I - No domínio dos contratos de prestações de serviços médicos, considera-se que a prestação é defeituosa quando for levada a cabo com violação de deveres de cuidado a que o prestador está obrigado, nomeadamente com violação das leges artis.
II - Estando provado que um dos riscos da colocação de um cateter epidural é a infecção/abcesso subdural, mas não se provando qual a causa da infecção nem se podendo afirmar que ela está necessariamente associada a uma má execução do tratamento, não pode concluir-se que a infecção sobreveio ao paciente porque o pessoal de que o estabelecimento hospitalar se serviu para colocar o cateter epidural não observou os cuidados de assepsia a que estava obrigado.
a. A título de dano biológico, a quantia de € 121.597,08 ((cento e vinte e um mil, quinhentos e noventa e sete euros e oito cêntimos);
b. A título de dano patrimonial futuro, a quantia de € 115.638,18 (cento e quinze mil, seiscentos e trinta e oito euros e dezoito cêntimos);
c. A título de indemnização por repercussão na vida laboral, a quantia de € 55.161,43 (cinquenta e cinco mil, cento e sessenta e um euros e quarenta e três cêntimos);
d. A título de diferenças monetárias, entre os salários que deveria ter auferido mensalmente (€ 585,60) e os valores que efectivamente recebeu a título de incapacidade temporária/baixa médica, liquidados pela Segurança Social (€ 439,20), entre Abril de 2015 e Janeiro de 2017, a quantia de € 3.806,40 (três mil, oitocentos e seis euros e quarenta cêntimos);
e. A título de dano estético – nunca inferior a 3 pontos, na escala de 1 a 7 – a quantia de € 2.700,00 (dois mil e setecentos euros);
f. A título de quantum doloris – nunca inferior a 3 pontos, na escala de 1 a 7 – a quantia de € 7000,00 (sete mil euros);
g. A título de despesas médicas e medicamentosas futuras, a quantia de € 31.681,07 (trinta e um mil, seiscentos e oitenta e um euros e sete cêntimos), acrescida do que se vier a liquidar em execução de sentença;
h. A título de despesas de aquisição de veículo automóvel com caixa de velocidades automática, a quantia de € 21.132,88 (vinte e um mil, cento e trinta e dois euros e oitenta e oito cêntimos);
i. A título de danos morais, a quantia de € 10.000,00 ((dez mil euros.
Para o efeito alegou em síntese que foi submetida no Hospital da CUF a um procedimento terapêutico de introdução de cateter para fisioterapia para tratamento a uma entorse da articulação tíbia-társica; que o procedimento foi levado a cabo pelo 1.º réu; que o réu executou a aplicação de epidural com violação das legis artis; que daí resultou um abcesso epidural; que a autora sofreu graves danos patrimoniais e não patrimoniais para a autora.
O Hospital CUF Descobertas impugnou os factos, alegando em síntese, que a colocação do cateter decorreu sem intercorrências e que foram observados todos os procedimentos de higiene e desinfecção previstos para a intervenção em causa; que a autora teve uma complicação que se traduziu no aparecimento de um abcesso subdural, do qual veio a recuperar integralmente, mas que não resulta do procedimento realizado pelo 1.º réu. No final pediu se julgasse improcedente a acção e se admitisse a intervenção nos autos da Companhia de Seguros Fidelidade Companhia de Seguros, S.A. para quem havia transferido, por contrato de seguro, a sua responsabilidade civil decorrente da sua actividade de exploração do Hospital CUF Descobertas.
O réu também contestou. Na sua defesa alegou que não celebrou nenhum contrato com autora; que a relação contratual foi estabelecida com o Hospital CUF Descobertas; que só a 2.ª ré é responsável perante a autora. Mais impugnou os factos articulados pela autora. Requereu a intervenção nos autos de Ageas Portugal, Companhia de Seguros, SA.
Foi deferida intervenção nos autos das Companhias de Seguros.
Citadas, contestaram.
A Companhia de Seguros Fidelidade pediu se julgasse procedente a defesa por excepção, relativa aos limites de cobertura dos contratos de seguro, às obrigações dos segurados, e às exclusões previstas nos contratos de seguro, com as legais consequências; Caso assim não se entendesse, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equacionava pediu: (ii) Se julgasse improcedente a acção.
Ageas alegou que se houvesse responsabilidade do 1.º réu, as perdas indiretas de qualquer natureza e os lucros cessantes reclamados pela autora, nomeadamente nos artº 191º, 202º e 203º “ex adverso” não se encontrava cobertos contrato de seguro titulado pela apólice nº ...........81. No mais alegou que subscrevia a contestação apresentada pelo 1.º réu.
No despacho saneador, o tribunal da 1.ª instância absolveu dos pedidos o réu BB e a interveniente Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA.
O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu do pedido a ré Hospital Cuf Descobertas, SA, e a chamada Fidelidade – Companhia de Seguros SA.
Apelação
A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo a substituição da sentença por acórdão que condenasse os réus nos pedidos formulados na acção.
Por acórdão proferido em 7-03-2024, o Tribunal da Relação de Lisboa, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença recorrida e substitui a mesma por decisão que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou as rés a pagarem solidariamente à autora os seguintes montantes e quantias:
1. O de 18.500,00€, a título de dano biológico;
2. O de 2.700,00€, de dano moral/ vertente dano estético;
3. O de 7.000,00€, de dano moral/ vertente quantum doloris;
4. O de 10.000,00€, de dano moral/ em geral;
5. O de 2.515,70€, a título de dano patrimonial e por diferenças/perdas de rendimentos;
6. A quantia correspondente ao montante que vier a ser liquidado [cfr. 609.º, n.º2, do CPC] e equivalente ao custo que vier a suportar a autora em despesas médicas e medicamentosas futuras para minorar/tratar as dores que ainda sofre;
7. A quantia correspondente ao montante que vier a ser liquidado [cfr. 609.º, n.º2, do CPC] e equivalente à diferença entre o preço de €21.132,88 [montante despendido na aquisição de uma nova viatura], deduzido do montante correspondente ao valor da viatura da autora e sem caixa automática.
Revista
A interveniente Fidelidade- Companhia de Seguros S.A. e o réu Hospital CUF Descobertas SA não se conformaram com o acórdão e interpuseram recurso de revista.
A interveniente pediu a revogação do acórdão recorrido.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O recurso da douta sentença apresentado pela Autora versou somente sobre a impugnação da matéria de facto.
2. Conforme resulta do Acórdão recorrido, foi rejeitada a impugnação da matéria de facto por falta de cumprimento do ónus previsto no artigo 640.º do CPC.
3. O que significa que a factualidade provada e não provada, constante da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, não mereceu qualquer reparo e/ou alteração por parte do Tribunal da Relação.
4. Ao apreciar matéria de Direito, quando tal não constituiu objecto do recurso da Autora, ora recorrida (note-se que esta, no seu recurso, nem sequer deu cumprimento ao estatuído no n.º 2 do artigo 639.º do CPC), o Tribunal da Relação extravasou os seus poderes de apreciação e alteração da decisão ao pronunciar-se para além do objeto do recurso.
5. O Tribunal a quo apenas poderia ter apreciado a Motivação de direito, respondendo ao ponto 2 do Thema dedidendum, ou seja, “Se deve a sentença apelada ser alterada, impondo-se a respectiva substituição por decisão que condene a Ré nos termos pela autora peticionados.”, caso tivesse sido primeiramente apreciado a impugnação da matéria de facto, porquanto a apreciação da matéria de direito, além de não ter sido pedida de forma autónoma pela Recorrida no seu recurso – ou seja, não constitui objecto do recurso - apenas poderia colocar-se caso o Tribunal da Relação tivesse apreciado e, eventualmente, alterado/modificado a decisão de facto, já que o Tribunal não pode ocupar-se senão das questões que lhe foram suscitadas pelas partes.
6. Ao ter alterado a decisão de mérito, interpretando de forma diferente o Direito daquela que fez o Tribunal de 1.ª Instância, sem que tal lhe tenha sido pedido, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação é nula, por excesso de pronúncia, atento o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, e viola a lei, nomeadamente, o disposto no n.º 2 do artigo 608.º, aplicável, ex vi da parte final do n.º 2 e do n.º 6, ambos do artigo 663.º e ainda o disposto no n.º 4 do artigo 635.º, todos do CPC.
7. Concluiu erradamente o Tribunal da Relação ao decidir que, se que ficou demonstrado que “A incidência de um abcesso como o que foi verificado na A. ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material da punção, dos anestésicos ou da contaminação da anestesia, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos tópicos” (Facto provado n.º 20), então é porque existiu um “déficit” e/ou falha de esforço/cuidado – ou seja, uma execução defeituosa – da parte do pessoal utilizado pelo Réu Hospital na execução do acto médico.
8. Tendo-se, em primeiro lugar, provado na sentença que: (i) A incidência de um abcesso como o que foi verificado na A. ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material de punção, dos anestésicos ou da contaminação do anestesista, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos tópicos (facto 20); (ii) Antes e durante o procedimento referido em 2., o bloco operatório foi higienizado (facto 78) (iii) Antes da colocação do cateter, foi colocado um penso estéril e um filtro antibacteriano (facto 79). Em segundo lugar, não se tendo provado que: (iv) o abcesso ocorreu em virtude da falta de preparação do médico anestesista e da falta de assepsia do local da punção ou da falta de assepsia do médico (alínea g) E, por fim, considerando: (v) a resposta data aos quesitos 1 e 6 do relatório pericial de 31.12.2020, conclui-se que o salto de raciocínio efectuado pelo Tribunal da Relação não obedece a qualquer lógica, até porque foi também dado como provado que, apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente, infecções nosocomiais (facto 103) e que um dos riscos da colocação do cateter é a infecção (facto 104).
9. No silogismo efectuado pelo Tribunal da Relação falta uma premissa essencial: não está provado que qualquer facto que indicie que houve violação das leges artis. Ou seja, existe ausência do facto de base, já que a prova do facto 20, não permitiria, por si só, alcançar a conclusão a que chegou o Tribunal da Relação, uma vez que do mesmo não se extrai que existiu má prática médica.
10. O Tribunal da Relação alicerçou a sua decisão com base num Acórdão proferido pelo STJ em 12.09.2013 no âmbito do processo n.º 2146/05.0TVLSB.L1.S1, o qual não poderia ser replicado no caso dos autos, pelo simples facto de que, nesse processo, contrariamente ao aqui sucedido, ficou demonstrado que não foram integralmente seguidos os procedimentos devidos por parte do Hospital.
11. A eventual dispensa da Autora, na qualidade de lesada, de, em sede de ónus da prova, de provar o concreto erro determinante da infecção que sofreu só poderia existir caso se tivesse provado que a execução do procedimento foi efectuado de forma defeituosa, o que não sucedeu nestes autos.
12. A presunção extraída pelo Tribunal da Relação viola o disposto no artigo 349.º do CC, já que, ignorando a factualidade provada nos números 78, 79, 103 e 103 e na factualidade não provada da alínea g) – ou seja, ignorando que não foi provado qualquer facto que indiciasse a violação das leges artis - considera que, porque a Autora sofreu um abcesso decorrente de um acto médico, então é porque esse acto médico foi efectuado de forma defeituosa.
13. Ao decidir com base numa presunção ilegal, e com base numa decisão judicial que não pode ser replicada no caso dos autos, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação violou ainda a regra geral do ónus da prova, prevista no n.º 1 do artigo 342.º do CC, já que caberia à Autora a prova do facto ilícito, não podendo a mesma estar “dispensada” de tal ónus pelo simples facto de se ter provado que a incidência do abcesso ter decorrido da realização do cateter (facto provado 20).
14. O Réu Hospital logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si recai, nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do CC, já que se provou na sentença, que (i) apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente, infeccões nosocomiais, (ii) sendo um dos riscos da colocação do cateter a infecção (factos 103 e 104), e que (iii) antes e durante o procedimento o bloco operatório foi higienizado e que foi colocado na Autora um penso estéril e um filtro antibacteriano (factos 78 e 79) e considerando ainda a resposta positiva dada ao quesito 14 do relatório pericial de 31.12.2020 de que, apesar de todos os esforços e cuidados que são tomados pelas administrações hospitalares, no sentido de serem evitadas as infecções, as mesmas continuam a ocorrer em todos os estabelecimentos, sendo impossível a sua total erradicação.
15. Ao exigir-se ao Réu Hospital um ónus excessivo, para prova de que agiu sem culpa, o Tribunal da Relação criou uma situação de desigualdade no acesso de todas as partes à possibilidade real de demonstração dos factos, em especial se atentarmos que, por exemplo, o Tribunal da Relação considerou que a Autora estava “dispensada” de demonstrar o concreto erro de execução determinante da infecção, bastando-lhe fazer prova quanto à existência do acto ilícito de que a infecção de que a mesma padeceu adveio do acto médico realizado (como sucedeu nos presentes autos – facto provado 20).
16. Ao considerar que o Réu Hospital não ilidiu a presunção de culpa que sobre si recai, não obstante os factos provados 78, 79, 103 e 104 e o facto g) não provado, o Tribunal da Relação violou as regras do ónus da prova, nomeadamente, o disposto no artigo 342.º do CC, bem como os princípios constitucionais de proibição da indefesa, que emana do direito constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, da tutela jurisdicional efectiva e da proporcionalidade (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).
17. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação é manifestamente ilegal, injusta e deve por isso ser revogada, o que se requer, mantendo-se, na íntegra, a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Hospital CUF Descobertas, S.A, pediu a revogação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O acórdão recorrido julgou a apelação da Autora parcialmente procedente, tendo considerado que a Autora não cumpriu com as exigências impostas pelo artigo 640º nº1, alíneas a) e c) do CPC, o que determinou a rejeição do recurso no tocante à impugnação da decisão, proferida pelo tribunal de primeira instância, relativa à matéria de facto.
2. O Tribunal “a quo” concluiu, erradamente no entender da ora Recorrente, pela existência da prática de um ato ilícito por parte do Hospital CUF, pela omissão de um comportamento devido, no caso, a falta de cuidados de assepsia no momento da colocação de um cateter epidural para analgesia, o que permitiu que fosse introduzida uma bactéria na corrente sanguínea da Autora, que lhe causou um abcesso/hematoma e consequentes danos.
3. A decisão proferida pelo Tribunal “a quo” é nula “por excesso de pronúncia, atento o disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615., e viola a lei, nomeadamente, o disposto no n.º 2 do art.º 608.º, aplicável ex vi da parte final do n.º 2 e do n.º 6, ambos do art.º 663.º e ainda o disposto no n.º 4 do art.º 635.º, todos do CPC”.
4. A Recorrente procurou e conseguiu provar que, no Hospital CUF Descobertas, a assepsia do local, dos equipamentos e da equipa envolvida era garantida, em todas as intervenções médicas.
5. Na contestação apresentada pela ora recorrente a 24.02.2017, nos artigos 22º a 35º e 109º a 127º e nos documentos nºs 2 a 5, foram exaustivamente descritos os procedimentos de higiene e desinfeção previstos para a intervenção em causa nos autos.
6. Dos 169 (cento e sessenta e nove) temas da prova definidos no despacho saneador de 27.03.2019, apenas 11 (onze) estavam relacionados com a higienização e desinfeção.
7. Face à matéria alegada, tal condensação pareceu à Ré, ora Recorrente, excessiva, por pretender provar que fizera tudo ao seu alcance para prevenir a existência de infeções no estabelecimento de saúde em causa, razão pela qual reclamou dos temas da prova apresentados, sendo certo que não se mostrou relevante para o tribunal de primeira instância discutir em audiência de julgamento, as boas práticas de higienização e a existência de um Grupo de Coordenação Local do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos no Hospital CUF.
8. Não obstante o definido nos temas da prova, a Recorrente, em sede de audiência de julgamento, através da inquirição de várias testemunhas, fez prova de que, no momento da colocação do cateter epidural à Autora, todos os procedimentos de higiene tinham sido cumpridos e que, mesmo cumpridos esses procedimentos na sua totalidade, existe sempre, em qualquer Hospital, riscos de infeção.
9. As testemunhas CC, BB, DD e EE, ouvidas no âmbito desta matéria foram claras, credíveis e não deixaram dúvidas quanto ao correto cumprimento, por parte de toda a equipa do hospital, das leges artis e dos procedimentos de higienização.
10. O Tribunal “a quo” desvalorizou totalmente a matéria de facto dada como provada, bem como a não provada na sentença e, ainda, a prova pericial alicerçando a sua incorreta construção da responsabilidade da Ré num Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013, onde se discutia a responsabilização do Hospital ... pela infeção contraída pelo doente através de uma punção venosa realizada nesse hospital.
11. Contrariamente ao que sucede nos presente autos, nem toda a matéria referente à observância dos procedimentos de higienização ficou provada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013, pelo que, não é aceitável aplicar as mesmas conclusões em processos com factualidades distintas.
12. O médico e toda a equipa da ora recorrente tinham uma obrigação de meios: executar o ato médico de acordo com as leges artis e em cumprimento das normas de higienização exigidas, e essa obrigação foi devidamente respeitada, inexistindo qualquer ato ilícito.
13. Toda a factualidade dada como provada aponta num só sentido: a complicação sofrida pela Autora não se deveu a nenhum ato ilícito por parte da ora Recorrente, registando-se aqui um notório erro de direito por parte do Tribunal “a quo” ao presumir a existência de um ato ilícito em virtude da infeção, apesar do respeito pelas leges artis da Ré, criando uma responsabilidade objetiva que não está prevista na lei, assim violando os artigos nºs 342.º n.º 1, 483.º n.º 2, 798.º e 799.º do CC.
14. A sentença proferida pelo tribunal de primeira instância deve manter-se na íntegra, por ter sido feita uma correta valoração da prova e uma correta aplicação do direito aos factos provados.
15. Desta forma, por ser manifestamente ilegal e resultar numa errada aplicação do Direito à factualidade dada como provada, deve a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” ser revogada.
A autora, recorrida, não respondeu aos recursos.
O Tribunal da Relação, pronunciando-se sobre as nulidades arguidas pelos recorrentes, indeferiu-as.
*
Síntese das questões suscitadas pelos recursos:
• Saber se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia;
• Em caso de resposta negativa, saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que a infecção/abcesso só se pode explicar em razão de um défice e/ou falha de esforço/cuidado [execução defeituosa] da parte do pessoal utilizado pelo Hospital, réu, na execução do acto médico [colocação do cateter epidural para analgesia];
• Em caso de resposta negativa, saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que o réu Hospital não ilidiu a presunção de culpa que recaía sobre si.
*
Factos considerados provados e não provados pelo acórdão recorrido:
Provados:
1. A … de Abril de 2015 a A. subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 305, denominado “Consentimento informado para procedimentos invasivos”, cujo integral teor se dá aqui integralmente por reproduzido, ali constando nomeadamente que: “Eu, AA pelo presente declaro que o Dra. FF me explicou a minha actual situação clínica para a qual estão indicados os seguintes procedimentos diagnósticos ou terapêuticos: 1. Introdução de cateter para fisioterapia 2. Foram-me explicadas as implicações, os riscos e as consequências (mais frequentes e previsíveis) destes procedimentos, bem como as alternativas a eles existentes. Estando perfeitamente esclarecido declaro que aceito, de plena e livre vontade, que o referido médico e a equipa da Unidade Hospitalar Cuf Descobertas procedam à realização do referido procedimento, bem como qualquer outra alternativa que, no meu interesse e segurança, possa vir a ser necessário adoptar, no decurso ou como consequência dos procedimentos referidos. (…) ”.
2. No dia … de Abril de 2015 a Autora deu entrada nas instalações da Ré Hospital Cuf Descobertas,SA, para colocação de um cateter epidural para analgesia.
3. A entidade pagadora dos serviços prestados pela Ré à Autora era a M.... . ...... .. ......
4. O procedimento referido em 2.2. foi realizado pelo Réu BB.
5. Entre a Ré Hospital Cuf Descobertas, SA e a Fidelidade – Companhia de Seguros, S A, foi firmado um “acordo de seguro”, pelo qual transferiu a esta, que aceitou, os riscos inerentes, apontados na apólice nº ......68, o qual ficou subordinado: a) às Condições Particulares que constituem fls. 1222-1224, cujo integral teor se dá aqui por reproduzido; b)às Condições Gerais e Especiais de fls. 1198-1221 e cujo integral teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
6. Nas referidas Condições Gerais ficou a constar: “
• (…) Artigo 3º - Âmbito e garantia: O presente contrato de seguro garante, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de actos ou omissões do segurado, bem como dos seus assalariados ou mandatários, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou particulares da apólice. (…)
• Artigo 6º Exclusões 1. O presente contrato nunca garante os danos: (…) t) Os danos indirectos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e directa do acto ou omissão do Segurado. (…)”.
7. Consta das Condições particulares o seguinte: “ (…) 4. Actividade segura – Estabelecimento de saúde. (…) 6. Âmbito de cobertura (…) 6.2. Este contrato garante ainda a responsabilidade civil profissional de todos os profissionais com actuação no Hospital Descobertas, independentemente do vínculo laboral que possa existir, no exercício de funções nesta Unidade Hospitalar. (…) 9. Limite de indemnização €1.000.000,00 por anuidade limitado a €250.000,00 por sinistro e lesado; (…) 12. Franquia - Responsabilidade civil profissional: €1.250,00 por sinistro.
8. Em Março de 2014, a Autora contraiu uma entorse da articulação tíbia-társica (TT-tornozelo) esquerda, para cujo tratamento recorreu aos serviços clínicos da Hospital Cuf Descobertas, S.A., onde foi acompanhada pela médica Dra. FF e medicada com quetiapina, fluoxetina 20 mg, elontril 75 mg e flurazepan mg, e prescrita fisioterapia.
9. A … de Abril de 2015, o estado de saúde não apresentava melhoria, pelo que a Dra. FF prescreveu a realização de manobra de mobilização (FT) sob analgesia por cateter epidural.
10. Foi estimado que o período de internamento, aludido em 2, necessário para o efeito seria de 5 a 7 dias.
11. A autora não foi esclarecida quanto aos riscos de infecção e/ou por abcesso epidural.
12. A autora aceitou a realização do procedimento referido 1) por a Dra. FF o considerar o mais aconselhável para o seu caso e por confiar na referida médica.
13. Pelas 12h30m do dia … de Abril de 2015, a autora foi conduzida ao bloco operatório, onde foi manobrada por duas enfermeiras para a administração de epidural pelo médico anestesista, Dr. BB.
14. Quando o referido médico anestesista efectuou a primeira tentativa punção, a autora queixou-se de dores fortes.
15. O mesmo médico realizou nova tentativa de punção e, desta feita, administrou a substância e aplicou o cateter.
16. Logo nesse momento, a autora queixou-se ao médico e à equipa de enfermagem de dores na zona lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos.
17. Já na unidade de recobro, a autora foi visitada pelo Dr. BB, que ordenou à equipa de enfermagem a transferência da Autora para o quarto assim que possível, o que veio a suceder no mesmo dia.
18. Em … de Abril de 2015, a autora iniciou o tratamento de administração de medicação por cateter.
19. A autora sentiu e manifestou à equipa de enfermagem dores intensas na zona lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos.
20. Em … de Abril de 2015, a autora apresentava algumas melhorias no pé esquerdo, mas continuava a sentir dores intensas na zona lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos, que manifestou à equipa de enfermagem.
21. No dia … de Abril de 2015, as dores agravaram-se e uma das enfermeiras contactou o Dr. BB para saber se podia retirar o cateter à autora, o que o mesmo autorizou.
22. Após administração de tratamentos de fisioterapia, a autora apresentou melhoria da lesão do tornozelo esquerdo, mas manteve as dores na zona lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos, utilizando uma muleta para aliviar a dor.
23. No dia … de Abril de 2015, a autora apresentava-se febril, com dor lombar e elevação dos parâmetros inflamatórios, pelo que foi pedido apoio à equipa da Medicina Interna, que colheu exames culturais e iniciou linezolide.
24. No mesmo dia a autora foi submetida a ressonância magnética (RMN) da coluna lombo-sagrada.
25. Entre o dia … de Abril e o dia … de Abril, a equipa de enfermagem solicitou à equipa médica e especialmente ao Dr. BB que observasse a autora.
26. A Ressonância Magnética realizada na autora revelou colecção epidural – abcesso/hematoma, que consiste numa inflamação com pus dentro do espaço epidural e que, se não for tratada, tem alta morbidade e mortalidade.
27. A incidência de um abcesso como o que foi verificado na autora ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material de punção, dos anestésicos ou da contaminação do anestesista, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos tópicos.
28. Em …. de Abril de 2015, foi contactada a equipa de neurocirurgia, tendo o médico cirurgião concordado com a antibioterapia instituída e sugerido vigilância.
29. Ao segundo dia de antibioterapia, a autora iniciou quadro de cefaleias holocraneanas intensas que cediam pouco à analgesia prescrita.
30. A autora queixou-se por diversas vezes de sensação estranha do membro inferior direito e falta de força do mesmo, bem como de dor lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos até à região do tornozelo.
31. A autora apresentava hematoma na região lombar no local onde havia sido colocado o cateter, e doloroso à palpação profunda, com diminuição da sensibilidade álgica e táctil no membro inferior direito (MID).
32. A … de Abril de 2015, a Dra. FF visitou a autora, que se apresentava prostrada, sem conseguir relaxar os músculos, com cefaleias, náuseas, vómitos, desidratada e com palidez das mucosas, bem como obstipação de vários dias, mantendo dor lombar e do MID com PCR em crescendo
33. A Dra. FF solicitou que a autora fosse submetida a Ressonância Magnética Crânio-encefálica (RMN CE) urgente que, realizada, não mostrou alterações relevantes no contexto.
34. Pelo que se associou menoperem a antibioterapia.
35. A … de Maio de 2015, a autora foi submetida a Ressonância Magnética Lombar (RM L) que mostrou extenso abcesso subdural, expressando-se por colecções entre a dura e aracnoide com colecções posteriores ao nível de L3 e L4 e também colecção extensa de D12 a L3 com captação de contraste periférico nestas colecções, revelou o começo de formação de pequena colecção anterior ao nível de L1 a L3, sinais de meningite espinhal (aracnoidite infecciosa) com captação de contraste pial ao longo do cone medular ata D11 e também com captação de contraste das raízes da cuada equina que se apresentam comprimidas por estas colecções ao longo de todo o saco dural até ao nível de L5 e as raízes apresentavam-se também espessados e tumefactas pelo processo inflamatório infeccioso.
36. Pelo que a autora foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos Permanentes (UCIP) para melhor monotorização e vigilância, onde foi observada pelo médico neurocirurgião, Dr. CC, que propôs cirurgia para drenagem e descompressão sacular. 2.37.
37. A … de Maio de 2015, a autora foi submetida a intervenção cirúrgica para laminectomia de L3, L4 e L5 (parcial), drenagem de abcesso epidural justa articular de L4-L5 direita e lavagem profusa do espaço epidural exposto com SF gentamicina.
38. A … de Maio de 2015, persistiam queixas com subida dos parâmetros inflamatórios, pelo que foi repetida RMN, a qual mostrou persistência da colecção subdural sem melhoria, apesar de a Autora estar a realizar antibioterapia dirigida (isolamento de SAMS no pús) Ceftriaxone e rifampicina.
39. Em consequência, a … de Maio de 2015, a autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica para laminectomia de L1, L2 e L3, abertura da duramater e remoção da empiema organizado em situação subdural.
40. A autora passou a apresentar instabilidade emocional com ansiedade marcada, tremores constantes e choro fácil (resposta restritiva ao TP 65º).
41. Pelo que foi observada pela psiquiatra Dra. GG, que procedeu ao aumento da dosagem de gabapantina para 300 3 x dia, diazepam 5 + 5 +0 + 10e em SOS e 1x dia diazepam solução oral 10 mg e substituiu oxazepam por flurazepam
42. A … de Maio de 2015, a autora foi submetida a TAC Abdomen e TAC Pélvico.
43. A … de Maio de 2015, a autora saiu da Unidade de Cuidados Intensivos Permanentes e regressou ao quarto.
44. A … de Junho de 2015 foi dada alta hospitalar à autora, mas não lhe foi dada alta médica, tendo esta mantido a administração de ceftriaxone 2g ev de 12/12h durante 15 dias, com antibioterapia em ambulatório no Hospital CUF Descobertas, mantendo, para o efeito, acesso venoso periférico.
45. A … de Agosto de 2015, a autora voltou a ter dores intensas na zona lombar com irradiação para o flanco e membro inferior direitos, tendo recorrido à urgência, no Hospital CUF Descobertas, onde lhe foi diagnosticada uma contratura muscular.
46. Apesar de ter sido medicada, a autora manteve dor intensa, que agravou com o passar dos dias.
47. A … Agosto de 2015, a autora foi observada em consulta pelo Neurocirurgião Dr. CC, que lhe receitou nova medicação, a qual melhorou o seu estado clínico.
48. A Autora continuou a ser acompanhada clinicamente no Hospital CUF Descobertas, em neurocirurgia, pelo Dr. CC, até … de Dezembro de 2015.
49. A partir dessa data, a autora passou a ser acompanhada pelo mesmo médico no Hospital de ..., igualmente em consultas de neurocirurgia, e pelo seu médico de família, Dr. HH, no Centro de Saúde de ....
50. No final de Dezembro de 2015, a autora mantinha queixas de dores fortes na coluna lombar e alterações sensitivas, parestesias, dos membros inferiores, pelo que o seu médico de família prescreveu sessões de fisioterapia e frequência de consultas de dor.
51. Estes tratamentos foram igualmente indicados pelo médico-neurocirurgião Dr. CC, em consulta realizada em 25 de Fevereiro de 2016.
52. A autora realizou 13 (treze) sessões de fisioterapia na clínica F..., Lda, que terminaram em Abril de 2016.
53. A autora realizou ainda tratamentos de acupunctura e de Tui Na, administrados na Clínica de Medicina Chinesa D.. ..... .....
54. Em Maio de 2016, a autora iniciou consulta da Dor, com a Dra. II, no Hospital ..., e consultas de psicologia clinica, com a Dra. JJ, no mesmo Hospital.
55. Apesar disso, a autora manteve sempre as queixas de dores fortes na coluna lombar e alterações sensitivas, parestesias, dos membros inferiores, consequência do abcesso ocorrido.
56. A autora manteve tratamento medicamentoso com: Algimate 125 mg; Tolvon 30 mg; Metanor; Lioresal 10 mg; Tramal; Decadron 0,5 mg; Sirdalud; Adt 10 mg; Exxiv 90 mg; Metamizol; Flexiban; Rivotril 0,5 mg e 2 mg; Gabapentina 300 mg; Lírica, Duloxetina; Betametasona; Diclofenac; Fluoxetina; Lactulose; Flurazepam; Diazepam; Pregabalina; Quetiapina; Clomipramina; Pantoprazol; Ceftriaxona; Buprenorfina; Tapentadol; Clonixina; Clonazepam; Amitriptilina.
57. A autora tomou flexicaps; feng shi pian F – 594 e Yao tong ling C – 144.
58. A autora toma actualmente Fluoxetina, palexia 100 mg e gabapentina 300 mg.
59. À data da propositura da acção, a autora continuava a ser acompanhada pelo Dr. CC, no Hospital de ..., e na consulta da dor pela Dra. II no Hospital ....
60. A autora mantém dores na coluna lombar e perda de força em ambos os membros inferiores, consequência do abcesso referido em 26.
61. A autora despendeu em tratamentos, consultas médicas, medicamentos e transportes a quantia de € 2.632,50.
62. A autora exercia a actividade profissional de colaboradora de loja de fotografia, auferindo a quantia mensal de € 585,60.
63. A autora está de reformada por invalidez desde ........2016.
64. Entre Abril de 2015 e Janeiro de 2017, a autora auferiu a quantia mensal de € 439,20, paga pela Segurança Social.
65. A esperança média de vida das mulheres em Portugal é de 84 anos.
66. Em consequência das dores na zona lombar e perda de força nos membros inferiores, a autora apresenta limitações de marcha e não consegue permanecer longos períodos de pé.
67. A autora também não consegue fazer sozinha sem dificuldade as compras ao supermercado nem transportar os sacos das compras mais pesados.
68. A autora também não consegue sem dificuldade limpar, cozinhar, engomar, aspirar, pegar na cesta da roupa.
69. À data dos factos, a autora tinha 38 anos de idade, era casada e tinha dois filhos menores de idade.
70. Era habitual a autora dar passeios com o marido e filhos, a pé e de bicicleta, o que deixou de fazer.
71. A autora conduzia veículos com caixa de velocidades manual, mas deixou de o poder fazer, tendo tido necessidade de adquirir um veículo com caixa de velocidades automática, no que despendeu € 21.132,88.
72. Antes de 20 de Abril de 2015, a autora era uma pessoa fisicamente saudável.
73. A autora tornou-se uma pessoa triste, angustiada, frustrada, pessimista quanto ao futuro e com sentimento de inutilidade para a sociedade e para a família.
74. Devido às dores que ainda sofre, a autora necessitará ainda de suportar despesas médicas e medicamentosas.
75. A autora temeu pela sua vida.
76. A autora ficou com uma cicatriz, que a entristece.
77. A autora sofreu dano estético permanente fixável em grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
78. A autora tem sofrido dores cujo grau é fixável em 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
79. A autora foi acompanhada psiquiatricamente aquando do nascimento da filha mais nova, tendo sido medicada com fluoxetina por depressão pós-parto.
80. No final de 2013, ocorreu exacerbação da sintomatologia depressiva com humor muito deprimido, irritabilidade e somatizações, anorexia, vómitos, diminuição do peso, tendo como desencadeante preocupações laborais.
81. Em Fevereiro de 2014 a autora apresentava-se muito angustiada, com choro constante, desmotivada e com sentimento de desesperança, medo de não melhorar, tendo sido medicada com amissulpride 50 ao almoço e morfex 30 ao deitar.
82. E a … .04.2014. apresentava-se muito deprimida e com ideação suicida não estruturada.
83. A … de Abril de 2015, a autora apresentava um quadro depressivo.
84. No momento da colocação do cateter, a autora apresentava-se ansiosa, chorosa e com tremores constantes, o que dificultou tal operação e obrigou o Dr. BB a realizar duas punções.
85. Antes e durante o procedimento referido em 2.2, o bloco operatório foi higienizado.
86. Antes da colocação do cateter, foi colocado um penso estéril e um filtro antibacteriano.
87. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pela ortopedista, Dra. FF, pela fisioterapeuta KK e pela Dra. Ana Cadete.
88. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pela fisioterapeuta KK, pela Dra. FF e pela Dra. LL.
89. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pela fisioterapeuta KK, Dra. LL e pela Dra. FF.
90. No dia …. de Abril de 2015, a autora foi vista pela fisioterapeuta KK, pela Dra. FF, pela Dra. LL.
91. No dia … de Abril de 2015, a enfermeira MM perguntou à autora se a mesma pretendia fosse retirado o cateter, tendo a mesma declarado preferir fosse retirado o cateter.
92. Ainda no dia … de Abril de 2015, o Dr. BB observou a autora e concretamente a zona da punção, que apresentava um pequeno hematoma local devido à punção da pele, mas a autora apresentava-se sempre hemodinamicamente estável e apirética.
93. A temperatura máxima registada pela autora foi de 37.3ºC, aconteceu apenas uma vez e no dia … de Abril.
94. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pela Dra. FF e pela Dra. LL.
95. Umas vezes a autora queixava-se de dores no local da punção, outras vezes (dia 21 de Abril) queixava-se de dores ao nível da anca, mas também à palpação da zona lateral e posterior de todo o membro inferior.
96. Nalguns dias (dia … de Abril), a autora descrevia cefaleias e hipotensão, outros dias (24 Abril), a autora apresentava-se calma e sem queixas.
97. O quadro depressivo que a autora apresentava é susceptível de provocar sintomas físicos, designadamente, quadros dolorosos e dificultava o diagnóstico da infecção, o qual não era detectável através dos sintomas descritos e da observação do local da punção.
98. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pela fisioterapeuta KK, pela Dra. FF e pela Dra. LL, apresentando dores lombares intensas e cefaleias.
99. Pelo que foi contactado o anestesista de urgência, Dr. NN, e foi feito um pedido de observação para a Neurologia (Dr. OO) para avaliação no membro inferior direito.
100. No dia … de Abril, a autora foi observada pelo Dr. OO que solicitou hemoculturas e uma ressonância magnética.
101. No dia … de Abril de 2015, a autora foi vista pelo Dr. BB, pela Dra. FF (mais do que uma vez), pelo Dr. PP, pela fisioterapeuta KK, pela Dra. LL.
102. No dia … de Abril, pelas 11:46, o Dr. PP contactou telefonicamente o Dr. QQ, da Imagiologia, com vista a saber do resultado da RM.
103. A RM ainda não se encontrava relatada, mas o Dr. QQ informou existir evidência de colecção epidural/hematoma vs hematoma infectado sem efeito compressivo significativo.
104. No dia … de Maio, ao chegar à UCIP, a autora apresentava-se desperta, calma
105. No dia … de Maio de 2015, a autora apresentava-se melhorada do quadro álgico, nomeadamente com resolução das cefaleias, mais comunicativa e tranquila, melhor, ao nível dos membros inferiores, com ausência de tremor e com força muscular mantida, melhor das alterações e da sensibilidade.
106. No dia … de Maio de 2015, o Dr. CC assistiu à realização da RM e deu “indicação cirúrgica de acordo com os achados”, tendo essa intervenção decorrido sem intercorrências, encontrando-se a autora, após a mesma, hemodinamicamente estável.
107. Depois da referida intervenção, verificou-se uma redução progressiva dos parâmetros inflamatórios e melhoria do quadro álgico.
108. A … de Junho de 2015 e relativamente ao diagnóstico inicial, a autora não apresentava queixas, realizava marcha sem canadianas com apoio completo e indolor do pé esquerdo.
109. A … .07.2015, a autora realizou no Hospital CUF Descobertas uma RM Dorsal e Lombo-sagrada de que resultava a resolução completa das colecções infecciosas subdurais e epidurais dorso-lombares, com resolução do edema medular inferior.
110. Apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente, infecções nosocomiais.
111. Um dos riscos da colocação do cateter é a infecção.
Não provados:
a. Que a autora não foi esclarecida quanto ao objectivo e complicações da analgesia por cateter epidural;
b. Que o médico anestesista efectuou a punção, mas não administrou convenientemente a substância anestésica;
c. Que aquando da realização da punção, o médico anestesista causou dores fortes e quase incomportáveis à Autora;
d. Que a enfermeira procedeu à retirada do cateter sem indagar junto da autora se a mesma autorizava ou recusava o acto declarando que era o melhor para a Autora;
e. Que a entre os dias 24 e 28 de Abril de 2015, nenhum médico observou a autora;
f. Que a incidência de um abcesso varia entre 0,5% e 0,4% (34º);
g. Que o abcesso ocorreu em virtude da falta de preparação do médico anestesista e da falta de assepsia do local da punção ou da falta de assepsia do médico;
h. Que devido à colecção epidural, a autora correu risco de vida;
i. Que a partir de 30.04.2015, a Dra. FF foi afastada do processo clínico da autora, por ordens superiores;
j. Que a segunda intervenção cirúrgica originou perigo para a vida da autora;
k. Que a contractura muscular sofrida pela Autora em 7 de Agosto de 2015 foi consequência do abcesso referido em 26;
l. Que devido às dores, a autora está incapaz permanentemente de exercer a sua actividade profissional;
m. Que a autora tem uma incapacidade permanente global de 66%;
n. Que anteriormente a autora frequentava o ginásio todos os dias;
o. Que o valor das despesas médicas e medicamentosas que terá de suportar pela vida fora é de pelo menos de pelo menos €100,00 por mês.
*
Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução das questões suscitadas pelos recursos.
Primeira questão: saber se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia.
Os recorrentes acusam o acórdão da Relação de estar ferido de nulidade por excesso de pronúncia. Segundo a sua alegação, a decisão recorrida, na parte em que apreciou matéria de direito, é nula por excesso de pronúncia porque tal matéria não constituía objecto do recurso da apelação; na sua interpretação, o recurso versou apenas sobre a decisão relativa à matéria de facto.
A arguição de nulidade do acórdão é de indeferir.
A nulidade do acórdão por excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal da Relação conhece de questões de que não podia tomar conhecimento (2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC).
Esta causa de nulidade está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC (também aplicável ao acórdão por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC), na parte em que dispõe que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Uma vez que não cabia ao tribunal da Relação sindicar oficiosamente a legalidade da sentença proferida em 1.ª instância, a razão estaria do lado dos recorrentes se a apelante não tivesse impugnado tal legalidade, o que não aconteceu. Apesar de o recurso de apelação, versando matéria de direito, não primar pelo rigor – o rigor exigiria que a recorrente observasse o disposto nas alíneas a), b) e c), do n.º 2 do artigo 639.º do CPC -, ainda assim é de interpretar parte da alegação como imputação à sentença de erros na aplicação do direito. Com efeito, ao alegar, sob a conclusão 13.ª, que a consequência da existência da bactéria em contexto hospitalar era a responsabilidade do réu CUF Descobertas SA e ao alegar, sob a conclusão imediatamente seguinte (que enumerou por lapso como sendo a n.º 18), que o réu era responsável pelos actos praticados pelas pessoas que utilizava para dar cumprimento às suas obrigações (médicos, enfermeiros, auxiliares, etc), nos termos do disposto no art.º 800.º do Código Civil, a recorrente sustentou, contra o entendimento afirmado na sentença proferida em 1.ª instância, que estavam reunidos os pressupostos para a responsabilização da ré pelos danos decorrentes da infecção contraída por ela, autora.
Pelo exposto, ao conhecer da questão de saber se a sentença devia ser alterada e substituída por decisão que condenasse a ré nos termos pedidos pela autora, o acórdão recorrido não incorreu em excesso de pronúncia.
Em consequência, indefere-se a arguição de nulidade do acórdão.
*
Segunda questão: saber se, ao decidir que a infecção/abcesso só se pode explicar em razão de um défice e/ou falha de esforço/cuidado [execução defeituosa] da parte do pessoal utilizado pelo Hospital réu na execução do acto médico [colocação do cateter epidural para analgesia], o acórdão recorrido incorreu em erro.
Na resposta a esta questão, importa começar por expor, ainda que em termos resumidos, as razões que levaram o acórdão sob recurso a responsabilizar o réu pelos danos resultantes da infecção. Essas razões foram, em suma, as seguintes:
• Entre a autora e a ré foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, na modalidade de contrato total, no âmbito do qual a clínica assumiu directa e globalmente as obrigações de prestação de cuidados de saúde a par das de internamento hospitalar;
• A autora foi vítima de complicações médicas e clínicas no decurso de tratamento médico a uma entorse tíbio társica e na origem de tais complicações esteve um abcesso/hematoma, que consiste numa inflamação com pus dentro do espaço epidural e que, se não for tratada, tem alta morbilidade e mortalidade;
• O abcesso/hematoma que afectou o bem-estar físico e a saúde da autora surgiu no seguimento da realização pela ré, Hospital CUF, de acto médico de punção que foi efectuado com o desiderato de administrar à autora determinada substância/medicação através de cateter;
• Provando-se que “apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente, infecções nosocomiais” e que um dos riscos da colocação do cateter era a infecção”, seguia-se daqui que sobre a ré, Hospital CUF (através dos profissionais ao seu serviço) impendia o dever geral e específico de diligência, a fim de evitar a lesão de direitos alheios, aquando da execução do acto médico de punção para colocação de um cateter epidural para analgesia;
• Estando provado que “a incidência de um abcesso como o que foi verificado na Autora ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material de punção, dos anestésicos ou da contaminação do anestesista, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos tópicos” e que a infecção/abcesso da autora ocorreu na sequência da punção para colocação de cateter, então tal só se podia explicar em razão de um déficit e/ou falha de esforço/cuidado [execução defeituosa] da parte do pessoal utilizado pelo Hospital réu na execução do acto médico;
• A tal conclusão não obstava o facto de ter sido julgado não provado que o abcesso ocorreu em virtude da falta de preparação do médico anestesista e da falta de assepsia do local da punção ou da falta de assepsia do médico, pois como se decidiu no acórdão do STJ proferido em 12-09-2013, no processo n.º 2146/05.0TVLSB.L1.S1., publicado em www.dgsi.pt. “Resultando necessariamente tal ocorrência de uma execução defeituosa, não compete ao lesado, em sede de ónus da prova (art. 342.º, n.º 1, do CC), provar ainda o concreto erro de execução determinante da infeção, designadamente se a infeção resultou do manuseamento do material utilizado sem proteção ou do contacto deste com superfícies ou matérias não desinfetadas ou da sua falta de esterilização ou da falta de limpeza e desinfeção da zona corporal”;
• Havendo ilicitude, presumia-se a culpa, nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil;
• A culpa não foi ilidida com a prova de que, “antes e durante o procedimento referido em 2., o bloco operatório foi higienizado” e que “Antes da colocação do cateter, foi colocado um penso estéril e um filtro antibacteriano”;
• Para ilidir a presunção de culpa, competia ao Hospital provar que agiu de forma diligente, máxime que desenvolveu todos os esforços para realizar a prestação devida, tendo sido cauteloso e usado do devido zelo, em face das circunstâncias concretas do caso, tal como faria uma pessoa, normalmente, diligente.
A interveniente, Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A, opôs-se a esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa:
• Que no silogismo efectuado pelo tribunal da Relação falta uma premissa essencial: não está provado qualquer facto que índice a violação das leges artis;
• O tribunal da Relação alicerçou a sua decisão com base num acórdão proferido pelo STJ que não poderia ser replicado no caso dos autos pelo simples facto de, nesse processo, contrariamente ao aqui sucedido ficou demonstrado que não foram integralmente seguidos os procedimentos devidos por parte do Hospital;
• A presunção extraída pelo tribunal da Relação viola o disposto no artigo 349.º do Código Civil;
• Ao decidir com base numa presunção ilegal e com base numa decisão judicial que não pode ser replicada no caso dos autos, a decisão recorrida violou a regra do ónus da prova prevista no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil;
• O Hospital logrou ilidir a presunção de culpa que recaía sobre si;
• Ao considerar que o Hospital não ilidiu a presunção de culpa que recaía sobre si, não obstante os factos provados 78, 79, 103 e 104 e o facto g) não provado, o Tribunal da Relação violou as regras do ónus da prova, nomeadamente o disposto no artigo 342.º do CC, bem como os princípios constitucionais de proibição da indefesa, que emana do direito constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, da tutela jurisdicional efectiva e da proporcionalidade (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).
Por sua vez, o réu, Hospital CUF Descobertas, SA. opôs-se, em síntese, com a seguinte argumentação:
• Que o médico e toda a equipa do ora recorrente tinham uma obrigação de meios: executar o ato médico de acordo com as leges artis e em cumprimento das normas de higienização exigidas, e essa obrigação foi devidamente respeitada, inexistindo qualquer ato ilícito;
• Toda a factualidade dada como provada aponta num só sentido: a complicação sofrida pela Autora não se deveu a nenhum ato ilícito por parte da ora Recorrente, registando-se aqui um notório erro de direito por parte do Tribunal “a quo” ao presumir a existência de um ato ilícito em virtude da infeção, apesar do respeito pelas leges artis da Ré, criando uma responsabilidade objetiva que não está prevista na lei, assim violando os artigos nºs 342.º n.º 1, 483.º n.º 2, 798.º e 799.º do CC.
Os recursos são de julgar procedentes, embora não pelas exactas razões alegadas pelos recorrentes.
Em primeiro lugar, cabe dizer que, ao decidir que a infecção contraída pela autora foi consequência da colocação do cateter epidural sem observância dos cuidados a que o réu Hospital estava obrigado, o acórdão recorrido não violou o disposto no artigo 349.º do Código Civil.
Com efeito, dizendo este preceito que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, o acórdão recorrido tê-lo-ia violado se, para decidir como decidiu, tivesse presumido um facto a partir de factos não provados. Não foi o que sucedeu. O raciocínio a que o recorrente chama de presunção contrária ao artigo 349.º do Código Civil não é um juízo (conclusivo/presumido) de facto; é um juízo jurídico, que responde à questão de saber se a prestação do réu Hospital, consistente na colocação do cateter epidural, é de reputar defeituosa. Esta interpretação é atestada pelos seguintes trechos do acórdão: “Apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente, infecções nosocomiais” , sendo que “ Um dos riscos da colocação do cateter é a infecção ” [ cfr. itens e facto nºs 2.106 e 2.107 ], razão porque à partida, e aquando da execução do acto médico de punção para colocação de um cateter epidural para analgesia, sobre a Ré/Hospital [e através dos profissionais ao seu serviço] incidia o dever geral e especifica de diligência a fim de evitar a lesão de direitos alheios.
Depois, porque uma vez provado que [item de facto nº 2.27] “A incidência de um abcesso como o que foi verificado na Autora ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material de punção, dos anestésicos ou da contaminação do anestesista, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos tópicos ”, então porque no caso da autora e na sequência de concreta punção foi desencadeada uma infecção/abcesso, tal só se pode explicar em razão de um déficit e/ou falha de esforço/cuidado [execução defeituosa] da parte do pessoal utilizado pelo Hospital réu na execução do acto médico”.
Ora a questão de saber se uma determinada prestação foi executada defeituosamente é questão de direito, pois é ao direito, e não aos meios de prova, que cabe dizer se o devedor cumpriu defeituosamente a prestação a que estava vinculado.
Daí que, ao julgar que a execução do acto médico em questão foi efectuada defeituosamente, o acórdão não violou o artigo 349.º do Código Civil.
O erro em que incorreu o acórdão foi o de considerar que na origem da infecção contraída pela autora esteve a execução defeituosa da colocação do cateter epidural, quando não havia base de facto suficiente para formular tal juízo. Vejamos.
A questão de direito resolvida pelo acórdão da Relação foi a de saber se o Hospital CUF Descobertas era responsável pelos danos sofridos pela autora em consequência de uma infecção/abcesso subdural, contraída por ela depois de lhe ter sido colocado um cateter epidural para tratamento de uma lesão tíbio társica.
Os recorrentes não põem em causa algumas premissas da resposta afirmativa dada à questão.
Aceitam a decisão de aplicar, na resolução da questão, o regime da responsabilidade civil contratual. Esta decisão não merece reparo. Com efeito, como entendeu o acórdão sob recurso, também sem impugnação dos recorrentes, a entrada da autora no estabelecimento hospitalar do réu para tratamento de entorse tíbio társica, mediante colocação de um cateter epidural para analgesia, deu-se em cumprimento de um acordo celebrada entre aquela e este, que se ajusta à noção de prestação de serviços constante do artigo 1154.º do Código Civil. Em concreto, por efeito de tal acordo, o réu obrigou-se a tratar uma entorse da articulação tíbio társica esquerda, sofrida pela autora, através da realização de manobra de mobilização sob analgesia por cateter epidural. Além deste serviço, o réu obrigou-se a prestar o serviço de internamento. Daí que o acórdão, tendo como referência as modalidades que a doutrina distingue nos contratos de prestação de serviços médicos (contrato total, contrato dividido e contrato cujo objectivo exclusivo é a prestação de cuidados médidos) tenha qualificado o que foi celebrado entre a autora e o réu como “contrato total”, ou seja, aquele em que “… a clínica assume directa e globalmente as obrigações de prestação de cuidados médicos a par das de internamento hospitalar.”
Os recorrentes também não põem em causa o acórdão recorrido, na parte em que ele entendeu que a responsabilidade do Hospital pelos danos resultantes da infecção/abcesso subdural estava dependente da prova, pela autora, ora recorrida, de que a colocação do cateter epidural foi executada defeituosamente e que foi a execução defeituosa que deu causa à lesão na saúde em que se traduz a infecção/abcesso subdural.
Com o que os recorrentes não concordam, pelas razões acima indicadas, é com o entendimento de que a infecção/abcesso subdural explica-se por uma falha de esforço, de cuidado, ou seja, pela execução defeituosa da colocação do cateter epidural.
A discordância dos recorrentes é fundada. Vejamos.
O regime de responsabilidade aplicável à responsabilidade do recorrente Hospital CUF Descobertas, pelos danos resultantes da infecção/abcesso subdural, é o da responsabilidade civil contratual. Visto que não há normas especiais que regulem tal responsabilidade são-lhe aplicáveis as dos artigos 798.º a 800.º, todos do Código Civil.
Do artigo 798.º decorre que o devedor (condição que no âmbito do presente litígio é a do réu Hospital CUF Descobertas) que falta culposamente ao cumprimento da obrigação responde pelo prejuízo que causa ao credor (condição que no presente litígio é a da autora).
Como resulta do n.º 1 artigo 799.º, não é só a falta de cumprimento que torna o devedor responsável pelo prejuízo que causa ao credor. O cumprimento defeituoso também o faz mergulhar em tal responsabilidade.
Segue-se daqui que a falta culposa de cumprimento e o cumprimento defeituoso, também com culpa, são factos constitutivos da obrigação de indemnização.
E, assim, por aplicação do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil caberia ao credor provar tanto da falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso, como a culpa do devedor.
Sucede que o n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, ao dispor que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, presume, em caso de falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso, a culpa do devedor. E, assim, por aplicação do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, em caso de falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso, o credor escusa de provar os factos relativos à culpa do devedor. Esta presume-se. É ao devedor que cabe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.
Pode, assim, dizer-se que, em matéria de indemnização fundada em responsabilidade contratual, o ónus da prova reparte-se nos seguintes termos:
• Ao credor cabe o ónus de provar: i) a obrigação a que o devedor estava vinculado; ii) a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso dessa obrigação, isto é, os factos que traduzem a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso; iii) os danos; iv) o nexo de causalidade entre a falta de cumprimento e/ou o cumprimento defeituoso e os danos;
• Ao devedor cabe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.
A questão que se discute no recurso é a de saber se o réu Hospital executou defeituosamente a colocação do cateter epidural e se é nessa execução defeituosa que reside a causa da infecção/abcesso subdural contraída pela autora. À luz do que se escreveu anteriormente, era sobre a autora, ora recorrida, que recaía o ónus de provar que o réu cumpriu com defeito a colocação do cateter e que havia uma relação de causa/efeito entre tal cumprimento defeituoso e a infecção.
O artigo 798.º do Código Civil, que responsabiliza o devedor pelo cumprimento defeituoso da sua prestação, não dá a noção de cumprimento defeituoso. As disposições sobre contrato de prestação de serviços (artigos 1154.º a 1156.º) também não fornecem qualquer apoio neste sentido. E as do contrato de mandato que, por força do artigo 1156.º do Código Civil, são aplicáveis com as necessárias adaptações às modalidades do contrato de prestação de serviços que a lei não regule especialmente (como sucede com o contrato de prestação de serviços médicos em causa nos autos) também não dão qualquer indicação a este propósito.
É a jurisprudência e a doutrina que têm vindo a preencher o conceito de cumprimento defeituoso para efeitos do artigo 798.º do Código Civil. No domínio dos contratos de prestações de serviços médicos, a jurisprudência e a doutrina têm considerado que a prestação de tais serviços é defeituosa quando for levada a cabo com violação de deveres de cuidado a que o prestador está obrigado, nomeadamente com violação das leges artis.
É o que se colhe no acórdão do STJ proferido em 26-04-2016, processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1. publicado em www.dgsi.pt ao escrever-se: “A responsabilidade no âmbito do contrato de prestação de serviços depende da prova duma situação que traduza incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se, como é o caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção”.
É o que se colhe também no acórdão do STJ proferido em 23-03-2017, processo n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, ao escrever: “Já no domínio das obrigações de meios, tem-se entendido que impende sobre o credor lesado (paciente) provar ….a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas leges artis, como pressuposto da ilicitude, incumbindo, por seu turno, ao devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento a fim de ilidir a presunção de culpa”.
É ainda o que se colhe também por exemplo no acórdão do STJ proferido em 12-01-2022, no processo n.º 1616/11.5TVLSB.L1.S1.,também publicado em www.dgsi.pt ao relacionar a prestação médica defeituosa com “o emprego de um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis”.
E é ainda o que se colhe no acórdão do STJ proferido em 2-05-2024, no processo n.º 2313/14.5T8LSB.L1.S1, também publicado em www.dgsi. ao escrever: “… só com a violação do dever de cuidado – avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas referidas “legis artis” – é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjectiva e com conteúdo ético…”.
Na doutrina, André Gonçalo Dias Pereira escreve a este propósito: "... a prova do incumprimento passa pela demonstração de que o médico não agiu de acordo com as leges artis (Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, 1.ª Edição, Fevereiro de 2015, página 708).
Ainda na doutrina, escreve Carlos Ferreira de Almeida: “Em relação à obrigação principal considera-se que o cumprimento é defeituoso quando seja desconforme com as leis da arte médica, de harmonia com o estádio de conhecimentos da ciência ao tempo da prestação dos cuidados de saúde” (Os Contratos Civis de Prestação de Serviços Médicos, Direito da Saúde e Bioética, Associação Académica da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1996, páginas 116 e 117).
Ainda na doutrina escreve Rute Teixeira Pedro: “… em regra, o incumprimento imputável ao médico apresenta uma configuração que não se reconduz nem a um atraso na implementação dos actos devidos, nem à sua omissão irremediável. Trata-se com frequência de situações em que o médico realiza a prestação assumida, mas fá-lo de forma deficiente, já que, em virtude de empregar um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis, provoca danos à pessoa, e indirectamente ao património do doente. A especificidade destas situações é a de que nelas o incumprimento deriva, não de uma pura violação negativa do seu dever de prestar (…), mas de vícios defeitos ou irregularidades da prestação efectuada” (A Responsabilidade Civil do Médico, Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 2008, página 110).
Esta interpretação está em conformidade:
• Com o artigo 4º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, segundo o qual “Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efectuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como das regras de conduta aplicáveis ao caso concreto”;
• Com o artigo 135.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Médicos segundo o qual “O médico deve exercer a sua profissão de acordo com a leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade”;
• Com o artigo 150.º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.
De resto foi nestas águas que navegou o acórdão recorrido
Em matéria de cumprimento defeituoso, no âmbito da prestação de serviços médicos, importa dizer ainda que os deveres de cuidado e as leges artis a observar dependem dos actos médicos a realizar. Se é de admitir cuidados médicos comuns a actos médicos diferentes, também é de admitir que há cuidados médicos específicos de certos actos médicos. Com o exposto pretende dizer-se que a afirmação de que a prestação de um tratamento médico foi realizada defeituosamente implicará, em regra, a especificação do cuidado ou da leges artis que não foi observado.
Interpretado o cumprimento defeituoso, no âmbito dos tratamentos médicos, com o sentido e alcance expostos, é de afirmar que a conclusão a que chegou o acórdão recorrido de que a infecção/abcesso subdural só se podia explicar por falha de esforço ou cuidado na colocação do cateter epidural não tem base de facto suficiente. Vejamos.
Está provado que um dos riscos do tratamento a que a autora foi sujeita no estabelecimento hospitalar da ré – a colocação de um cateter epidural – é a infecção. O risco explica-se porque o tratamento da entorse tíbio társica a que foi sujeita a autora implicou a introdução de um corpo estranho no interior do organismo e esta introdução pode ser propícia ao contágio por microrganismos.
Da prova de que um dos riscos da colocação do cateter é a infecção pode retirar-se a ilação de que esta não é uma consequência necessária, inevitável, da colocação do cateter epidural. A infecção pode ocorrer ou não.
Esta ilação é concordante com a prova de que a incidência de um abcesso como o que foi verificado na autora ocorre em virtude da contaminação da pele no local da punção do cateter ou do material de punção, dos anestésicos ou da contaminação do anestesista, obrigando à remoção de pelos e limpeza extensa da pele com antibióticos.
Esta matéria não permite, no entanto, concluir, como fez o acórdão recorrido, que se a infecção aconteceu foi porque o réu não colocou o cateter epidural com os cuidados de assepsia a que estava obrigado.
Em primeiro lugar, a referida matéria não contém a indicação das causas da infecção contraída pela autora. Ela descreve causas possíveis da ocorrência de abcessos, como o que foi verificado na autora.
Em segundo lugar, nenhuma das mencionadas causas pode ser tomada em consideração como causa da infecção contraída pela autora. Assim:
• A falta de assepsia do local da punção ou a falta de assepsia do médico não podem ser consideradas porque a autora alegou-as como causas da infecção, mas o tribunal julgou não provada a alegação. Como julgou não provada a alegação de que a infecção se deu por falta de preparação médico anestesista. Também esta causa da infecção terá de ser desconsiderada.
• As restantes causas – contaminação do material de punção e dos anestésicos – também não podem ser consideradas porque nem a autora as alegou como causa nem se provou que foram estas as causas que efectivamente contaminaram a autora.
A conclusão do acórdão de que a infecção ficou a dever-se à inobservância de cuidados de assepsia na colocação do cateter teria fundamento se se pudesse afirmar que, num tratamento como aquele a que foi submetida a autora, a infecção estava necessariamente associada à má execução do tratamento.
Sucede que, com base na matéria de facto apurada, não se pode fazer tal afirmação.
Por um lado, está provado que apesar da permanente higienização do bloco operatório, podem ocorrer, ainda que raramente infecções nosocomiais.
Por outro, um dos elementos do processo de que o acórdão recorrido se serviu para fundamentar a sua conclusão, concretamente a resposta do perito médico a um dos quesitos, aponta em sentido oposto. Com efeito, perguntado sobre se a ocorrência de abcesso epidural é independente da correcta actuação do médico, o perito médico respondeu que o abcesso epidural é complicação rara e habitualmente independente da correcta actuação do médico. Desta resposta retira-se que a infecção/abcesso subdural tanto é compatível com erros médicos na colocação do cateter epidural como com a inexistência de tais erros.
Do exposto segue-se o seguinte. Não estando provada a causa da infecção e não se podendo afirmar que ela está necessariamente associada a uma má execução do tratamento, não pode concluir-se que a autora ficou infectada porque o pessoal de que o réu se serviu para colocar o cateter epidural não observou os cuidados de assepsia a que estava obrigado. De resto, alguns deles foram observados, como decorre do facto de se ter provado que antes e durante o procedimento de colocação do cateter o bloco operatório foi higienizado e que, antes da colocação do cateter, foi colocado um penso estéril e um filtro antibacteriano.
Não se ignora que fazer recair, sobre o paciente, a prova dos cuidados que não foram observados ou das leges artis que foram violadas e que levaram à sua contaminação é um encargo de cumprimento muito difícil para ele. Como não se ignora que o estabelecimento hospitalar que realiza o acto médico e que domina todos os procedimentos do mesmo é a entidade que está em condições de explicar a razão da contaminação.
Sucede que estas circunstâncias, que podem intervir no momento da decisão relativa à matéria de facto, não são suficientes, aos olhos do artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, para inverter o ónus da prova, no sentido de fazer recair sobre o Hospital o ónus de provar que a colocação do cateter foi executada com observância de todas as condições de assepsia.
Assim, pese embora o respeito que nos merece o acórdão recorrido, é de afirmar que ele incorreu em erro ao decidir que a contaminação da autora se ficou a dever à execução defeituosa da colocação do cateter epidural.
Visto que a prova dos factos demonstrativos do cumprimento defeituoso da colocação do cateter epdidural era condição necessária da responsabilização do réu pelos danos decorrentes da infecção e que esta prova, que recaía sobre a autora, não foi feita, é de concluir no sentido da revogação do acórdão e da substituição dele por decisão a julgar improcedente a acção.
Em consequência, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, designadamente a de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro quando decidiu que o réu não tinha ilidido a presunção de culpa que recaía sobre si.
Decisão:
Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, substituindo-se o mesmo por decisão a julgar improcedente a acção e a absolver os réus (recorrentes) do pedido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrida ter ficado vencida nos recursos, condena-se a mesma nas respectivas custas.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Fernando Baptista
2.ª Adjunta: Isabel Salgado