A remuneração variável do administrador da insolvência, em caso de liquidação da massa insolvente, está sujeita ao limite de 100.000 Euros, previsto no n.º 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial. Tal limite aplica-se ao cálculo da remuneração variável no seu todo, por interpretação conjugada do n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7 desse artigo, ou seja, incluindo tanto a parcela que resulta da aplicação do n.º 6, como a majoração (prevista no n.º 7).
Recorrente: AA
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. AA, administradora da insolvência da empresa “Mediçor – Sociedade de Materiais de Construção (declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 22.08.2016), requereu (em 15.05.2024) a aprovação da remuneração variável num total de 299.297,40 € (acrescida de IVA, no montante de 47.887,58 €), não tendo considerado aplicável à parcela correspondente à majoração (no valor de €199.647,40), prevista no art.º 23, n.º 7 do EAJ, o limite de €100.000 estabelecido no n.º 10 desse artigo. Tendo aplicado tal limite apenas à remuneração prevista no n.º 4, alínea b) do referido artigo.
2. Notificados os interessados para se pronunciarem quanto aos honorários peticionados, vieram os credores “G..., S.A.”, “S..., S.A.”, “P..., Unipessoal, Lda.” e “Novo Banco, S.A.”, requerer a reformulação da proposta de remuneração apresentada pela administradora da insolvência.
3. Sobre a matéria, a primeira instância proferiu decisão que se sintetiza nos seguintes termos:
«(…) A interpretação da Sra. Administradora, no que toca a este particular, reside na circunstância de o limite do n.º 10 do artigo acima transcrito não se aplica à majoração a que se reporta o n.º 7… mas apenas à remuneração variável calculada nos termos do n.º 4, tendo os credores reclamantes posição contrária, naturalmente.
A questão que nos ocupa não me parece que seja de difícil solução e isto porque, naturalmente, a regra travão do n.º 10 deve abranger toda a remuneração variável…na qual se integra a majoração já que ela é calculada segundo os mesmos valores.
De qualquer forma, ainda que se entendesse que a regra do n.º 10 apenas se aplicava a remuneração calculada nos termos do n.º 4, logo vemos que a remuneração reclamada pela Sr. Administradora com base nesse pressuposto haveria de ter aquele limite… coisa que não resulta do seu cálculo.
De todo o modo, a questão está estudada e resolvida na jurisprudência, designadamente pelo Ac. TRL de 20.12.2022, proferido no âmbito do processo com o n.º 22770/19.2T8LSB-F.L1-1 (…).
Aqui chegados, perfilhando na íntegra o que se aponta no acórdão a que vimos fazendo referência, procedem as reclamações e, nesse conspecto, fixo a remuneração variável da Sra. Administradora em €100.000,00 nos termos do n.º 10 do art.º 23º da lei 22/2013, de 26 de fevereiro, a que acresce o valor de IVA calculado nos termos legais.
Notifique, sendo a Sra. Administrador para reformular o mapa do rateio em conformidade (…)»
4. Discordando dessa decisão, a administradora da insolvência interpôs recurso de apelação, tendo o TRL julgado o recurso improcedente e confirmado a decisão recorrida.
5. Novamente inconformada a administradora da insolvência interpôs o presente recurso de revista, com base no artigo 14.º do CIRE, entendendo existir oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão do TRG, de 07.12.2023 (que, por lapso, refere ser de 2024), proferido no processo n.º 2898/14.6TBBRG-W.G1, que indica como acórdão fundamento.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. No dia 01.10.2024, os Venerandos Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa proferiram Acórdão que, em suma, considerou que “1- O limite previsto no art.º 23º, n.º 10 do EAJ deve ser entendido como abarcando, no seu âmbito de aplicação, a globalidade da remuneração variável quando calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, nela se incluindo a majoração prevista no n.º 7.”
2. Ora, a Recorrente entende que tal decisão é ilegal por violação dos n.ºs 7 do artigo 23.º do EAJ e art. 60.º, n.º 1 do CIRE, porquanto subtrai à Recorrente o direito a ser remunerada por via da majoração entendida como parcela integrante da Remuneração Variável.
3. O despacho em crise incorre igualmente num erro de interpretação quanto à fórmula adotada para o cálculo do valor global da remuneração variável devido ao Administrador Judicial, previsto no artigo 23.º do EAJ, atribuindo-lhe um sentido diverso daquele que resulta dos métodos de cálculo da remuneração variável constantes na referida norma.
4. Por outro lado, o entendimento de que o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ se aplica à globalidade da remuneração variável é revestido de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade e da igualdade (formal na sua vertente negativa) previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
5. Mas também do princípio da confiança previsto no artigo 2.º da CRP.
6. Ademais, a douta decisão incorre também num erro de interpretação quanto à fórmula adotada para o cálculo do valor global da remuneração variável devido ao Administrador Judicial, previsto no artigo 23.º do EAJ, atribuindo-lhe um sentido diverso daquele que resulta dos métodos de cálculo da remuneração variável atribuível ao Administradores Judiciais.
7. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2023, de 21 de novembro uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: «A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência»
8. No presente caso estamos perante um incidente processual que corre termos num processo de insolvência pelo que, de acordo com a recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, para além das regras gerais de admissibilidade de recurso previstas nos artigos 627.º e seguintes do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 17.º do CIRE, é aplicável ao presente recurso a limitação prevista no n.º 1 do artigo 14.º do CIRE.
9. A decisão em crise prejudica a Recorrente no valor de 199.647,40 € (cento e noventa e nove mil, seiscentos e quarente e sete euros e quarenta cêntimos),
10. Pelo que se trata de uma decisão desfavorável à Apelante em valor superior a metade da alçada deste Venerando Tribunal (artigo 629.º do Código de Processo Civil).
11. O n.º 1 artigo 14.º do CIRE estabelece a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se ficar demonstrado que o Acórdão de que se pretende recorrer se encontra em oposição com outro, proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.
12. In casu está em causa uma questão cuja relevância jurídica é necessária para uma melhor aplicação do direito.
13. As funções exercidas pelos Administradores Judiciais requerem uma responsabilidade acrescida inerente às obrigações assumidas enquanto servidores da justiça.
14. Pelo que é de importância acrescida clarificar as regras relativas à sua remuneração por forma a não frustrar as suas legitimas expetativas.
15. A decisão em crise encontra clara divergência com a decisão proferida em sede do referido Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, com o n.º de processo 2898/14.6TBBRG-W.G1 datado de 07.12.2023.
16. Decisões que abordam a mesma questão fundamental de Direito – cálculo da remuneração variável do Administrador de Insolvência prevista no artigo 23º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial).
17. E dentro de um quadro normativo-legal não divergente – ambas aplicam o artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 (Estatuto do Administrador Judicial).
18. Nos termos dos arts. 22.º do EAJ e do art. 60.º, n.º 1 do CIRE, o Administrador Judicial tem o direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas, que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.
19. A componente inicial da remuneração variável calculada nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ foi calculada em 205 447,40 €.
20. No entanto, limitada a 100.000,00 € por força da aplicação do n.º 10 do artigo 23.º do referido artigo.
21. A remessa do n.º 10 do artigo 23.º do EAJ para a alínea b) do n.º 4 do mesmo diploma, permite extrair a conclusão de que o legislador pretendeu que o limite previsto no n.º 10 do artigo 23 do EAJ se aplicasse aos casos em que há liquidação da massa insolvente, por contraposição à hipótese de recuperação, prevista na alínea a) do n.º 4.
22. Caso fosse intenção do legislador limitar o montante a receber por outra componente remuneratória que não a prevista na referida alínea b) (nomeadamente, a majoração) bastava que o fizesse constar na própria letra do n.º 10.
23. Esta majoração é calculada em função da aplicação de um coeficiente de 5% em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos,
24. Assim, a Remuneração Variável é composta por duas componentes remuneratórias distintas.
25. A Remuneração Variável propriamente dita (alínea b do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ) calculada por aplicação do coeficiente de 5% em função do resultado da liquidação da Massa Insolvente (n.º 6 do artigo 23.º do EAJ).
26. E a majoração, calculada sobre o montante disponível para a satisfação dos créditos montante dos créditos satisfeitos – (n.º 7 do artigo 23.º do EAJ).
27. Ora, aplicar o limite previsto no n.º 10 indiscriminadamente, tanto à primeira componente da remuneração variável (prevista no n.º 6 do artigo 23.º do EAJ) como à majoração (prevista no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ),
28. É reconduzir o conceito de remuneração variável a uma remuneração unitária.
29. O que, salvo o devido respeito, não é a interpretação que resulta da letra da lei.
30. Reconhece-se a necessidade de contenção na distribuição de proveitos, nomeadamente em caso do processo de insolvência que, regra geral, não geram ganhos suficientes para a satisfação integral de todos os credores.
31. No entanto, tal contenção já se encontra garantida tanto pelo limite imposto no n.º 10 à primeira componente da remuneração variável,
32. Como pelos fatores que resultam do cálculo a considerar para efeitos de majoração, isto é, o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
33. Pelo que salvo melhor entendimento, não é rigoroso concluir que os interesses dos senhores credores não são considerados.
34. Tanto são considerados, que são equacionados para efeitos de determinação do valor remuneratório a receber pelos Administradores de Insolvência: a) a componente inicial pela existência de um limite legal de 100.000,00€; b) a majoração pelo grau de satisfação de que os senhores credores são titulares no processo de insolvência e que resultam da eficiência empregue pelo Administrador de Insolvência nas operações de liquidação.
35. Os critérios de calculo de cada componente encontram-se expressamente previstos na lei.
36. E que serão devidas ao Administrador Judicial, desde que se verifiquem os respetivos requisitos legais de atribuição.
37. A majoração constitui a recompensa pelo esforço e eficiência empregues pelo Administrador de Insolvência nas operações de liquidação da Massa Insolvente.
38. Por outro lado, sempre se dirá que uma eventual necessidade de contenção, a existir, sempre se encontra salvaguardada pelo n.º 8 do artigo 23.º do EAJ quando refere que “Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.”
39. Trata-se assim, de uma faculdade atribuída ao julgador de – esta sim – de reduzir a globalidade da remuneração variável.
40. Decisão essa que se encontra sempre sujeita ao dever de fundamentação previsto no artigo 154.º do Código de Processo Civil.
41. Da norma prevista no nº 10 e a referência expressa à alínea b) do nº 4 do mesmo artigo – e apenas e tão-só a essa mesma alínea - salvo o devido respeito, apenas pode resultar uma conclusão: o limite previsto no n.º 10 do referido artigo se aplica apenas à primeira parte da remuneração variável, isto é, à primeira componente da remuneração variável – pois é essa que se calcula na norma para a qual remete.
42. A aplicação do limite do n.º 10 apenas se refere à remuneração variável calculada em função do resultado da liquidação da massa insolvente (remuneração variável propriamente dita)
43. Não fazendo qualquer menção ao n.º 7 do artigo 23.º do EAJ.
44. Pelo que carece de qualquer sentido lógico-sistemático aplicar um limite que a norma não reclama, nem supõe a sua aplicação.
45. O n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil dispõe que a “(…) interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (…)”.
46. Isto é, quando o legislador diz, na letra da lei, menos do que objetivamente quereria ter dito, o intérprete deve corretivamente alargar o sentido da disposição legislativa de modo a abranger outras situações que permitam garantir fidelidade ao referido pensamento.
47. O que se passa in casu, é o oposto: o texto da norma é objetivo, nomeadamente, quanto aos seus elementos subjetivos e objetivos.
48. É clara e objetiva.
49. E não reclama qualquer integração.
50. Assim, salvo o devido respeito, apenas um exercício arbitrário, sem critério legal é que pode fundamentar a aplicação de um limite não previsto
51. Ora, a decisão em crise sustentar a sua fundamentação em elementos “aparentes” para concluir os demais elementos interpretativos.
52. Sem fundamento legal.
53. Desconsiderando o elemento literal.
54. Em prol de “elementos sistemáticos”.
55. Salvo o devido respeito, mais não está que a ir para além do que a própria interpretação literal que a norma exige e impõe,
56. Entrando num campo da discricionariedade.
57. Conforme refere o Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 90-186-2, de 12-09-1990 “A teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do principio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não podendo o juiz controlar se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.”.
58. Caso a intenção do legislador fosse aplicar do limite de 100.000,00€ à totalidade da remuneração variável, certamente que o diria de forma expressa nos mesmos termos em que o refere n.º 8 do referido artigo.
59. No entanto, não o fez.
60. E não o fez porque (com alta probabilidade) não o quis.
61. Salvo melhor entendimento, a probabilidade de não ter pretendido impor qualquer limite é maior do que ter assumido que tal limite se encontrava previsto porque integrado num qualquer cálculo sistemático que, mais uma vez, entendemos não existir.
62. A norma prevista no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ é clara ao remeter apenas para a componente inicial da remuneração variável calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 e n.º 6 do artigo 23.º do EAJ.
63. A decisão em crise mais não faz do que eliminar o incentivo atribuível aos Administradores Judiciais por conta do exercício diligente das suas funções.
64. Desconsiderando fatores tido como essenciais, nomeadamente, os resultados obtidos, a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções, a dificuldade e a complexidade do processo.
65. Para além do mais, entender aquele normativo de tal maneira, faz com que a referência legal a uma majoração não tenha, afinal, qualquer conteúdo, não existindo de todo.
66. A decisão recorrida suprime o próprio conceito legal de majoração.
67. Elimina uma realidade que a lei prevê de forma expressa.
68. E que não se encontra afastada de forma alguma.
69. O que para além de constituir um claro desincentivo à maximização da liquidação das Massas Insolventes.
70. Transmite a ideia de que é absolutamente indiferente determinados fatores que cremos ser valorizados pelo legislador, nomeadamente, a eficiência, a celeridade e a diligência empregue pelo Administrador Judicial no âmbito das diligências de liquidação de um processo de insolvência.
71. Tal resulta do texto da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, transposta pela Lei n.º 9/2022, referindo-se à supervisão e remuneração do administrador, estabelece no n.º 4 do artigo 27º que: «Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»
72. E da própria letra do n.º 10 do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.
73. Para além de constituir uma clara violação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, que impõe que o valor de 5% aplicado ao resultado da liquidação seja majorado “(…) em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos”.
74. O que na prática se traduz numa supressão ao pagamento da componente de parte de uma remuneração legalmente previsto com fundamento numa alegada interpretação “extensiva” de uma norma que não a reclama.
75. Ainda que se admita, que a letra do n.º 10 do artigo 23.º do EAJ não é suficientemente clara e precisa - o que por mera hipótese académica se considera – salvo o devido respeito, o limite aí previsto sempre seria aplicável a cada uma das componentes da remuneração variável individualmente considerada (remuneração variável propriamente dita e majoração).
76. E nunca à remuneração variável global porquanto estamos perante duas componentes de remuneração distintas.
77. Sujeitas a métodos de calculo dissemelhantes.
78. Com divergentes fatores de ponderação.
79. E que consubstanciam componentes remuneratórias independentes entre si.
80. Pelo que, caso se entenda existir uma lacuna da lei no que diz respeito ao majoração, esta lacuna deveria ser integrada, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, por recurso a analogia, aplicando-se a cada uma das componentes da remuneração variável, o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ.
81. Nos termos do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.
82. Este princípio visa, no fundo, assegurar o tratamento de modo idêntico daquilo que é idêntico e de modo desigual daquilo que é diferente ou que não é idêntico.
83. Do artigo 50.º da Portaria n.º 282/2013 de 29 de agosto, conclui-se que os senhores Agentes de Execução auferem dois tipos de remuneração: a remuneração propriamente dita (e que inclui a fase de adiantamento de honorários) e uma remuneração adicional.
84. Remuneração adicional essa que não está sujeita a qualquer limite.
85. Pese embora, o exercício das funções de Agente de Execução e de Administrador Judicial se encontrem sujeitos a regimes legais de remuneração distintos.
86. A verdade é que consubstanciam cargos idênticos, são ambos considerados Servidores da Justiça, exercem diligências com recurso a meios coercivos com vista ao ressarcimento dos credores da forma mais profícua possível.
87. Funções que a própria lei equipara nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.
88. Ora, o princípio da igualdade postulado pelo artigo 13.º da Lei Fundamental reclama a dação de igual ou idêntica solução legal para situações iguais ou idênticas, reclamando, do mesmo passo, a adoção de soluções diversas quando as situações a contemplar sejam elas mesma dissonantes.
89. Nenhum fundamento material bastante se encontra para limitar a remuneração variável do Administrador de Insolvência.
90. E não limitar o regime remuneratório dos Senhores Agentes de Execução.
91. Assim, o entendimento segundo o qual a remuneração variável (componente inicial e majoração) devida aos Administradores de Insolvência se encontra limitada a 100.000,00€ por forma da aplicação do n.º 10 do artigo 23.º traduz-se num tratamento desigual da remuneração pelo exercício de funções equiparadas entre aqueles e o regime remuneratório dos Senhores Agentes de Execução.
92. O que, salvo melhor entendimento, se traduz num entendimento inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consignados no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, e nos melhores de direito que V.ªs Ex.ªs entendam suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ordenar a revogação do douto Despacho de 12.07.2024 (Ref.ª 57608734), substituindo-o por outro que fixe o montante a receber pela Recorrente a título de Remuneração Variável no montante global de 299.297,40 € acrescido de IVA à taxa legal de 23% conforme calculado no Requerimento de 15.05.2024 (Ref.ª 5727080) submetido no processo de insolvência n.º 1663/15.8T8PDL que corre termos no Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada – Juiz 2. Assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!»
6. O Ministério Publico (enquanto credor no processo de insolvência) apresentou resposta, que sintetizou nos termos que se transcrevem:
«1. O presente recurso incide sobre a matéria da fixação da remuneração variável do Administrador da Insolvência, a qual está regulada no artigo 60.º do CIRE e artigos 22.º e 23.º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) – Lei 22/2013 de 26 de fevereiro, e é tramitada nos autos principais do processo de insolvência.
2. Pelo que o mesmo é regulado, indubitavelmente, pela regra do artigo 14.º, n.º 1 do CIRE e não pelo artigo 672.º do CPC.
3. Nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do CIRE, os Tribunais da Relação constituem a última instância dos processos de insolvência, só sendo admissível o acesso ao 3.º grau de jurisdição para fixação de orientação de jurisprudência com base na oposição de julgados.
4. A recorrente fundamenta o seu recurso na oposição de julgados e junta, para o efeito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7.12.2023, proferido no âmbito do recurso de Apelação n.º 2898/14.6TBBTG-W.G1., o qual também pode ser consultado em www.dgsi.pt, onde está publicado e sumariado.
5. Invoca a recorrente que ambos os acórdãos (o Acórdão fundamento e o Acórdão recorrido), se debruçaram sobre a mesma questão de direito, que decidem de forma divergente, a saber, a interpretação a dar ao n.º 10 do artigo 23.º do EAJ quanto determina que “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).”
6. O objeto sobre o qual o Acórdão recorrido foi chamado a pronunciar-se foi:
a) a definição do âmbito de aplicação do teto máximo de 100.000,00 € previsto no artigo 23º, n.º 10 do EAJ e suas implicações na fixação da remuneração variável do Administrador de Insolvência;
b) a eventual ofensa a direitos constitucionalmente garantidos decorrente da interpretação que a decisão recorrida faz do citado art.º 23º, n.º 10 do EAJ.
7. Já no Acórdão fundamento a questão a ser dirimida prendia-se com a remuneração variável a atribuir ao Administrador cessante num caso de substituição do Administrador da Insolvência, designadamente os critérios de repartição da remuneração variável entre ambos os administradores.
8. A questão da aplicação do artigo 23.º, n.º 10 do EAJ e do teto dos 100 000,00€ foi apenas tratada no Acórdão fundamento quando, na sequência da resolução do objeto do recurso, passou a calcular o valor da remuneração variável devida ao recorrente, realizando as operações sequenciais previstas no artigo 23.º n.ºs 4, 6, 7, 8 e 10 do EAJ, de onde se depreende, efetivamente, que aquele acórdão teve um entendimento divergente do acórdão aqui recorrido acerca da interpretação do artigo 23.º, n.º 10 do EAJ.
9. Contudo, aquele tribunal não fundamentou sequer a sua opção por tal interpretação visto que esse tema não era o objeto do recurso.
10. Cremos, por isso, que não podemos afirmar estar perante uma oposição de Julgados para os efeitos do artigo 14.º, n.º 1 do CIRE, uma vez que as situações versadas em ambos os acórdãos são diferentes, ou seja, os Acórdãos fundamento e recorrido não se debruçaram sobre o mesmo tema.
11. Deverá, por isso, o presente recurso ser rejeitado, por não se verificarem os requisitos do artigo 14.º, n.º 1 do CIRE.
12. Mesmo que assim não se entenda, deverá o recurso ser julgado improcedente. Efetivamente:
13. Como tem vindo a ser decidido de forma quase unânime pela jurisprudência das Relações e do STJ, tanto o elemento sistemático, como o literal conduzem à interpretação do artigo 23.º n.º 10 do EAJ como estabelecendo um limite absoluto de 100 000,00€ na remuneração do AJ.
14. O cálculo da remuneração variável do administrador da insolvência nomeado pelo juiz obedece a duas operações sequenciais: 1) a primeira operação está prevista nos números 4, 5, 6 e 10 do art.º 23.º do EAJ; 2) a segunda operação (majoração), está prevista no n.º 7 do mesmo artigo.
15. No n.º 8 do art.º 23.º do EAJ o legislador introduziu um mecanismo “corretivo” a cargo do tribunal, um travão judicial (admite-se a possibilidade de o juiz determinar uma remuneração inferior à que resulta dos critérios legais sempre que o valor encontrado for superior a 50.000 euros, se esse valor for desproporcionado em face da atividade desenvolvida pelo administrador, do resultado obtido e da complexidade do processo).
16. E o n.º 10 do mesmo art. 23.º do EAJ introduz um travão legal ao ditar que: “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro)”.
17. O legislador usa o termo “remuneração” e não, por exemplo, o valor calculado nos termos da alínea b) do n.º 4, o que traduz a ideia de que se está a referir à remuneração variável em caso de liquidação. E a remuneração variável em caso de liquidação é uma operação que inclui sempre a majoração.
18. Acresce que esta norma está incluída no final do preceito, depois da previsão das várias operações de cálculo, incluindo a majoração (n.º 7) e da regra que permite ao juiz ajustar o valor total da remuneração se for superior a 50.000€ por aplicação das referidas operações (n.º 8). O que nos leva a concluir que o legislador pretendeu introduzir, por via legislativa, um limite absoluto ao valor da remuneração variável.
19. Como se refere no Ac. do STJ de 1.10.2024 (processo 14878/16.2T8LSB-G-L.1.S.1), na remuneração variável do administrador, o legislador não se limitou a fornecer um critério de cálculo aritmético, temperando o resultado desse critério com “a introdução de limites, quer diretos quer de concretização judicial, que espelham uma procura de equilíbrio entre uma remuneração condigna e uma ideia de contenção na distribuição de recursos que, pela natureza insolvencial do processo, não serão, em regra, suficientes para a satisfação integral dos credores.”
20. Não se verifica, com a mencionada interpretação, qualquer violação do princípio constitucional da igualdade quando em comparação com os agentes de execução, porque se trata de profissionais distintos, com absoluta diversidade de regimes no que respeita ao regime remuneratório.
21. Nem a violação do principio constitucional da confiança e da segurança, porque não se alcança como poderia a Senhora Administradora invocar ter uma fundada expetativa de auferir o valor da remuneração variável que lhe foi negado, se sabia perfeitamente que o juiz sempre poderia, por aplicação do artigo 23.º, n.º 8 do EAJ, reduzir a globalidade da remuneração variável por ser superior a 50 000,00€.
22. Sendo certo que o Tribunal Constitucional, tem vindo a entender que o princípio da confiança só é violado quando uma norma afeta de forma inadmissível, arbitraria ou demasiado onerosos direitos ou expetativas legitimas fundadas dos cidadãos o que não nos parece ser o caso dos autos.
23. Também não se verifica a violação da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, na medida em que a mesma não estabelece qualquer norma de aplicação direta no que respeita à remuneração dos administradores judiciais, antes deixa essa matéria para os Estados-Membros, que estão apenas obrigados a assegurar que as regras que instituem são compatíveis com o objetivo de resolução eficiente dos processos.
Em face ao exposto, e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão:
a) deverá o recurso de revista interposto pelo Recorrente ser rejeitado. Caso assim não se entenda:
b) deverá ser-lhe negado provimento, mantendo-se na íntegra o decidido no acórdão recorrido, com o que se fará JUSTIÇA!»
Cabe apreciar.
1. Admissibilidade e objeto do recurso
O acórdão recorrido, ao pronunciar-se sobre a remuneração variável requerida pela administradora da insolvência, versa sobre uma decisão tomada em incidente processado nos autos da insolvência, pelo que tem aplicação o regime de recurso previsto no artigo 14º do CIRE, de acordo com a jurisprudência do AUJ n.º 13/2023 (publicado no DR, 1ª Série, em 21.11.2023).
Determina o art. 14º, n.º 1 do CIRE:
«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»
A recorrente entende que o acórdão recorrido, ao decidir que o limite previsto no n.º 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial se aplica à totalidade da remuneração variável, está em oposição com o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2898/14.6TBBRG-W.G1, de 07.12.2023 (já transitado em julgado), que junta como acórdão fundamento.
Apesar de o acórdão recorrido e de o acórdão fundamento não terem objetos rigorosamente idênticos, no que respeita à questão do âmbito de aplicação do artigo 23º n.º 10 do EAJ as interpretações dessa norma e as consequentes decisões foram diversas, pelo que a oposição entre os dois arestos existe.
Efetivamente, o acórdão fundamento (para além de outras questões que não relevam no âmbito dos presentes autos) fixou a remuneração variável do administrador da insolvência (nomeado pelo juiz e destituído pela assembleia de credores), em 170.000 Euros.
O acórdão fundamento (particularmente entre as suas páginas 34 a 39) fundamentou o cálculo da remuneração variável do administrador da insolvência distinguindo duas componentes: aquela a que se referem os números 4 e 6 do artigo 23º do EAJ; e aquela a que se refere o n.º 7, ou seja, a majoração. E aplicou o limite previsto no n.º 10 apenas à primeira destas parcelas; mas não ao valor da majoração.
No caso decidido pelo acórdão fundamento, a soma das duas referidas parcelas ascendia a mais de 285 mil Euros. Porém, por aplicação dos critérios referidos no n.º 8 do artigo 23º, o tribunal decidiu reduzir o montante final para 170.000 Euros. É, assim, claro que, na parte em que o acórdão fundamento se pronuncia sobre a remuneração variável do administrador, e especificamente sobre o âmbito do n.º 10 do artigo 23º, faz uma interpretação deste regime distinta daquela que é feita no acórdão recorrido.
Constatada esta divergência decisória, no âmbito do mesmo quadro legislativo, e numa questão sobre a qual não existe jurisprudência uniformizada, justifica-se a intervenção do STJ, nos termos previstos no artigo 14º do CIRE, pelo que se admite a revista.
Sendo o objeto da revista delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (art.º 635.º, n.º 4 do CPC), são as seguintes as questões a decidir: saber se o acórdão recorrido fez errada aplicação do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, e especificamente do n.º 10 deste artigo quando entendeu que esta norma estabelece um limite global de 100.000 Euros para a remuneração variável do administrador da insolvência; e saber se a interpretação sustentada pelo acórdão recorrido violou direitos constitucionalmente garantidos da recorrente, particularmente o princípio da igualdade (art.º 13º da CRP) e o princípio da confiança (art.º 2.º da CRP).
2. Fundamentos de facto
A factualidade relevante para o conhecimento do objeto do recurso é a que já consta do relatório supra exposto.
3. O direito aplicável
3.1. Alega a recorrente que o acórdão recorrido fez errada aplicação do artigo 23.º do EAJ, e particularmente do seu n.º 10, ao entender que o limite de €100.000, aí previsto, se aplica à totalidade da remuneração variável devida aos administradores de insolvência. No entendimento da recorrente, esse limite não deveria ser aplicado à parcela remuneratória correspondente à majoração constante do n.º 7 do referido artigo 23.º, por tal solução não resultar da letra da lei.
Pode, desde já, afirmar-se que não lhe assiste razão e que o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito, em conformidade com a jurisprudência do STJ sobre a questão.
Efetivamente, a jurisprudência da 6ª Secção do STJ (à qual cabe a matéria da insolvência) tem decidido, de forma unânime, no sentido que foi seguido pelo acórdão recorrido.
Veja-se o que se sumariou nas seguintes decisões:
- Ac. do STJ, de 01.10.2024 (relatora Maria Olinda Garcia), no processo n.º 14878/16.2T8LSB-G.L1.S1:
«O n.º 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, que estabelece um limite de 100.000 Euros para a remuneração variável do administrador da insolvência em caso de liquidação da massa insolvente, aplica-se ao cálculo dessa remuneração no seu todo, por interpretação conjugada do n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7 desse artigo, ou seja, incluindo tanto a parcela que resulta da aplicação do n.º 6, como a majoração (prevista no n.º 7).»
- Ac. do STJ, de 17.12.2024 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo n.º 380/12.5TYNGN-N.P1.S1:
«O limite de € 100.000,00, tal como se encontra fixado no artigo 23º, n.º 10, do Estatuto de Administrador Judicial, expressa o tecto máximo final aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da remuneração sem a majoração que seja devida.»
3.2. No referido acórdão de 01.10.2024 (proferido no proc. n.º 14878/16.2T8LSB-G.L1.S1), o STJ pronunciou-se, pela primeira vez, sobre a questão do âmbito de aplicação do artigo 23.º, n.º 10 do EAJ, pelo que, na fundamentação do presente caso se reproduzem, agora, essencialmente, os mesmos argumentos justificativos da orientação adotada pelo STJ.
O artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial não é (em vários aspetos) uma norma isenta de dúvidas interpretativas. E também não o é no que respeita ao alcance normativo do seu n.º 10, como a existência de divergência jurisprudencial (ainda que minoritária) permite constatar1.
A vigente redação do artigo 23º do EAJ incorpora duas alterações legislativas à sua redação inicial (dada pela Lei n.º 22/2013). Alterações estas que foram operadas pelo DL n.º 52/2019 e pela Lei n.º 9/2022.
Como, não raro, acontece, as sucessivas alterações de determinada norma podem conduzir a dificuldades interpretativas, quando o seu teor normativo não é expresso por uma literalidade absolutamente clara e, consequentemente, isenta de dúvidas. Em tais hipóteses, há que atender à estruturação sistemática da norma, compreendendo-a (se for o caso) na sua evolução histórica, para se alcançar a sua dimensão teleológica.
É a seguinte a vigente redação do artigo 23º do EAJ (após a Lei n.º 9/2022):
«1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
2 - Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3 - Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
9 - À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10 - A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).
11- No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.»
O n.º 10 do artigo 23º foi introduzido pela Lei n.º 9/2022.
Porém, com este diploma, os critérios de composição da remuneração variável do administrador da insolvência, em caso de liquidação da massa insolvente, não sofreram alterações significativas (por confronto com as versões anteriores deste artigo)2.
Ao remeter para a alínea b) do n.º 4, é inequívoco que o legislador pretendeu que o limite previsto no n.º 10 se aplicasse aos casos em que há liquidação da massa insolvente [por contraposição à hipótese de recuperação, prevista na alínea a) do n.º 4].
Porém, a alínea b) do n.º 4 não encerra, em si mesma, um critério de cálculo definitivo, já que o critério nela previsto tem de ser completado pelo disposto no n.º 6 (que fornece a noção de resultado da liquidação). E o n.º 7 estabelece um complemento (uma majoração) do valor alcançado por aplicação do n.º 6.
Existe, assim, uma sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente.
Neste quadro, do ponto de vista da coerência teleológica da norma, não seria compreensível que o legislador fixasse um limite de 100.000 Euros para a primeira parcela da remuneração variável (a que é calculada nos termos do n.º 6), mas que tal limite já não valesse para a segunda parcela (a majoração prevista no n.º 7), que é um complemento da primeira. Efetivamente, a majoração (atualmente prevista no n.º 7) foi, desde a Lei n.º 22/2013 (então prevista no n.º 5 do artigo 23º), legalmente consagrada como um complemento remuneratório da parcela que correspondia a 5% do resultado da liquidação, permitindo, assim, ao administrador receber um valor mais elevado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos3.
Assim, percebendo a relação entre as duas componentes da remuneração variável, seria incoerente e ilógico fixar um limite máximo à primeira parcela e, depois, continuar a complementar essa parcela com a majoração. E ainda mais ilógico seria entender que esta segunda parcela não teria qualquer limite.
Acresce que, faria pouco sentido que o legislador não tivesse pretendido aplicar o limite do n.º 10 à parcela da majoração, quando, nos termos do n.º 8, o juiz tem o poder de reduzir (de forma justificada) toda a remuneração variável que exceda 50.000 Euros.
Por outro lado, numa análise intra-sistemática do regime remuneratório do administrador da insolvência, constata-se que o limite previsto no n.º 10 do art.º 23º não corresponde a uma hipótese isolada de limitação legal nesta matéria.
Outras normas revelam um propósito legislativo de estabelecer alguma contenção remuneratória ao exercício das funções do administrador, como acontece no n.º 1 do artigo 23º, que estabelece o valor da remuneração fixa em 2.000 Euros.
A lei confere ao juiz o poder de reduzir os valores remuneratórios que resultariam da aplicação dos critérios legais de cálculo da remuneração variável, quando seja excedido o valor de 50.000 Euros por processo, sendo esse limite elevado para 60.000 Euros por cada um dos devedores, na hipótese de insolvência de devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo (sendo o administrador nomeado nos termos do n.º 6 do artigo 52.º do CIRE), como previsto no n.º 9 do artigo 23º.
Acresce que também a remuneração das funções de fiduciário sofre limites.
Efetivamente, o artigo 28º do Estatuto do Administrador Judicial estabelece o seguinte:
«1 - A remuneração do fiduciário corresponde a 10 /prct. das quantias objeto de cessão, com o limite máximo de (euro) 5000 por ano.
2 - No caso de as quantias objeto de cessão serem inferiores a (euro) 3 000 por ano, a remuneração é fixada pelo juiz com o limite máximo de (euro) 300.»
Conclui-se, assim, que nas hipóteses de remuneração variável do administrador, o legislador não se limitou a fornecer um critério de cálculo aritmético, pois o resultado desse critério acaba por ser temperado pela introdução de limites, quer diretos quer de concretização judicial, que espelham uma procura de equilíbrio entre uma remuneração condigna e uma ideia de contenção na distribuição de recursos que, pela natureza insolvencial do processo, não serão, em regra, suficientes para a satisfação integral dos credores.
Pelas razões expostas, conclui-se que a tese da recorrente no sentido de o limite previsto no n.º 10 do artigo 23º só se aplicar a uma das parcelas da remuneração variável do administrador não tem fundamento legal, decidindo-se, portanto, que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei.
Alega a recorrente que a interpretação segundo a qual o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ se aplica à globalidade da remuneração variável é inconstitucional por violação do princípio da igualdade (previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), quando confrontado com o regime remuneratório dos Agentes de Execução, que entende não conter limitação equiparável à do n.º 10 do artigo 23º do EAJ, sendo, por isso, mais favorável para esses profissionais.
Dispõe o artigo 13º da CRP:
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
Como é elementar (e até de senso comum) o que o artigo 13º da CRP proíbe não é o tratamento desigual de todo e qualquer sujeito em toda e qualquer circunstância, mas sim, essencialmente, em razão do tipo de fatores previstos no seu n.º 2. Ora, é manifesto que nenhuma dessas hipóteses se verifica no caso concreto, não se identificando também nenhuma dimensão de irrazoável desproporcionalidade da norma. Os agentes de execução exercem funções distintas das exercidas pelos administradores judiciais, pelo que nenhuma inconstitucionalidade existe na circunstância de terem um estatuto remuneratório diferente.
Como se entendeu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/2006, de 12.07.2006:
«(…) o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (…).4»
Alude também a recorrente à existência de uma eventual violação do princípio da confiança, decorrente do artigo 2.º da CRP, por ter a expetativa de o limite previsto no n.º 10 do artigo 23º não ser aplicável à totalidade da remuneração variável.
Todavia, para além de não densificar de forma minimamente consistente em que medida o princípio da confiança teria sido intoleravelmente afetado, a recorrente apresenta uma pretensão incoerente, pois aceita a existência daquele limite para uma parcela da remuneração variável, só não o aceitando para o calculo da outra parcela. Acresce que o n. 8 de artigo 23º já permite a aplicação de um limite de 50.000 (desde a Lei n.º 22/2013), que a recorrente não põe em causa, pelo que não poderia, sequer, ter fundadas expetativas de receber uma remuneração superior a este limite.
É, assim, manifestamente infundada e, por isso, improcedente a invocação da inconstitucionalidade da referida norma.
Também não se verifica, no modo como o acórdão recorrido aplicou o artigo 23º do EAJ, qualquer desvio aos comandos interpretativos decorrentes da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, transposta pela Lei n.º 9/2022,
Essa Diretiva, referindo-se à supervisão e remuneração do administrador, estabelece no n.º 4 do artigo 27º que:
«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»
Ora, desta disposição não resulta nenhum comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, nem daí se pode retirar a ideia de qua uma remuneração compatível com a resolução eficiente dos processos fosse uma remuneração sem limites. Aliás, o limite de 50.000 Euros, previsto no n.º 8 do artigo 23º, a partir do qual o juiz pode reduzir a remuneração que resultaria da simples aplicação de critérios contabilísticos, já se encontrava legalmente consagrado desde a Lei n.º 22/2013, não sendo, por isso, o limite previsto no n.º 10 uma completa novidade legislativa.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 14.01.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Luís Correia de Mendonça
Cristina Coelho
_____________________________________________
1. Também a nível do tratamento teórico da matéria a dificuldade interpretativa dessa norma é assinalada. Veja-se, por exemplo, Nuno Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois da Lei n.º 9/2022, de 11.01” (Parte II – A Remuneração Variável), in Data Venia, n.º 14, 2023, página 65 e seguintes.↩︎
2. As principais alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022 nesta matéria situaram-se ao nível da densificação de fatores operativos do calculo da remuneração variável, que anteriormente se encontravam remetidos para Portaria.↩︎
3. O modo de determinação do montante da majoração tem o alcance que consta do Acórdão do STJ, de 18.04.2023, proferido no processo 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1 e dos demais acórdãos que seguiram esse sentido jurisprudencial.↩︎
4. Publicado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060437.html↩︎