ou de administração a ocupar na sociedade detentora do já referido museu, como previsto na escritura;
- Renunciou ao direito à liquidação respeitante ao “valor que resulta da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006, se lhes tivesse sido dado o destino de catalogação e exposições museológicas no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados”.
4. Admitido o incidente de liquidação, o réu foi citado para deduzir oposição, na qual sustentou que a liquidação devia ser desatendida, dado que o tribunal não poderia fixar uma quantia certa, líquida e exigível, por insuficiência de critérios objetivos.
5. Após frustração de uma tentativa de conciliação, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a produção de prova pericial, mas não requereram essa prova, e a primeira instância, julgando segundo a equidade, considerou parcialmente procedente o incidente de liquidação, proferindo a seguinte decisão:
«1– Condenar o Réu Município de ... a pagar ao autor AA a quantia total de € 144.000,00 (cento e quarenta e quatro mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral pagamento.
2 – No mais, absolver o Réu do pedido.»
6. Contra essa decisão, tanto o réu como o autor interpuseram recurso de apelação, tendo o TRC proferido a seguinte decisão:
«Julga-se o recurso do Réu improcedente e parcialmente procedente o do Autor e condena-se o Réu Município de ... a pagar ao autor AA a quantia total de € 191.999,52 (cento e noventa e um mil, novecentos e noventa e nove euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral pagamento.»
7. Contra esse acórdão, o réu interpôs recurso de revista. Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
«1. A segunda instância ao decidir incidente de Liquidação nestes autos, agravando o seu quantum indemnizatório /condenatório para o recorrido, da quantia de 144.000,00€ para a quantia de 191.999,52€, usando como critério de fixação o recurso à Equidade, e com a mesma prova já produzida nos autos, à falta de prova complementar, por deficiente formulação do requerimento de Liquidação, e ausência de promoção oficiosa do tribunal a quo, subrogou-se ao recorrido e decidiu a favor do recurso por este interposto, de forma atentatória de princípios de Direito substantivo.
2. A redação do dispositivo do Acórdão revogatório, de cariz condenatório, fixou apenas os termos do alcance da liquidação, não se reconhecendo naquele arauto que o processo possuísse os necessários elementos para uma decisão certa, líquida e exigível, demandando prova adicional prévia, antes que se decidisse pela equidade, sob pena de se estar em presença de uma decisão meramente sancionatória, discricionária e infundamentada, como foi classificada a de primeira instância que viria a ser revogada.
Podendo ler-se no DISPOSITIVO do Acórdão revogatório:
“Pelo exposto, decide-se a final, dando procedência à apelação, revogar a sentença recorrida, determinando agora a condenação do Réu a pagar ao Autor o valor pecuniário equivalente à quantia, a liquidar, que resultar da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006 se lhe tivesse sido integralmente dado o destino de catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados, valor esse acrescido do montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual, correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido museu, como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu qualquer cargo ou função correspondente.”»
3. Para o sustentar se tendo referido nesse mesmo Acórdão:
“É que, em nosso entender, à data da prolação da sentença no Tribunal a quo, este não dispunha dos elementos indispensáveis para sequer fazer funcionar o juízo de equidade, pelo que, tendo-o operado neste contexto e circunstancialismo, formulou em grande medida um juízo arbitrário, sancionando - indevidamente, já se vê! - a superação da falta de prova de factos que podiam ainda ser provados.” (ultimo parágrafo pág. 17 e verso do Acórdão de 01/06/2021).
4. E não obstante, foi decidido a final que o recorrente incumprira o sinalagma contratualizado com o recorrido, e assim se constituiu na obrigação de indemnizar, por aplicação do artigo 966º do Código Civil, não concluindo mais do que o mesmo que a primeira instância recorrida e com os mesmos pressupostos, apenas agora, por se tratar de uma ultima ratio decisória, vinculada a uma obrigação de condenar, por força de uma sua anterior decisão.
5. À falta de um verdadeiro exercício de liquidação, na ótica do recorrente, ressalvado o devido respeito, por falta de impulso processual quer do recorrido quer do tribunal a quo, e em violação do disposto no artigo 356º nº 1 do CPC, entendeu o tribunal ora recorrido, por bem, ressalvar a bondade da respetiva decisão prévia, nas duas premissas que jurisprudencialmente não se contestam:
“Imposta uma liquidação posterior de valor, o respetivo incidente não pode culminar na negação do direito anteriormente reconhecido.
Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”
6. Mau grado não ter colhido a tese defendida pelo recorrente de que o incidente de liquidação deduzido configuraria um non liquet (apesar da MMª. Juiz a quo o ter aflorado) e ter referido:
“Que a questão a decidir mostra-se já fixada pelo Tribunal da Relação de Coimbra (pese embora o requerimento de liquidação apresentado pelo Autor, que extravasa tal decisão, a que o tribunal de primeira instância está vinculado)”- sic. Sentença do Incidente-a instância manteve-se regular até final e foi o tribunal recorrido obrigado a uma vez mais, decidir apenas com recurso à equidade, mas com fundamentação teleológica completamente diversa daquela que o Autor peticionara no incidente deduzido, agravando a desfavor do recorrente o montante condenatório.
7. Isto porque o Autor, de modo oportunístico, ou como se diz no Acórdão aqui recorrido, “em vista do seu interesse, para não complicar o processo com a potencial perícia”, por ter renunciado a expressamente em dar cumprimento ao primeiro segmento da decisão a liquidar, ainda assim foi merecedor de tutela, como que se estivéssemos no domínio de uma mera ética sancionatória de cariz retributivo, porque assente em culpa, de um dos contraentes.
8. A formulação do requerimento de liquidação, a dever ser tramitado como mandam as regras, como incidente de natureza declarativa, assentou apenas e só na perceção do recorrido de que em vista do valor admissível dos limites do pedido originário -288.000,00€ - lhe assistiria o direito de peticionar como valor devido, pouco menos que esse valor.
9. Considerando, contudo, na sua formulação, que esse seria o equivalente ao valor dos bens doados (que ainda assim prescindiu de avaliar).
10. Ficou assim por apurar, em sede de liquidação, se os bens existiam, tal como dado como provado, em extensão, quantidade, com ou já sem valor e/ ou não, na putativa posse do recorrente, o que poderia vir a revelar-se verdadeira “caixa de Pandora”, em prejuízo da pretensão do recorrido.
11. O que, para o recorrente, configura violação expressa das regras da boa-fé substantiva e processual, que por arrasto levaram a uma tomada de decisão inquinada de erro na aferição do quantum devido e em violação do disposto 674º nº 1 alínea a) do CPC.
12. Atenta a natureza da relação contratual, de que dimanaram as declarações negociais e o seu desfecho resolutivo, decidido judicialmente à falta de fixação inter-partes de prazo e por se tratar de doação, com condição modal, ainda assim, na sua essencialidade o encargo não poderia ultrapassar o valor da coisa ou direito doado, no termos do artigo 963º nº 2 do Código Civil.
13. Logo, por maioria de razão, na falta de um seu apuramento de valor, ónus que ao Autor incumbia e de que se demitiu, a decisão de liquidação deveria ter sopesado a sua omissão a “decrescer” na quantia a liquidar, sob pena de violação do princípio do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473º do Código Civil e abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil.
14. Se o donatário não é obrigado a cumprir os encargos, senão dentro dos limites do valor da coisa ou do bem doado, por maioria de razão uma qualquer decisão judicial sancionatória de valor, por impossibilidade de restituição, também não poderia extravasar esses limites que, in casu, não sendo conhecidos, no uso da equidade, teriam que quedar-se por um valor que tivesse em conta os efeitos da renúncia do Autor em liquidar o primeiro segmento da decisão condenatória, fixando-se em metade do valor do pedido.
15. As instâncias, na fixação da matéria de facto, decidiram pela conclusão da existência de um dano de valor, que o recorrente estava nesta fase precludido de aferir, ante a renuncia do Autor a essa parte do dispositivo da sentença a liquidar.
16. Ainda assim, pretendendo colher o recorrido, o melhor de dois mundos, amputando um dos segmentos a liquidar, e tendo o tribunal recorrido fixado como “ balizas” máximas de liquidação global o valor do pedido, embora com premissas de desvalor, em ambos os segmentos de liquidação, mal se compreende que nesse conspecto pudesse ter o tribunal ora recorrido distendido e agravado a condição de liquidação da remuneração que fosse devida ao Autor, a dois terços do valor total desse pedido, para mais sustentado na equidade, o que no mínimo viola o princípio da igualdade das partes perante o processo, nos termos do artigo 4º. do CPC e artigo 20 nº 4 da CRP.
17. Foi a decisão revogatória que segmentou a condenação, logo não se compreende que não se tivesse acautelado essa renúncia, aceitando-a sem mais e sem consequências em matéria de (des)valor no quantum condenatório, assente na equidade, com o argumento de que a quantificação da remuneração não ficara dependente do apuramento do valor dos bens, tendo presente que o Autor, ao invés, sempre sustentou e essa era a causa de pedir que justificava a doação modal.
18. A iliquidez, ou melhor dito, a não liquidação voluntária desse segmento do Acórdão condenatório, por opção do recorrido, ainda que não fosse impeditiva de se atingir um valor de liquidação, na restante parte, fixando-se em dois terços do pedido, como contrapartida de pagamento de remuneração de um lugar num museu, sem espólio, ou cujo valor nunca se apurou, apenas considerando o valor da remuneração total máxima fixada em 2/3, descontando-se apenas 1/3 ( ¼ para impostos e contribuições e o restante para a menor onerosidade de que beneficiou o Autor) apenas porque não excedia as “balizas” do valor total do pedido, configura decisão passível de ser ajuizada como tendo sido tomada com erro de interpretação, nos termos do artigo 674º nº 1 do CPC.
19. Na verdade, ao fazer vencer a formulação do Autor, o Acórdão recorrido aderiu a um juízo de condenação e liquidação que considerou equitativa, quando o Autor assumiu desconhecer e não querer aferir o real valor dos bens que foram cunhados nos factos provados (facto 5) com enorme relevância histórica e elevado valor material, tendo tribunal recorrido ido além do que lhe era dado verificar, em face da formulação do incidente de liquidação.
20. Como não valorizou, em vista de uma decisão equitativa e justa que o Autor em 2015 havia peticionado do Réu recorrente a quantia de 323.388,00€(!) por “doação do “Espólio do Dr. BB”, facto documentado por certidão junta a estes autos em alegações de recurso da sentença do processo principal e consultável em [Código de acesso ...Z2 ] e levado aos factos provados ( sem prejuízo da improcedência decidida em matéria de caso julgado).
21. E que o Autor nessa ação aceitara receber os bens por si entregues e reclamados, por já então, pelo menos desde 2015, estar ciente de que o recorrente não iria edificar qualquer museu, o que relevaria para efeitos da cobertura temporal a indemnizar, em face da “expetativa de recebimento de remuneração” que no Acórdão condenatório fora fixada entre 2007 a 2019 e não de 2007 a 2019.
22. O Autor, ao propor esta nova ação, que deu origem ao incidente em liquidação, após anuir em fazer cessar aquela outra por transação, bem sabia que os “valores” vertidos no contrato de doação que nestes autos se discutem, reportados à doação formalizada em 2006, na ação interposta em 2019, também já estavam irremediavelmente comprometidos e assim inquinados de reserva mental da sua parte, facto que não relevou em sede de juízo de equidade.
23. Revelando assim da boa/má-fé do Autor e ferindo a sensibilidade, bom senso e Justiça material, que se considere que ao Autor seja devida indemnização remuneratória, balizada entre 2007 e 2019, por se concluir que até à data da propositura da ação, ora em análise, o Autor mantivesse a mesma e intocada expetativa de vir a ser construído um museu, para que os bens doados fossem expostos e lhe fosse atribuído um lugar remunerado, com direito ao recebimento de 2000,00€ mensais, sem prejuízo da culpa do recorrente.
24. A improbabilidade de se alcançar esta conclusão demandaria que, ao invés de se fixar um quantum aritmético e imutável de valor que ao Autor fosse devido, partindo do montante do pedido, e da vinculação condenatória, o tribunal recorrido pudesse ter contemplado premissas prévias, em vista do desconto equitativo, a saber:
a) - que o Autor renunciou a um valor que acresceria ao montante total a receber e por se estar no domínio, não de presunções, mas de Não Prova, em sede de liquidação, teria desde logo que ser descontado, na proporção de metade, à falta de critério seguro para cada um dos segmentos da liquidação;
b) - e assim ficasse “reservado” à liquidação do segundo segmento da decisão e único pelo qual o Autor pugnou, um limite máximo confinado a metade do valor do pedido-144.000€- por se estar a decidir a coberto da equidade e de presunções, quanto à tarefa a desempenhar e correlativa remuneração que lhe pudesse ser devida, sem que qualquer prova adicional tivesse sido feita no incidente, como podia, ao abrigo do disposto nos artigos 358º a 360º do CPC;
c) - que o cumprimento da decisão condenatória, no segmento dado à liquidação, visse ser-lhe aplicada a regra de desvalor fixada (prejuízo efetivo e real pelo período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a titulo de remuneração pela qual o Autor receberia se tivesse trabalhado, o que não ocorreu, tendo sido o Tribunal recorrido a ficcionar qual a função que corresponderia a essa função, que o Autor verdadeiramente nunca assumiu que iria desenvolver, antes pugnando por uma espécie de “dação em pagamento dos bens doados”, sem fim aprazado.
25. Sendo uma vez mais fonte de perplexidade, quanto ao conteúdo da decisão recorrida, no que diz respeito à obrigação de valor, cuja génese (doação modal) foi empalidecendo e sendo desvirtuada na sua correlação em sede de declarações negociais, vindo a culminar numa espécie de mera condenação/sanção porque o recorrente com “culpa não cumpriu o encargo da formalização do museu” e se ter admitido que ao Autor fosse devida remuneração, por uma difusa prestação de serviços que se não intui como poderia ser contratualizada pelo recorrente e até exercida pelo recorrido, para além do limite da idade de reforma que atingira em 2015.
26. Não se mostrando fundamentada a razão pela qual se estendeu tal obrigação remuneratória até 2019 quando o A. desde 2015 não poderia ter qualquer expetativa séria de que viria a ser construído o museu, no qual viria a desempenhar funções “explicativas da exposição”, não tendo sido valorada a autoridade do caso julgado da sentença homologatória de transação proferida no processo nº 7384/15.4... do ...º Juízo Central Cível de ....
27. Pelo que se conclui ter o tribunal recorrido, no Acórdão proferido, violado as disposições dos artigos 963º n.º 2 do Código Civil, sendo manifestamente desproporcionada e desconforme com as regras da proporcionalidade, legalidade e adequação, a condenação do recorrente, com base na equidade, a liquidar ao recorrido a quantia de 191.999,57€, com base em doação modal cujo valor e limite dos bens doados não se apurou, por culpa do Autor.
28. Por essa razão o Acórdão recorrido, com o valor fixado permitiu ao Autor locupletar-ser à custa do recorrente, em clara situação de enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 473º do Código Civil, balizando o seu direito à remuneração/ indemnização, para além de um tempo admissível e razoável, quer em termos de expetativa legitima, quer de probabilidade de cumprimento pelo recorrido da correlativa obrigação.
29. Não só em razão da idade do recorrido, como também por referência à boa fé e reserva mental com que se posicionou em sede adjetiva e substantiva, no que toca aos princípios da boa-fé na celebração dos negócios e na prossecução dos direitos em litigio decorrentes desse negócio.
30. Por aplicação às sentenças judiciais do disposto nos artigos 236º a 238º do Código Civil o douto Acórdão recorrido subsumiu os factos de modo diverso do que resultara dos factos provados e do que lhe era dado decidir.
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve o presente Recurso de Revista ser julgado procedente por provado e a decisão recorrida substituída por outra que reformule a liquidação operada, reduzindo o seu valor fixado em 191.999,57€ do modo seguinte:
A) tendo por referência o desvalor a fixar e a decrescer, pela renúncia do Autor a liquidar o segmento do dispositivo do Acórdão condenatório, no que se reportava ao valor dos bens doados, como contrapartida da doação modal, reduzindo a metade do pedido o montante máximo absoluto a liquidar (144.000,00€).
B) Ajustando ainda tal valor, mediante desconto correspondente à cessação do direito à remuneração após 2015, data em que o Autor já conhecia em absoluto, por via de ação judicial em que interveio com o recorrente e decorrente da mesma causa de pedir, do definitivo incumprimento contratual, que desde então assumiu o recorrente a não construção de qualquer museu, que era condição de remuneração, não sendo legitima a conclusão de que a expetativa do Autor até 2019 se mantinha intacta.
C) Até porque o dispositivo da sentença a liquidar não vinculava à fixação da obrigação devida até 2019, mas entre 2007 e 2019.
D) Contemplando e a deduzir ainda os correlativos descontos para efeitos de contribuições que fossem devidas, e a circunstância de o Autor nenhuma tarefa ter desenvolvido. Tudo por referência ao uso da Equidade por ser melhor decisão de Direito e de Justiça.»
8. O autor apresentou contra-alegações, sustentando, em síntese, a inadmissibilidade da revista e a manutenção do acórdão recorrido. Concluiu essa resposta nos termos que se transcrevem:
«A. Da Questão Prévia: O aqui Recorrente interpôs recurso de revista do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com base na “violação de lei substantiva” (Art. 674.º, n.º 1, al. a) do CPC);
B. Sucede que, o Acórdão oportunamente proferido por aquele douto Tribunal julgou improcedente a apelação, confirmando a Sentença da 1ª Instância de condenar o Réu a pagar ao Autor uma quantia a título de remuneração e que, apesar de agravado o quantum indemnizatório, rectius restitutório, confirmou assim a condenação do Recorrente no pedido deduzido pelo Recorrido.
C. Semelhantemente, consignou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.04.2019, in www.dgsi.pt. que para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode, compreensivelmente, atribuir-se significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição) e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11. 2019, in www.dgsi.pt. consta sumariado “Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações irrelevantes e sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).”.
D. Como se verifica, estes Acórdãos poderiam (poderão?) muito bem conter toda a fundamentação a utilizar no Acórdão a prolatar por este douto Tribunal ad quem relativo ao processo sub iudice, dada a total identidade das premissas sobre o qual assenta e, por conseguinte, na subsunção no direito vertido naqueles Acórdãos.
E. No caso em apreço, o Tribunal da Relação de Coimbra, para além de julgar improcedentes as nulidades apontadas à Sentença recorrida, confirmou a Decisão da 1ª Instância com base nos mesmos fundamentos jurídicos, a saber:
“Como já tinha admitido o acórdão anterior desta Relação: “Sendo assim, ao contrário do defendido pelo Réu, o incidente de liquidação não pode culminar na negação do direito anteriormente firmado.
Além disso, não vemos qualquer vício na construção da sentença (ou nulidade), percebendo-se a fundamentação, as limitações tidas por impostas à liquidação e a declarada necessidade de recurso à equidade.
Em vista do seu interesse, para não complicar o processo, com a potencial perícia, o Autor renunciou à liquidação relativa ao valor dos móveis. Mas a quantificação da “remuneração” não ficou dependente do apuramento desse valor. (…) o dispositivo do acórdão é claro ao dizer que o valor da liquidação relativa aos móveis “acresce ao montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual, correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito”
A condenação a este título não excede as balizas fixadas. (…)
(Noutros termos da dita motivação de facto, chega a dizer-se que o pagamento seria “equivalente a uma pensão vitalícia”.)
Mas devemos atentar que o trabalho não foi prestado por culpa do Réu, quem não cumpriu o encargo da formalização do museu.
Neste contexto, o desconto de metade, feito na sentença recorrida, parece-nos excessivo, sendo mais cauteloso o desconto de um terço (um quarto para impostos e contribuições, o restante para a menor onerosidade de que beneficiou o Autor).”
F. Foi este o núcleo central da fundamentação jurídica que sustentou o Acórdão do Tribunal da Relação, o qual é coincidente com a Sentença da 1.ª Instância, logo não houve “fundamentação essencialmente diferente” na manutenção do decidido na 1.ª Instância.
G. Pelo exposto, resta-nos que este douto Tribunal ad quem aplique o direito já por si enunciado, reconhecendo que o caso sub iudice encerra uma situação de dupla conforme impõe-se afirmar que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça o conhecimento do objeto da revista, em termos gerais, por inadmissibilidade, razão qual deve ser rejeitado, confirmando-se o bloqueio recursório do artigo 671º, n.3 do Código de Processo Civil.
H. Do Intróito: Antes de se iniciar as Conclusões, e para melhor compreensão das mesmas, releva sintetizar e perscrutar a sequência de acontecimentos e as circunstâncias factuais e processuais que se sucederam, cuja análise reveste importância determinante para a compreensão e consequente corroboração do que infra se explanará.
Vejamos,
“2. A. e Ré celebraram um contrato de doação modal por escritura pública a 17 de maio de 2006.
3. O objeto desse contrato foram os bens móveis constantes do clausulado do contrato.
4. O A. era dono e legítimo possuidor dos bens constantes das 567 fichas identificadas e apensas em dois dossiers rubricados pelas partes, que constituem documentação, nomeadamente livros, jornais, revistas e mapas e ainda descritos e identificados em sete cadernos que perfazem a totalidade de 833 páginas constituídas por material filatélico e numismático, medalhístico, objetos vários, revistas, jornais e outros (docs. 1 a 995).
5. Tais bens revestem na sua maioria enorme relevância histórica e elevado valor material atendendo, não só, mas também, que neles se incorpora parte do acervo hereditário de BB.
6. Parte de tal acervo já antes da formalização da doação se encontrava sob a custódia da Câmara Municipal de ..., ora R.
7. O contrato de doação em causa obedeceu a condições essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse um futuro museu, para o qual seria constituída uma sociedade da qual o Município deveria ser detentor da maioria do capital social, sendo que o donatário aceitou a doação com dois encargos, a criação do dito museu e, após a constituição daquela sociedade “que, em princípio, deverá iniciar a sua actividade até ao final do ano de 2007”, se obrigava “a garantir ao doador um lugar remunerado na futura sociedade, no montante anual de € 24.000,00, a pagar em duodécimos de € 2.000,00 mensais, atualizáveis anualmente por aplicação do Índice do Preço do Consumidor, sem habitação”, o que foi reciprocamente aceite pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos bens ao Réu (redação resultante da alteração ao anterior ponto 1.6 pelo Tribunal da Relação de Coimbra).
8. Até hoje, e apesar do Autor doador ter cumprido com a sua palavra, o R. não cumpriu os encargos da doação.
9. Em 17 de maio de 2006, o Autor doou 1/3 da herança indivisa de BB ao réu Município de ....
10. O Autor por diversas vezes e de formas diferentes chegou ao contacto com o Réu, para que este cumprisse os encargos, interpelando-o, acontecendo que, a mesma simplesmente tem “sacudido a água do capote”, não tendo cumprido com os encargos assumidos.
11. A Ré, não só culposamente não cumpriu com a sua parte, como também o A. não aceitara qualquer devolução do espólio atendendo que parte do mesmo está destruído e outra já nem sequer existe.
12. O espólio que compôs a doação em causa revestia interesse histórico e material, o que era do interesse do réu.
13. O Autor foi levado a aceitar as condições do contrato sempre de boa-fé, atendendo a uma preocupação altruística por um lado e por outro lado egoística, com vista à perceção das referidas contraprestações, doando um acervo composto de relevante interesse histórico visando obter e tendo como assente a obtenção de uma contrapartida séria, justa e aprazada.
14. O Autor sofreu um prejuízo calculado pela expectativa e pela certeza dos valores que se verteram no referido contrato.
15. Não se conferiu à violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação. (Factos não impugnados). Assim,
I. Em 21.03.2019, o Autor/Recorrido, AA, intentou ação contra o Réu/Recorrente, Município de ..., peticionando a condenação deste a pagar-lhe € 288.000,00;
J. Em 25.10.2020, por Sentença, foi decidido condenar o Recorrente a pagar ao Recorrido a quantia total de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros);
K. Em 01.06.2021, na instância de recurso, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual decidiu “revogar a sentença recorrida, determinando agora a condenação do Réu a pagar ao Autor o valor pecuniário equivalente à quantia, a liquidar, que resultar da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006 se lhe tivesse sido, integralmente, dado o destino de catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados, valor esse acrescido do montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual, correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido museu como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu qualquer cargo ou função correspondente.”
L. Em 14.10.2021, o Recorrido veio deduzir incidente de liquidação de Sentença, peticionando a liquidação da quantia num valor nunca a inferior a € 273.600,00, renunciando ao direito à liquidação relativo ao “valor que resulta da diferença entre o valor actual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006 se lhes tivesse sido, integralmente, dado o destino de catalogação e exposições museológicas no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor actual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/ armazenados”;
M. Em 07.11.2023, na primeira instância, foi decidido condenar o Recorrente a pagar ao Recorrido a quantia total de € 144.000,00;
N. Em 09.04.2024, no Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido condenar o Recorrente a pagar ao Recorrido a quantia total de € 191.999,52;
O. Em 14.05.2024, o Réu recorrente veio apresentar Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 671.º, n.º 1, com os fundamentos previstos na alínea a) do artigo 674.º, ambos do Código de Processo Civil.
P. No fundo, uma vez mais, questionam-se todos os terrenos que o Tribunal a quo pisou, sendo, por tudo isso, as Alegações do Recorrente o contrário da douta Decisão recorrida.
Q. Por consequência, em caso de admissão, sob pena de incorrermos numa repetição desnecessária e incomodativa, dá-se por reproduzida aqui a totalidade da fundamentação utilizada na Decisão recorrida e reiteradas as Contra-Alegações que antecedem.
R. Contra-Alegações: A teoria do Recorrente assenta na ideia de que a Decisão recorrida é nula por falta de fundamento, de fundamentação e por excesso de pronúncia, pugnando, assim, pela (re)”apreciacão dos fundamentos do Douto Acórdão, em matéria de Direito, no que tange ao uso da equidade e ao juízo de formulacão decisória que desaguou no montante condenatório, agravado para o recorrente em dois tercos do pedido originário (288.000,00€), contrariando o montante e fundamentos decididos em primeira instância, que o fixara em metade, também com recurso à equidade, pugnando-se por uma análise da decisão condenatória, quanto à justeza e conformidade com as normas e princípios de direito, como última ratio de obtencão de uma composicão justa do litígio.”.
S. Contrariamente ao que o Recorrente pretende transmitir, no que concerne à legítima renúncia ao direito de liquidação relativa ao valor dos móveis (conforme argumentos abundantemente expedidos e em exclusivo prejuízo do próprio), a quantificação da “remuneração” não ficou dependente do apuramento desse valor. Aliás, o dispositivo do Acórdão é claro ao dizer que o valor da liquidação relativa aos móveis “acresce ao montante total, também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual ...”,
T. Com efeito, o Recorrido renunciou ao direito de liquidação do valor que resulta da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados/armazenados.
U. Acresce que, contrariamente ao que ora pretende uma vez mais induzir o Recorrente, no que atina à inércia do Tribunal recorrido na promoção de prova complementar, no seguimento do requerimento datado de 06.03.2023, segundo o qual referiu que “inexistindo razões para que o tribunal ex oficio se substitua às partes, nomeadamente no que se possa reportar a quaisquer diligências probatórias adicionais e não requeridas, sob pena de violação do disposto no artigo 609º nº 1 do CPC. Ora, salvo o devido respeito, atenta a posição das partes, o tempo e a marcha da presente instância, não se intui sob que forma poderia ainda o tribunal considerar ordenar a produção de prova pericial, ante a reiterada posição do AA a esse propósito, o que e aqui chegados sempre mereceria expressa oposição do RR. (…) quando o seu poder jurisdicional se esgotou na prolação da sentença e neste incidente apenas poderia decidir em face da configuração dada pelo AA. no respetivo requerimento de liquidação e a seu tempo contraditado pelo RR.”.
V. Aqui chegados, inexiste matéria nova sindicada, porquanto, ao longo da marcha processual, questionaram-se praticamente todos os terrenos que os doutos Tribunais pisaram. Neste sentido, uma vez mais, as Alegações do Recorrente são o contrário do Acórdão recorrida.
W. É este o nosso universo argumentativo, formado pelas Decisões recorridas e pelas nossas diversas Contra-alegações e terminado que está, resta esperar pela costumeira Justiça.
PEDIDO: Nestes termos e fundamentos expostos, e nos melhores de Direito cujo mui douto suprimento de V.as Ex.as, Venerandos Juízes Conselheiros, se invoca,
Deve ser rejeitado o Recurso de Revista do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, por inadmissível, nos termos do art. 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;
Ou, caso assim se não entenda,
Deve ser negado provimento ao Recurso, dada a inexistência de qualquer fundamento válido que o sustente, devendo, por consequência, manter-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Como é do DIREITO.»
Cabe apreciar.
1. Admissibilidade e objeto do recurso
O acórdão recorrido julgou o recurso do réu improcedente, tendo julgado parcialmente procedente o recurso do autor e, consequentemente, agravado o montante da indemnização que havia sido liquidada pela primeira instância.
O autor, agora recorrido, sustenta a inadmissibilidade da revista, por entender que se verificaria “dupla conforme”, nos termos do artigo 671º, n.º 3 do CPC. Porém, é manifesto que não lhe assiste razão, pois a apelação da ré foi desatendida, tendo visto agravado o montante da sua condenação (como consequência da procedência da apelação do autor). A revista da ré é, portanto, admissível nos termos do artigo 671º, n.º 1 do CPC.
O objeto da revista é o de saber se a indemnização liquidada pelo acórdão recorrido deve ser reduzida (como pretende o recorrente).
2. A factualidade provada
Nos autos, constam como provados os seguintes factos:
1. No âmbito dos presentes autos foi proferida sentença, em 25.10.2020, julgando improcedentes as exceções arguidas e julgando parcialmente procedente por provada a presente ação, na qual foi decidido condenar o Réu Município de ...a pagar ao autor AA a quantia total de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral pagamento, e no mais absolver o Réu do pedido.
2. A. e Ré celebraram um contrato de doação modal por escritura pública a 17 de maio de 2006.
3. O objeto desse contrato foram os bens móveis constantes do clausulado do contrato (em anexo docs. 1 a 995).
4. O A. era dono e legítimo possuidor dos bens constantes das 567 fichas identificadas e apensas em dois dossiers rubricados pelas partes, que constituem documentação, nomeadamente livros, jornais, revistas e mapas e ainda descritos e identificados em sete cadernos que perfazem a totalidade de 833 páginas constituídas por material filatélico e numismático, medalhístico, objetos vários, revistas, jornais e outros (docs. 1 a 995).
5. Tais bens revestem na sua maioria enorme relevância histórica e elevado valor material atendendo, não só, mas também, que neles se incorpora parte do acervo hereditário de BB.
6. Parte de tal acervo, já antes da formalização da doação, se encontrava sob a custódia da Câmara Municipal de ..., ora R.
7. O contrato de doação em causa obedeceu a condições essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse um futuro museu, para o qual seria constituída uma sociedade da qual o Município deveria ser detentor da maioria do capital social, sendo que o donatário aceitou a doação com dois encargos, a criação do dito museu e, após a constituição daquela sociedade “que, em princípio, deverá iniciar a sua actividade até ao final do ano de 2007”, se obrigava “a garantir ao doador um lugar remunerado na futura sociedade, no montante anual de € 24.000,00, a pagar em duodécimos de € 2.000,00 mensais, actualizáveis anualmente por aplicação do Índice do Preço do Consumidor, sem habitação”, o que foi reciprocamente aceite pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos bens ao Réu (redação resultante da alteração ao anterior ponto 1.6 pelo Tribunal da Relação de Coimbra).
8. Até hoje, e apesar do Autor doador ter cumprido com a sua palavra, o R. não cumpriu os encargos da doação.
9. Em 17 de maio de 2006, o Autor doou 1/3 da herança indivisa de BB ao réu Município de ....
10. O Autor por diversas vezes e de formas diferentes chegou ao contacto com o Réu, para que este cumprisse os encargos, interpelando-o, acontecendo que, a mesma simplesmente tem “sacudido a água do capote”, não tendo cumprido com os encargos assumidos.
11. A Ré, não só culposamente não cumpriu com a sua parte, como também o A. não aceitara qualquer devolução do espólio atendendo que parte do mesmo está destruído e outra já nem sequer existe.
12. O espólio que compôs a doação em causa revestia interesse histórico e material, o que era do interesse do réu.
13. O Autor foi levado a aceitar as condições do contrato sempre de boa-fé, atendendo a uma preocupação altruística por um lado e por outro lado egoística, com vista à perceção das referidas contraprestações, doando um acervo composto de relevante interesse histórico visando obter e tendo como assente a obtenção de uma contrapartida séria, justa e aprazada.
14. O Autor sofreu um prejuízo calculado pela expectativa e pela certeza dos valores que se verteram no referido contrato.
15. Não se conferiu à violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação.
16. Correu termos neste juízo, ação sob os sinais de processo n.º 7384/15.4... finda e já transitada em julgado por transação homologada por sentença cuja cópia se junta.
17. Tal ação foi intentada pelo aqui A. contra o R. Município de ..., tendo em vista a resolução de um negócio que configurou a doação do “Espólio do Dr. BB”, definindo o seu objeto pela referência aos bens entregues constantes dos cadernos juntos na aludida ação e que, por não ter sido concretizado o fim a que se destinaria tal doação viria o negócio a ser resolvido por devolução dos bens, o que se operou em conformidade com a sentença.
18. O Autor, no ano de 2002, por sua conveniência pessoal uma vez que armazenava uma enorme quantidade de documentos, mapas, revistas e jornais, acordou com o então executivo transferir, a expensas do Município e para a posse deste, esses documentos, o que foi devidamente inventariado e registado em papel timbrado do Município e se encontra na posse deste.
19. A doação do quinhão hereditário nos bens imóveis, teve por base a sua incapacidade de manutenção dos mesmos e a sua degradação.
20. A Câmara Municipal de ..., apenas em reunião de 2010, se pronunciou quanto à aceitação do espólio, tendo deliberado que tal aceitação seria sem qualquer contrapartida financeira.»
3.1. Está em causa, no presente recurso, a questão de saber se o valor atribuído ao autor, em liquidação de sentença (artigo 358º e seguintes do CPC), pelo acórdão recorrido, deve ser reduzido.
Como consta dos autos, as partes foram notificadas para se pronunciarem quanto à realização de prova pericial, mas nada requereram. Consequentemente, na falta de outros elementos, a primeira instância decidiu segundo a equidade. E a segunda instância manteve esse critério decisório, embora chegando a um resultado quantitativo distinto do fixado pela primeira instância.
Acresce que, tendo o autor renunciado ao direito à liquidação respeitante ao “valor que resulta da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela escritura de 17.05.2006, se lhes tivesse sido dado o destino de catalogação e exposições museológicas no âmbito do museu a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação, e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente arquivados /armazenados”, passou a estar em causa apenas a interpretação do segmento condenatório referente ao valor “correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido museu, como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu qualquer cargo ou função correspondente.”.
A primeira instância interpretou este segmento condenatório nos seguintes termos:
«Considerando agora o valor fixado para a remuneração do autor, nos termos acordados, não tendo sido apurado o valor dos bens já catalogados e expostos, e uma vez que se apurou que o autor não exerceu qualquer função nos termos acordados, temos como justo e equitativo, à falta de outros elementos e o tipo de remuneração em causa, foi que a mesma teria que ser paga e declarada, fixar a título de indemnização metade do valor devido a título de remuneração, ou seja, no valor de € 1.000,00 (mil euros mensais).
Fixa-se assim o valor da indemnização em € 144.000,00 (cento e quarenta e quatro mil euros), tendo em conta o seu valor máximo e considerando a compensação que seria devida ao autor como contraprestação das suas funções, uma vez que nada mais foi provado.»
O acórdão recorrido, procedendo à revogação parcial da sentença, entendeu que não havia que ser descontado metade do valor máximo (como fez a 1ª instância), mas sim apenas um terço desse valor. Tal entendimento foi fundamentado nos seguintes termos:
«O Autor aceita que através da letra do contrato não se consegue alcançar nenhuma resposta relativa à natureza da sua prestação na sociedade a constituir. Por isso, diz aquele que qualquer raciocínio que se apresente será sempre hipotético.
Recorrendo à motivação de facto da sentença, o Autor conclui que o pagamento de € 2.000,00 mensais não era por causa do desempenho de funções advenientes de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços, mas sim por causa do contrato de doação (como um preço).
Embora este raciocínio tenha relativo suporte naquela motivação, suscitando uma dúvida plausível, não deixa de estar expresso que o pagamento do Autor sempre se faria com enquadramento legal na sociedade a constituir e em função de uma sua prestação laboral. (Noutros termos da dita motivação de facto, chega a dizer-se que o pagamento seria “equivalente a uma pensão vitalícia”.)
Veja-se que as partes escolheram a expressão “lugar remunerado na futura sociedade”.
Efetivamente, as partes não esclarecem o enquadramento da “remuneração”.
Ela está ligada a uma prestação do Autor na sociedade que não foi constituída.
Sendo o mesmo sobrinho de BB e o doador do “espólio”, admite-se que aquele pudesse ter funções explicativas da exposição.
Admitindo que a “remuneração” estava ligada também à função e dependente do enquadramento legal na sociedade a constituir, ao contrário do defendido pelo Autor, não podemos assegurar que o pagamento não viesse a ser feito segundo um contrato de prestação de serviços.
Podendo ser assim e respeitando o limite que o acórdão impõe, na falta de elementos, faz sentido que se considere um desconto equitativo.
Este desconto deverá considerar:
Potenciais impostos e contribuições obrigatórias para rendimentos auferidos;
A maior disponibilidade para o Autor decorrente do facto de não ter trabalhado.
Mas devemos atentar que o trabalho não foi prestado por culpa do Réu, quem não cumpriu o encargo da formalização do museu.
Neste contexto, o desconto de metade, feito na sentença recorrida, parece-nos excessivo, sendo mais cauteloso o desconto de um terço (um quarto para impostos e contribuições, o restante para a menor onerosidade de que beneficiou o Autor).
Assim, 2/3 de 2.000 = 1.333,33€ x 12 x 12 = 191.999,52€.»
3.2. O segmento decisório carenciado de liquidação enuncia um critério de determinação do montante que o réu deverá pagar ao autor, mas não encerra, em si mesmo, uma completude literal que permita aplicar tal critério apenas por meio de objetivos cálculos aritméticos. Na medida em que o referido critério faz apelo a variáveis que não se chegaram a verificar (construção do museu e desempenho de funções – não definidas –pelo autor), a realização normativa do direito, no caso concreto, implica necessariamente o apelo a juízos hipotéticos que, por via de uma reflexão tipológica, permitam encontrar um “sucedâneo” do projeto contratual falhado, que possa ser objetivamente sentido como um resultado justo, ou seja, como uma solução não desequilibrada, face ao tipo de convenção que as partes celebraram.
A realização do direito no caso concreto não se basta, portanto, com a explicitação interpretativa de um dos sentidos possíveis do texto do enunciado prescritivo; antes, exige uma interpretação densificadora e conjunta das variáveis nele referidas para que se alcance o resultado previsto pela decisão a liquidar.
Na ausência de concretos elementos probatórios que auxiliem a concretização dos parâmetros quantificadores do montante a liquidar, a revelação do direito no caso concreto terá de assentar na equidade, como bem entenderam as instâncias, por ser esse o critério residual, previsto no artigo 566º, n.º 3 do CC, sempre que esteja em causa a determinação de uma indemnização em dinheiro.
3.3. As partes celebraram um contrato de doação de bens móveis, pelo qual o autor, enquanto herdeiro de BB, doou ao Município de ... parte do espólio herdado.
O contrato de doação (regulado no artigo 940.º e seguintes do CC) tem na sua essência uma génese altruística, revelada no espírito de liberalidade, como consta da própria definição legal, sendo, por natureza, um contrato gratuito, no sentido de que o doador nada recebe em troca. Todavia, esta caraterística pode ser mitigada, quando se trate de uma doação modal (artigo 963º e seguintes do CC), podendo o encargo a assumir pelo donatário beneficiar o doador ou terceiros, embora não deva ultrapassar o valor dos bens doados (artigo 963.º, n.º 2 do CC).
O caso concreto é sui generis, pois o cumprimento do encargo estabelecido implicava não apenas a realização de prestações futuras pelo donatário (nomeadamente, a construção de um museu onde seriam expostos os bens doados), mas também pelo doador (desempenho de determinadas funções na sociedade que seria detentora do museu).
Como o museu não foi construído, não foi proporcionado ao autor a possibilidade de desempenhar as expectáveis funções remuneradas respeitantes a esse museu. Mas o autor, por sua vez, também não teve a obrigação de as desempenhar. Assim, ao não exercer aquelas funções, o autor teve total disponibilidade de tempo para poder exercer qualquer outra profissão remunerada, que não se sabe se exerceu ou não, porque tal informação não consta dos autos. Também não consta dos autos que, por ter elevada expetativa de exercer essa atividade, o autor tivesse deixado de exercer qualquer outra atividade remunerada durante todo o período a que respeita a compensação a calcular.
3.4. As referidas prestações que as partes não realizaram são, portanto, as duas variáveis que integram o critério concretizador da decisão a liquidar.
Deve notar-se que nessa decisão (para este objetivo quantificador) não é feita qualquer referência ao facto de o incumprimento ser imputável ao réu, pelo que, diferentemente do que se entendeu no acórdão recorrido, esse fator não assume, nesta fase, relevo específico na determinação da quantificação do montante indemnizatório (já relevou, a montante, enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar).
O acórdão recorrido, ao aumentar o valor da liquidação que havia sido definido pela primeira instância, atendeu, de forma dominante, a uma daquelas variáveis, ou seja, ao montante que o autor teria recebido se tivesse exercido as funções previstas e procedeu ao desconto de um terço desse valor. Entendeu que a remuneração convencionada respeitaria a um valor ilíquido, pelo que esse desconto corresponderia a impostos e contribuições que o autor não receberia. Todavia, não tomou em conta (pelo menos, em igual medida) o segundo fator referido na decisão a liquidar, ou seja, o facto de o autor não ter exercido qualquer cargo ou função correspondente ao salário convencionado, pois se tivesse considerado este elemento na definição da quantia a liquidar, não teria descontado apenas o valor respeitante a impostos e contribuições que o autor teria de pagar.
Este fator, por ser elemento integrante do critério delineado pela decisão a liquidar, não pode ser desconsiderado na formulação de um juízo equitativo. Efetivamente, como já referido, ao não desempenhar as projetadas funções respeitantes ao museu, o autor dispôs desse tempo para poder exercer qualquer outra atividade.
Assim, a decisão da primeira instância, que estabeleceu o montante indemnizatório em metade daquilo que o autor teria recebido se tivesse desempenhado as projetadas funções, é a que se afigura mais consentânea com a aplicação do critério da equidade, tendo em conta, por um lado, o modo como a sentença a liquidar formulou o critério a aplicar e, por outro lado, as especificidades do caso concreto.
3.5. Deve ainda ter-se presente, na interpretação do segmento decisório que estabeleceu a obrigação de indemnizar, as regras que a lei prevê para os denominados “casos duvidosos”, previstas no artigo 237º do CC. Dispõe este artigo:
«Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio de prestações.»
No caso concreto, embora as partes tenham celebrado uma doação (negócio gratuito por excelência), a dimensão onerosa dos encargos convencionados acaba por mitigar a natureza da convenção-base havida entre as partes. De todo o modo, como decorre do referido artigo 237º do CC, mesmo tratando-se de prestações onerosas, o critério interpretativo é o do equilíbrio entre essas prestações. Assim, sendo certo que o réu não cumpriu os encargos que teriam proporcionado ao autor a possibilidade de receber 2.000 Euros mensais, pelo prazo máximo de 12 anos, é também certo que o autor não teve de realizar as prestações a que estaria obrigado para poder receber essa remuneração mensal, sendo, portanto, equilibrado que o valor esperado pelo autor seja reduzido para metade, como se entendeu na decisão da primeira instância.
Aliás, nas conclusões das suas alegações de revista o réu-recorrente começa por aceitar esse valor como montante máximo a pagar, embora entenda que sobre ele ainda deviam incidir descontos para contribuições e também que, depois de 2015, o autor já sabia que o museu não iria ser construído, pelo que não deveria ser contabilizado o período entre 2015 e 2019.
Quanto a esta última afirmação, trata-se de um argumento irrelevante, já que tal não consta da factualidade provada, e ainda que o autor pudesse saber, desde 2015, que o museu não iria ser construído, a decisão a liquidar é clara ao indicar que o período a considerar para efeitos de cálculo da indemnização se estende até 2019.
Quanto à pretensão de que sobre o valor de metade da remuneração se procedesse a um desconto para efeitos de impostos ou contribuições, não consta da factualidade provada que a remuneração a auferir pelo autor fosse líquida ou ilíquida, tal como não é possível saber se a prestação a realizar pelo autor corresponderia a um contrato de trabalho ou a uma prestação de serviços, pelo que qualquer desconto para esse efeito seria puramente arbitrário por não ter a mínima base factual.
Custas na revista pelo autor-recorrido.
Lisboa, 14.01.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Luís Espírito Santo
Luís Correia de Mendonça