I. O conceito de representante para efeitos do artigo 18.º da LAT abrange todos os que exercem poderes próprios do empregador no local de trabalho e são responsáveis pelo cumprimento das regras de segurança e saúde no local de trabalho;
II. Uma vez que no processo de trabalho, mormente na fase conciliatória, não foi alegada a violação culposa de regras de segurança, nem convocados os referidos representantes, fica precludida a invocação em processo posterior da alegada violação.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
AA e BB, intentaram, no juízo central cível, ação de processo comum contra C..., Lda., Pedra do Minho Granitos, Lda., CC e DD, formulando os seguintes pedidos:
“NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, por via dela:
a) condenar-se solidariamente os Réus no pagamento às Autores, da indemnização global de 275.000.00 € (duzentos e setenta e cinco mil euros), repartido da seguinte forma:
- pela perda do direito à vida do falecido EE, o montante de 120.000,00 €, repartido em 70.000,00 € para a 1.ª Autora e 50.000,00 € para a 2.ª Autora;
- a título de dano moral próprio do falecido EE, a importância de 30.000,00 €, repartido em 20.000,00 €, para a 1.ª Autora e 10.000,00 €, para a 2.ª Autora;
- a título de danos não patrimoniais sofridos pelas Autores, o montante de 80.000,00 €, sendo de 50.000,00 €, para a 1.ª Autora e de 30.000,00 €, para a 2.ª Autora;
- pelos danos patrimoniais futuros sofridos pelas Autores, o montante de 45.000,00 €, sendo de 30.000,00 € para a 1.ª Autora e de 15.000,00 €, para a 2.ª Autora;
b) no caso de improceder o pedido formulado na alínea a), devem os Réus ser condenados a pagar às Autoras a quantia indemnizatória global de 275.000,00 € , subdividida em função da responsabilidade de cada um deles que se vier a apurar e repartidos pela forma antes indicada naquela referida alínea;
c) em qualquer das situações referidas nas alíneas a) e b), ser os Réus condenados a pagar sobre o montante indemnizatório reclamado, juros moratórios à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral e efectivo pagamento”.
Citados, os Réus contestaram, arguindo as exceções dilatórias de incompetência material do juízo cível e de erro na forma do processo e as exceções perentórias de caducidade do direito de ação e de prescrição.
As Autoras responderam à matéria da exceção.
Por despacho de 19.08.2023, o Juízo Central Cível declarou-se absolutamente incompetente, em razão da matéria e absolveu os Réus da instância.
Na sequência de requerimento das Autoras, por despacho de 18.10.2023, foi determinada a remessa dos autos para o Juízo do Trabalho, nos termos do artigo 99.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Foi determinada a apensação dos autos ao processo especial de acidente de trabalho, que correu termos sob o n.º 2638/18.0T8VCT e que findou com conciliação efetuada em 21.10.2019.
Por despacho de 5.12.2023, a petição inicial foi liminarmente indeferida.
As Autoras interpuseram recurso de apelação.
Por acórdão do 29.05.2024, o Tribunal da Relação decidiu “conceder parcial provimento à apelação:
a) declarando-se o tribunal do trabalho materialmente incompetente para apreciar os pedidos das AA contra o 2º e 4º RR, absolvendo-se estes da instância;
b) No mais, com a algo diferente fundamentação acima exposta, confirma-se a decisão de preclusão do direito de ação das AA relativamente aos 1ª e 3º RR - 87º do CPT e 663º do Código de Processo Civil”.
Os Réus Pedra do Minho Granitos, Lda. e DD vieram interpor o presente recurso de revista.
No seu recurso suscitam as seguintes questões:
- Em primeiro lugar, sustentam que o recurso de apelação foi interposto foi interposto fora de prazo, porquanto correndo o presente processo por apenso a um processo especial emergente de acidente de trabalho comungaria da sua natureza urgente e o recurso de apelação foi interposto fora do prazo previsto no artigo 80.º n.º 2 do Código do Processo de Trabalho (Conclusões números 2, 3 e 4).
- Em segundo lugar se porventura tivesse ocorrido uma violação das regras de segurança pelos Réus e Recorrentes tal situação subsumir-se-ia ao artigo 18.º da LAT, sendo da jurisdição laboral a competência exclusiva na matéria (Conclusões números 6 a 11).
- Por conseguinte, sendo o conhecimento da matéria da responsabilidade agravada por acidente de trabalho da exclusiva competência dos tribunais de trabalho tais pretensões indemnizatórias contra os Recorrentes deveriam ter sido apresentadas no processo especial emergente de acidente de trabalho a que o presente processo está apensado e, não o tendo sido, verifica-se a preclusão da possibilidade de fazer valer tais pretensões em ação autónoma (Conclusões números 12 a 16).
- Acresce que a responsabilidade dos Recorrentes a existir seria extracontratual relativamente ao sinistrado com a consequente responsabilidade solidária do Empregador e dos Recorrentes e estes seriam prejudicados pela transação realizada com o empregador (Conclusões números 17 a 22).
Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 2 do Código do Processo de Trabalho, o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência parcial do recurso.
As Autoras responderam ao Parecer.
Fundamentação
De Facto
Considera-se reproduzida a matéria de facto provada constante do Acórdão recorrido e referenciada no Relatório do mesmo.
De Direito
A primeira questão que importa esclarecer diz respeito ao prazo para interposição do recurso de apelação. A este respeito afirma-se no Acórdão recorrido: «Os autos foram intentados (no juízo cível) como ação de processo comum e assim se mantiveram após a remessa para o tribunal de trabalho, tendo apenas sido apensados aos autos de acidente de trabalho, inexistindo qualquer despacho judicial a corrigir a forma do processo. Logo, considerando-se as AA notificadas em 11-12-2023 e tendo interposto recurso em 23-01-2024, o mesmo foi apresentado precisamente no trigésimo dia, sendo, portanto, tempestivo.».
Concorda-se com a fundamentação, já que, como se disse, a ação foi proposta como ação de processo comum e não foi alterada a forma do processo.
A eventual responsabilidade dos Réus no acidente de trabalho que vitimou EE (sinistrado dos autos de acidente de trabalho apensos) decorreria da violação culposa de regras de segurança imputáveis (ou imputáveis também) a Pedra do Minho Granitos, Lda (titular da licença respeitante à pedreira onde o acidente ocorreu) e a DD (este na qualidade de ... da referida pedreira).
Sublinhe-se que na petição inicial se pode ler a respeito da alegada responsabilidade dos Réus que o acidente se ficou a dever a culpa dos quatro Réus – interessando-nos agora o afirmado a propósito do 2.º e 4.º Réus – por violação das regras de prevenção e segurança: assim afirma-se que “o sinistro ocorrido, que motivou a morte do EE, ficou a dever-se às culpas únicas, exclusivas e concorrentes dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus” (artigo 78.º da PI); que “os indicados, 1.º, 2.º 3.º e 4.º Réus violaram as normas e regras de ínsitas no plano de lavra e do plano de segurança e saúde, infringindo regras legais, regulamentares e técnicas, de conduta, de trabalho, quanto à metodologia extrativa e configuração da escavação e o consequente incumprimento das boas práticas do desmonte; de instalação de meios destinados a prevenir acidentes; e não ministro de formação profissional dos trabalhadores, condutas essas idóneas à criação do perigo para a vida dos trabalhadores, em concreto para o EE, que lhe causaram a sua morte” (artigo 77.º da PI); que “os trabalhadores se limitavam a obedecer às ordens diretas dos 1.º, 2.º. 3.º e 4.º Réus, sem qualquer formação profissional para o efeito” (artigo 49.º da PI); que à data dos factos nem o 3.º nem o 4.º Réu se encontravam na pedreira a superintender os trabalhos (artigo 50.º da PI); que o 4.º Réu era “enquanto diretor técnico, era o maior responsável para execução em segurança dos planos de lavra por si elaborados e aprovados pela DGEG” (artigo 47.º da PI); que “o sinistro ficou a dever-se a falta de observação do plano de lavra e do plano de segurança e saúde, quanto à metodologia extrativa e configuração da escavação e o consequente incumprimento das boas práticas de execução do desmonte, por parte dos 1,´.º, 2.º, 3.º e 4.º Réus” (artigo 38.º da PI).
Decorre, assim, da petição inicial que o que é imputado a todos os Réus é que o acidente de trabalho mortal resultou da falta de observação por todos os Réus (incluindo o empregador a quem se imputa, desde logo, não ter ministrado formação profissional adequada) de regras sobre segurança e saúde no trabalho.
Importa ter presente que o artigo 18.º da LAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, prevê um agravamento da responsabilidade por acidente de trabalho de modo a que a responsabilidade, individual ou solidária, abranja a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pela vítima e pelos seus familiares, nos termos gerais, designadamente quando o acidente resulte de falta de observação pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra das regras sobre segurança e saúde no trabalho. Sublinhe-se, antes de mais, que este acidente continua a ser um acidente de trabalho, mudando apenas a extensão do dano a ser indemnizado ou compensado, mas mantendo-se a aplicação do regime especial da LAT (por exemplo, em matéria de descaracterização ou da noção de força maior). Em segundo lugar, é suficiente a violação das regras de segurança por um destes intervenientes para desencadear a responsabilidade agravada, inclusive do empregador (embora se preveja no n.º 3 do artigo 18.º que se o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, o empregador terá direito de regresso contra aquele). Aliás o empregador é sempre diretamente responsável face ao trabalhador pelo cumprimento das regras de segurança e saúde no trabalho. Destaque-se, ainda, que, verificando-se uma das situações previstas no artigo 18.º da LAT, “a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso” (n.º 3 do artigo 79.º da LAT).
O 2.º Réu é, no caso dos autos, a empresa titular da licença de exploração da pedreira. Na resposta ao Parecer do Ministério Público proferido neste Tribunal ao abrigo do artigo 87.º, n.º 3 do Código do Processo de Trabalho as Autoras e ora Recorridas vêm afirmar que a “2.ª Ré recorrente, bem ou mal, não nos cuida agora saber, deu ou entregou aquele trabalho de exploração àquela 1.ª Ré, entidade patronal do sinistrado” (n.º 11 da resposta), mas não se teria provado qualquer contrato entre a 1.ª e a 2.ª Ré, designadamente qualquer subcontrato (n.º 12 da resposta). Diga-se, no entanto, que a 2.ª Ré deu ou entregou o trabalho de exploração à 1.ª Ré tal entrega consubstancia um contrato, nem que seja tácito. Em todo o caso, a situação concreta configura uma exploração em que que á uma partilha de funções e de responsabilidades. O empregador é o primordial responsável pela segurança e saúde dos seus trabalhadores e pela concomitante observância das regras na matéria. Pode, no entanto, delegar tais poderes e funções. Recorde-se, de resto, que na própria petição inicial se diz expressamente que “os trabalhadores [entre os quais o sinistrado] se limitavam a obedecer às ordens diretas dos 1.º, 2.º. 3.º e 4.º Réus”, o que significa, por outras palavras que os 2.º, 3.º e 4.º Réus não são terceiros absolutamente estranhos à relação laboral e à execução da prestação, mas pessoas que atuavam em representação do empregador, no exercício de poderes deste. A representação a que se refere o artigo 18.º n.º 1 da LAT não é, com efeito, a representação na celebração de negócios jurídicos, mas sim a representação no exercício de poderes que cabem ao empregador e no cumprimento dos respetivos deveres. Assim, por exemplo, é claro que o empregador (a 1.ª Ré) confiou no 4.º Réu como ...da pedreira as tarefas de prevenção e fiscalização em matéria de segurança.
Aqui chegados, importa transcrever uma passagem do douto Parecer do Ministério Público proferido neste Supremo Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, passagem que merece a nossa concordância sem quaisquer reservas:
“A participação dos recorrentes na relação laboral do sinistrado não parece, assim, poder ser vista como uma intervenção de terceiros na produção do acidente de trabalho, tendo em conta que essas entidades atuaram no âmbito da própria relação laboral.
Daqui importa concluir, e salvo melhor opinião, que os recorrentes poderiam ter sido demandados na ação especial de acidente de trabalho, ao abrigo do disposto no art. 18.º da LAT, ficando, assim, afastada a configuração da sua responsabilidade como terceiros causadores do acidente.
Acontece que as autoras não imputaram a responsabilidade pela produção do sinistro a título de culpa no respetivo processo de acidente de trabalho, apesar do relatório da ACT, tendo-se conciliado com base nos direitos decorrentes da responsabilidade objetiva, o que originou um acordo entre as partes intervenientes, que foi judicialmente homologado, e que se encontra transitado em julgado.
Tem a jurisprudência entendido que [a invocação de] todos os pedidos e de todas as questões referentes à responsabilidade do acidente de trabalho deve ter lugar na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, sendo que, transitado em julgado a homologação do acordo aí efetuado, existe impedimento para a propositura subsequente de ação para efetivação de outros direitos ali não reclamados, quer por força das especificidades adjetivas e substantivas da lei de acidentes de trabalho e do respetivo processado, como exceção dilatória inominada, quer por força do caso julgado (ou autoridade de caso julgado) (…)
Uma vez que os recorrentes podiam ter sido chamados ao processo de acidente de trabalho dos autos, nos termos do art. 18.º, n.º 1, da LAT, e não foram, ficaram precludidos os direitos das autoras decorrentes de uma eventual responsabilidade por culpa na produção do acidente de trabalho em causa, conforme os fundamentos acima expostos”
A violação de regras de segurança pelo empregador, mas também pelos seus representantes, nos termos atrás expostos, deveria ter sido aduzida na fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, o que não sucedeu.
Consta do processo um auto de adiamento a 19 de setembro de 2019 em que pelo mandatário das beneficiárias foi dito que o acidente dos autos ocorreu em consequência de violação de regras de segurança pelo que é necessário a presença da entidade empregadora. Por conseguinte a audiência foi adiada para 21 de outubro de 2019.
No auto de conciliação a proposta de indemnizações/compensações foi feita segundo as regras gerais (sem agravamento) e foi aceite nesses termos.
O segurador aceitou a responsabilidade e “[p]ela Entidade Patronal foi dito que face a posição assumida pelas beneficiárias e pela seguradora nada tem a declarar”.
Em suma, e como se pode ler na sentença:
“A ação principal findou na fase conciliatória porque todas as partes aí intervenientes (as ora AA., a seguradora e a entidade empregadora, a aqui R. “C..., Lda.”) acordaram quanto a todos os elementos necessários. Não foi então suscitada a questão da violação de regras de segurança por parte da entidade empregadora ou de terceiros. O acordo foi homologado por sentença, tendo a R. sido condenada no pagamento dos subsídios por morte e por despesas de funeral, bem como no pagamento das pensões vitalícias e temporárias devidas às beneficiárias, aqui AA., e que estas vêm recebendo, com as correspondentes atualizações” (sublinhado nosso).
E se em relação ao empregador (1.ª Réu) e ao 3.º Réu se formou caso julgado, em relação aos 2.º e 4.º Réus verifica-se um efeito preclusivo que justifica a decisão da sentença de indeferir liminarmente a petição inicial.
Decisão: Concedida a revista, repristinando-se a sentença de 1.ª instância.
Custas pelos Recorridos sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
Lisboa, 15 de janeiro de 2025
Júlio Gomes (Relator)
Mário Belo Morgado
José Eduardo Sapateiro