COMPETÊNCIA MATERIAL
AÇÃO DECLARATIVA
INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
BENS COMUNS DO CASAL
TRIBUNAIS DE FAMÍLIA E MENORES
JUÍZO CÍVEL
REGIME APLICÁVEL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário


Carece de fundamento uma interpretação extensiva da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no seu âmbito as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. No âmbito da presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, instaurada por AA contra BB, veio a autora interpor o presente recurso de revista per saltum da decisão do Tribunal da 1.ª Instância que julgou o Juízo Central Cível absolutamente incompetente para a tramitação do presente processo e, consequentemente, indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada.

Inconformada com a decisão recorrida, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1. Na acção sub judice o Recorrente pretende discutir a natureza de uma quota de 66% que o Réu possui na sociedade comercial por quotas Farmácia E..., Lda., ou seja, se ela se trata de um bem próprio deste ou, se pelo contrário, é um bem comum do casal para efeitos de partilha a fazer no processo de inventário a correr por apenso à acção de divórcio entre as partes da presente acção.

2. Importa ainda referir que subjacente à forma como foi preenchido (com bens móveis) o capital social da quota aqui em discussão se pode colocar a questão de esse preenchimento ter sido feito apenas com um bem ou com dois, no caso aqui em discussão com uma ou com duas farmácias que pertencem à sociedade que detém a quota do Réu.

3. Correu termos um processo de arrolamento de bens por apenso acção de divórcio, nele tendo sido discutido se a quota devia ser arrolada ou não como bem comum, tendo a decisão final, que se encontra junta ao processo, concluído tratar-se de um bem próprio do aqui Réu.

4. Autora recorreu à presente acção sem que as partes no processo de inventário tivessem sido remetidas para os meios comuns a fim de nestes ser feita a discussão da natureza da quota, e fê-lo com base no disposto no artº 2º do CPC.

5. Excepto se for declarada a inversão do contencioso, o que não se verifica no caso presente, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurada como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva – artº 364º, nº 1 do CPC.

6. A decisão proferida na providência cautelar de arrolamento que correu por apenso ao inventário é provisória até à decisão definitiva que vier a ser proferida na acção autónoma/principal que vier a ser instaurada para conhecer de fundo da questão da natureza da quota que o Réu detém na sociedade Farmácia E..., Lda

7. O nº 2 do artº 122 da LOSJ limita-se atribuir competência em razão da matéria aos tribunais de família e menores apenas nos processos de inventário ali identificados, o que não é manifestamente o caso presente.

8. Nem o elemento literal nem o elemento racional da lei - a competência em razão da matéria determina-se pela natureza das questões suscitadas nos autos -permitem que se faça uma interpretação alargada do nº 2 do artº 122º como aquela que foi feita na decisão aqui objecto de recurso.

9. A menos que a lei estipule de forma expressa em sentido contrário, a competência material do tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida e não pela ligação da questão ou questões em causa no processo de inventário, situação que até está previsto no artº 1105º, nº 5 do CPC.

10. “Nem faria sentido que os tribunais de família tivessem competência para acções de todo o tipo (contratos, reais, etc.) que têm total autonomia relativamente ao inventário, sendo certo que nem sequer correm por apenso. Os tribunais de família terão competência para apreciar e decidir essas questões quando elas devam ser decididas no processo de inventário a título incidental (cfr. art. 91º do CPC); quando isso não acontece - designadamente porque os interessados foram remetidos para os meios comuns no que toca a essas questões - essa competência deixa de existir e passa a pertencer ao tribunal que, nos termos da lei, tem competência para a concreta acção que vem a ser instaurada na sequência daquela remessa para os meios comuns.”

11. A nossa jurisprudência está dividida quanto a esta questão.

Mas mesmo que seja outro o entendimento do tribunal ad quem, o que só por mera lógica de raciocínio se admite, ainda assim o despacho de indeferimento liminar é extemporâneo, não devendo ele ser proferido em sede de apreciação liminar. Assim,

12. Como decorre do artº 560º, nº 1 do CPC, só em circunstâncias manifestas ou evidentes deve o juiz indeferir liminarmente uma petição inicial, entendimento que tem subjacente a ideia de tanto quanto possível ser aproveitado todo o processado já realizado, cabendo ao Juiz fazer essa gestão processual.

13. Não sendo evidente a existência de uma excepção dilatória no caso presente – não decorre de lei expressa e a própria jurisprudência está divida quanto à competência em razão da matéria para conhecer das acções como a presente – parece-nos evidente que não é evidente (passe o pleonasmo) a existência de uma excepção dilatória no caso presente, razão pela qual não faz sentido, em face, da entendimento da forma como deve ser feita a gestão processual, que haja lugar ao indeferimento liminar da p.i. no caso presente

14. O que faria sentido é que o Réu fosse citado para contestar e findos os articulados se o entendimento do tribunal a quo for o de que é materialmente incompetente para conhecer da presente acção, então sim, por ter tal entendimento, não porque seja evidente, deve proferir despacho pré-saneador nos termos do nº 2 do artº 590º e do nº 2 do artº 99º, ambos do CPC.

15. Pelo que, se outra razão não houvesse e há, também pela violação do dever de gestão processual se impõe a revogação do despacho recorrido e consequentemente, ordenar a citação do Réu para contestar.

16. A decisão recorrida violou os arts. 40º da LOSJ e os arts 6º e 590º do CPC.

Termos em que,

a) Deve julgar-se procedente o presente recurso e consequentemente revogar-se o despacho recorrido, com todas as consequências legais.

Ou quando assim se não entenda, o que só por mera lógica de raciocínio se admite,

b) Deve julgar-se procedente o presente recurso, ordenando-se a citação do Réu, prosseguindo-se os ulteriores termos legais.”.

2. Tendo o recurso per saltum sido admitido por despacho do Juiz do Tribunal da 1.ª instância, subiram os autos a este Supremo Tribunal.

Veio a ser proferido despacho da relatora do seguinte teor:

“Tendo a decisão recorrida indeferido liminarmente a petição inicial, deveria o juiz, no despacho de admissão do recurso, ter ordenado a citação do réu, tanto para os termos do recurso, como para os da causa, em conformidade com o disposto com o n.º 7 do art. 641.º do CPC. Não o tendo feito, verifica-se uma nulidade processual, por falta de citação, de conhecimento oficioso (arts. 187.º, alínea a), 188.º, alínea a), 196.º e 200.º, n.º 1, do CPC), devendo proceder-se à sua sanação.

Deste modo, determina-se o cumprimento do art. 641.º, n.º 7, do CPC, bem como a anulação dos actos posteriores ao despacho de recebimento do recurso.”.

Oportunamente, veio o réu contestar, não se pronunciando sobre a questão da competência.

Não apresentou resposta ao recurso interposto pela autora.

3. Tendo em consideração o valor da causa (€ 55.000,00), o valor da sucumbência (superior a € 15.000,00), a legitimidade da recorrente, assim como o teor da decisão recorrida e o facto de o objecto do recurso se restringir a questões de direito, não se verificam obstáculos à admissibilidade do recurso de revista per saltum (cfr. arts. 678.º, n.ºs 1 e 3, 644.º, n.º 1, alínea a), e 674.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).

Por outro lado, e ainda que a recorrente não tenha requerido, em sede de conclusões da alegação, a subida do recurso per saltum ao Supremo Tribunal de Justiça, tal como exigido pelo n.º 1 do art. 678.º do CPC, a circunstância de ter expressamente enunciado essa vontade no seu requerimento de interposição do recurso faz com que, numa perspectiva não estritamente formalista, tal irregularidade não obste à admissibilidade do presente meio de impugnação (cfr., neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-09-2012, proc. n.º 565/09.1TVLSB.S1, não publicado).

4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

• Determinação do tribunal competente, em razão da matéria, para apreciação da presente acção;

• Subsidiariamente, por ocorrer violação do dever de gestão processual, determinação da revogação do despacho recorrido com a consequente citação do réu para contestar.

5. Atendendo aos elementos constantes dos autos, são os seguintes os factos a considerar para a decisão do presente recurso:

1. Da petição inicial apresentada pela autora no âmbito dos presentes autos são formulados os seguintes pedidos: de declaração como bem comum da quota no valor de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros) que o réu tem na sociedade Farmácia M..., Lda, com todas as consequências legais, nomeadamente para efeitos da partilha do património comum de autora e réu; em alternativa, de determinação da compensação ao património comum de metade do valor da “Farmácia E..., Lda” pelo património próprio do réu, o que se traduz na prática num crédito, da autora sobre o réu, a ser considerado para efeitos de partilha, de um quarto (1/4) de 66% do valor pelo qual esta venha a ser avaliada; de determinação da compensação ao património comum de metade (1/2) do valor da “Farmácia A...... .....” pelo património próprio do réu, o que se traduz na prática num crédito, da autora sobre o réu, a ser considerado para efeitos de partilha, de um quarto (1/2) de 66% do valor pelo qual esta venha a ser avaliada; de determinação da compensação ao património comum na parte que respeita à quota de 4% detida pela própria sociedade no capital social, o que se traduz na prática num crédito da autora sobre o réu, a ser considerado na partilha, de um quarto (1/4) de 264% (4% de 66%) do valor actual da Farmácia E..., Lda; de determinação da compensação ao património comum na parte que respeita à quota de 4% detida pela própria sociedade no capital social, o que se traduz na prática num crédito da autora sobre o réu, a ser considerado na partilha, de metade (1/2) de 132º (2% de 66%) do valor actual da “Farmácia A...... .....”;

2. Alegou a autora nos arts. 1.º a 8.º da petição inicial que: autora e réu celebraram casamento em .../.../1970, sem convenção antenupcial; por sentença transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre autora e réu; corre termos no Tribunal de Família e Menores de ... – J2, sob o n.º 536/22.2..., o inventário para partilha de bens do dissolvido casal; o réu é titular de uma quota de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros) na sociedade por quotas “Farmácia M..., Lda” com sede na Rua ...; entre autora e réu é objecto de litígio a questão de saber se esta quota é bem próprio deste ou, se pelo contrário, se trata de um bem comum do casal; para efeitos da partilha a realizar no processo de inventário, importa que o tribunal arbitre este diferendo declarando se a referida quota se trata de bem próprio do réu, ou, de um bem comum do casal.

6. A questão essencial que constitui objecto do presente recurso reconduz-se a saber em que tribunais reside a competência material para apreciar a presente causa: se nos juízos de família e menores, como entendeu o tribunal recorrido, por apelo à norma do art. 122.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ); se nos juízos cíveis, como defende a recorrente autora.

O n.º 2 do art. 122.º da LOSJ dispõe o seguinte:

“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”.

A recorrente argumenta que o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ se limita a atribuir a competência em razão da matéria aos tribunais de família e menores nos processos de inventário ali identificados – o que, alega, não é manifestamente o caso presente –, acrescentando que, “a menos que a lei estipule de forma expressa em sentido contrário, a competência material do tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida e não pela ligação da questão ou questões em causa no processo de inventário, situação que até está prevista no artº 1105º, nº 5 do CPC.”.

Vejamos.

A competência em razão da matéria atribui a diferentes espécies ou categorias de tribunais, que se situam entre si no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre eles, o conhecimento de determinados domínios do Direito.

De acordo com o art. 65.º do CPC, “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”, estipulando o art. 40.º da LOSJ o seguinte:

“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”.

Não oferece dúvidas que a competência dos tribunais (a medida da sua jurisdição) se afere, na lição de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1963, pág. 89), em função dos termos em que a acção é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos. “A competência do tribunal – ensina Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum»”.

Quer isto dizer que, para a aferição da competência, se deve atender à natureza da relação jurídica material tal como esta é apresentada em juízo, nos moldes em que esta é unilateralmente delineada pelo autor, por referência ao pedido e à causa de pedir formulados.

Tal entendimento, constantemente acolhido por este Supremo Tribunal (cfr., entre outros, os acórdãos de 29-01-2019, proc. n.º 12080/16.2T8LRS.L1.S2, de 10-01-2023, proc. n.º 668/20.1T8PBL.C1.S1, de 14-03-2023, proc. n.º 1154/20.5T8VIS.C1.S1, de 28-03-2023, proc. n.º 13006/20.4T8LSB-A.E1-B.S1, e de 23-01-2024, proc. n.º 493/23.8T8VNG.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), tem, também ele, sido afirmado pelo Tribunal dos Conflitos, que reiteradamente vem considerando que o que releva, para efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo (neste sentido, ver, a título de exemplo, os acórdãos de 03-03-2011, proc. n.º 014/10, de 05-05-2011, proc. n.º 029/10, e de 18-02-2016, proc. n.º 043/15, disponíveis em www.dgsi.pt).

Com a presente causa, visa a autora determinar a titularidade da quota de € 6.600,00 na sociedade por quotas “Farmácia M..., Lda”, invocando existir controvérsia a respeito da questão de saber se tal quota é um bem próprio do réu ou, ao invés, um bem comum do ex-casal.

Coloca-se, pois, a questão – que, tanto quanto foi possível apurar, não foi até à data objecto de apreciação pela jurisprudência deste Supremo Tribunal – de saber se integra a previsão constante do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ (“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”) a acção, intentada após instauração de processo de inventário subsequente a divórcio, destinada a determinar se um bem consistente numa quota social integra o património comum ou o património próprio de um dos ex-cônjuges.

A jurisprudência dos Tribunais da Relação encontra-se dividida a este respeito, identificando-se acórdãos que defendem que são os tribunais cíveis os competentes para julgar acções declarativas intentadas na sequência de processos de inventário para partilha de bens comuns subsequentes a divórcio (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020, proc. n.º 1029/20.8T8PRD.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 11-05-2023, proc. n.º 3723/22.0T8FAR.E1, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2023, proc. n.º 754/23.6T8LRA.C1, e de 21-05-2024, proc. n.º 2944/23.2T8LRA, todos disponíveis em www.dgsi.pt), enquanto outros arestos sustentam que tal competência material reside nos tribunais de família (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2021, proc. n.º 592/20.8T8PBL.C1 (com voto de vencido) e de 16-05-2023, proc. n.º 612/22.1T8CTB.C1, consultáveis em www.dgsi.pt). Já o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2024, proc. n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1, in www.dgsi.pt, adoptou uma posição intermédia, defendendo que a competência material para a acção declarativa de condenação, intentada na sequência da suspensão de inventário para separação de meações, subsequente a divórcio, por força da remessa para os meios comuns da decisão da questão inventarial controvertida, cabe, por regra, aos juízos de família e menores, apenas se excluindo tal competência se a situação a decidir for para além da partilha de determinado bem e a sua averiguação/resolução se impuser a outros intervenientes processuais (que não apenas os ex-cônjuges).

A questão é comumente analisada a propósito da competência para a apreciação da acção declarativa que é intentada na sequência da remessa, operada em processo de inventário, para os meios comuns, prevista no art. 1093.º, n.º 1, do CPC, no qual se prescreve o seguinte:

“Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”.

No caso sub judice, não é claro, através da leitura dos esclarecimentos prestados pela recorrente no requerimento datado de 17-06-2024, que essa remessa tenha sido decretada na sequência da reclamação à relação de bens apresentada no processo de inventário, circunstância que, porém, não altera os pressupostos com base nos quais a discussão em torno da questão da competência material tem sido equacionada.

A corrente jurisprudencial que se pronuncia pela competência dos tribunais cíveis alicerça o seu entendimento nos seguintes argumentos: (i) as decisões a tomar nos meios comuns sê-lo-ão fora de um processo de inventário, num processo autónomo, não fazendo sentido que o juízo de família e menores decida no âmbito de um inventário no sentido da remessa para os meios comuns e depois seja o mesmo juízo a decidir questões cíveis relacionadas com direitos reais, de natureza contratual ou de competência dos tribunais do comércio, num desvio à regra da especialização dos tribunais; (ii) a matéria que extravasa o processo de inventário extravasa também o âmbito da jurisdição da família e menores e cairá no âmbito estritamente cível; (iii) não resulta expressamente da lei que os juízos de família e menores sejam competentes para apreciar as acções declarativas em apreço, sendo que a referência do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ aos processos de inventário se esgota em si mesma; (iv) a competência para a tramitação de acções comuns encontra-se definida no art. 117.º, alínea a), da LOSJ, salvo nos casos em que a mesma seja atribuída aos juízos locais cíveis, por força do art. 130.º, n.º 1, igualmente da LOSJ; (v) não resulta do processo legislativo que levou à introdução do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ que tenha existido o propósito de incluir na competência dos juízos de família e menores acções comuns instauradas por força do regime previsto no art. 1093.º, n.º 1, do CPC.

Por seu turno, a corrente jurisprudencial que insere no âmbito de competência material dos tribunais de família as acções declarativas sob escrutínio elenca os seguintes fundamentos: (i) também nesta sede se fazem sentir as razões que determinam que a competência para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, resida nos juízos de família e menores, que se prendem com a relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, considerando que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efectuar no inventário subsequente; (ii) se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário e, designadamente, que a competência dos juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário, e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez; (iii) caso não existisse decisão de suspender o processo de inventário para remessa para os meios comuns relativamente a uma determinada questão pela sua complexidade, sempre seria o juízo de família e menores a decidir a questão.

7. Há que tomar posição, começando por analisar o regime legal aplicável.

De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 1083.º do CPC, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Estatui, por seu lado, o n.º 1 do art. 1133.º do mesmo diploma que, “decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”.

Como se referiu, o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ preceitua que “os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”. Esta norma, como advertem Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 669), terá de ser devidamente adaptada ao novo quadro normativo relacionado com a distribuição de competências relativamente aos processos de inventário, que alterou profundamente o regime de exclusividade que, nesta matéria, era atribuída aos cartórios notariais pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março.

Ainda que o art. 1133.º do CPC não preveja, de forma expressa, que o inventário requerido na sequência de divórcio seja tramitado por apenso ao processo judicial onde este foi decretado – ao contrário do que estipulava o n.º 3 do art. 1404.º do CPC de 1961, na versão conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro –, tal tramitação por apenso decorrerá do regime previsto no n.º 2 do art. 206.º do CPC (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, ob. cit., pág. 669), de acordo com o qual, “as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam”.

Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pinheiro Torres (O novo regime do processo de inventário e outras alterações na legislação processual civil, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 157) explicitam que a dependência do inventário perante a antecedente acção matrimonial que resulta do art. 122.º, n.º 2, da LOSJ se explica pelo facto de a instauração do inventário para partilha dos bens comuns ser desencadeada pelo que ocorre num outro processo judicial. Sublinham os autores que “principalmente agora que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário (art. 1083.º/1) faz todo o sentido que os processos de inventário sejam consequência de uma decisão judicial que tenha decretado o divórcio ou a separação de pessoas e bens ou que tenha anulado o casamento devam ser tramitados nesses tribunais”.

Com efeito, como igualmente dão conta Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa (ob. cit., pág. 668), “há que considerar que a separação da meação dos bens comuns que o inventário visa concretizar é decorrência direta da dissolução do casamento ou dos demais eventos referidos. Por opção legal, tais inventários correm no tribunal do qual emanou a decisão judicial motivadora da divisão do acervo comum do casal. Aliás, sendo aqueles litígios da competência material dos juízos de família e menores, nos termos do art. 122.º/1 da LOSJ, compreende-se que, para tratar do processo de inventário, se mantenha a competência em razão da matéria.”.

E quanto às acções declarativas, como a presente, intentadas na sequência de um processo de inventário subsequente a divórcio, em que se discute a determinação dos bens que compõem o património comum: integrar-se-ão estas na previsão normativa contida no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ?

A resposta a tal questão dependerá dos resultados da actividade interpretativa desenvolvida a respeito da norma em causa. Neste exercício, há que ter em conta, como notou o acórdão deste Supremo Tribunal de 22-06-2023 (proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, “a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações.”.

Importa, assim, lançar mãos dos critérios hermenêuticos previstos no art. 9.º do Código Civil para determinar o sentido da norma consagrada no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ, apelando aos elementos gramatical, teleológico (consistente no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), sistemático (que compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma interpretanda) e histórico (que abrange elementos relativos à história do preceito, desde logo a história evolutiva do regime em causa) - cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 181-184.

Segundo o comando ínsito no art. 9.º do CC, há que partir da letra da lei – do seu enunciado linguístico – para perscrutar o pensamento que lhe está subjacente, funcionando o elemento gramatical simultaneamente como limite, uma vez que não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei o pensamento legislativo “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do CC) – cfr. Baptista Machado, ob. cit., págs. 188-189.

Sob a perspectiva da interpretação declarativa, é inegável que a letra da norma em causa (“os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio (...)”) restringe a competência dos tribunais de família aos processos de inventário instaurados em consequência de acções matrimoniais, não abarcando, na sua literalidade, acções declarativas, ainda que as pretensões nas mesmas deduzidas pudessem ser apreciadas, por via incidental, no processo de inventário (cfr. art. 91.º do CPC).

Será que a razão de ser da norma postula a sua aplicação a estes casos, que não são directamente abrangidos pela sua letra?

Não nos parece.

Com efeito, se é verdade que se poderá verificar uma vantagem, em termos de celeridade e de boa administração da justiça, na concentração, no mesmo tribunal, da competência para a resolução das questões que se prendem com a definição do acervo a partilhar pelo ex-casal, esta vantagem seria neutralizada pelo desvio à especialização que implicaria atribuir a um tribunal de família e menores o julgamento de acções em que se discutirão temas estranhos às matérias relativas ao estado civil das pessoas e família, a menores e filhos maiores, e ao domínio tutelar educativo e de protecção que tipicamente integram a sua competência (cfr. arts. 122.º a 124.º da LOSJ).

Ora, é comumente sabido que o alargamento de jurisdições especializadas constituiu um objectivo estrutural da reforma do sistema judiciário, pelas óbvias vantagens que oferece, sob o ponto de vista da eficiência processual, ante a complexidade e especificidade normativas dos diversos ramos do direito substantivo. Não é, pois, configurável que o legislador, intensamente comprometido com o princípio da especialização, pretendesse estender a competência dos tribunais de família nos termos defendidos pelo tribunal a quo – para além dos processos de inventário que constituem decorrência imediata da dissolução do casamento ou eventos análogos –, justamente para causas que, presumivelmente, apresentarão uma complexidade atípica, não compaginável com a tramitação simplificada e as limitações probatórias inerentes ao processo de inventário.

Na verdade, em acções como a presente – ao contrário do que sucede com o processo de inventário – não está em causa a concretização da separação da meação dos bens comuns do ex-casal. Nesta medida, entende-se que apenas o processo de inventário – e já não as acções declarativas, como a presente, em que se discutam questões prejudiciais relativamente ao mesmo inventário – constitui uma decorrência directa da dissolução do casamento por sentença judicial, justificando a competência por conexão estabelecida pelo n.º 2 do art. 122.º da LOSJ.

Sob outra perspectiva, dir-se-á que alargar aos tribunais de família a competência para julgar as mencionadas acções declarativas significaria reconhecer a existência de um critério desigual, que não se nos afigura materialmente fundado, de aferição da competência material quanto a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos processos de inventário referidos no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, relativamente a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos restantes processos de inventário judicial. Também nestes últimos, certamente, se sentiriam as vantagens de ter o mesmo tribunal, já familiarizado com a matéria do processo de inventário, a decidir questões que lhe são prejudiciais – e o legislador não consagrou qualquer competência por conexão fundamentadora de uma excepção às regras gerais que disciplinam a competência em razão da matéria.

Deste modo, afigura-se carecer de fundamento, pelas razões expostas, uma interpretação extensiva, a concretizar mediante extensão teleológica, da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no âmbito desta norma as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.

Significa o exposto que a competência material para apreciar a presente acção reside, nos termos do disposto no art. 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, no Juízo Central Cível em que a mesma foi regularmente proposta.

8. Fica assim prejudicada a apreciação da questão subsidiária suscitada (ocorrendo violação do dever de gestão processual, determinação da revogação do despacho recorrido com a consequente citação do réu para contestar).

9. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, determinando-se a remessa do processo ao tribunal recorrido, por ser o materialmente competente para a preparação e julgamento da presente acção declarativa.

Custas pelo recorrido

Lisboa, 16 de Janeiro de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Emídio Santos (revendo a posição que subscrevi no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 4-05-2021, no processo n.º 592/20.8T8PBL.C1)

Isabel Salgado