DESPEDIMENTO ILÍCITO
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
EMBRIAGUEZ
DEVERES LABORAIS
RETRIBUIÇÕES INTERCALARES
SUBSÍDIO DE INSENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO
DEDUÇÃO DE RENDIMENTOS AUFERIDOS APÓS O DESPEDIMENTO
Sumário


I – Constitui justa causa de despedimento o comportamento ilícito e culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade e à luz do entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto.
II – A conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos, devendo ainda verificar-se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata) de subsistência do contrato de trabalho.
III – O cálculo das prestações intercalares é efetuado apenas em função do salário base, deduzindo-se os rendimentos de trabalho por atividade iniciada após a cessação do contrato de trabalho e que o trabalhador não receberia se não fosse o despedimento.

Texto Integral


Revista n.º 1766/23.5T8LRA.C1.S1

MBM/JG/JES


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.



1. AA impugnou judicialmente a regularidade e licitude do seu despedimento, levado a cabo por LSI Stone, Lda.

2. Na 1.ª Instância, julgada parcialmente procedente a ação, foi decidido:

a) Declarar a licitude do despedimento do autor;

b) Condenar a ré a pagar ao autor, a título de créditos por férias não gozadas e formação profissional não ministrada, deduzindo o prémio [de 5.000,00 €] pago antecipadamente, a quantia total de 4.490,34 €, acrescida de juros de mora;

c) No mais peticionado, absolver a ré.

3. Interposto recurso de apelação pelo A., o Tribunal da Relação de Coimbra Lisboa (TRC), julgando-o parcialmente procedente, decidiu:

a) Declarar ilícito o despedimento em causa;

b) Condenar a R. a pagar ao trabalhador uma indemnização em substituição da reintegração no montante de 26.146,67 € e as retribuições que o mesmo deixou de auferir desde 26.04.2023, até ao trânsito em julgado da decisão, quantias acrescidas de juros de mora.

c) Condenar a R. a devolver ao A. a quantia de 5.000,00 €, acrescida de juros de mora;

D) No mais, manter a sentença recorrida.

4. A R. interpôs recurso de revista.

5. O A. contra-alegou.

6. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do parcial provimento da revista, em parecer a que responderam ambas as partes, em linha com as posições antes assumidas nos autos.

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), em face das conclusões das alegações de recurso, as questões a decidir são as seguintes:

– Se existe justa causa de despedimento.

– Em caso negativo, determinação da base de cálculo das retribuições intercalares.

– E se devem ser deduzidos os rendimentos de trabalho do A. por atividade posterior ao despedimento.

Decidindo.


II.


8. Com relevo para a decisão do recurso, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:

1. A ré é uma sociedade comercial que tem por objeto social a atividade de transformação de mármores e rochas ornamentais para o setor da construção civil, cantarias, pavimentos, revestimentos e tampos.

2. O autor foi admitido ao serviço da ré no dia 09.12.2015, exercendo sob a sua autoridade, direção e fiscalização as funções inerentes à categoria profissional de Encarregado Geral.

3. O autor era o responsável por coordenar, dirigir e supervisionar os trabalhadores na atividade de produção da empresa, bem como assegurar o regular e seguro funcionamento da atividade dos mesmos nas instalações da ré.

4. O autor detinha a função de maior responsabilidade na unidade produtiva da ré, no topo da hierarquia, não tendo qualquer outro trabalhador acima dele.

5. Por força dessa responsabilidade, e da necessidade de conferir uma maior autonomia e flexibilidade na gestão dos tempos de trabalho, autor e ré acordaram num regime em que o autor não estava sujeito aos limites máximos do período normal de trabalho, por ocupar um cargo de direção e de especial confiança, com a competente remuneração adicional (equivalente a 25% da retribuição base mensal).

6. A ré dava total liberdade ao autor para organizar os seus tempos de trabalho, incluindo eventuais deslocações profissionais necessárias, com atribuição de viatura de serviço.

(…)

10. No dia 01 de fevereiro de 2023, o ... da ré, BB, agendou uma reunião nas instalações de uma empresa parceira do mesmo ramo, a M..., Lda., com o intuito de ver em funcionamento um centro de maquinação de controlo numérico ou CNC – que pensava adquirir para a empresa.

11. Essa reunião foi agendada para as 16.00 horas desse mesmo dia com CC, representante da M..., Lda..

12. Cerca das 16.00 horas, como o autor não se encontrava nas instalações da ré, BB entrou em contacto com o mesmo para que pudessem sair juntos para a referida reunião, acompanhados de DD, que é o responsável pela secção de maquinação da ré.

13. O autor disse então a BB que se encontrava em casa.

14. BB referiu ao autor a importância da reunião e o seu objetivo, tendo-se oferecido, e até insistido, para passar em casa do autor para lhe dar boleia.

15. O autor negou a boleia e disse que iria ter com eles às instalações da M..., Lda..

16. Nesse dia, após ter estado na fábrica da ré a efetuar o seu trabalho de supervisão da produção, o autor tinha ido almoçar com dois amigos, tendo sido consumido vinho.

17. Quando o almoço terminou e o autor ia a caminho da fábrica recebeu um telefonema da sua esposa que lhe disse estar indisposta e se poderia ir buscar a filha de ambos à pré-escola.

18. O autor foi buscar a filha e depois conduziu-a a casa.

19. Quando BB e DD chegaram às instalações da M..., Lda., foram admitidos a entrar na zona de produção da empresa com os respetivos equipamentos de proteção individual, nomeadamente colete e capacete.

20. Nessa altura, o autor ainda não tinha chegado às instalações da M..., Lda..

21. Quando BB e DD, acompanhados de CC, desciam para a zona de produção da M..., Lda., o autor entrou pela zona de serviço da fábrica sem autorização e sem equipamentos de proteção individual.

22. Quando se dirigiam para o local onde estava o equipamento CNC em funcionamento, após entrarem no gabinete técnico de programação e operação, BB e DD aperceberam-se de que o autor se encontrava embriagado, o que era bem visível pela sua postura corporal, forma como se comportava, como gesticulava e falava e pelo odor a álcool que exalava.

23. BB, perante o comportamento do autor, sentiu-se envergonhado.

24. O autor questionou o empregado da M..., Lda., EE, sobre as aptidões da máquina de CNC e quais as suas competências para o trabalho.

25. Na altura, ninguém comentou nada quanto ao estado de embriaguez do autor.

26. A máquina de CNC é um equipamento com um preço que ascende às centenas de milhares de euros.

27. Não foi o autor advertido para a falta de qualquer equipamento de proteção individual na reunião.

28. O autor tinha as botas de proteção calçadas.

29. BB e DD tinham colete verde e botas.

30. Após a reunião, o autor saiu das instalações da M..., Lda. em direção à fábrica da ré a alta velocidade, tendo ultrapassado o carro onde iam BB e DD.

31. Nesse mesmo dia a trabalhadora FF, ... na ré e ... da ex ... do autor, tentou contactar com ele, nomeadamente por whatsapp, para que este respondesse a algumas questões.

32. Contudo, o autor não respondeu às mensagens.

33. Como não obteve qualquer resposta, e dado que tinha que ir a uma consulta com o seu filho, FF disse ao autor que sairia, entretanto, e que pelas 17.30h já estaria de volta à empresa e que aí falariam sobre essas mesmas questões que tinham de responder.

34. Nessa altura o autor não se encontrava nas instalações da ré.

35. Cerca das 18h00 desse dia, após uma chamada telefónica entre ambos, o autor foi ter ao gabinete de FF para conversarem, tendo esta última notado que, pela postura e pelo cheiro a álcool, o autor estaria embriagado.

36. Dentro do gabinete e com a porta aberta, o autor dirigiu-se a FF num tom alto dizendo “ó estúpida”, o que foi ouvido por GG.

37. No dia 01 de fevereiro de 2023 ninguém impediu o autor de desempenhar funções.

38. (…)1

39. A ré não possui qualquer regulamento interno onde se alerte para a prevenção e controlo do consumo de álcool, nem existe qualquer meio de despistagem ou exame para averiguar da presença de álcool no sangue.

40. O autor já havia sido questionado pela sócia-gerente, HH, antes dos factos suprarreferidos, para que não devia apresentar-se ao trabalho alcoolizado tendo a mesma oferecido ajuda e perguntado ao autor se necessitava de se submeter a tratamentos.

41. Após o dia 01 de fevereiro de 2023 o autor solicitou licença sem vencimento com a duração de 30 dias, que foi aceite pela ré.

(…)

43. Depois dos sócios-gerentes da ré, o autor era o trabalhador com mais responsabilidades de chefia na unidade de produção da empresa.

(…)

45. Em instalações e atividades como as da ré, que envolvem o manuseamento de materiais e pedras de grandes dimensões e peso, ninguém pode prestar as suas funções de forma plena estando embriagado.

46. O estado de embriaguez reduz os níveis de alerta e tempos de reação e coloca em perigo não só o próprio como também, terceiros.

47. (…)2

48. Alguns trabalhadores da ré consumiam álcool na fábrica, num primeiro momento fornecido pela ré juntamente com a refeição e, posteriormente, adquirido por eles.

49. Não foi ordenado ao autor que se submetesse a teste de alcoolemia no dia 01 de fevereiro de 2023.

50. O autor nunca foi submetido a teste de alcoolemia na fábrica da ré.

51. O conteúdo funcional da categoria profissional de encarregado geral não passa pelo manuseamento de máquinas industriais.

52. O autor foi um trabalhador que se empenhou e entregou ao trabalho desenvolvido na ré.

53. O autor nunca foi alvo de procedimento disciplinar pela ré.

(…)


III.


a. Se existe justa causa de despedimento.

9. A “questão fundamental” que constitui o objeto processual da revista consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, questão que se desdobra nas subquestões correspondentes aos três requisitos – ou, dito de outra forma, elementos constitutivos (cfr. art. 342º, nº 1, do Código Civil) – deste conceito [cfr. arts. 128º, 330.º, n.º 1, e 351.º, do CT].

A saber: i) uma infração disciplinar, ou seja, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador;3 ii) a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação de trabalho (e, conexamente, a proporcionalidade do despedimento); iii) a existência de um nexo de causalidade entre o dito comportamento e esta impossibilidade.

O direito do empregador ao despedimento pressupõe a verificação cumulativa dos três requisitos, os quais, em termos de precedência lógico-jurídica, se estruturam pela ordem indicada.

10. In casu, as instâncias coincidiram no sentido da relevância disciplinar da conduta do trabalhador, que, como é patente, infringiu voluntária e culposamente os deveres de tratar o empregador e os companheiros de trabalho com urbanidade e probidade, de realizar o trabalho com zelo e diligência e de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho [art. 128.º, n.º 1, a), c) e e), do CT].

11. Resta apreciar se a apurada conduta do A. constitui justa causa de despedimento, ou seja, se, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (art. 351.º, n.º 1, do CT)4, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade e exigibilidade (na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes – n.º 3 do mesmo artigo) e proporcionalidade (art. 330.º, n.º 1).

Neste âmbito, alguns aspetos ainda a realçar: (i) a conduta do trabalhador deve ser apreciada conjuntamente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; (ii)a gravidade dos factos e a culpa do trabalhador aferem-se de acordo com o entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto e em função de critérios de objetividade, exigibilidade e razoabilidade” (v.g., Ac. desta 4.ª Secção do STJ de 14.01.2015, Proc. n.º 272/10.2TTCVL.C1.S1); (iii) “O requisito da impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade de manutenção do contrato pela outra parte, e não apreciado como uma impossibilidade objetiva”5; (iv) Esta impossibilidade (prática) “deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto”6; E “o comportamento do trabalhador tem de ser de molde a comprometer, de imediato, o futuro do vínculo laboral”, obstando, efetivamente, “à execução normal do contrato após o conhecimento da situação pelo empregador”, embora este requisito deva ser “aferido com cautela” e “conjugar-se com o prazo geral de caducidade [de 60 dias] do procedimento disciplinar” 7.

12. Os deveres laborais que no caso vertente se mostram violados assumem relevância que não pode ser escamoteada, tendo desde logo em conta a elevada posição que o autor detinha na hierarquia da empresa, circunstância que qualifica a gravidade da sua conduta e respetivas consequências.

Contudo, analisados os factos provados no seu confronto com o teor da nota de culpa, ponderada a imagem global da situação concreta, impõe-se concluir, desde já se adianta, que o despedimento não se mostra razoável, nem proporcionado, pelas razões que se passam a expor.

13. Antes do mais, são de destacar no caso sub judice alguns traços vagos, imprecisos, conclusivos que, a par de omissões e deficiências ao nível das práticas neste âmbito desenvolvidas pela empregadora (que não procedia ao controlo da alcoolemia dos trabalhadores e muito menos praticava uma política de tolerância zero perante a ingestão de bebidas alcoólicas), globalmente o inquinam, impedindo a formulação de um juízo seguro no tocante à gravidade da conduta do trabalhador e à intensidade da sua culpa.

Num estado de embriaguez percetível por terceiros existe um largo espectro, que vai desde um ligeiro hálito a álcool, passando por um comportamento mais efusivo/alegre, até estados mais graves, que podem incluir passo cambaleante, voz arrastada e discurso impercetível.

Mas o nível de gravidade e as implicações deste tipo de situações podem ser as mais díspares, mormente quantos aos termos (mais ou menos expressivos) com que a conduta concreta se revela (in)compatível com as responsabilidades e obrigações profissionais do agente e com o adequado cumprimento das suas funções, bem como relativamente à intensidade em que é lesada a imagem/reputação da empregadora.

Ora, nas expressivas palavras do Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu Parecer proferido na presente revista: 8

«Em relação à questão da embriaguez, é de salientar, desde logo, que a matéria dada como provada a este respeito é sempre conclusiva, insuficiente para se pode fazer um juízo sério sobre o estado de alcoolemia do autor.

Não foi sujeito a qualquer teste de alcoolemia, não se sabe que quantia de álcool consumiu ao almoço, sendo apenas referido por uma colega que, pela postura e pelo cheiro a álcool, estaria embriagado.

Acresce que:

O incumprimento da realização do trabalho com zelo, o incumprimento de ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina no trabalho, ou o de zelar pela boa imagem do seu empregador, não surge baseada em quaisquer factos que extravasem a própria situação de que o autor estaria embriagado.

É certo que o sócio-gerente da recorrente sentiu-se envergonhado com o comportamento do autor, mas não se sabe sequer qual foi esse comportamento.

(…)

Desconhece-se se o grau de alcoolemia poderia comprometer o cumprimento das devidas regras de segurança e saúde no trabalho.

Mas não deveria existir risco assinalável, já que, por um lado, a atividade do autor não implicava o manuseamento de máquinas industriais; e, por outro, não menos relevante, porque não foi impedido pelo sócio-gerente da recorrente de continuar a trabalhar.

(…)

[N]ão existia qualquer política de prevenção e controlo de consumo de álcool na empresa, nomeadamente através da sua proibição, com fiscalização através de meios de despistagem.

Pelo contrário, alguns trabalhadores da ré consumiam álcool na fábrica, num primeiro momento fornecido pela ré juntamente com a refeição, e, posteriormente, adquirido por eles.

O trabalhador sempre se empenhou e entregou ao trabalho desenvolvido na ré, tinha uma antiguidade superior a sete anos, e nunca foi objeto de procedimento disciplinar.

(…)

De toda esta situação, e apesar de não se minimizar a necessidade de se prevenir e combater os malefícios do consumo de álcool no trabalho, nem se ser complacente com situações de incumprimento de regras de segurança e saúde, entendemos que o comportamento do autor – sempre traduzido numa materialidade vaga por muito pouco precisa –, tenha sido tal modo grave em si mesmo e nas suas consequências, patrimoniais ou não patrimoniais, de forma a originar uma absoluta, irremediável e definitiva quebra de confiança entre as partes, pelo que, a nosso ver, não se verifica a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho.

(…)»

14. Posto isto, relevantemente, há ainda a ponderar no mesmo sentido:

Os factos nº 28 a 31 da nota de culpa e que se referiam a alegados comportamentos anteriores do trabalhador, levados ao conhecimento da R. após 01.02.2023 (alegadamente respeitantes a repetidas situações de embriaguez e de desrespeito pelos colegas) foram considerados não escritos pelo Tribunal da 1ª instância, decisão nesta parte transitada em julgado.

Por outro lado, o nº 38 da matéria de facto fixada na 1ª instância (“Vários trabalhadores relataram à gerência da ré que o autor, muitas vezes, sobretudo às quintas e sextas-feiras chegava embriagado à empresa, depois do almoço”) foi eliminado pelo Tribunal da Relação.

Vale dizer que, em matéria de alegados antecedentes de alcoolismo, apenas se provou que “o autor já havia sido questionado pela ..., HH, antes dos factos suprarreferidos, para que não devia apresentar-se ao trabalho alcoolizado tendo a mesma oferecido ajuda e perguntado ao autor se necessitava de se submeter a tratamentos” (nº 40 dos factos provados), sendo certo que daqui não decorre que tal efetivamente tivesse acontecido e, muito menos, a gravidades de tais eventuais episódios, até porque na empresa não eram efetuadas despistagens de álcool, ao contrário do que determinam as boas práticas nesta matéria. Bem vistas as coisas, este facto fica esvaziado de importância em face da referida eliminação do facto nº 38, configurando uma mera advertência, cuja razão de ser (ou não) se desconhece.

Acresce que este facto não consta da nota de culpa (aliás, em face da versão desta constante, , teria sido o episódio de 01.02.2023 a levar outros trabalhadores a começar a relatar outros episódios, nunca ali se referindo que a gerência tinha conhecimento de outros episódios ou de que já se teria apercebido de que o trabalhador exercesse as suas funções sob o efeito de álcool, nem de que já o teria advertido previamente), nem nos factos dados como provados na decisão final do procedimento disciplinar, pelo que nunca poderia o mesmo ser valorado, para efeitos de apreciação da licitude do despedimento (arts. 357.º, n.º 4, e 387, n.º 3, ambos do CT).

15. Dúvidas não existindo de que houve incumprimento do dever de respeito por parte do A., ao ter chamado “estúpida” à colega, comportamento objetivamente grave, a verdade é que, só por si, nada mais se sabendo sobre as circunstâncias do caso, mormente o tipo de relação (confiança) existente entre ambos, também não justifica o despedimento, mesmo tendo este episódio sido ouvido por GG (nº 36 dos factos provados).

Vale por dizer que no caso vertente não se configura justa causa de despedimento, improcedendo quanto a esta questão a revista.

b. Base de cálculo das retribuições intercalares e quantias a deduzir.

16. Sobre estas questões, exaustiva e certeiramente, refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto no mesmo Parecer:

«Sobre esta matéria decidiu o acórdão recorrido:

“Assim, face à referida ilicitude do despedimento do trabalhador e ao por si peticionado, o trabalhador tem direito:

- a uma indemnização no montante de € 26.146,67 (€ 2.960,00 x 8 anos e 10 meses), correspondente a 15 dias de retribuição e 8 anos e 10 meses, contabilizados até 09/10/2024.

Na verdade, ponderando que o trabalhador auferia a retribuição base mensal de € 5.920,00, valor muito superior ao salário médio nacional e o médio grau de ilicitude – tendo em conta o comportamento censurável do trabalhador suprarreferido – é nosso entendimento que a indemnização deve fixar-se em 15 dias de retribuição por cada ano completo ou fração de antiguidade a contar até ao trânsito em julgado da decisão judicial (art.º 391º, n.º 2 do Código do Trabalho),

- a receber as retribuições que deixou de auferir desde 26/04/2023 (data do despedimento) e até ao trânsito em julgado da presente decisão – artigo 390.º, do C.T.

A estas retribuições deve ser deduzido o eventual subsídio de desemprego auferido pelo trabalhador (artigo 390.º, n.º 2, c), do C.T.), sendo certo que da matéria de facto provada não resulta que o trabalhador tenha auferido rendimentos de trabalho após o despedimento.

O montante desta compensação terá de ser apurado no respetivo incidente de liquidação (artigo 358.º, n.º 2, do C.P.C.), por ausência de elementos que nos permitam proceder aos respetivos cálculos (artigo 609.º, n.º 2, do C.P.C.), ou seja, dos eventuais valores recebidos a título de subsídio de desemprego.”.

Invoca a recorrente:

“(oo) Não obstante o acima, e sem conceder, na eventualidade de ser mantida a decisão de ilicitude do despedimento, nos termos do art.º 390.º, n.º 1 e n.º 2, als. a) e c), do Código do Trabalho, e em eventual sede de liquidação de sentença ter-se-á de apurar que rendimentos, se alguns, foram, entretanto, auferidos pelo trabalhador até ao trânsito em julgado da decisão que eventualmente decida pela ilicitude do despedimento.

(pp) O que ao contrário do que refere o Tribunal a quo nas páginas 35 e 36 do Acórdão, já se sabe que existem tais rendimentos, pois o próprio Recorrido por via de requerimento datado de 28.09.2023, Ref. CITIUS ...15, assim o declarou estando a auferir, a essa data, uma remuneração base de EUR 3.200, não tendo requerido o pagamento de prestações de desemprego.

(qq) Assim, para efeitos de determinação do montante de salários intercalares a pagar, face ao que foi decidido em 1.ª Instância e não alterado pelo Tribunal a quo, há que apenas considerar o vencimento base mensal que o Recorrido auferia à data do despedimento, ou seja, EUR 5.920.”.

Em bom rigor o acórdão recorrido não indica qual a base para o cálculo das retribuições intercalares.

Dispõe o art. 390.º do CT, no que interessa:

“Compensação em caso de despedimento ilícito

1 - Sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento.

2 - Às retribuições referidas no número anterior deduzem-se:

a) As importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento;

…”

Conforme se verifica do ponto 42) da matéria de facto dada como provada, à «data do despedimento o autor auferia o salário base de € 5.920,00, Isenção de Horário de Trabalho no valor de € 1.480,00, viatura de serviço para uso pessoal e subsídio de refeição no valor diário de € 8,32 por cada dia útil de trabalho efetivamente prestado».

O subsídio de isenção do horário de trabalho é um complemento remuneratório, não tendo propriamente a natureza de retribuição, até porque pode revestir uma natureza ocasional.

Veja-se a este respeito, MARIA ROSÁRIO PALMA RAMALHO, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – situações laborais individuais, Almedina, Coimbra, 2019, 7ª edição, pp. 540-541:

(…)

Também o subsídio de alimentação, no caso, não tem natureza de retribuição, uma vez que não foi efetuada prova de que resultasse um excedente em relação aos gastos normais com a alimentação.

Em consequência, entende-se que o cálculo para as prestações intercalares deverá ser efetuado apenas com o salário base9.

Quanto à dedução das importâncias auferidas com a cessação do contrato de trabalho, e que não receberia se não fosse o despedimento, importa considerar, em primeira linha, o que se refere no recente acórdão do STJ de 22.05.2024, proc. n.º 17881/21.7T8LSB.L2.S1(...).

“É jurisprudência constante do STJ que a imperatividade do regime legal atinente à dedução dos rendimentos de trabalho por atividade iniciada após o despedimento não dispensa o empregador de alegar e provar que o trabalhador os auferiu, sem o que não é possível operar/determinar tal dedução (diversamente, a dedução do subsídio de desemprego constitui matéria de conhecimento oficioso, já que se trata de uma prestação do Estado, substitutiva da retribuição, que, uma vez recuperada, tem que ser devolvida à Segurança Social).”.

A questão que se coloca no caso, é a de saber se a recorrente requereu no decurso do processo a dedução dos rendimentos de trabalho do autor por atividade iniciada após o despedimento.

A única referência que detetámos a esse respeito foi no final do articulado motivador do despedimento, a qual passamos a transcrever:

“C) OUTRAS DILIGÊNCIAS:

Atento o disposto no artigo 390.º, n.º 2, do Código do Trabalho e na hipótese, que por mera cautela de patrocínio se admite, sem se conceder, de ser declarada a ilicitude ou irregularidade do despedimento, requer-se a V. Exa. que se digne:

1. Oficiar aos serviços do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, nos termos do disposto nos artigos 6º e 432.º do Código de Processo Civil, para juntar aos presentes autos a informação que possui relativamente a quaisquer descontos para a Segurança Social efetuados pelo Autor, a partir de 26 de abril de 2023, ao abrigo de qualquer dos regimes previstos na lei, concretizando qual a data de início dos descontos e qual o montante da remuneração sobre a qual o desconto incidiu / incide;

2. Notificar o Autor, nos termos do disposto nos artigos 6.º e 429.º do Código de Processo Civil, para informar os autos qual a sua situação profissional a partir de 26 de abril de 2023, designadamente: (i) se recebeu ou está a receber subsídio de desemprego e, em caso afirmativo, qual o valor recebido; e (ii) se exerceu ou exerce alguma atividade remunerada e, em caso afirmativo, quais os montantes auferidos, juntando cópia dos respetivos recibos.”.

Tendo em conta o normativo indicado, e o teor das diligências requeridas, afigura-se-nos, e salvo melhor entendimento, que a recorrente requereu efetivamente a dedução daqueles rendimentos – ainda que não da forma mais explícita.

Uma vez que o cômputo das retribuições intercalares ficou relegado para incidente de liquidação, parece-nos, assim, que deverão ser descontados os montantes apurados também a esse título, sendo nesse aspeto o acórdão recorrido retificado –de resto, o próprio autor aceita essa dedução, segundo se infere dos pontos 37) e 39) da resposta às alegações deste recurso.»

17. Acompanhamos estas considerações, que inteiramente se subscrevem e que dispensam quaisquer desenvolvimentos complementares, procedendo, pois, nesta parte, o recurso.


IV.


18. Deste modo, concedendo parcialmente a revista, acorda-se, revogando parcialmente o acórdão recorrido, em:

a) Determinar, nos precisos termos supra expostos, que as retribuições intercalares sejam calculadas apenas em função do salário base, bem como que às mesmas se deduzam os rendimentos de trabalho por atividade iniciada após a cessação do contrato de trabalho e que o trabalhador não receberia se não fosse o despedimento [cfr. art. 390º, nº 2, a) do CT], tudo a apurar em incidente de liquidação.

b) Relativamente a tudo o mais, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista, bem como nas instâncias, na proporção do vencido.

Lisboa, 15.01.2025

Mário Belo Morgado (Relator)

Julio Manuel Vieira Gomes

José Eduardo Sapateiro

SUMÁRIO

DESCRITORES

_____________________________________________

1. Eliminado pelo TRC.↩︎

2. Deste ponto da matéria de facto consta “O autor é acompanhado por médico”, embora sem qualquer relevo para os autos, uma vez que não tem qualquer conexão com as considerações tecidas no ponto anterior sobre o estado de embriaguez: foi o próprio A. que no art. 83º da resposta ao articulado motivador referiu que “tem vindo a ser acompanhado por médicos conforme melhor se diz e prova pelos elementos clínicos que aqui se juntam (Doc. N.º 16) para todos os efeitos legais” (documento referente a uma consulta de alergologia), alegação dirigida a justificar uma licença de vencimento para tratar de quistos na cabeça.↩︎

3. Segundo Claus-Wilhelm Canaris, a ilicitude (consistente na violação de um direito subjetivo de outrem ou da violação de uma norma jurídica destinada a proteger interesses jurídicos alheios) diz-nos o porquê e em que circunstâncias o lesado recebe a proteção do ordenamento jurídico, enquanto a culpa o porquê e em que circunstâncias ao agente é imposto o ónus de suportar o prejuízo sofrido por terceiro (citado por Felipe Teixeira Neto, in A ILICITUDE ENQUANTO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DELITUAL: UM EXAME EM PERSPECTIVA COMPARADA (LUSO-BRASILEIRA) – https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2017/6/2017_06_1163_1190.pdf).↩︎

4. Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pp. 738 – 739, e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, pp. 969 - 971.↩︎

5. Maria do Rosário Palma Ramalho, ibidem, p. 969.↩︎

6. Ibidem, p. 970.↩︎

7. Ibidem, pp. 970 - 971.↩︎

8. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎

9. “Cf., nomeadamente, acórdãos do STJ de 27-05-2010, proc. n.º 467/06.3TTCBR.C1.S1, e do STJ de 22-02-2017, proc. n.º2236/15.0T8AVR.P1.S1 (…)”.↩︎