REVISTA EXCECIONAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Sumário


Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.

Texto Integral


Processo n.º 3735/15.0T8GMR.G1.S1 (revista excecional)

MBM/JES/JG


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários ..., pedindo, na parte que ora releva, que:

a) se declare a nulidade do período normal de trabalho correspondente a doze horas de segunda-feira a domingo de cada semana, constante da cláusula III do contrato de trabalho celebrado entre a ré e o autor, e dos referidos horários de trabalho, diurno das 8h às 20h e noturno das 20h às 8h, de segunda-feira a domingo fixados pela ré;

b) declare substituídos os sobreditos período normal de trabalho e horário de trabalho estabelecidos pela ré para o período normal de trabalho diário e semanal, respetivamente, de 8h/dia e 40h/semana, com observância do direito do autor a um dia de descanso semanal obrigatório, intervalo de descanso não inferior a 1 hora e superior a 2 horas e a 11 horas de descanso diário;

c) condene a ré a pagar ao autor, a título de acréscimo remuneratório pelo trabalho suplementar prestado, o montante total de 51.016,52 €;

d) condene a ré a pagar ao autor, pelo não cumprimento dos descansos compensatórios remunerados a que o autor tinha direito pelo trabalho suplementar prestado, o montante total de 21.482,61 €.

e) condene a ré a fixar-lhe um horário de trabalho que não exceda a 8h por dia e 40h por semana, um intervalo de descanso não inferior a 1h e superior a 2h e um dia de descanso semanal obrigatório;

f) condene a ré a pagar ao autor e ao Estado, em partes iguais, uma sanção pecuniária compulsória do montante de € 1.000 por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações atinentes peticionadas que lhe forem impostas pela sentença que vier a ser proferida e a partir da data em que a mesma puder ser executada.

2. A ação foi julgada parcialmente procedente e, interposto recurso de apelação pela R., foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

3. Inconformada, a R. veio interpor recurso de revista excecional, com base no art. 672º, nº 1, b), do CPC, invocando que, a manter-se a decisão e a multiplicar-se a mesma “por milhares de situações idênticas a nível nacional, poderá levar à inviabilidade económica [da R.] e de muitas outras corporações de bombeiros”.

4. A recorrida contra-alegou.

5. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, pelo que foi determinada a distribuição do processo à formação de apreciação preliminar.

Decidindo.


II.

6. Com relevo para a decisão, mostram-se fixados pelas instâncias os seguintes factos:

(…)

- No dia 01/05/1985, o autor foi admitido ao serviço da ré para, sob autoridade, direção e fiscalização desta, exercer funções de motorista das viaturas a ela pertencentes, de transporte de sinistrados e pessoas doentes para os diversos serviços de saúde, no quartel sede, por contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 6 meses, que, fruto das sucessivas renovações, se transmudou num contrato de trabalho de duração indeterminada.

- Encontra-se junto aos autos, cópia do aludido acordo celebrado entre autor e ré em 01 de maio de 1985, denominado de “contrato de trabalho a prazo”, de onde resulta, como cláusula III, que “O período de trabalho é de doze horas, de segunda-feira a Domingo de cada semana”.

- Em contrapartida de tal atividade o autor recebe a remuneração base mensal de € 624,00, acrescida do subsídio de alimentação no valor fixo de € 132,90.

- Aquando da admissão do autor ao serviço da ré o mesmo não era bombeiro voluntário.

- Em .../6/1986 o autor tornou-se aspirante da carreira de Bombeiro Voluntário, vindo a ser provido em definitivo em.../7/1987 com a categoria de bombeiro de ....

- A partir do ano de 2008 os bombeiros voluntários passaram a estar obrigados a prestar um número mínimo de horas.

- Sendo de, pelo menos, 275h de voluntariado por ano desde o ano de 2008 até 2014 e, daí em diante, de, pelo menos, 200 horas anuais.

- O bombeiro voluntário que esteja no exercício da atividade operacional pode e deve desempenhar as seguintes tarefas: a) Assistência à atividade de transporte de doentes; b) Formação/Instrução; c) Informação e sensibilização; d) Manutenção, organização e controlo de instalações e equipamentos; e) Prevenção e patrulhamento; f) Piquete; g) Simulacro; h) Socorro.

- O trabalho invocado pelo autor, seja a que título for e ainda que como suplementar, pode caber dentro das incumbências e deveres de bombeiro voluntário.

(…)

– Desde ... de junho de 2012 até ... de maio de 2015 inclusive, o autor disponibilizou ao serviço da ré, enquanto ... assalariado, uma média de 12 horas diárias (…).

(…)


III.

7. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, b), do CPC, reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as situações em que “estejam em causa interesses de particular relevância social”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

– Quando “estão em causa aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2).

– Podendo “haver colisão de uma decisão jurídica com valores socioculturais dominantes que a devam orientar e cuja eventual ofensa possa suscitar alarme social determinante de profundos sentimentos de inquietação que minem a tranquilidade de uma generalidade de pessoas” (Ac. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1).

– Situações com «repercussão (mesmo alarme, em casos-limite), larga controvérsia (dos interesses em causa), por conexão com valores socioculturais, inquietantes implicações políticas que minam a tranquilidade ou, enfim, situações que põem em causa a eficácia do direito e põem em dúvida a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística, estando, pois, aqui abrangidos casos em que há “um invulgar impacto na situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular”», sendo certo que a densificação deste conceito indeterminado, que é uma cláusula bastante vaga, permite grande flexibilidade e elevado grau de discricionariedade (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

– Existindo “um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), uma vez que “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).

8. Ainda antes de o A. se ter iniciado na carreira de Bombeiro Voluntário, celebrou com a R. um contrato de trabalho no qual se previa um período de trabalho de doze horas, de segunda-feira a Domingo de cada semana, o que ultrapassa, manifestamente, os limites imperativamente previstos na lei, e infringe as disposições legais atinentes a intervalos de descanso, pelas razões exaustivamente explicitadas no acórdão recorrido e também na sentença da primeira instância, situação na qual radicam os direito que lhe foram reconhecidos, designadamente, a título de trabalho suplementar.

Sendo incompreensível e certamente incomum a contratualização de cláusula de conteúdo tão flagrantemente anómalo, temos por certo que in casu não se evidencia qualquer interesse social – e muito menos significativo – que transcenda a dimensão inter partes.

Acresce que a matéria de facto provada não permite concluir que, para além do período de oito horas diárias enquanto motorista assalariado da ré, o demais trabalho desenvolvido pelo autor o fosse na qualidade de bombeiro voluntário.

Para evitar as consequências económicas da decisão recorrida, contra os quais a R. se insurge, bastaria que o conteúdo do contrato de trabalho estivesse de acordo com as disposições imperativas da lei laboral que se mostram infringidas e, por outro lado, que tivesse sido implementado um modelo organizativo que claramente permitisse distinguir os períodos de trabalho assalariado do autor dos relativos à atividade prestada pelo mesmo enquanto bombeiro voluntário.


IV.

9. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15.01.2025

Mário Belo Morgado (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Júlio Manuel Vieira Gomes